Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    1/144

    Funeral cristo:fundamentos e liturgias

    2010

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    2/144

    Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil 2010Rua Senhor dos Passos, 20290020 -180 Porto Alegre/RSTel.: (51) 3284-5400 Fax: (51) 3284-5419

    [email protected]@ieclb.org.brwww.luteranos.com.br

    Organizao: Erli ManskRedao e pesquisa:Erli Mansk e Jlio Czar Adam

    Reviso: Lus M. Sander

    Formatao das pautas musicais: Josimar Dias da Silva

    Capa/arte: Artur S. Nunes

    Publicao coordenada pelo Secretrio de Formao da IECLBP. Dr. Romeu R. Martini

    A IECLB agradece, sinceramente, ao GAW Obra Gustavo Adolfo, da

    Alemanha pela contribuio e apoio financeiro para esta publicao.

    F979 Funeral cristo: fundamentos e liturgias / [Organizado por] ErliMansk. So Leopoldo : Sinodal ; Porto Alegre : IECLB, 2010.

    15x22,5 cm. ; 144p.ISBN 978-85-62865-22-0

    1. Liturgia. 2. Funeral cristo. 3. Teologia Prtica. 4. Morte.5. Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil. I. Mansk, Erli.

    CDU 264-15

    Catalogao na publicao: Leandro Augusto dos Santos Lima CRB 10/1273

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    3/144

    Apresentao

    Um dos momentos mais delicados da existncia humana oconfronto com a morte. Por mais que queiramos bem as pessoas queamamos, um dia teremos que nos despedir delas ou elas de ns. Pormais que tenhamos f no Deus da vida e na ressurreio conquistadapor Jesus Cristo e prometida a quem o segue, quando a morte chega,ns nos confrontamos com a dor, o sofrimento, o sentimento de vazioe a saudade. Trata-se de um dos momentos mais importantes para a

    ao pastoral. nesse momento que cabe igreja, atravs das pessoaspor ela designadas, transmitir o conforto e o consolo que provm deDeus e motivar para a solidariedade ativa.

    Como igreja que procura ser o mais responsvel e sria possvel,a IECLB no negligencia o cuidado espiritual diante da morte e aimportncia do funeral cristo. Sabemos que a seriedade e o cuidadocom os quais o funeral conduzido podem abrir ou fechar portas. Por

    isso, o rito fnebre deve estar ancorado em slida teologia, baseadana esperana sustentada pela f na ressurreio.Com o intuito de proporcionar aos ministros e ministras um

    material simples e prtico, mas profundo em sua fundamentao,a Presidncia da IECLB entrega em suas mos este livro Funeralcristo: fundamentos e liturgias. H nele uma introduo sobre mortee morrer, sobre a ressurreio e sobre o funeral em si. Apresenta

    aspectos bblico-teolgicos, histricos, antropolgicos, pastorais,jurdicos e litrgicos. Prope, ainda, liturgias para o funeral cristo.Com o apstolo Paulo confessamos: Se vivemos, para o Senhor

    vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamosou morramos, somos do Senhor (Rm 14.8).

    Que este livro possa ser amplamente utilizado, para que oconforto da Palavra de Deus, feito ser humano em Jesus Cristo, habiteo corao de todas as pessoas que sofrem com a perda de entesqueridos.

    Pentecostes de 2010Walter Altmann

    Pastor Presidente

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    4/144

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    5/144

    5

    Introduo

    As pessoas crists creem que nada as pode separar do seuSenhor, Jesus Cristo, nem mesmo a morte. Elas sabem tambm que amorte a mais profunda inquietao da sua f. Por isso, necessitamde um ritual que as ajude a se despedir da pessoa falecida e a entreg-la nas mos de Deus, a cuidar amorosamente da famlia enlutada

    e a articular sua f diante da perda. Este ritual o funeral cristo.Usamos, neste livro o termo funeral cristo, em vez de culto ou ritode sepultamento. O termo funeral possui um sentido mais amplo,independentemente de a forma de destinao da pessoa falecida forpor cremao ou inumao (enterro ou sepultamento). Entendemosque sepultamento um termo reducente; relaciona-se mais ao ato decolocar a pessoa falecida numa sepultura, jazigo ou tmulo. Tambmpoderamos usar o termo exquias em vez de ritual fnebre, ouainda a designao culto de encomendao que significa entregada pessoa falecida a Deus, assim como dos familiares ao amor deDeus. Mas optamos por funeral cristo, compreendendo-o comoa celebrao litrgica de uma comunidade que se despede de umapessoa falecida.

    A morte desempenha papel constitutivo na vida dos sereshumanos. Em todos os tempos, influenciou a vida das pessoas, s

    vezes com mais, outras com menos destaque e protagonismo, massempre determinando a vida do ser humano e a cultura. Hoje no diferente. O sculo XXI se diferencia por tratar, como nunca, a mortecomo algo distanciado, um tabu, tendo a iluso, inclusive, de podersuper-la. A morte tem sido cada vez mais reprimida da vivnciacotidiana e, paradoxalmente, tematizada ao extremo em locais quegarantam distncia, como, por exemplo, nos meios de comunicao

    em geral. Se h algo que se especula e explora na mdia, este algoest relacionado morte e ao morrer. Nosso dia a dia atravessadopor mensagens de representaes da morte. Ela transformada emespetculo. Vemos e escutamos referncias constantes morte, sejade massas ou de indivduos. Nos video games ela se torna, inclusive,objeto de diverso. Entretanto, esta maneira de lidar com a morte

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    6/144

    6

    no real. Ela se torna representao simblica, externa ao nossoeu. Ignora-se, desta forma, uma dimenso da realidade existencialhumana.

    Para a Igreja crist, lidar com funeral significa confrontar-se

    com a real condio humana, com a finitude, com a dor que a morteprovoca nas pessoas, com as perguntas existenciais que se levantama respeito do sentido da vida. Ao mesmo tempo, significa anunciar aesperana crist diante da morte. Ao encomendar as pessoas falecidasa Deus, a comunidade crist assume a tarefa de amparar e consolaros vivos. Esse , sem dvida, um dos momentos mais importante paraa Igreja demonstrar o amor de Deus s pessoas, cuidando delas em

    seu sofrimento.Dos ofcios casuais, o rito fnebre , sem dvida, o maisrequisitado tanto por pessoas ligadas comunidade crist como porpessoas que no so membros de uma comunidade.

