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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS
UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
NVEL DOUTORADO
GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS:
OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O PROCESSO DE CONSTRUO DE
UMA ESFERA PBLICA PLURAL E DEMOCRTICA MUNDIAL
SUZANA MARIA GAUER VIEIRA
Orientador: Prof. Dr. Jos Luis Bolzan de Morais
So Leopoldo, abril de 2013
SUZANA MARIA GAUER VIEIRA
GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS:
OS MOVIMENTOS SOCIAIS E O PROCESSO DE CONSTRUO DE
UMA ESFERA PBLICA PLURAL E DEMOCRTICA MUNDIAL
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Direito da rea de Cincias
Jurdicas da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, para obteno do ttulo de
Doutora em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Jos Luis Bolzan de Morais
So Leopoldo, abril de 2013
Catalogao na Publicao: Bibliotecria Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
V665g Vieira, Suzana Maria Gauer
Globalizao, democracia e direitos humanos: os movimentos sociais e o processo de construo de uma esfera pblica plural e democrtica mundial / por Suzana Maria Gauer Vieira. -- 2013.
646 f. ; 30cm. Tese (Doutorado) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos -
Unisinos. Programa de Ps-Graduao em Direito, So Leopoldo, RS, 2013.
Orientador: Prof. Dr. Jos Luis Bolzan de Morais. 1. Direito - Globalizao. 2. Democracia. 3. Direitos Humanos. 4.
Movimentos sociais. I. Ttulo. II. Morais, Jos Luis Bolzan de.
CDU 34: 339.9
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Jos Luis Bolzan de Morais, pela orientao e compreenso.
Aos Professores do Programa de Ps-Graduao em Direito da UNISINOS,
pelos ensinamentos ministrados.
Aos funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Direito da UNISINOS,
em especial a Secretria Vera Loebens, pela ateno, educao e pacincia
dedicadas aos alunos do CPGD.
Aos meus pais, Dorval e Hilria Elizabeth, humildes trabalhadores que
dedicaram suas vidas educao dos filhos e por terem me ensinado o respeito e o
amor pela justia.
A meu companheiro, Danilo, pelo amor, amizade e pacincia.
A Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES),
pelo apoio indispensvel realizao da presente pesquisa.
RESUMO
A presente pesquisa analisa os processos de renovao da poltica e do direito, a partir da emergncia da prxis poltica emancipatria dos cidados e movimentos sociais, com o objetivo de instituio de uma esfera pblica crtica, plural e democrtica na cena pblica internacional contempornea. Para tanto, investigam-se as razes das crises dos paradigmas sociais, polticos e cientificistas instrumentais e a instituio de novos modos de sociabilidade e de conhecimento fundamentados na afirmao de processos cooperativos e dialgicos no mbito das prticas socioculturais, filosficas e cientficas, resgatando-se as contribuies desenvolvidas pelo pensador Jrgen Habermas, por meio da elaborao do paradigma do agir comunicativo e do modelo de democracia deliberativa. Pretendem-se demonstrar as contribuies dos movimentos sociais para a criao de uma nova cultura poltico-jurdica democrtica e cosmopolita, frente aos processos autoritrios e mercantilistas que orientam a globalizao econmica nas sociedades contemporneas. O objetivo da pesquisa concentra-se, dessa forma, na anlise das crises de natureza social, poltica e jurdica das sociedades contemporneas e nas propostas para encaminhar a sua superao, a partir da emergncia de novos paradigmas tico-polticos democrticos. Nos trs primeiros captulos procede-se a uma reavaliao da herana filosfica, sociolgica e jurdica desenvolvida na modernidade, com o propsito de melhor entender as mudanas produzidas nas sociedades contemporneas, especialmente com o desenvolvimento da globalizao. J o estudo sobre as transformaes sociais produzidas pela globalizao foi privilegiado nos dois ltimos captulos, particularmente visando apreender os efeitos sociais, polticos e jurdicos desse processo, diante dos retrocessos experimentados nos campos da democracia e dos direitos humanos, em razo da adoo generalizada das polticas neoliberais privatistas, o que vm sendo denunciado por um conjunto de cidados e movimentos sociais crticos que lutam para que sejam reconhecidos como novos atores polticos com maior influncia no cenrio decisrio internacional. No primeiro captulo, trata-se da crise da filosofia da conscincia e do novo paradigma comunicativo proposto por Jrgen Habermas para superar as dificuldades do modelo de racionalidade logocntrico, instrumental e cientificista. No segundo captulo so estudadas as orientaes ticas contemporneas - liberais, comunitaristas e a tica do discurso, atravs das contribuies de John Rawls, Charles Taylor e Habermas. No terceiro captulo, examinam-se as relaes entre sociedade e direito na modernidade, com a retomada das contribuies dos principais tericos sociais clssicos e contemporneos. No quarto captulo, investiga-se a renovao do significado e avaliao da democracia, com a retomada do pensamento democrtico desenvolvido no mundo contemporneo e o surgimento dos novos movimentos sociais, com nfase nas contribuies de Charles Taylor, Hannah Arendt, Habermas e dos estudiosos contemporneos sobre os novos movimentos sociais. J no quinto captulo, promove-se a investigao sobre o significado e principais efeitos da globalizao, com o intuito de estudar as razes das crises e transformaes do Estado contemporneo, as dificuldades e as mudanas no entendimento da democracia e dos direitos humanos, assim como as possibilidades de criao de uma opinio pblica plural e crtica global incentivada pela prxis emancipatria dos movimentos sociais frente ao atual processo de crise social mundial. Palavras-chave: Globalizao. Democracia. Direitos Humanos. Movimentos sociais.
ABSTRACT The research presented here analyzes law and politics renewal from the urgency of emancipatory political praxis of citizens and social movements, aiming at establishing a critical, plural and democratic public domain in the contemporary international public arena. To that end, we investigate the reasons behind the crisis on social, political and instrumental scientific paradigms; and the launching of new sociabilities and knowledge based on the acknowledgement of cooperative and dialogical processes within sociocultural, philosophical and scientific practices. For that purpose, contributions developed by Jrgen Habermas were taken into consideration through the elaboration of the communicative acting paradigm and the deliberate democracy model. We intend to expose the contributions from social movements for the conception of a new democratic and cosmopolitan political-legal culture when facing authoritarian and mercantilist processes that lead economical globalization in contemporary societies. The main goal of this research is, therefore, to analyze crisis of social, political and legal characters in contemporary societies and to propose ways to forward their recovery; from the emergence of new democratic ethical-political paradigms. In the first three chapters, we discuss a revaluation of a philosophical, sociological, political and legal legacy developed in modernism as to better comprehend the changes generated in contemporary societies; particularly when considering the development of globalization. In the last two chapters, writings on social transformations produced by globalization are brought into light in order to capture social, political and legal effects of said process during the experienced setbacks in the field of democracy and human rights due to the widespread adoption of neoliberal privatization policies. Such practices have been reported by a group of citizens along with critical social movements that fight for their right to be acknowledged as new and more influential political players in the international decision-making scene. The first chapter approaches the crisis of the philosophy of awareness and the new communicative paradigm proposed by Jrgen Habermas to overcome difficulties in logocentric, instrumental and scientistic rationales. In the second chapter, contemporary ethical orientations are discussed whether liberal, communitarian and the ethics of speech through the contributions by John Rawls, Charles Taylor and Habermas. In the third chapter, the relations between society and law in modernism are examined through the contributions from the main social - classical and contemporary - theorists. In the fourth chapter, we investigate the renewal of democracys meaning and evaluation through the awakening of the development of democratic thinking in the contemporary world and the emergence of new social movements, focusing on the contributions by Charles Taylor, Hannah Arendt, Habermas and other contemporary thinkers. In the fifth chapter, we promote research on meaning and other globalization effects in order to analyze the reasons behind crisis and transformations in the contemporary State, difficulties and changes in the understanding of what democracy and human rights are, as well as the possibilities of creating a plural public opinion along with global criticism encouraged by the social movements empowerment praxis when facing a worldwide social crisis. Key-words: Globalization. Democracy. Human Rights. Social movements.
RIASSUNTO
Questa ricerca analizza i processi di rinnovamento della politica e del diritto, dalla nascita di emancipazione prassi politica dei cittadini e dei movimenti sociali, con lobiettivo di creare una sfera pubblica critica, plurale e democratica in contemporanea scena Internazionale. Pertanto, per accertare i motivi di crisi i paradigmi dei modi strumentali e stabilire sociali, politiche e scientista nuove di socialit e di conoscenza in base ai processi di affermazione e le prassi cooperative dialogiche nellambito socio-culturale, filosofica e scientifica, il salvataggio pensatore contributi sviluppato da Jrgen Habermas, attraverso lo sviluppo del paradigma dellagire comunicativo e il modelo dela democrazia deliberativa. Intendete di dimostrare il contributo dei movimenti sociali per creare una nuova cultura politica e democratica faccia legale cosmopolita di processi autoritari che guidano e mercantilista globalizzazione economica nelle societ contemporanee. Lobiettivo della ricerca si concentra quindi su unanalisi delle crisi sociali, delle societ politiche e giuridiche contemporanee e le proposte per superarli in avanti, dalla nascita di nuovi paradigmi etici e politici democratici. Nei primi tre capitoli procedere ad una nuova valutazione del patrimonio filosofico, sviluppato sociologico e giuridico nella modernit, al fine di meglio comprendere i cambiamenti in atto nelle societ contemporanee, in particolare con lo svuluppo della globalizzazione. Ma lo studio delle trasformazioni sociali provocati dalla globalizzazione stato privilegiato nel corso degli ultimi due capitoli, in particolare al fine cogliere il processo sociale, politico e giuridico che, di fronte a battute darresto com esperienza nel campo della democrazia e dei diritti umani, a causa della diffusa adozione di politiche privatizzazione neoliberista, che sono stati denunciati da un gruppo di cittadini e movimenti sociali critici che lottano per essere riconosciuti come nuovi attori politici con maggiore influenza nelle decisioni internazionali scenario. Nel primo capitolo, la crisi della filosofia della coscienza e il nuovo paradigmi comunicative proposto da Jrgen Habermas per superare la difficolt del modello della razionalit logocentrica, strumentale e scientista. Il secondo capitolo studia le linee guida etiche contemporanee liberali, comunitaristi e letica del discorso, attraverso i contributi di John Rawls, Charles Taylor e Habermas. Nel terzo capitolo, si esamina il rapporto tra diritto e socit in tempi moderni, con la represa dei principal contributi dei teorici sociali classici e contemporanei. Il quarto capitolo indaga il rinnovo del significato di democrazia e di valutazione, com la ripresa del pensiero democratico sviluppato nel mondo contemporanei su e lemergere di nuovi movimenti sociali, con particolare riguardo ai contributi di Charles Taylor, Hannah Arendt, Habermas e studiosi contemporanei su i nuovi movimenti sociali. Nel quinto capitolo, promuove la ricerca sugli effetti significato e principali della globalizzazione, al fin di studiare le ragioni per le crisi e le transformazioni dello Stato contemporaneo, le difficolt el cambiamenti nella compreensione della democrazia e dei diritti umani, cosi come la possibilit di creare una opinione pubbica critica e pluralista alimentato da globali prassi di emancipazione del movimenti sociali alla deriva attuale di crisi mondiale. Parole Chiave: Globalizzazione. Democrazia. Diritti umani. Movimenti sociali.