    Neste livro, propomos uma introduo sobre a morte, o morrer,a ressurreio e o funeral, enfocando os aspectos bblico-teolgicos,histricos, antropolgicos, pastorais, jurdicos e litrgicos, para, apartir deles, apresentar liturgias para o funeral cristo.

    Expressamos um agradecimento especial a Harald Malschitzky,Dr. Lothar Carlos Hoch e Dr. Mauro Batista de Souza pela colaboraona leitura deste livro e por suas preciosas sugestes.

    A organizadora

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    7/144

    7

    Sumrio

    Parte I A morte e o funeral cristo

    Aspectos bblico-teolgicos 1. Importncia de um posicionamento bblico-teolgico da Igreja

    sobre a realidade da morte ..................................................... 12 2. A compreenso da morte e do morrer na Bblia ...................... 12

    3. A morte envolve o ser humano em sua totalidade de corpo,alma e esprito ........................................................................ 14 4. A morte o fim de nossa vida, porm no o fim de nosso ser ...16 5. A morte o salrio do pecado ................................................ 18 6. A morte est profundamente relacionada com o batismo cristo ....19 7. A morte atinge o ser humano no mais profundo de sua

    existncia ............................................................................... 20 8. A dor diante da morte no camuflada, mas se expressa atravs

    de ritos ................................................................................... 21

    Aspectos histricos9. A comunidade crist iniciou algo inusitado diante da morte de

    pessoas desconhecidas ........................................................... 2210. O sepultamento cristo nos primeiros sculos da Igreja .......... 2311. A lembrana dos mortos na liturgia do culto das primeiras

    comunidades crists ............................................................... 2412. O funeral cristo na Idade Mdia ........................................... 2513. A morte e o funeral cristo na poca da Reforma ................... 26

    Aspectos antropolgicos14. A morte faz parte da vida ....................................................... 2715. S para a morte no h soluo .......................................... 28

    16. A morte na contemporaneidade ............................................. 29

    Aspectos pastorais17. Diante da morte a comunidade crist chamada para a sua

    vocao pastoral .................................................................... 29

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    8/144

    8

    18. O funeral parte de um amplo processo ritual de consolo econstruo da esperana ........................................................ 31

    19. Fases no processo de luto ....................................................... 3220. A importncia do cemitrio para a vida das pessoas enlutadas .... 3321. A prtica da cremao na IECLB ............................................. 34

    Aspectos jurdicos22. As decises sobre o transcurso normal do rito funerrio ......... 3523. As providncias referentes aos trmites burocrticos e legais ....3624. A apresentao do atestado de bito ...................................... 3625. Procedimentos diante de eventuais tumultos durante uma

    cerimnia funerria ................................................................ 37

    26. A urna funerria lacrada pelos rgos competentes ................ 3827. O contato fsico com as pessoas falecidas .............................. 3828. A livre escolha do servio de uma agncia funerria .............. 3829. A prtica da cremao e as obrigaes legais ......................... 3830. Aspectos legais diversos ......................................................... 39

    Aspectos litrgicos

    31. O funeral ritual de passagem, que serve para ordenar umasituao de profunda crise ...................................................... 3932. O funeral cristo uma prtica da comunidade crist ............ 4033. O funeral cristo est relacionado ao batismo ........................ 4134. A ceia do Senhor no est desligada da morte de pessoas crists ....4135. O consolo e a proteo aos enlutados esto acima de qualquer

    costume teolgico-doutrinrio ................................................ 42

    36. Estrutura litrgica .................................................................... 4337. Alocuo ou prdica .............................................................. 4338. Procisso ................................................................................ 4439. Encomendao ....................................................................... 4440. Consignao ........................................................................... 4441. Mortalha ................................................................................. 4542. Bno ................................................................................... 4643. Cor ......................................................................................... 4644. Crio pascal ............................................................................ 4645. Nunc dimittis .......................................................................... 4746. De profundis .......................................................................... 4747. Expresses no recomendadas ................................................ 4848. O rito fnebre para os casos de cremao .............................. 4949. O rito, parte por parte ............................................................. 50

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    9/144

    9

    Parte II Liturgias

    A liturgia do funeral cristo primeira forma ................................ 58A liturgia do funeral cristo segunda forma ................................. 65

    Parte III Ritos diversos

    Rito das cinzas primeira forma ................................................... 80Rito das cinzas segunda forma .................................................... 83Liturgia para o velrio ................................................................... 85Culto de apoio a pessoas enlutadas com ceia do Senhor e orao

    memorial ................................................................................ 87Culto de apoio a pessoas enlutadas 1 ......................................... 97Culto de apoio a pessoas enlutadas 2 ......................................... 99

    Parte IV Recursos litrgicos diversos

    1. Voto trinitrio ....................................................................... 104 2. Acolhida ............................................................................... 105 3. Oraes diversas .................................................................. 106 4. Encomendao ou ao fim da consignao ............................ 108 5. Encomendao e consignao para a cremao ................... 108 6. Envio .................................................................................... 109 7. Para um culto com orao memorial .................................... 109 8. Textos meditativos ................................................................ 110 9. Textos bblicos para funerais em situaes especialmente difceis ... 116

    10. Para cultos com pessoas enlutadas cujos entes no foramsepultados ou cremados ....................................................... 117

    11. No caso da entrega de um corpo a instituies de pesquisa ....11912. Para cultos que visam a acompanhar pessoas enlutadas e

    lembrar as que partiram ....................................................... 12013. Elementos para uma celebrao alusiva a um aniversrio de

    falecimento, junto ao tmulo ............................................... 121

    Bibliografia................................................................................. 124

    Anexo 1...................................................................................... 127Anexo 2 Partituras................................................................... 132

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    10/144

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    11/144

    Parte I

    A morte e o funeral cristo

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    12/144

    12

    Aspectos bblico-teolgicos

    1. Importncia de um posicionamento bblico-teolgico daIgreja sobre a realidade da morte

    A morte um dos fenmenos que mais abalam o ser humano,provocando perguntas e incertezas. Especialmente quando necessi-tam encarar esta realidade em sua prpria vida, as pessoas buscamrespostas que as ajudem a enfrentar o sofrimento causado pelo en-frentamento da realidade da morte.

    No contexto brasileiro, somos confrontados com diferentes for-

    mas de interpretao da morte que nem sempre condizem com osprincpios da f crist evanglico-luterana. Numa realidade onde pre-dominam fortemente outras doutrinas e compreenses sobre a mortee o ps-morte (viso platnico-dualista de corpo e alma, imortalidadeda alma, doutrina da reencarnao), difcil transmitir com clarezauma teologia da morte e da ressurreio. Mas o fato de vivermosnum contexto de mltiplas vises sobre um tema que nos toca tosignificativamente torna mais necessrio ainda que a Igreja zele poruma clara orientao bblica e teolgica sobre o significado cristoda morte. Apesar de o ser humano ignorar a morte, tentando se des-viar dela o mximo possvel, a Igreja deve encarar esta realidade queatormenta a vida humana com muita propriedade; afinal, a f cristse fundamenta no Deus que venceu a morte e nos permite viver naesperana da ressurreio.

    2. A compreenso da morte e do morrer na Bblia

    importante levar em considerao que no h, na Bblia, umconceito unnime e comum da morte1.

    No Antigo Testamento se encontram diferentes perspectivas so-bre a morte. De um lado, transparece uma viso bem natural dela quea aceita como parte da vida. Esta concepo est em sintonia com a

    ideia de que o tempo do ser humano limitado, finito. O ser huma-no um ente passageiro, um sopro2 (Sl 39.6,12; 49.12-20; 82.7;

    1 JNGEL, Eberhard. Morte. So Leopoldo: Sinodal, 1971. p. 58-59.2 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. So Paulo: Loyola,

    1975. p. 137.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    13/144

    13

    89.48s.). Em geral, no AT, a morte vista como o fim da vida. Morrervelho no nada espantoso (Gn 35.29; J 42.17); no entanto, a morteprematura horroriza. De certa forma, o AT tambm oferece uma ideiada morte como algo distanciado da vida. As leis veterotestamentrias

    designam como impuro diante de Deus tudo que se relaciona morte (Nm 19.11). Ela descrita como espao de ausncia de Deus,onde a ao divina no chega. considerada inimiga, pois afasta aspessoas de Deus (Sl 88). Atravs da morte, a pessoa entra no mbitodo no relacionamento com Deus3. Por isso, como se observa, sobre-tudo nos salmos, forte o clamor das pessoas que esto beira damorte a Jav, pois s ele pode determinar ou impedir a ida ao sheol

    (reino dos mortos). s ele que dispe sobre a entrada no reino dosmortos.4Em outras palavras, possvel dizer que gritar por socorroou lamentar so formas concretas de que as pessoas beira da mor-te ainda dispem para se relacionarem com Deus. So suas ltimaspossibilidades de se manterem ligadas a Deus.

    A preocupao com o ps-morte parece no ser um tema recor-rente no AT. Ns a encontramos em J: Morrendo o homem, porven-tura tornar a viver? (J 14.14). A resposta a esta pergunta, conforme

    J 19.25-27, nada mais que uma confisso de f numa vida aps amorte. No livro dos Salmos tambm emergem imagens do ps-morte.O Salmo 49, por exemplo, afirma: Deus remir a minha alma dopoder da morte, pois ele me tomar para si (Sl 49.15).

    Uma referncia ressurreio como esperana real surge tar-diamente no pensamento veterotestamentrio. Est presente no livrode Daniel (Dn 12.2) e no bloco apocalptico do livro de Isaas (cf. Is

    26.19). O pensamento apocalptico se baseia na ideia geral de que se Deus tudo em tudo [...] j no pode haver morte.5Isaas 25.8proclama: Tragar a morte para sempre, e assim enxugar o SenhorDeus as lgrimas de todos os rostos, e tirar de toda a terra o oprbriodo seu povo. Tal pensamento ser definido com mais propriedadeno NT.

    A viso sobre a morte aprofundada no NT. Nele se anuncia a

    derrota definitiva desse inimigo mortal do ser humano. A libertaodo poder da morte se d no evento da cruz e da ressurreio de Je-

    3 WOLFF, 1975, p. 147.4 WOLFF, 1975, p. 148.5 WOLFF, 1975, p. 150.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    14/144

    14

    sus, o Filho de Deus. Jesus se expe totalmente ao poder da morte eingressa em sua esfera de domnio, ou seja, ele morre, sepultado,conhece o mundo da morte. Atravs da morte de Jesus, Deus visita omundo dos mortos e, com isto, superado o medo reinante no AT da

    morte como afastamento de Deus. A morte como barreira entre Deuse as pessoas j no existe, pois Deus mostrou o seu poder sobre elaao resgatar o seu Filho nos domnios da prpria morte.

    No NT, Deus anunciado como Senhor dos vivos e dos mor-tos. Esta a grande novidade que o NT traz em relao ao AT. Amorte e ressurreio de Jesus so temas centrais no NT e se tornameventos-chave para a compreenso da morte e do morrer na Bblia.

    So eventos que fundamentam a leitura e a interpretao no s dasaes e palavras de Jesus nos evangelhos, mas de toda a Escritura.Como diz Paulo: E se no h ressurreio de mortos, ento Cristono ressuscitou. E, se Cristo no ressuscitou, v a nossa pregao ev a vossa f (1Co 15.13-14).

    A realidade da morte ainda assusta as pessoas. Mesmo reconhe-cendo o morrer como algo natural, o medo da morte persiste. Contu-do, para a f crist vale que a morte est vencida. Perdeu a morte oseu poder ..., diz o hino 58, conforme o hinrio Hinos do Povo deDeusda IECLB. Pela graa de Deus, possvel morrer com esperana.Com a mensagem da ressurreio a comunidade crist expressa a suaf de que Deus far nova criao e dar nova vida ao ser humano. Ediante de todas as perguntas que permanecem sobre quando e comotudo isto vai acontecer, vale a certeza de que um dia todos estarodefinitivamente reunidos com Cristo. isto que confessamos no ter-

    ceiro artigo do Credo Apostlico.