SUMRIO 1 INTRODUO....................................................................................................... 10 2 FILOSOFIA E CINCIA NA MODERNIDADE: OS PENSADORES DA MODERNIDADE E OS NOVOS PARADIGMAS PS-METAFSICOS ................ 27 2.1 OS PENSADORES MODERNOS E A FORMAO DO PARADIGMA DA FILOSOFIA DO SUJEITO................................................................................... 27 2.1.1 A filosofia empirista de Francis Bacon, o racionalismo de Ren Descartes e o nascimento da concepo moderna de cincia ................................... 27 2.1.2 As contribuies do empirismo de Hume e do racionalismo crtico de Kant ................................................................................................................ 31 2.1.2.1 As contribuies do empirismo de David Hume para as cincias no mundo moderno ....................................................................................................... 31 2.1.2.2 A teoria do conhecimento e a filosofia tica e poltica de Kant .................... 38 2.1.2.2.1 O racionalismo crtico e a teoria do conhecimento no pensamento de Kant ................................................................................................................... 38 2.1.2.2.2 A filosofia tica e poltica de Kant .............................................................. 55 2.2 A RECONSTRUO DO DISCURSO FILOSFICO HISTRICO-CRTICO DA MODERNIDADE E AS POSSIBILIDADES DE SUPERAO DA FILOSOFIA
DO SUJEITO .................................................................................................... 61 2.2.1 O novo paradigma da linguagem e as tarefas hermenuticas da filosofia .......................................................................................................................... 62 2.2.1.1 A filosofia hermenutica de Martin Heidegger............................................... 62 2.2.1.1.1 A crtica filosofia metafsica e a virada lingustica realizada pela filosofia hermenutica de contedo de Heidegger .................................................. 62
2.2.1.2 A hermenutica filosfica de Hans-Georg Gadamer ................................... 76 2.2.1.2.1 A obra Verdade e mtodo e o projeto da hermenutica filosfica: o novo
paradigma da linguagem e a tradio filosfica e cultural como herana a ser atualizada nas cincias hermenuticas do esprito ............................. 79 2.2.1.3 A hermenutica crtica e reconstrutiva de Jrgen Habermas e o debate posterior publicao da obra Verdade e mtodo de Gadamer .............. 90 2.2.1.3.1 O debate entre hermenutica filosfica e hermenutica crtica ................ 90 2.2.1.3.2 O paradigma da razo comunicativa e as possibilidades de superao da filosofia do sujeito .................................................................................... 114 3 AS FILOSOFIAS TICO-POLTICAS CONTEMPORNEAS: AS TEORIAS
TICO-POLTICAS LIBERAIS E COMUNITARISTAS E A TICA DO DISCURSO DE JRGEN HABERMAS ................................................................................. 131
3.1 O LIBERALISMO POLTICO DE JOHN RAWLS E A RETOMADA DO DEBATE SOBRE A JUSTIA POLTICA NO CENRIO CONTEMPORNEO................131 3.2 A FILOSOFIA TICA DE CHARLES TAYLOR: AS FONTES DO SELF E A CONSTRUO DA IDENTIDADE MODERNA............................................... 134 3.2.1 As configuraes morais do agente humano e o papel dos valores na formao da subjetividade e das instituies modernas .........................134
3.2.2 A crtica ao naturalismo cientificista, ao utilitarismo e ao liberalismo tico-poltico como expresso de um self desprendido e desvinculado dos valores ticos expressivos da vida humana autntica......................151 3.2.3 A formao da identidade no espao moral e o sentido do bem na vida humana comunitria.................................................................................... 159 3.3 A TICA DO DISCURSO DE JRGEN HABERMAS E A PROPOSTA DIALTICA ALTERNATIVA AOS MODELOS TICO-POLTICOS LIBERAL E COMUNITARISTA........................................................................................ 183 3.3.1 O discurso filosfico tico-crtico e o significado da modernidade........187 3.3.2 A tica comunicativa de Jrgen Habermas e a proposta de superao dos paradigmas tico-polticos liberal e comunitarista concorrentes .......... 194
4 MODERNIDADE, SOCIEDADE E DIREITO ...................................................... 258 4.1 A ORIGEM DA SOCIOLOGIA NA MODERNIDADE: A FILOSOFIA DIALTICA
E O NASCIMENTO DA CRTICA HISTRICO-SOCIAL............................. 258 4.1.1 Alienao e histria na filosofia de Hegel ................................................. 258 4.1.2 Marx e a natureza social do homem: a concepo de prxis histrico- social e a crtica alienao e mercantilizao nas sociedades capitalistas............................................................................... 271
4.2 A SOCIOLOGIA CLSSICA E A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS ........... 278 4.2.1 Durkheim e o nascimento da sociologia ................................................... 279 4.2.2 Modernidade, sociedade e direito na obra de Max Weber ..................... 281 4.2.2.1 Max Weber, a modernidade e o processo de racionalizao e desencantamento da vida social ................................................................. 281 4.2.2.2 Sociedade e direito na obra de Max Weber ............................................... 286 4.2.3 A teoria dos sistemas sociais de Parsons ................................................ 289 4.2.4 A teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann .................................. 292 4.2.4.1 A teoria sociolgica de Niklas Luhmann ..................................................... 292 4.2.4.2 Modernidade, complexidade e iluminismo sociolgico no pensamento de Niklas Luhmann .......................................................................................... 307 4.2.4.3 Sociedade e direito na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann..... 315 4.2.4.3.1 Sociedade e direito na fase funcional-estruturalista da obra de Luhmann ................................................................................................................. 315 4.2.4.3.2 Sociedade e direito na teoria dos sistemas sociais autopoiticos de Niklas Luhmann .................................................................................................. 320 4.3 JRGEN HABERMAS E O PROJETO DE RECONSTRUO DA TEORIA SOCIAL CRTICA ............................................................................................. 339 4.3.1 A herana crtica da filosofia: dilogo, esclarecimento e emancipao..339 4.3.2 O projeto de reconstruo da teoria social crtica ................................... 343 4.3.3 Modernidade e sociedade: racionalizao da vida social, diagnstico crtico das sociedades modernas e as possibilidades de complementao do projeto normativo da modernidade .................................................... 351 4.3.4 Modernidade, sociedade e direito no pensamento de Habermas .......... 373
5 DEMOCRACIA, SOCIEDADE CIVIL E A CONSTRUO DE UMA ESFERA PBLICA PLURAL E DEMOCRTICA NO CENRIO LOCAL, NACIONAL E INTERNACIONAL ............................................................................................ 396 5.1 A FILOSOFIA TICO-POLTICA DE CHARLES TAYLOR: COMUNITARISMO, MULTICULTURALISMO E A POLTICA DE RECONHECIMENTO ............... 396
5.1.1 A influncia da tica comunitria de Aristteles e do pensamento republicano de Rousseau na obra de Charles Taylor ............................. 399
5.1.1.1 A tica comunitria de Aristteles ..............................................................399 5.1.1.2 As contribuies de Jean Jacques Rousseau para a formao do self moderno ................................................................................................... 402 5.1.1.3 A linguagem expressivista de Herder e Hegel: o carter histrico-cultural da
existncia humana e a conciliao entre natureza e razo, liberdade e sensibilidade............................................................................................ 404
5.1.2 A poltica de reconhecimento de Charles Taylor...................................... 423 5.2 O PENSAMENTO POLTICO DEMOCRTICO DE HANNAH ARENDT.......... 430 5.2.1 A herana tico-poltica dos gregos e a decadncia da poltica nas sociedades contemporneas...................................................................... 431 5.2.2 Poltica e Estado nas sociedades modernas............................................. 435 5.2.3 Repblica, direitos humanos e poder poltico legtimo........................... 440 5.3 DIREITO, JUSTIA E DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE JRGEN HABERMAS ..................................................................................................... 450 5.3.1 Diagnstico crtico da modernidade, democracia e direitos humanos nas sociedades contemporneas...................................................................... 450 5.3.2 A superao dos paradigmas democrticos liberal e republicano e o significado da democracia deliberativa nas sociedades contemporneas: os movimentos sociais e a construo de uma esfera pblica democrtica ................................................................................................. 454 5.3.3 A esfera pblica democrtica e a formao crtica da opinio pblica ..................................................................................................................... 470 5.4 OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A CONSTRUO DE UMA ESFERA PBLICA PLURAL E DEMOCRTICA NA NASCENTE SOCIEDADE CIVIL MUNDIAL ...........................................................................................................................492 5.4.1 Os movimentos sociais, a reinveno da emancipao social e a globalizao da democracia e dos direitos humanos.............................. 492 5.4.2 A sociedade civil, os novos movimentos sociais e as lutas pela democratizao da cultura poltica no cenrio local, nacional e mundial .........................................................................................................................498
6 GLOBALIZAO, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS............................ 515 6. 1 AS CONSEQUNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DA GLOBALIZAO ......... 515 6.2 CRISES E TRANSFORMAES DO ESTADO CONTEMPORNEO, AS PERSPECTIVAS PARA A DEMOCRACIA E A QUESTO DOS DIREITOS HUMANOS...................................................................................................... 538 6.2.1 O Estado soberano e territorial na modernidade: revisitando o paradigma poltico-jurdico liberal e positivista burocrtico-legal.......... 540 6.2.2 Globalizao, crises do Estado e as promessas constitucionais da modernidade................................................................................................. 547 6.3 DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS E AS POSSIBILIDADES DE
CONSTRUO DE UMA CULTURA POLTICO-JURDICA COSMOPOLITA ......................................................................................................................... 576 6.4 AS CONTRIBUIES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PARA A CRIAO DE UMA CULTURA DEMOCRTICA COSMOPOLITA......................................... 607 7 CONCLUSO ..................................................................................................... 618
REFERNCIAS ...................................................................................................... 634
10
1 INTRODUO
A presente pesquisa visa analisar as principais mudanas operadas nas
esferas da poltica e do direito nas sociedades contemporneas, a partir de um
reexame crtico da modernidade e da redefinio do significado e avaliao da
democracia e dos direitos humanos pela prxis dos movimentos sociais, em defesa
da construo de uma esfera pblica democrtica na nascente sociedade civil
mundial, em contraposio aos efeitos desumanos e autoritrios da globalizao
econmica neoliberal.