    3. A morte envolve o ser humano em sua totalidade de corpo,alma e esprito

    Conforme o pensamento veterotestamentrio, o ser humano uma unidade6, e isto significa que ele no se divide em um corpo

    mortal e uma alma imortal. O Novo Testamento adotou a distinohelenstica entre corpo, alma e mente, porm continuou a compreen-der o ser humano como uma unidade. Um ser humano no era com-

    6 SCHWARZ, Hans. Escatologia. In: BRAATEN, Carl E.; JENSON, Robert W. (Eds.).Dogmtica crist. So Leopoldo: Sinodal / IEPG, 1995. v. 2, p. 564-566.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    15/144

    15

    preendido como pecador conforme o corpo e sem pecado conformea alma. No s a alma de Jesus foi ressuscitada, mas o Jesus inteiro,com corpo, alma e mente.7 o que expressa Mateus 28.9 ao relatara apario de Jesus aps a sua morte. As mulheres foram ao sepul-

    cro de Jesus, mas no o encontraram l. Ao retornarem para casa,Jesus veio em sua direo e disse: Salve! E elas, aproximando-se,abraaram-lhes os ps, e o adoraram. A ideia de ressurreio comoalgo que abrange a pessoa toda claramente expressa nesse relato.Tal pensamento se diferencia daquilo que era defendido nos crculoshelensticos.

    De acordo com Plato e Aristteles, a alma era o que real-

    mente importava. Uma vez que se pensava que ela era invisvel,imaterial e indivisvel, cria-se tambm que era imortal. Plato atconcebeu o corpo como uma priso da alma, uma limitao quejamais permitia a ela alcanar suas intenes mais elevadas. As-sim, estava-se na expectativa da redeno em relao ao corpoe da unio do divino. No obstante, a alma era essencial para oprocesso de vida corporal. Era o princpio de toda a vida e conhe-cia as idias eternas de verdade, bondade e beleza. Uma vez quea alma no alcanava seu alvo em uma nica tentativa, Platoconcebeu um ciclo de renascimento e purificaes at que ela sereunisse com o divino. [...] Os telogos cristos adotaram, comcertas modificaes, a dicotomia grega da alma e corpo e ensina-ram a imortalidade da alma. [...] Em anos recentes, especialmentesob o impacto de uma escuta renovada dos documentos bblicos, aidia de uma alma imortal tem se tornado cada vez mais suspeita.

    O ser humano novamente visto como uma unidade.8Esta visoimplica uma aceitao de que o ser humano mortal em seu todo,ou seja, a morte inclui o corpo e a alma. Consequentemente, umaexistncia significativa para alm da morte possvel mediante aressurreio dos mortos. Isto o que est expresso no Credo Apos-tlico quando se diz: cremos na ressurreio do corpo. Quando aIgreja primitiva incluiu a crena na ressurreio do corpo no Cre-

    do Apostlico, estava tentando proteger-se da idia de que a res-surreio seria somente um acontecimento espiritual, em analogiaao pensamento grego ou gnstico, em que s a alma ou centelha

    7 SCHWARZ, 1995, p. 566.8 SCHWARZ, 1995, p. 566-567.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    16/144

    16

    divina continua a viver na eternidade.9A ressurreio, portanto, uma realidade que diz respeito pessoa tambm na sua dimensocorporal.10Cristo deu essa esperana ao ser humano ao ser ressus-citado como pessoa toda. Esse o fato concreto no qual a f crist

    se apoia.

    4. A morte o fim de nossa vida, porm no o fim de nossoser11

    O cristianismo emprega os termos imortalidade e ressurrei-o para falar da participao do indivduo na vida eterna. Mas,

    segundo Tillich, somente ressurreio bblico. Imortalidade nocontradiz o smbolo da vida eterna, mas o termo tradicionalmen-te usado na expresso imortalidade da alma. Isso torna seu empre-go no pensamento cristo problemtico ainda em outro sentido: eleimplica um dualismo entre alma e corpo, contradizendo o conceitode Esprito que engloba todas as dimenses do ser, e, alm disso, incompatvel com o smbolo da ressurreio do corpo.12O termoimortalidade, embora se encontre em alguns textos bblicos, deveser aplicado com a devida ateno, no sentido de que, como afirmaTillich, a participao na eternidade no continuao da vida apsa morte, nem uma qualidade natural da alma humana. , antes, o atocriativo de Deus [...].13Somente neste sentido se pode falar de umaimortalidade, pois a graa de Deus no permite que a morte apagueou extinga a criatura14.

    E o que se pode esperar da recriao ou da ressurreio do

    corpo? O ser ressuscitado tem continuidade com o que morreu? ABblia no oferece detalhes sobre isto, e devemos ter cautela comqualquer tentativa de resposta nossa. Mas esta tambm parecia seruma preocupao dos cristos na poca de Paulo, como atesta 1Co

    9 SCHWARZ, 1995, p. 568.10 SCHWARZ, 1995, p. 568.

    11 SCHWARZ, 1995, p. 567.SCHWARZ, 1995, p. 567.12 TILLICH, Paul.TILLICH, Paul. Teologia sistemtica. 5. ed. rev. So Leopoldo: Sinodal / EST,

    2005. p. 836.13 TILLICH, 2005, p. 836.14 BRAEMEIER, Gottfried.BRAEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade: contribuies

    para uma antropologia teolgica. So Leopoldo / So Paulo: Sinodal / Paulus,2002. p. 179.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    17/144

    17

    15.35: Como ressuscitam os mortos? E em que corpo vm? A res-posta de Paulo que haver uma transformao fundamental danossa realidade corporal-existencial. Para explicar o sentido dessatransformao, Paulo utiliza antteses, tais como corpo terrestre-

    celestial, corpo corruptvel-incorruptvel, corpo natural-espiritu-al, corpo mortal-imortal. Ressurreio implica, com efeito, umatransformao radical na identidade e na personalidade. Somosressuscitados para uma novacriao.15 Como explica Schwarz,j agora nossa personalidade sofre tremendas transformaes aoavanarmos atravs dos estgios da vida, da infncia at a ado-lescncia, a maturidade e a velhice. Embora essas transformaes

    possam ser dolorosas, permanecemos sempre a mesma pessoa. Se-melhantemente, podemos esperar que permaneceremos ns mes-mos quando formos recebidos na plenitude da nova vida.16 Onovo ser, portanto, no outro ser, mas a transformao do velho.No contexto dessa reflexo, vale lembrar que, pelo batismo, cadapessoa chamada por Deus pelo seu nome. Isto nos faz crer quea identidade de cada indivduo permanece preservada em Deuspara sempre. Podemos dizer que existe uma memria eterna dascoisas. O smbolo que a expressa o livro da vida a que se refereo Apocalipse de Joo.17

    A morte, portanto, significa o fim da vida do ser humano, ja-mais o fim de seu ser. Cada ser humano participante da histria deDeus neste mundo, e sua existncia nica e jamais ser aniquiladapara sempre. Na explicao do primeiro artigo do Credo Apostlico,no Catecismo Menor de Lutero, diz-se: Creio que Deus me criou a

    mim e a todas as criaturas .... A partir dessa confisso de f se podeconcluir que o ter existido insubstituvel, mesmo que essa existnciatenha sido breve. Participar da histria de Deus, mesmo dentro de umtempo finito, viver para sempre na memria do Deus criador, eternoe infinito.

    Uma teologia a respeito da morte e, consequentemente, do epara o funeral cristo s pode ser articulada levando em conta a pr-

    pria compreenso que se tem da vida. a existncia, enquanto tal,que permanece na memria eterna de Deus. Para a f crist, vida

    15 SCHWARZ, 1995, p. 568.SCHWARZ, 1995, p. 568.16 SCHWARZ, 1995, p. 568.17 BRAEMEIER, 2002, p. 179.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    18/144

    18

    ddiva de Deus (Sl 36.9). Somos criaturas, e a reside a diferena bsi-ca entre ns e Deus. Deus a origem da vida; imortal e infinito. Nssomos mortais e enfrentamos a finitude. A f no Deus que concedevida d coragem s pessoas para se confrontarem com a morte e se

    desiludirem de pretensas conquistas da imortalidade (Lc 12.20). Vida algo que recebemos de Deus como um talento que deve ser bemutilizado e devolvido no tempo oportuno (Mt 25.14-30). A f cristnos remete, portanto, a uma verdadeira ars moriendi18(arte de mor-rer), ou seja, ela nos ensina a ver a morte como parte do ciclo da vidae nos ajuda a viver a vida com sabedoria e desprendimento (Sl 90),sempre prontos e prontas a nos entregar confiantes s mos de Deus,

    a fonte da vida eterna.5. A morte o salrio do pecado

    A morte salrio do pecado, escreve Paulo (Rm 6.23). Mas istoprecisa ser bem esclarecido. A morte no um castigo de Deus, ouseja, Deus no castiga o mal com a morte, e, sim, esta j est implci-ta no prprio mal. O pecado acarreta a morte por fora inerente. Paraentend-lo, vale lembrar que pecado significa afastamento de Deus.Rompe-se a relao com o Criador e o ser humano foge da presenadivina (cf. Gn 3.10). [...] Onde Deus se retira, vai restar somente mor-te (cf. Sl 104.29,30).19

    No o morrer enquanto tal que o salrio do pecado, poisexiste um morrer que leva vida eterna. a morte pavorosa, a morteperdio, a morte sem perspectivas que o castigo do pecado e nele

    tem sua origem (cf. Rm 5.12s.). Enquanto isso, o fim fsico do ser hu-mano no castigo. simplesmente decorrncia e implicao do fatode sermos criaturas. O morrer deixar de ser maldio no momentoem que Deus perdoar os pecados e despertar a esperana por vida

    18 Refere-se s tradies espirituais milenares que ensinam a dialogar sobre a pro-Refere-se s tradies espirituais milenares que ensinam a dialogar sobre a pro-fundidade da morte e do morrer. Veja, por exemplo, HENNEZEL, Marie de;

    LELOUP, Jean-Yves. A arte de morrer: tradies religiosas e espiritualidadehumanista diante da morte na atualidade. 6. ed. Petrpolis: Vozes, 2003. Vejatambm NO, Sidnei Vilmar. A morte bem-aventurada: Lutero e a ars moriendi.In: HOCH, Carlos Lothar; WONDRACE, arin H. . (Orgs.). Biotica: avanose dilemas numa tica interdisciplinar: do incio ao crepsculo da vida: esperan-as e temores. So Leopoldo: Sinodal / EST / FAPERGS, 2006. p. 77-84.

    19 BRAEMEIER, 2002, p. 177.BRAEMEIER, 2002, p. 177.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    19/144

    19

    para alm dos limites da morte. Ento, mas somente ento, o morrervoltar a ser algo natural.20

    Diante de Deus o pecado e a morte no tm mais poder. Ondeh relao com Deus, o pecado e a morte no significam castigo nem

    fim. Como diz Paulo, nada poder separar-nos do amor de Deus(Rm 8.35-39). Consequentemente, a morte no mais salrio do pe-cado e o perdo dos pecados passa a ser concesso de vida, pois elerestabelece a comunho com Deus.