Definido o objeto de investigao da tese como o estudo acerca dos novos
modos de ao poltica da cidadania mundial, em benefcio da construo de uma
esfera pblica plural cosmopolita, como pressuposto para a criao de uma ordem
jurdica democrtica, fundamentada na defesa dos direitos humanos universais, a
partir das transformaes na prxis social oriundas do processo de globalizao,
procurar-se- responder na pesquisa s seguintes questes:
a) Os movimentos sociais, as associaes, as redes de cidadania e defesa
de direitos, organizados no cenrio internacional contemporneo, podem
ser considerados como novos atores poltico-jurdicos capazes de
contribuir para a criao de uma esfera pblica democrtica na nascente
sociedade civil mundial, fundamentada na realizao e respeito aos
direitos humanos, na convivncia plural de culturas e na igualdade entre
os povos, contrapondo-se aos poderes polticos e econmicos que
presidem a globalizao neoliberal?
b) Considerando-se que os movimentos sociais emergem como novos atores
poltico-jurdicos no cenrio internacional, procurando influenciar e
participar do processo poltico decisrio mundial, quais so as principais
novidades introduzidas por estas prticas sociais para a compreenso da
democracia e do direito nas sociedades contemporneas e para a
renovao da cultura poltica instituda?
O objetivo geral da pesquisa consiste em investigar o significado e os efeitos
da globalizao econmica neoliberal e as contribuies dos movimentos sociais
11
para a instituio de uma esfera pblica democrtica mundial, como fundamento de
uma nova cultura poltica cosmopolita, voltada para a afirmao e realizao dos
direitos humanos dos povos e cidados do mundo, a paz, o pluralismo e o
desenvolvimento sustentvel com respeito natureza e em defesa da sobrevivncia
do planeta, visando corrigir injustias, desigualdades, discriminaes insustentveis
e os desequilbrios social e ambiental, que ameaam a convivncia social civilizada
e democrtica.
Com este propsito, pretende-se reexaminar a herana crtica da
modernidade e compreender a dinmica dialtica dos processos de globalizao, as
dificuldades e as possibilidades de construo de uma nova ordem poltica
democrtica global, contraposta aos projetos polticos e econmicos neoliberais
hegemnicos. Com o objetivo de entender as principais transformaes operadas
nas noes de sociedade civil e esfera pblica, procurar-se- apreender as
novidades e potencialidades presentes na prxis poltico-jurdica dos novos
movimentos sociais e suas contribuies para a criao de espaos pblicos plurais
de debate, deliberao e formao de uma opinio pblica crtica, indispensvel
para garantir as conquistas constitucionais do Estado Democrtico de Direito e a sua
extenso para o plano internacional.
Ao estudar as razes das crises dos paradigmas poltico e jurdico estatais e
positivistas, as crescentes ameaas aos direitos fundamentais e s conquistas
constitucionais da cidadania, por fora da imposio dos imperativos da globalizao
econmica neoliberal, procurar-se- investigar o processo de renovao e
reavaliao dos significados da democracia e dos direitos humanos nas lutas sociais
contemporneas e a importncia do nascimento de uma cultura cosmopolita
contraposta aos poderes polticos e econmicos ilegtimos mundiais. Desse modo,
espera-se contribuir para o conhecimento das formas de exerccio da cidadania
diante dos novos modos de colonizao e expanso dos poderes mundiais, por
intermdio da instituio das novas prticas polticas dos movimentos sociais na
nascente sociedade civil mundial, com a criao de redes temticas,
movimentalistas e de defesa de direitos, fruns e espaos pblicos de comunicao
e debate sobre os problemas da humanidade, troca de experincias entre culturas,
manifestaes e o encaminhamento de propostas dos novos atores poltico-
jurdicos, visando democratizao do poder, a reforma das instituies e a
realizao dos direitos humanos no cenrio internacional.
12
A pesquisa ser desenvolvida atravs do mtodo crtico-dialtico, a partir de
uma abordagem histrica e transdisciplinar, visando investigao das relaes
entre democracia e direitos humanos e sua ressignificao nas prticas dos
movimentos sociais desenvolvidas nas sociedades contemporneas, caracterizadas
pela complexidade e interdependncia entre os fenmenos sociais, polticos e
jurdicos resultantes da globalizao.
A tese procurar demonstrar os processos de renovao da poltica e do
direito, a partir da emergncia da prxis poltica dos cidados e movimentos sociais,
com o objetivo de instituio de uma esfera pblica crtica, plural e democrtica na
cena internacional contempornea. Para tanto, pretendem-se investigar as razes
das crises dos paradigmas sociais, polticos e cientificistas instrumentais e a
emergncia de novos modos de sociabilidade e de conhecimento fundamentados na
afirmao de paradigmas cooperativos e dialgicos no mbito das prticas
socioculturais, filosficas e cientficas, resgatando-se as contribuies desenvolvidas
pelo pensador de Frankfurt, Jrgen Habermas, por meio da elaborao do
paradigma do agir comunicativo e do modelo de democracia deliberativa. Dessa
forma, pretende-se demonstrar as contribuies dos movimentos sociais para a
criao de uma nova cultura poltico-jurdica democrtica e cosmopolita, frente aos
processos autoritrios e mercantilistas que orientam a globalizao econmica nas
sociedades contemporneas.
Com esse propsito, defende-se a hiptese que os movimentos sociais, as
associaes e as redes de defesa dos direitos humanos e de manifestao da
cidadania mundial, espalhadas pelas mais diversas regies do planeta, surgem no
cenrio contemporneo como novos atores poltico-jurdicos emancipatrios,
expressando um conjunto de lutas sociais e polticas que suplantam as fronteiras
locais e nacionais, visando instaurao de uma esfera pblica plural e
democrtica, capaz de influenciar na correo dos rumos injustos da globalizao e
criar as condies para a instituio de uma cultura cosmopolita contraposta aos
imperativos autoritrios e desumanos que presidem a atual ordem poltica e
econmica neoliberal.
O objetivo da pesquisa concentra-se na anlise das crises de natureza social,
poltica e jurdica das sociedades contemporneas e nas propostas para encaminhar
a sua superao, a partir da emergncia de novos paradigmas democrticos
propostos pela prxis tico-poltica dos movimentos sociais que lutam pela criao
13
de uma esfera pblica democrtica mundial, enfatizando-se, com tal propsito, em
especial, as investigaes do filsofo social Jrgen Habermas e as pesquisas dos
pensadores contemporneos estudiosos da crise da modernidade e sobre os novos
movimentos sociais.
Para tanto, nos trs primeiros captulos proceder-se- a uma reavaliao de
parte da herana filosfica, sociolgica e jurdica desenvolvida na modernidade, com
o propsito de melhor compreender as mudanas produzidas nas sociedades
contemporneas, especialmente com o desenvolvimento da globalizao.
O objetivo do primeiro captulo consiste em discutir as bases de sustentao
do paradigma da filosofia do sujeito, com o nascimento da filosofia e das cincias na
modernidade, visando reexaminar o projeto crtico da modernidade e estabelecer as
razes da insuficincia do modelo de racionalidade logocntrico, instrumental e
cientificista, com o objetivo de mostrar a importncia do novo paradigma
comunicativo proposto por Jrgen Habermas, voltado para a construo do
entendimento entre sujeitos com capacidade de fala e ao no mundo da vida e para
a busca cooperativa da verdade no mbito do conhecimento, com a retomada dos
vnculos entre teoria e prxis, tica, filosofia e cincias, com o propsito de contribuir
com os processos de soluo racional e democrtica dos problemas sociais.
Habermas defende a necessidade de reconstruo e reviso do projeto iluminista,
visando complement-lo de modo a propiciar condies que viabilizam a realizao
dos ideais crticos emancipatrios da modernidade, ameaados nas sociedades
contemporneas pelas crises social, poltica, cultural e ecolgica, aprofundadas
com a expanso predatria da globalizao capitalista neoliberal e com a
disseminao dos aparatos burocrticos, mercantilistas e das prticas autoritrias
que tendem a inviabilizar a democracia, atravs da sistemtica e crescente violao
dos direitos humanos nas diversas regies do planeta. Para tanto, considera
indispensvel a revitalizao da instncia social e das prticas polticas e culturais
criativas, buscando resguardar os processos democrticos por meios dos quais
podem ser estabelecidas relaes sociais e tico-polticas voltadas para o
entendimento e a construo do consenso em torno de questes fundamentais
problematizveis em esferas de debate e interlocuo crtica. Trata-se, assim, da
defesa de arenas democrticas que possibilitem a constituio de normas justas,
tica e pragmaticamente sustentveis, obtidas a partir da prxis comunicativa e
dialgica que possa se desenrolar livremente atravs da discusso pblica sem
14
coeres, em que os melhores argumentos possam ser reconhecidos igualmente
por todos e sustentem novas normas justas e consensos construdos legitimamente
pelos cidados.
No segundo captulo, pretende-se examinar as principais orientaes da
filosofia tico-poltica contempornea, retomando-se algumas ideias da teoria da
justia do pensador liberal John Rawls e da filosofia tica comunitarista de Charles
Taylor, assim como a alternativa aos modelos concorrentes proposta pela tica do
discurso de Jrgen Habermas. Dessa forma, busca-se melhor compreender as
diferenas existentes entre as interpretaes tico-polticas oferecidas pelas teorias
liberais e pelas correntes comunitaristas neoaristotlicas e neo-hegelianas, a partir
do debate crtico empreendido pelo filsofo comunitarista com as teorias liberais
neokantianas, assim como examinar as possibilidades de superao da oposio
entre estas teorias rivais, a partir da renovao representada pela tica comunicativa
desenvolvida por Habermas, ao procurar reunir as principais contribuies da tica
universalista de Kant e a interpretao intersubjetiva das formas de vida tica de
Hegel.
No terceiro captulo sero analisadas a influncia da filosofia crtica de Hegel
e Marx para o nascimento das cincias sociais, a relao das teorias sociolgicas
clssicas com a teoria dos sistemas sociais, e finalmente a teoria da ao
comunicativa e o projeto de reconstruo da teoria social crtica de Jrgen
Habermas, fundamentada no desenvolvimento de uma prxis cooperativa entre
filosofia e cincias sociais. O principal objetivo consiste em analisar as relaes
entre sociedade e direito na modernidade, procurando entender algumas das
mudanas operadas nas sociedades contemporneas em razo dos processos de
colonizao do mundo da vida pelos sistemas sociais e as novas tarefas do direito,
visando preservao dos princpios e instituies do Estado Democrtico de
Direito e a garantia das condies de legitimidade indispensveis para uma
convivncia social justa e democrtica.
O estudo sobre as transformaes sociais produzidas pela globalizao ser
privilegiado nos dois ltimos captulos, particularmente visando apreender os efeitos
sociais, polticos e jurdicos desse processo, diante dos retrocessos experimentados
no campo da democracia e dos direitos humanos, em razo da adoo generalizada
15
das polticas neoliberais privatistas1, o que vm sendo denunciado por um conjunto
de cidados e movimentos sociais crticos que lutam para que sejam reconhecidos
como novos atores polticos com maior influncia no cenrio decisrio internacional.
No quarto captulo, pretende-se examinar o pensamento democrtico
desenvolvido no mundo contemporneo, recuperando-se parte das contribuies
tico-polticas dos pensadores Charles Taylor, Hannah Arendt e Jrgen Habermas,
assim como dos tericos dos novos movimentos sociais, com o objetivo de procurar
aprender as mudanas operadas no conceito de democracia, com a emergncia de
uma nova cidadania preocupada com a construo de esferas pblicas crticas,
plurais e dialgicas nos cenrios local, nacional, regional e mundial, visando
instituio de uma sociedade civil cosmopolita.
J o quinto captulo ser dedicado investigao sobre o significado e os
principais efeitos da globalizao, com o objetivo de melhor entender as razes das
1 O neoliberalismo representa um projeto poltico, econmico e ideolgico que visa recuperar as teses do liberalismo econmico e poltico clssico, defendendo um modelo de sociedade individualista e de Estado de Direito mnimo, prximo ao paradigma liberal, tal como foi institudo no sculo XIX, aps a vitria das revolues burguesas, fundamentado nos princpios do livre mercado e concorrncia, defesa da propriedade privada, igualdade jurdica formal, em sntese, preocupado com a proteo das liberdades individuais e econmicas. Seus formuladores consideram que o Estado deve garantir a mais ampla liberdade para que os indivduos persigam seus interesses econmicos e privados, no tendo qualquer funo na regulao dos mercados com o intuito de corrigir desequilbrios sociais, isentando-se de qualquer preocupao com a manuteno dos direitos trabalhistas e a diminuio da desigualdade social, assim como com a garantia de polticas sociais e pblicas de sade, educao, previdncia e assistncia social. Entretanto, na prtica, distancia-se em alguns aspectos do liberalismo clssico, na medida em que exige um Estado coercitivo, que favorea os monoplios e os interesses econmicos hegemnicos, em detrimento da separao entre pblico e privado, Estado e mercado. O processo de globalizao da economia tem sido conduzido com base em muitos dos fundamentos poltico-ideolgicos do neoliberalismo, exigindo a liberao total dos mercados, o enfraquecimento da soberania e das tarefas sociais e constitucionais dos Estados-nao, a privatizao dos bens pblicos, a difuso de uma cultura individualista e o predomnio da lgica mercantil privatista em todas as esferas da vida social. Pode-se afirmar que o neoliberalismo surge por obra de um conjunto de economistas ultraliberais, liderados por Friedrich Hayek, autor do livro O Caminho da servido, publicado em 1944, cujas teses principais representam uma crtica radical ao intervencionismo estatal desenvolvido na Europa e as polticas sociais desenvolvidas pelo Estado do Bem-estar social, formulado por Keynes como caminho adequado para a recuperao da crise econmica experimentada pelo capitalismo na poca, no perodo ps-guerra mundial. Em 1947, Hayek promoveu a famosa reunio em Mont Plerin, Sua, onde congregou os principais defensores da doutrina neoliberal, entre eles seu mestre Ludwig Von Mises, Karl Popper e Milton Friedman, sendo este ltimo o autor do clebre Capitalismo e liberdade, formando-se a partir de ento um frum permanente com dimenses internacionais que passaria a discutir as condies para a recuperao do iderio liberal capitalista contra o que chamavam de ameaas totalitrias democracia, referindo-se s ameaas estatistas oriundas do comunismo, dos movimentos socialistas e trabalhistas e das polticas sociais empreendidas pela social-democracia. (Cf. NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991; Cf. ANDERSON, Perry. Balano do neoliberalismo. In: SADER, Emir. (Org.) Ps-neoliberalismo: as polticas sociais e o Estado democrtico. So Paulo: Paz e Terra, 1996; Cf.Polanyi, K. La gran transformacin: los origenes polticos y econmicos de nuestro tiempo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2003).
16
crises e transformaes do Estado contemporneo, as dificuldades e as mudanas
no significado e avaliao da democracia e dos direitos humanos, assim como as
possibilidades de criao de uma opinio pblica plural e crtica global incentivada
pela prxis emancipatria dos movimentos sociais frente ao atual processo de crise
social mundial.
Os dilemas e os desafios introduzidos pela globalizao para as sociedades
humanas tm sido objeto de preocupao de inmeros estudiosos contemporneos
nas mais diversas reas do conhecimento, na medida em que esta nova realidade
tem gerado problemas comuns para a humanidade, embora seus efeitos negativos
tenham sido inicialmente mais sentidos nas regies mais pobres do planeta,
historicamente excludas do processo de desenvolvimento econmico e social e,
portanto, das condies bsicas indispensveis para a efetivao dos direitos
humanos de suas populaes, embora atualmente j ameacem seriamente as
democracias desenvolvidas da Europa e dos Estados Unidos, em razo da adoo
sem restries do receiturio mercantilista neoliberal. Nesse novo contexto, ocorrem
mudanas importantes nas formas tradicionais de compreenso dos fenmenos
sociais, polticos e jurdicos que merecem um exame crtico e a busca de solues
criativas e cooperativas, capazes de contribuir com o processo de transformao
social no sentido do estabelecimento de uma cultura poltica democrtica.
Uma das tendncias do processo de globalizao indica para uma crescente
desorganizao das estruturas poltico-jurdicas estatais tradicionais e sua
substituio por um pluralismo difuso em que aparecem novas prticas jurdicas de
natureza transnacional e internacional, em muitos casos concorrentes aos sistemas
jurdico-polticos nacionais, com reflexos em todos os setores da vida social, origem
de muitos dos novos problemas mundiais, o que coloca a necessidade inadivel de
criao de garantias jurdicas para a efetiva proteo universal dos direitos
fundamentais formalmente reconhecidos nos ordenamentos jurdicos constitucionais
nacionais e nas declaraes e convenes internacionais.
Cresce cada vez mais a conscincia entre juristas, cientistas sociais e
cidados crticos atuantes em diversos movimentos sociais, comprometidos
intelectualmente e praticamente com a construo da democracia e a efetivao dos
direitos humanos, que a instituio de uma cultura poltica democrtica no cenrio
internacional depende de uma maior participao da cidadania nas esferas polticas
de deciso e da criao de um novo paradigma constitucional cosmopolita, capaz de
17
garantir os mecanismos de participao democrtica dos povos, cidados e naes
nas esferas polticas de deciso e proteger os direitos de todos os povos, diante das
suas constantes violaes e das situaes de desrespeito dignidade dos seres
humanos no planeta, fruto das concentraes injustas e ilegtimas dos poderes
econmico e poltico.