    6. A morte est profundamente relacionada com o batismocristo

    Com a morte, a pessoa crist alcana plenamente o significadodo batismo, pois, conforme Lutero, o significado do Batismo omorrer ou afogar-se do pecado no se realiza inteiramente nestavida, at que o ser humano morra tambm corporalmente e se trans-forme completamente em p. O Sacramento ou sinal do Batismo serealiza depressa, como vemos com nossos olhos, mas o significado, oBatismo espiritual, o afogamento do pecado, dura enquanto vivemose s consumado na hora da morte. Ento a pessoa verdadeiramen-te imersa na gua batismal e se realiza o significado do Batismo. Porisso, esta vida nada mais que um incessante batizar espiritual at amorte.21

    O batismo, conforme Lutero, s se realiza plenamente com amorte porque, segundo ele, o pecado no acaba totalmente enquan-to vive este corpo, que foi concebido to integralmente no pecado

    [...]. Assim, a vida de um cristo no outra coisa do que um come-ar a morrer ditosamente, desde o Batismo at a sepultura. Pois Deusquer renov-lo totalmente no ltimo dia.22No ltimo dia, sim, se re-alizar por completo o que o tirar da gua significa, diz o reformador.Ento ressuscitaremos da morte, dos pecados, de todo mal, puros emcorpo e alma, e viveremos eternamente. Ento, completamente tira-

    20 BRAEMEIER, Gottfried. A morte e o morrer na Bblia: (subsdios para o rito doBRAEMEIER, Gottfried. A morte e o morrer na Bblia: (subsdios para o rito dosepultamento). In: MOLZ, Cludio; WEHRMANN, Guenter F. . (Coord.). Procla-mar libertao: Ofcios, suplemento 2. So Leopoldo: Sinodal, 1988. p. 53.

    21 LUTERO, Martinho. Um sermo sobre o Santo, Venerabilssimo Sacramento doLUTERO, Martinho. Um sermo sobre o Santo, Venerabilssimo Sacramento doBatismo In: Obras selecionadas. So Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concr-dia, 1987. v. 1, p. 415s.

    22 LUTERO, 1987, p. 415s.LUTERO, 1987, p. 415s.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    20/144

    20

    dos da gua do Batismo e nascidos perfeitos, vestiremos o verdadeirotraje batismal da vida imortal no cu.23

    Portanto, o batismo nos d liberdade de falar da morte semmedo, pois, para as pessoas batizadas, a luz da ressurreio j brilha

    no horizonte desta vida mortal e finita. A morte que o cristo e a cristenfrentam apenas mais uma experincia, talvez a mais sofrida, davida humana. Porm, o batismo nos lembra que possumos algo amais, algo que vai alm desta vida e que est relacionado eternida-de. O batismo nos liga diretamente a Deus, nosso criador, salvadore consolador. Atravs do batismo j podemos enxergar a vida no fu-turo, o reino de Deus. Por tudo isso, a liturgia do funeral cristo no

    deve prescindir dessa ntima relao com o batismo e deve fazer, doincio ao fim, meno a esse sacramento precioso, tanto da pessoafalecida como de toda a comunidade, e ao seu significado teolgico.

    7. A morte atinge o ser humano no mais profundo de sua exis-tncia

    Apesar de todas as explicaes racionais, psicolgicas e, inclu-sive das respostas da f crist, a pergunta pelo porqu da morte deum ente querido e de si prprio sempre envolveu o ser humano, emtodos os perodos da histria. O livro de J fala do questionamentohumano diante de Deus e mostra claramente o quanto difcil daruma resposta plausvel ao porqu da morte. A Bblia no s expecom realismo a experincia da morte e do sofrimento humano, mastambm nos ensina a clamar a Deus diante dessa realidade. O pr-

    prio Cristo brada na cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me aban-donaste? (Mc 15.34). Para a f bblica, clamar no significa questio-nar a existncia de Deus, mas a existncia da morte e do sofrimento.Kyrie eleison Senhor, tem compaixo uma expresso bblicalitrgica que traduz com profundidade o clamor e o sofrimento hu-manos diante de Deus.

    A Bblia revela que Deus no s Senhor sobre a morte, mas

    tambm se importa com o sofrimento humano. E isto nos reveladosobretudo na cruz, apesar da dificuldade de compreendermos queDeus no tire Jesus da cruz, no o isente de sofrer nem de morrer. Pa-rece contraditrio, mas assim que Deus age para mostrar o seu amor

    23 LUTERO, 1987, p. 415s.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    21/144

    21

    por ns e o seu poder sobre a morte. Deus no retira o sofrimento deJesus, mas tambm no o abandona. Ele assume a morte do seu Filho,vai com Ele s profundezas do abismo e o resgata de l para umanova vida. Na cruz, Deus revela o seu profundo amor humanidade,

    mas, como o expressou Lutero, essa revelao se d em oculto, ou,poderamos dizer, s avessas, no silncio, pois, primeira vista, oque vemos na cruz seno vergonha, privao, morte e tudo que nos mostrado no Cristo sofredor? Ora, tudo isto so coisas que emnossa opinio nada tm de divino, mas que antes apontam para aaflio, misria e fraqueza humanas. Justamente ali ningum de per siprocuraria revelao de Deus. Num ocultamento desses que Deus

    entra para se revelar. O Deus manifesto precisa virar Deus abscndi-to para que ocorra revelao de Deus. Deus se torna abscndito nosofrimento. [...] Quando o prprio Deus est abscndito no sofri-mento, fica claro que tambm as obras de Deus, nas quais sua atua-o se nos apresenta, mostram o mesmo carter. As obras de Deussempre so deformadas [...]. Elas esto to profundamente ocultasque somente aparecem sob aspecto contrrio (sub contraria specie...). A fora de Deus revela-se na fraqueza [...]. A ajuda de Deus per-manece invisvel pessoa humana; esta inclusive acredita estar maisabandonada por Deus no momento em que a ajuda de Deus lhe estmais prxima [...]. A sabedoria de Deus no deixa de ser sabedoria,mas ela nos parece tolice, ela sabedoria de Deus no abscndito,sabedoria que est nas coisas escondidas.24

    8. A dor diante da morte no camuflada, mas se expressa

    atravs de ritos

    As prticas rituais relacionadas morte e ao sepultamento noNovo Testamento no diferem das prticas da Palestina antes e notempo de Jesus. Os relatos apontam para o seguinte: os mortos eramlevados em esquifes, em cortejos, como o filho da viva de Naim(Lc 7.12 e 2Sm 3.31; 2Rs 13.21); os cortejos eram acompanhados

    por crianas (Gn 25.9,39), parentes (Jz 16.31), amigos (1Rs 13.29s.)e escravos (2Rs 23.30). Ao que tudo indica, os sepultamentos ocor-riam no prprio dia do bito. Pessoas choravam a perda de algum,