Na realidade, o termo globalizao encobre muitas realidades, passando
pelos fenmenos da mundializao do capitalismo e a polarizao do mundo entre
as regies ricas do Norte, especialmente a Europa, o Japo e os Estados Unidos, e
as regies pobres do Sul, que com a atual fase de desenvolvimento da economia de
mercado vm sofrendo, ainda mais, com os efeitos perversos desse processo
econmico, j que este acentua a concentrao da riqueza e do poder econmico e
poltico e, desse modo, aumenta a dependncia dos pases perifricos com relao
aos pases centrais, ao mesmo tempo em que crescem a imigrao e os conflitos
sociais, tnicos e entre culturas diversas, decorrentes do empobrecimento das
populaes, do desemprego e das crises econmicas recorrentes, agravadas com a
privatizao dos servios pblicos e a retirada das conquistas constitucionais,
especialmente no campo dos direitos sociais e trabalhistas, processo este que hoje
inclusive vem afetando de forma dramtica as economias desenvolvidas, deixando
pases como a Grcia, a Espanha e Portugal numa situao catastrfica de
recesso econmica, com o aumento do endividamento, desemprego e
empobrecimento acelerado de sua populao.
Mas, por outro lado, a interdependncia entre os pases gera uma maior
aproximao entre as regies, com a criao de blocos supranacionais para fazer
frente aos desafios econmicos das naes, criando-se, ao mesmo tempo, novos
modos de interao entre os cidados e os movimentos sociais, aumentando assim
as chances para a abertura de dilogo entre as diversas culturas, a partir do
nascimento de uma nova sociedade civil mundial que aos poucos vai constituindo
espaos pblicos voltados para a discusso crtica dos problemas da humanidade,
visando sensibilizar a sociedade e influenciar nos processos polticos decisrios
internacionais.
Entretanto, cabe reconhecer que aquilo que vem efetivamente acontecendo
nas sociedades contemporneas um fortalecimento da globalizao econmica e,
ainda assim, num sentido restrito, j que se trata de um processo que beneficia
principalmente queles que j detm poder no mercado capitalista, ficando a maioria
18
dos pases e suas populaes excludas do acesso aos meios de desenvolvimento e
aos bens indispensveis sobrevivncia com um mnimo de dignidade e bem-estar.
Na realidade, ainda se est muito distante de uma efetiva globalizao democrtica,
fundada no respeito e promoo dos direitos humanos de todos os povos. Da a
importncia da defesa das esferas da poltica e do direito como instncias
fundamentais para inibir os novos modos de expanso do poder econmico e
tecnoburocrtico, com o fortalecimento das estruturas pblicas e jurdicas
democrticas, visando a implementao dos princpios constitucionais do Estado
Democrtico de Direito nos diversos mbitos local, nacional, regional e internacional.
O Estado nacional perde parte de sua autonomia e independncia como
instituio voltada tomada de decises polticas, na medida em que os governos
deixam de ser responsveis diretos pela escolha dos rumos da economia, em muitos
casos perdendo o controle sobre as finanas e a moeda dos seus pases,
diminuindo sensivelmente os recursos para a implementao das polticas sociais e
pblicas. Isto leva, em curto prazo, a um processo recessivo e logo a crise
econmica generalizada provoca uma onda de desorganizao social, atravs da
exploso dos conflitos, que j no conseguem mais ser contidos facilmente pelos
aparatos normativos e de segurana pblica. Os pases que adotaram o modelo
ortodoxo neoliberal e mesmo aqueles que romperam com as principais premissas
deste modelo, como acontece com a maioria dos governos da Amrica Latina, mas
que mesmo assim sofrem com muitos dos efeitos da globalizao econmica, em
razo da interdependncia da economia mundial, ficam refns das determinaes
econmicas dos mercados, e acabam sendo duramente afetados pelas crises
financeiras recorrentes derivadas do grande cassino em que se transformou a
economia global. Aos poucos, esse processo passa a afetar as prprias economias
ricas do planeta, diante da submisso da maioria dos governos s polticas
privatistas liberalizantes, tanto nos Estados Unidos como na Europa, com a adoo
irresponsvel dos paradigmas mercantilistas, economicistas e financistas em
contraposio s conquistas universalistas dos direitos humanos, sociais e
democrticos.
Nestas condies, as bases sociais de legitimidade do poder poltico ficam
seriamente comprometidas, pois, em muitos casos, os governantes tendem a atuar
despoticamente, distanciando-se do debate pblico democrtico e tomando decises
na solido dos gabinetes, apenas com o auxlio dos financistas e burocratas
19
nacionais e internacionais, situao que vivemos de perto no Brasil na dcada de
noventa do sculo passado. Outras vezes, os governos dos pases mais pobres e
em desenvolvimento sofrem chantagens e represlias econmicas dos investidores
e instituies internacionais oficiais, especialmente quando questionam o carter
autoritrio da globalizao imposta verticalmente pelos pases ricos e atores
econmicos mais fortes. A submisso dos governos aos interesses econmicos dos
grupos hegemnicos e o desprezo s reivindicaes da sociedade civil transformam
muitos dos detentores do poder poltico numa espcie de novos soberanos
absolutistas2, com o aparecimento do fenmeno da privatizao e mercantilizao,
invadindo todas as esferas da vida social e pblica, fazendo com que cada vez mais
ocorram tentativas de fuso entre Estado e mercado, mercado e sociedade, na
medida em que a lgica econmica pretende reger todas as esferas da vida pblica,
social e pessoal.
No desenvolvimento da pesquisa pretende-se revisitar a concepo
democrtica elaborada pela filsofa Hannah Arendt, procurando demonstrar a
atualidade de seu pensamento poltico para pensar o tema da democracia
participativa, a partir da crtica s concepes estatistas e liberais predominantes
nas sociedades modernas, tema que ser retomado e continuado por Jrgen
Habermas, atravs do seu diagnstico crtico da modernidade e por meio da
elaborao do modelo de democracia deliberativa, como alternativa s concepes
estatistas, liberais e republicanas, fundamentando-o na prxis dialgica e na
atualizao do poder comunicativo legtimo exercido por cidados e movimentos
sociais em esferas pblicas crticas e plurais. Para Hannah Arendt, as vises
estatistas modernas e liberais, ao reduzirem o entendimento da poltica ao mbito do
exerccio do poder estatal, acabaram por descaracterizar a noo de poder poltico
legtimo, essencialmente vinculado esfera pblica de participao e deciso em
conjunto por parte da cidadania. As concepes estatistas da poltica levaram a uma
desconsiderao e desvalorizao do mbito das aes polticas, afastando os
cidados da possibilidade de participao no exerccio do poder poltico e na tomada
de decises fundamentais para a coletividade, ao enfatizar os aspectos
centralizadores, elitistas, burocrticos e coercitivos do exerccio do poder poltico do
Estado.
2 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoria della democrazia. Roma: Editori Laterzi, 2007; ______. Derechos y garantias. La ley del ms dbil. Madrid: Editorial Trotta, 2006.
20
Os estudos desenvolvidos pela pensadora alem em torno da ideia de um
poder democrtico como fundamento de legitimidade para o exerccio do poder
poltico contrapem-se s vises polticas de origem hobbesiana e liberal que,
apesar de serem concepes distintas em muitos aspectos, no entanto, priorizam
igualmente uma compreenso da poltica com a sua reduo ao mbito da
soberania e aos aspectos relacionados dominao estatal e, por consequncia,
acabam por legitimar a ideia de submisso e obedincia cega dos cidados ordem
poltico-jurdica implantada, independentemente do respeito aos direitos e da
possibilidade de participao dos cidados na gesto da vida pblica coletiva.
Uma sociedade democrtica no sobrevive sem a participao crtica da
cidadania e sua atuao vigilante tanto no mbito das instituies do Estado, como
tambm na sociedade. Os cidados precisam encontrar formas para manifestarem
sua avaliao crtica das leis, das decises pblicas e dos processos sociais e
econmicos, como vem estudando o filsofo social Jrgen Habermas, na sua
tentativa de renovao da Filosofia e Sociologia, fundamentada em novas bases
tico-crticas, procurando revalorizar a prxis dialgica e argumentativa nas esferas
sociais e polticas, contribuindo para o entendimento dos novos significados da vida
social interativa e da democracia em nossos dias. No existe ordem social e poltica
democrtica sem mecanismos e fruns adequados manifestao livre das ideias
em debates, atravs dos quais os cidados possam, em igualdade de condies,
promoverem continuamente a avaliao das leis e decises polticas, discutindo e
reavaliando os fundamentos de validade e a legitimidade do direito, do Estado, da
sociedade e da cultura. esta herana cultural democrtica representada pela obra
de Hannah Arendt, e continuada por Jrgen Habermas, que deve ser preservada e
atualizada para resguardar as conquistas da cidadania contra os abusos do poder
poltico e econmico.
O paradigma da democracia deliberativa, elaborado por Jrgen Habermas,
retoma muitas das teses republicanas e introduz algumas novidades importantes,
em razo do carter plural e ps-metafsico das sociedades contemporneas, sem
desconsiderar a dimenso universal dos direitos humanos enfatizada no
pensamento filosfico de Kant. Na verdade, o paradigma democrtico deliberativo
constitui-se num aprofundamento do modelo poltico republicano, apoiado num
alargamento do conceito de cidadania e numa interpretao intersubjetiva da
filosofia tica kantiana sobre os direitos humanos, considerando as novidades
21
introduzidas pela prxis dos modernos movimentos sociais que introduzem um novo
significado para a cidadania, por intermdio de novas aes e lutas em defesa da
afirmao e concretizao dos direitos humanos. O filsofo elabora um modelo
dialtico de democracia, buscando suplantar as concepes elitistas e reducionistas
que no consideram adequadamente a relevncia crescente dos processos de
deliberao pblica da cidadania nas sociedades contemporneas. A democracia
deliberativa apresenta-se como um novo paradigma que procura superar os modelos
antagnicos da democracia liberal privatista e republicano objetivista e as
concepes jusnaturalistas e contratualistas em que se apoiam tais concepes,
tendo como meta a retomada dos vnculos essenciais entre os direitos humanos e a
soberania do povo, por intermdio da atuao da cidadania em esferas pblicas
democrticas, realidades estas que foram separadas nas abordagens tradicionais
acerca da democracia.
A opinio pblica democrtica formada nos diversos espaos pblicos de
discusso, como aqueles desenvolvidos em conselhos e organizaes sociais,
encontros, assembleias, fruns e debates, publicaes crticas, manifestaes
culturais e artsticas, boicotes, protestos e manifestaes polticas, atos de
desobedincia civil, nos espaos e brechas ocupadas pela sociedade civil nos meios
de comunicao de massas, enfim pelo exerccio contnuo da soberania popular e
reativao do poder constituinte originrio. Tais debates e modos de organizao
societria propiciam as condies para a formao de uma opinio pblica que
pretende influenciar e interferir no processo poltico decisrio, denunciando as
situaes de excluso e injustia social, o desprezo aos direitos das minorias, os
atos polticos autoritrios e os abusos do poder econmico, a violncia e a
destruio da natureza.
Muitas so as dificuldades para a construo da democracia e da cidadania
alm das fronteiras dos Estados nacionais, para tanto sendo necessrio um amplo
debate sobre as diversas compreenses e tendncias diante da globalizao,
procurando elaborar uma concepo superior centrada em torno das preocupaes
dos movimentos sociais emancipatrios representativos de uma nova cidadania e
dispostos a construo de uma nova cultura democrtica no cenrio internacional.
Neste processo, ganham importncia os diversos encontros, fruns e manifestaes
de uma nova sociedade civil que vai se constituindo no cenrio mundial. Nesse
sentido, aos poucos, o Frum Social Mundial, experincia que teve origem em Porto
22
Alegre, no ano de 2001, vai se afirmando como um local privilegiado de
manifestao da sociedade civil mundial, responsvel pela construo de uma
conscincia crtica internacional, que vai se fortalecendo e reconstruindo em cada
novo encontro. O resultado mais importante desses encontros, realizados
anualmente, consiste, sem dvida, na criao de um espao pblico permanente de
discusso da cidadania mundial, representativa de uma nova sociedade civil,
possibilitando a troca de ideias e experincias, com o enriquecimento poltico e
cultural entre os seus participantes e um renovado aprendizado social diante da
coexistncia plural de uma multiplicidade e diversidade de ideias e propostas para
encaminhar as lutas pela democratizao das relaes entre os homens e mulheres,
as diversas culturas e etnias, nacionalidades e pases, denunciando a ilegitimidade
do processo de globalizao neoliberal que preside a atual (des)ordem mundial. As
lutas pela democratizao do poder e da riqueza do mundo, pela preservao
ambiental do planeta com base em modelos de desenvolvimento social sustentveis
e pela universalizao efetiva dos direitos humanos animam as prticas destes
novos atores sociais, que pretendem o seu reconhecimento na cena pblica
internacional, como novos sujeitos poltico-jurdicos com capacidade de interveno
no processo poltico decisrio mundial, ao lado das instncias estatais e econmicas
oficiais.
Nesse sentido, as contribuies dos pensadores crticos e democrticos,
como Hannah Arendt, Charles Taylor e Jrgen Habermas, assim como as ricas
investigaes sobre os novos movimentos sociais, mostram-se indispensveis para
pensar as possibilidades de construo de uma nova ordem poltica e jurdica
cosmopolita, fundamentada no respeito efetivo aos direitos humanos de todos os
cidados, povos e naes, ideal tico-jurdico e pacifista enunciado pelo filsofo
iluminista Kant, no sculo XVIII, retomado e atualizado por um conjunto de
pensadores contemporneos, atravs da formulao de possveis alternativas
emancipatrias para o nosso tempo, que resguardem os direitos e a autonomia dos
cidados contra os processos de estatizao da poltica e privatizao da sociedade
e contra a expanso das formas de privatizao da poltica e controle estatal da
sociedade, como vem acontecendo em nosso tempo, com a visvel conjugao dos
interesses polticos e econmicos e imposio da vontade e interesses de minorias
contra os direitos da humanidade.
23
Contra o conformismo e apatia gerados pela ideologia privatista globalitria,
com a contestao e a resistncia social diante do sofrimento gerado pelas prticas
e amargas polticas neoliberais, cidados reunidos numa pluralidade de movimentos
sociais passaram a atuar, desde o final da dcada de oitenta do sculo XX, num
primeiro momento, em esferas locais e nacionais, visando organizao da
sociedade civil contra o autoritarismo estatal, por melhores condies de vida e
contra os problemas decorrentes dos processos de modernizao econmica.
Posteriormente, preocuparam-se com a instituio de arenas e fruns que
permitissem a livre manifestao e organizao da sociedade civil, visando o debate
sobre os problemas da humanidade e a constituio de alternativas tico-polticas
superiores aos projetos neoliberais, a exemplo das experincias e propostas
oriundas do Frum Social Mundial. Em seguida, estes movimentos partiram para a
criao de redes de defesa da cidadania e a instituio de espaos de interlocuo e
deliberao na arena mundial que possibilitem aos poucos a manifestao de uma
opinio pblica internacional, com capacidade e fora suficiente para pressionar as
instituies internacionais discusso e dilogo com a nova cidadania, o que j vem
acontecendo paulatinamente nos ltimos anos, com a participao destes novos
atores em diversos encontros promovidos pela Organizao das Naes Unidas e
outras instituies mundiais e regionais, assim como ganham fora e influncia cada
vez maior os encontros paralelos e preparatrios das conferncias e reunies
oficiais, sendo muitas das sugestes das organizaes sociais incorporadas aos
documentos e recomendaes oficiais, por fora da intensa presso destes novos
sujeitos.3
Na medida em que progressivamente forem constitudos arenas e espaos de
interlocuo que renam o maior nmero de atores internacionais, representando os
povos e pases de todos os continentes, ricos, pobres e em desenvolvimento
intelectuais, cientistas, jornalistas, professores, estudantes, membros de ONGs e de
partidos polticos democrticos, artistas, trabalhadores, sindicatos, redes de
movimentos populares e sociais, igrejas, ativistas, profissionais, cidados e outros
movimentos da sociedade civil dispostos a discutirem os temas centrais da
humanidade e dos diferentes pases, trocar experincias, construir novas
identidades, deliberando democraticamente, surgiro, com certeza, novos modos de
3 HABERMAS, Jrgen. Era das transies. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
24
atuao poltica e de exerccio inventivo da cidadania no cenrio internacional. Isto,
sem dvida, possibilitar a criao e consolidao de uma conscincia crtica
mundial capaz de propor o estabelecimento de novas instituies polticas e a
transformao efetiva das organizaes internacionais, legitimadas, ento,
democraticamente, para a tomada de decises que visem solucionar os graves
problemas da humanidade, atravs da fora vinculante e obrigatria do Direito, que
poder, ento, resguardar e garantir os direitos liberdade, igualdade e
convivncia plural, pacfica e solidria entre os povos.
Com este propsito, o ideal kantiano da paz perptua4, alcanvel por meio
da criao de uma ordem jurdica cosmopolita, fundamentada no respeito e
promoo dos direitos humanos, vem sendo retomado por diversos autores
contemporneos, evidentemente reformulado e atualizado as condies histricas
de nosso tempo, como a expresso da necessidade do estabelecimento de uma
comunidade jurdica e democrtica formada pelos cidados do mundo dispostos ao
entendimento atravs de uma prxis dialgica fundada no uso pblico e deliberativo
de suas capacidades crticas e comunicativas.5 Nos dramas vivenciados por grande
parte das populaes dos pases europeus na atualidade e nas denncias das
violaes dos direitos humanos realizados por uma pluralidade de movimentos de
resistncia espalhados pelo mundo, desde a primavera rabe, as manifestaes da
juventude no Chile, passando pelos protestos nos Estados Unidos, na Islndia, na
Grcia, Espanha e na Europa, observa-se a mesma indignao e uma reivindicao
em comum: a exigncia por democracia real, o que pressupe que os cidados
sejam ouvidos e respeitados nos seus direitos fundamentais.
A crise dos paradigmas sociais, polticos e jurdicos da modernidade impe a
necessidade de discusso das bases tico-culturais e cientficas que deram
sustentao ao modelo de modernizao e organizao da vida social. Muitos dos
valores e instituies que formaram a cultura moderna tm sido considerados como
inadequados e insuficientes para fazer frente s mudanas introduzidas pela
globalizao e para responder aos novos problemas que da emergem,
representando para muitos pensadores a principal fonte da intensificao dos
conflitos e dos dramas humanos experimentados nessa nova realidade plural e
4 KANT, KANT, Immanuel. A paz perptua e outros opsculos. Porto Alegre: LPM, 2010. 5 HABERMAS, Jrgen. A incluso do outro. Estudos de teoria poltica. So Paulo: Loyola, 2004. p. 193-235.
25
complexa em que vivemos, devendo ser superados com a criao de novas prticas
e novos modos de sociabilidade, novas organizaes sociais e polticas que
propiciem condies de possibilidade para a transformao cultural e para uma
profunda renovao democrtica da vida social, capaz de garantir o reconhecimento
de novos padres normativos de comportamento e a instituio de uma convivncia
legtima, justa e cooperativa entre os cidados e povos do mundo.
Nesse processo, ganham importncia s investigaes sociolgicas, polticas
e jurdicas sobre as mudanas operadas na compreenso do direito e da poltica, a
partir da crise dos paradigmas positivista-estatistas e dos dilemas produzidos pela
globalizao, com a fragilizao da soberania e das tarefas clssicas do Estado
nacional, assim como as possibilidades de salvaguardar os processos democrticos
indispensveis para o exerccio da cidadania e as conquistas constitucionais do
Estado Democrtico de Direito, o que somente poder acontecer de forma efetiva se
forem levadas a srio as novidades e propostas introduzidas pelas aes polticas
dos movimentos sociais e de uma cidadania crtica que busca crescentemente
interferir na cena social e poltico-institucional, visando ampliao de sua
participao na redefinio dos rumos da globalizao e na determinao das
polticas pblicas no mbito local, nacional, regional e mundial.