    24 LOEWENICH, Walther von.LOEWENICH, Walther von. A teologia da cruz de Lutero. So Leopoldo: Sinodal,1988. p. 23.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    22/144

    22

    assim como aparece no falecimento da filha de Jairo (Mc 5.38). Ador se expressava atravs de gestos como, por exemplo, pr as mossobre a cabea (2Sm 13.19; Jr 2.37), rasgar as vestes (Gn 37.34; J1.20), vestir-se de panos de saco (2Rs 6.20), pr terra sobre a cabea

    (Js 7.6; J 2.12), rolar a cabea ou o corpo todo no p (J 16.15; Mq1.10), deitar e sentar sobre cinzas (Is 58.5; Jr 6.26), e, inclusive, ras-par a barba e o cabelo ou fazer incises no prprio corpo (J 1.20; Is22.12; Jr 16.6; 41.5). Eclesiastes 12.1-7 fala da radicalidade da mortee do vazio que ela provoca na vida. Sobra apenas o p e nada mais.Msica fazia parte dos sepultamentos, como aparece no caso da filhado centurio (Mt 9.23). As pessoas falecidas eram envoltas em panos,

    com um vu no rosto, como Lzaro (Jo 11.14). O prprio Jesus foienvolto em um pano de linho (Mc 15.46). No AT, se faz referncia apessoas enterradas com suas roupas do cotidiano (1Sm 28.14, 2.19e 15.27) e de combate, no caso dos guerreiros (Ez 32.27). A posiofetal, em tumbas individuais ou coletivas, ou no cho, no caso de pes-soas mais pobres, indica o modo como eram feitos os sepultamentosno mundo do AT.

    A Bblia oferece poucos recursos para o ritual fnebre, e osexistentes no visam a registrar formas ou regras de como este deveacontecer. Sepultar os mortos visto como um dever santo (2Sm21.12ss.; 1Rs 13.29s.); ter um sepultamento decente algo desejadoem Israel e uma forma de aliviar a dor da perda. No ser sepultado algo abominvel (1Rs 14.11; 16.4); observa-se o luto pelos mortos,mas no se fala em oraes ou sacrifcios pelos mortos (Dt 34.8)25.Apocalipse 21.4 anuncia a grande esperana de um tempo em que

    no haver mais morte, sofrimento, pranto e dor.

    Aspectos histricos

    9. A comunidade crist iniciou algo inusitado diante da mortede pessoas desconhecidas

    Os cristos dos primeiros sculos iniciaram algo inusitado:como indivduos e como comunidade, assumiram tanto os sepulta-mentos de pessoas crists quanto de pessoas no crists que morriam

    25 SCHMITT, E. verbete Morte. In: BAUER, Johannes B.SCHMITT, E. verbete Morte. In: BAUER, Johannes B. Dicionrio de teologia bbli-ca. So Paulo: Loyola, 1973. v. 2, p. 729.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    23/144

    23

    na pobreza e no abandono. As pessoas que no tinham um lugarprprio para serem sepultadas se beneficiavam da prtica crist dassepulturas co-participativas26. Os diconos eram os responsveispor promover um sepultamento digno das pessoas, mesmo daquelas

    desconhecidas, encontradas beira-mar, por exemplo. Este amor econsiderao para com as pessoas, tambm em sua morte, impres-sionou at mesmo os no cristos e provavelmente tenha sido umdos motivos para a expanso da Igreja. O argumento para cuidar dapessoa falecida estava no reconhecimento de que cada ser humano parte da criao de Deus, templo do Esprito Santo (1Co 6.19), desti-nado ressurreio (Rm 8.11, 20-23)27.

    10. O sepultamento cristo nos primeiros sculos da Igreja

    Os funerais cristos, nos primeiros sculos da Igreja, eram mar-cados pela alegria, como se a pessoa falecida estivesse sendo condu-zida de um local a outro28, resultado da profunda convico de que,assim como Cristo ressuscitou, tambm os cristos e as crists ressus-citaro. Concebia-se a morte como parte do processo atravs do quala velha pessoa despida e revestida de um novo ser. Este clima sediferenciava do lamento dos funerais de no-cristos. Mesmo assim,a Igreja antiga valeu-se de costumes de outras religies para realizaro sepultamento, embora os adaptasse aos fundamentos cristos, prin-cipalmente ao evento pascal.

    Ao descrever o funeral dos primeiros cristos, White relata:Trajavam-se vestes brancas, carregavam-se folhas de palmeiras e ve-

    las, queimando-se incenso medida que a comunidade avanavarumo ao cemitrio em plena luz do dia (ao contrrio dos funeraisnoturnos dos pagos). O corpo fora previamente lavado, ungido eenvolto em linho na casa da pessoa falecida, enquanto se proferiamoraes.29Junto ao sepulcro eram realizadas oraes e celebrada aeucaristia, no mesmo esprito de alegria. Cantos e salmos tambm

    26 GEORG, Sissi.GEORG, Sissi. Diaconia e culto cristo: o resgate de uma unidade. So Leopoldo:Centro de Recursos Litrgicos/EST, 2006. p. 134 (Srie Teses e Dissertaes, 32).

    27 WINLER, Eberhard.WINLER, Eberhard. Tore zum Leben: Taufe, onfirmation, Trauung, Bestattung.Neukirchen: Neukirchener Verlag, 1995. p. 168.

    28 WINLER, 1995, p. 168.WINLER, 1995, p. 168.29 WHITE, James F.WHITE, James F. Introduo ao culto cristo. So Leopoldo: Sinodal / IEPG,

    2005. p. 234.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    24/144

    24

    faziam parte dos ritos fnebres. O surgimento de sermes e prdicasprovavelmente se deve ao costume das falas de familiares a respeitodas pessoas falecidas.