Nesse processo de reviso dos fundamentos culturais, polticos e jurdicos da
modernidade, a retomada dos estudos de Max Weber sobre a racionalizao da vida
social representa um ponto de partida indispensvel, especialmente para a
compreenso das caractersticas do Estado soberano e do paradigma jurdico
positivista burocrtico-legal. As diversas crises enfrentadas pelo modelo poltico
estatal, considerado at recentemente como agente nico de produo da poltica e
do direito, fragilizado em razo das mudanas introduzidas pela globalizao e pelo
surgimento de novos atores poltico-jurdicos merecem uma investigao profunda,
na medida em que o Estado nacional permanece como um ator poltico com tarefas
importantes no cenrio nacional e internacional, muito embora tenha sua soberania
e autonomia fragilizadas diante de um mundo globalizado e da sobreposio dos
interesses econmicos aos polticos.6
6 BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis. As crises do Estado e da Constituio e a transformao espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
26
De qualquer modo, a crise do paradigma poltico-jurdico estatal propicia uma
rediscusso sobre o processo de estatizao da poltica, a tendncia ao controle
burocrtico da vida social e sobre a insuficincia dos modelos poltico-jurdicos
liberal e social-burocrtico, como procuram demonstrar os estudos dos pensadores
Hannah Arendt, Jrgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos, dentre outras
pesquisas desenvolvidas nas mais diversas reas do conhecimento, ao mesmo
tempo em que se abrem, a partir da, novas possibilidades para repensar o
significado e as transformaes operadas no entendimento da democracia e do
direito, para alm dos conceitos restritivos e das matrizes tericas positivistas e
burocrticas tradicionais.
Os novos movimentos sociais surgiram na cena contempornea introduzindo
uma nova concepo de cidadania, no mais definida segundo os critrios
institucionais estabelecidos pelo Estado e pelo mercado, sendo responsveis pela
criao de uma cultura poltica democrtica no seio da sociedade civil, a partir da
qual so avaliadas a legitimidade das leis e decises polticas e criticados os
padres autoritrios e mercantilistas colonizadores da vida social, apontando
caminhos e propostas para a democratizao dos poderes institudos, criando novos
valores e modos de relacionamento social e de produo da poltica e do direito.
Hoje, diante das transformaes sociais e desafios da globalizao, aparecem
novos atores poltico-jurdicos organizados na nascente sociedade civil mundial,
comprometidos com a construo da democracia para alm das fronteiras nacionais,
lutando pela efetivao dos direitos humanos em todas as regies do planeta e
defendendo mudanas na ordem poltica e econmica mundial, visando instituio
de uma cultura poltica cosmopolita que permita o afloramento do debate pblico e o
reconhecimento da pluralidade de culturas e vozes polticas dos cidados do mundo.
Com o propsito de investigar as relaes entre os fenmenos sociais,
polticos e jurdicos, a partir da emergncia de novos paradigmas que recuperam os
compromissos do Direito com o processo de construo social da Democracia e a
realizao dos Direitos Humanos Fundamentais, a presente pesquisa pretende
contribuir para o entendimento das transformaes ocorridas nas sociedades
contemporneas, com o surgimento de novos atores poltico-jurdicos no cenrio
internacional, seguindo os objetivos propostos pela linha de pesquisa Sociedade,
Novos Direitos e Transnacionalizao, definidos pelo Programa de Ps-Graduao
em Direito da Unisinos.
27
2 FILOSOFIA E CINCIA NA MODERNIDADE: OS PENSADORES DA MODERNIDADE E OS NOVOS PARADIGMAS PS-METAFSICOS
No presente captulo, pretendem-se discutir as bases de sustentao do
paradigma da filosofia do sujeito, com o nascimento da filosofia e das cincias no
mundo moderno, visando reexaminar o projeto da modernidade e entender as
razes da insuficincia do modelo de racionalidade logocntrico, instrumental e
cientificista, a partir dos estudos da filosofia da linguagem, empreendidos por
Heidegger e Gadamer, e com o objetivo de mostrar a importncia do novo
paradigma comunicativo proposto por Jrgen Habermas, voltado para a construo
do entendimento entre sujeitos com capacidade de fala e ao no mundo da vida e
para a busca cooperativa da verdade no mbito do conhecimento, com a retomada
dos vnculos entre teoria e prxis, tica, filosofia e cincias, com o propsito de
contribuir com os processos de soluo racional e democrtica dos problemas
sociais.
2.1 OS PENSADORES MODERNOS E A FORMAO DO PARADIGMA DA FILOSOFIA DO SUJEITO
Inicialmente, procurar-se- investigar o significado e as principais
caractersticas do paradigma da filosofia do sujeito, com o nascimento da filosofia
subjetivista e do novo modelo de desenvolvimento das cincias na modernidade,
visando, a partir da, reunir subsdios tericos para, posteriormente, reexaminar o
projeto crtico da modernidade e estabelecer as razes da insuficincia do modelo
de racionalidade logocntrico, instrumental e cientificista.
2.1.1 A filosofia empirista de Francis Bacon, o racionalismo de Ren Descartes e o nascimento da concepo moderna de cincia
A filosofia moderna nasceu tendo como preocupao central a busca da
fundamentao racional do conhecimento, na medida em que as diversas
descobertas cientficas efetivadas no sculo XVII colocavam na ordem do dia a
importncia do conhecimento prtico que vinha modificando a natureza e a
sociedade de maneira radical.
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Aos poucos, o racionalismo e o mecanicismo substituem a viso escolstica e
o modelo de fsica medieval de base aristotlica e tomista, por uma nova concepo
de cincia e de compreenso do universo:
O desenvolvimento de uma nova cosmologia substituiu o mundo geocntrico dos gregos e o mundo antropomrfico da Idade Mdia pelo universo descentrado da astronomia moderna. Ao mesmo tempo, como assinalaram alguns historiadores, a cincia contemplativa foi substituda pela cincia ativa o que fez com que o homem se transformasse de espectador em possuidor e senhor da natureza. No lugar da preocupao com o outro mundo tpica da mentalidade religiosa que predominou na Idade Mdia, colocou-se o interesse por esse mundo, enquanto que a imagem como um organismo foi substituda pela explicao causal e mecanicista.7
Nesse sentido, a filosofia moderna ter como interesse fundamental a
questo do acesso verdade, mais propriamente a preocupao com o mtodo
adequado e capaz de atingi-la. A partir da, passa-se a indagar a respeito da
possibilidade do homem conhecer a natureza, atravs da razo e do conhecimento
cientfico. Tentando resolver este problema, surgem duas correntes opostas,
originalmente defendidas pelo racionalismo inatista de Ren Descartes e o
empirismo de Franois Bacon. Este ltimo pensador inaugura o empirismo, cujo
objetivo principal ser o estabelecimento da cincia com base no mtodo
experimental, enfatizando a dimenso sensvel da vida em detrimento da racional.
Ren Descartes (1596-1650) pode ser considerado o fundador do movimento
racionalista, assim como suas teses so apontadas como as bases paradigmticas
representativas do modelo de cincia e dos valores liberais que sero
predominantes no mundo moderno. Estes ideais pressupem a ideia de que o
homem, atravs do conhecimento cientfico, torna-se senhor e possuidor da
natureza, colocando-a sob o seu domnio; j a liberdade identifica-se com o livre-
arbtrio de acordo com as novas exigncias do modelo individualista de organizao
da vida social. O mtodo racionalista proposto por Descartes8 pressupe uma
7 CHAU, Marilena. (Cons.) Vida e obra. PASCAL, Blaise. So Paulo: Abril Cultural, 1979, p. XII-XIII. (Coleo Os Pensadores) 8 Ren Descartes pertencia a uma famlia originria da pequena nobreza. Estudou com os jesutas e mais tarde concluiu a faculdade de Direito. Viajou por vrios pases na sua juventude, at que, segundo ele prprio afirma, quando tinha por volta de 23 anos, teve uma iluminao, atravs de um sonho, quando Deus lhe orienta a participar do processo revolucionrio de desenvolvimento cientfico de sua poca, contribuindo, desse modo, com a tarefa de revolucionar o saber. A partir da comea a se dedicar mais intensamente ao estudo da Matemtica, da Filosofia e da Fsica, ao mesmo tempo que se dedica ao campo prtico das investigaes cientficas, sobretudo no
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transformao na Filosofia, fazendo com que ela passe a se preocupar
prioritariamente com o estudo do conhecimento cientfico, a partir do
estabelecimento de princpios racionais rigorosos, capazes de fornecer os
procedimentos lgicos que passaro a informar as cincias. O mtodo racional, para
o filsofo, deveria seguir o modelo da lgica matemtica, atravs do estabelecimento
de princpios e leis absolutamente rigorosas. O filsofo brasileiro Jos Amrico
Pessanha entende que, na realidade,
Descartes aceita o desafio da dvida que transpassava a atmosfera cultural de sua poca; aceita para combat-la com suas prprias armas. Eis porque duvida metodicamente de tudo. [...] Fazendo a sondagem de suas prprias ideias, verifica que as que parecem se referir a objetos fsicos so instveis e obscuras, facilmente atingveis pela incerteza; outras, ao contrrio, apresentam-se ao esprito com grande nitidez e estabilidade exatamente as utilizadas pelas matemticas (como figura, nmero). Estas ideias claras e distintas so concebidas por todos da mesma maneira, o que parece mostrar que elas independem das experincias dos sentidos (individuais e mutveis) constituindo o substrato inato da pense. Estas ideias inatas satisfazem plenamente o ideal de construir uma matemtica universal que passar a ser o objetivo de Descartes. (...) o que Descartes prescreve como recurso para a construo da cincia e tambm para a sabedoria da vida seguir os imperativos da razo, que a exemplo de sua manifestao matemtica, opera por intuies e anlises.9
O pensamento moderno ser marcado pelo surgimento da noo de
conscincia individual e pelo nascimento de uma nova concepo de cincia, com a
instituio do paradigma da subjetividade. Tem incio, a partir da, o processo de
desvalorizao das concepes cosmolgicas tpicas dos antigos e as vises
dogmtico-religiosas dos medievais. H um processo de relativizao do universo,
em razo das descobertas cientficas e a criao da ideia de sujeito, dotado de
campo da Fsica, em que se destaca pela elaborao das leis da tica geomtrica. Em 1637, publica o Discurso do mtodo, junto com trs resultados de trabalhos de cunho cientfico, nas reas da geometria, da tica e da astronomia. Ele pretende expor o significado transformador da natureza e do mundo, operado pelas cincias na sua poca, tendo como precursores as descobertas revolucionrias de Coprnico (1473-1543), com a sua concepo heliocntrica, ao desenvolver a hiptese de que o Sol encontra-se no centro do nosso Universo e a Terra um dos planetas que gravitam em torno dele recuperando a tese j anunciada na Grcia por Aristarco de Samos, desfazendo a crena de que a terra ocuparia o centro do universo e de Galileu Galilei (1564-1642) ao estabelecer a unidade do mundo e enunciar as leis do movimento, criando as bases da moderna fsica, afirmando que o universo e os fenmenos obedecem aos mesmos princpios. Desse modo, trata-se da introduo de uma nova viso do universo, do mundo e da natureza, rompendo-se com a viso descritiva, fixa e hierrquica da fsica aristotlica, em benefcio de uma compreenso ativa e dinmica do conhecimento cientfico e descentrada dos fenmenos. (CHTELET, Franois. Uma histria da razo. Entrevista com mile Noel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 51; 55-62). 9 PESSANHA, Jos Amrico (Cons.) In: DESCARTES, Ren. Vida e obra. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. XV-XVI; XVIII. (Coleo Os Pensadores)
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conscincia. A inveno do sujeito implica a transparncia dos atos de conscincia,
ideia esta que ser introduzida pela obra de Descartes.
Descartes introduz a noo de dvida metdica, questionando todos os dados
do sentido e os conhecimentos adquiridos. A razo que duvida uma razo que
pensa, mesmo quando promove a suspenso do juzo sobre todas as coisas. Por
isso, a mxima, Penso, logo existo indubitvel. Ela demonstra que o pensamento
forma e no contedo e que o logos universal j que est encarnado na estrutura
do real. Eis aqui a inveno do sujeito de conhecimento como pura forma. O
fundamento da verdade passa a ser o sujeito. o sujeito que funda a evidncia na
dvida.
Descartes elabora o paradigma da representao e a ideia do sujeito
consciente de si mesmo. Para ele, o conhecimento, atravs da representao,
aparece como um espelho da natureza. Assim, tudo aquilo que contraria o
paradigma da representao, deve ser repelido como erro. Para ele, mesmo que
no houvesse matria e realidade, ao menos haveria o sujeito pensante. Portanto, o
pensamento puro capaz de refletir o real, atravs do conhecimento entendido
como representao. Desse modo, Descartes inaugura o racionalismo mecanicista,
ao fazer do sujeito de conhecimento o fundamento de toda a verdade. O cogito
aparece como uma espcie de mquina capaz de domnio da realidade e de
instrumentalizao da natureza, base do desenvolvimento da filosofia da conscincia
que dar sustentao ao modelo racionalista e cientificista predominante durante o
desenvolvimento do mundo moderno, conforme as novas exigncias sociais e
econmicas do capitalismo industrial.
Como foi lembrado por Franois Chtelet, a obra de Descartes deixar aos
seus sucessores duas posies praticamente irreconciliveis, j que, de um lado, ele
se apresenta como o apologista da cincia, reconhecendo a importncia do
conhecimento da natureza pelo homem e apontando o caminho a ser seguido pelas
atividades cientficas, mas, de outro lado, seu pensamento continua tributrio da
metafsica clssica e da teologia, na medida em que acreditava na existncia de
ideias inatas, considerando o mundo e inclusive a prpria razo como provenientes
de uma ordem divina. Nesse sentido, a obra de Descartes abre o caminho para o
desenvolvimento das duas grandes escolas fundamentais para o pensamento
ocidental: os seguidores do racionalismo cartesiano, como Spinoza e Leibniz; e os
empiristas, crticos do cartesianismo. Os empiristas levaro s ltimas
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consequncias os prprios postulados de Descartes, radicalizando a tese da dvida
racional, segundo a qual no possvel admitir como verdadeiro nada do que eu
no conhea como evidentemente verdadeiro.10
2.1.2 As contribuies do empirismo de Hume e do racionalismo crtico de Kant
2.1.2.1 As contribuies do empirismo de David Hume para as cincias no mundo moderno
O filsofo e historiador escocs David Hume (1711-1776)11 pode ser
considerado como o mais importante representante da escola empirista. Ele atacar
o cerne da metafsica moderna, ao afirmar, contra o racionalismo cartesiano, que o
conhecimento no provm das ideias racionais inatas, mas da experincia dos
sentidos. Aquilo que os racionalistas denominam de ideias inatas so, na verdade,
para Hume, hbitos e representaes que no se identificam absolutamente com a
realidade. Para o filsofo empirista quando o sujeito do conhecimento se pe a
investigar os fenmenos da natureza, necessariamente parte das sensaes e
percepes que tm origem nos dados empricos observados na experincia, sendo
10 CHTELET, Franois. Uma histria da razo. Trad. Lucy Magalhes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 90-91. 11 David Hume nasceu em Edimburgo, na Esccia, em 1711. Estudou Direito, Histria, Literatura e Filosofia. No ano de 1926 desistiu dos estudos de Direito e abandonou a universidade, mudando-se para a Frana, onde vai estudar no Colgio de La Flche, o mesmo em que havia estudado Descartes, com os padres jesutas. Na Frana comea a escrever a sua obra mais importante, o Tratado da Natureza Humana. Esta obra foi publicada em 1737, j em Londres, no alcanando, porm, nenhuma repercusso. Publica o livro Ensaios Morais e Polticos, no ano de 1741, sendo esta um pouco melhor recebida. Nesta poca, Hume tenta lecionar a disciplina de tica na universidade de sua cidade, mas acaba sendo recusado sob os argumentos de ser um escritor herege, infiel e ateu. Passa algum tempo acompanhando trabalhos e negociaes militares como secretrio e assessor do General Saint-Clair. Em 1748, ocorre a publicao da obra Ensaios Filosficos sobre o Entendimento Humano, depois intitulada Investigao acerca do Entendimento Humano. No ano de 1749, passa a rever e reescrever a terceira parte do Tratado da Natureza Humana, resultando no livro a Investigao sobre os Princpios da Moral, publicado em 1751. recusado mais uma vez para o cargo de professor, desta vez na Universidade de Glasgow, porm obteve uma indicao de amigos do Partido Desta para o cargo de conservador da Biblioteca dos Advogados, em Edimburgo. Nesta nova funo passa a se dedicar aos estudos de Histria, escrevendo uma Histria da Inglaterra, denunciando as supersties e o fanatismo religioso, e tambm publica Dissertao sobre as Paixes, com a segunda parte do seu Tratado da Natureza Humana. As acusaes de atesmo persistem e ele abandona o cargo na Biblioteca e volta ao desempenho de atividades diplomticas. A partir da dcada de sessenta passa a residir em Paris, onde finalmente conquista o seu reconhecimento como filsofo e escritor. A obra de David Hume d origem ao empirismo, atacando o cerne metafsico e dogmtico dos sistemas filosficos, e termina com a defesa do ceticismo, j que o mundo exterior e os fatos em sua concretude no encontram possibilidade de demonstrao ou prova, atravs do conhecimento; estes so apenas dados oriundos da experincia sensvel. (Cf. MONTEIRO, Joo Paulo Gomes. Vida e obra. David Hume, 1999. p. 5-14. (Coleo Os Pensadores)).
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estes, logo em seguida, memorizados pelo investigador. Portanto, o processo de
conhecimento tem incio com base nas sensaes e percepes sensoriais
apreendidas pelo sujeito na experincia. A partir desses dados da experincia, o
sujeito realiza a associao mental dessas percepes.
O filsofo empirista conclui que a investigao filosfica jamais poder
ultrapassar os limites da experincia. Por isso, a cincia deve renunciar a tarefa
metafsica tradicional voltada para a busca das causas primeiras explicativas do
mundo, j que tais propsitos fundamentalistas so ilusrios, dogmticos,
escondendo propsitos religiosos e polticos. Esse ceticismo ou desconfiana inicial
diante da metafsica dogmtica permitiu-lhe desenvolver o interesse pela instituio
de uma cincia da natureza humana com base na observao e na experincia,
visando oferecer uma explicao ampla do mundo e da vida humana, procurando,
desse modo, afastar qualquer hiptese que pretenda descobrir as qualidades
originais da natureza humana, por tratar-se, para ele, de uma viso presunosa e
quimrica.12
A crtica de Hume metafsica desenvolvida at ento se encaminha no
sentido de consider-la como reflexo de um racionalismo abstrato e dogmtico, sem
qualquer fundamentao na experincia real e emprica do mundo. Para o filsofo,
as ideias inatas defendidas pelo racionalismo, assim como os princpios racionais da
causalidade, da identidade e no contradio no conseguiam fundamentar
convincentemente o conhecimento cientfico, na medida em que o racionalismo
filosfico, preso a tais regras abstratas, no levava em conta a realidade de onde
surgem os fenmenos naturais e humanos.
Hume divide, desse modo, as percepes em duas espcies principais. De
um lado, esto s impresses mais vivas e que apare