    J no sculo V havia uma estrutura do rito funeral dividido em

    trs estaes: casa-igreja-cemitrio. Precedido por procisses, naigreja eram feitas leituras bblicas pelos diconos, com nfase na res-surreio. Aps a despedida dos catecmenos30, o bispo fazia umaorao, derramava leo sobre o falecido, oferecia o sculo santo ecelebrava a eucaristia. Em decorrncia da espera pela parsia, os cris-tos eram sepultados com o rosto voltado para o oriente, pois esteera visto como o lugar de onde o Cristo ressuscitado retornaria. A

    comunidade crist realizava culto em memria da pessoa falecida noterceiro, nono e quadragsimo dias aps a morte. O aniversrio defalecimento era uma data especial. Tratava-se de uma ocasio impor-tante para lembrar, sobretudo, as pessoas que morreram em martrio.A morte, para o cristo, era o natalcio celestial, e os santos eramcomemorados no dia do seu nascimento (natalis) para a eternidade, eno no dia de seu nascimento mundano para o tempo finito.31

    difcil reproduzir o rito funeral das comunidades crists dosprimeiros sculos. Mas, a partir dos elementos mais comuns encon-trados, possvel vislumbrar uma estrutura de cinco partes principais:1) preparao do corpo em casa, com lavagens, unes e oraes; 2)procisso, com vestes brancas, velas, incenso, palmeiras e cantos; 3)ofcio de louvor e ao de graas, com leituras bblicas e salmos; 4)eucaristia, com o ltimo beijo da paz; e 5) enterro, com os ps volta-dos para o oriente32.

    11. A lembrana dos mortos na liturgia do culto das primeirascomunidades crists

    A partir do sculo IV, o mais tardar, as comunidades cristsincluram uma orao na liturgia do culto dominical para lembrar os

    30 Catecmenos so os que, na Igreja antiga, se preparavam para o batismo. NosCatecmenos so os que, na Igreja antiga, se preparavam para o batismo. Noscultos, eles participavam somente das leituras bblicas e se retiravam antes dasoraes dos fiis e da eucaristia.

    31 WHITE, 2005, p. 235.32 DAVIES, J. G. Burial. In: DAVIES, J. G. (Ed.).DAVIES, J. G. Burial. In: DAVIES, J. G. (Ed.). A new dictionary of liturgy and wor-

    ship. London: SCM Press, 1986. p. 117.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    25/144

    25

    seus mortos. Esta orao conhecida como memento deffuntorumou mortuorum (lembrana dos mortos) tambm conhecido comodptico. A orao comea com a palavra latina memento, quesignifica lembra-te. Pede-se, assim, que Deus se lembre das

    pessoas que nos antecederam na morte. Originalmente, o mementomortuorum era uma lembrana de falecidos proeminentes dacomunidade, que haviam servido a Igreja. O memento tradicionaltinha o sentido de lembrar os/as fiis que no podiam mais participarda celebrao eucarstica. Essas pessoas haviam precedido as outrasna morte, mas estavam marcadas com o sinal da f, ou seja, tinhamsido batizadas e participaram do corpo mstico do Senhor. Em sua

    morte, portanto, estavam definitivamente incorporadas em Cristo. Aoproferir o nome dessas pessoas falecidas durante a ceia eucarstica,pedia-se a Deus que se lembrasse delas e lhes concedesse a paz.Desta maneira, a comunidade crist dava o testemunho de que osmortos no estavam excludos da comunho dos santos, pois eles eelas pertenciam para sempre ao corpo de Cristo atravs do batismoe da f33.

    12. O funeral cristo na Idade Mdia

    O funeral cristo na Idade Mdia era marcado pelo medo deenfrentar o ltimo inimigo, a morte. Inferno e purgatrio eram figurasda mente medieval que atormentavam as pessoas, sendo utilizadascomo meio de correo. Obras de arte retratam o juzo final comimagens que representavam, em detalhes abundantes, o tormento

    dos condenados. Tambm a eucaristia se tornou um instrumento dedisciplinamento. Desenvolveu-se a prtica da uno com leo e dovitico como formas de preparar a pessoa para a morte, livrando-ados pecados e, assim, dos castigos do inferno. Neste contexto, acura pro mortuis (cuidado pelos mortos) tornou-se de importnciacentral. Os vivos se sentiam responsveis pela salvao das pobresalmas do purgatrio; para tanto, oraes, missas e doaes eram

    realizadas em favor dos mortos. A preocupao com a pessoa toda,atravs do cuidado do corpo de uma pessoa falecida, na prtica daIgreja antiga, foi, neste sentido, cedendo espao para o cuidado da

    33 Para um aprofundamento do significado dos mementos e dpticos, veja o estudono Anexo 1 deste livro.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    26/144

    26

    alma, principalmente. Tudo que se fazia com o corpo tinha o objetivode livrar a alma do terror do inferno. Entre os monges dos conventosda Idade Mdia, tornou-se praxe rezar missas pelos mortos. Seguindocostumes religiosos antigos, essas missas eram realizadas no 3, 7 e

    30 dias aps o falecimento e no aniversrio do dia da morte. Os sepultamentos medievais geralmente eram feitos emcemitrios localizados em torno da igreja. O corpo era recebido noporto do cemitrio (porto dos defuntos), carregado para dentro daigreja com salmos, e ento celebrava-se a eucaristia, concedia-seabsolvio pessoa falecida, que recebia incenso e asperso comgua benta. Seguia-se o enterro no cemitrio ou debaixo da igreja.

    [...]. O Dies irae (dia da ira ou do juzo), canto do sc. 12 ou 13,espelha o foco da Idade Mdia tardia no juzo e na possibilidade decondenao, to diferente da clara confiana dos primeiros cristos.34

    13. A morte e o funeral cristo na poca da Reforma

    Lutero teve grande tolerncia no que se refere s prticas desepultamento de sua poca. Ele no elaborou um rito funeral, masabdicou radicalmente de toda a teologia em torno do purgatrio edo culto s relquias e buscou sustentao na prtica da Igreja antigaque via o sepultamento como algo de competncia da comunidade,especialmente quando a pessoa falecida no tinha familiar. Elecondenou tudo o que se referia aos ritos em favor dos mortos e deupreferncia a uma cerimnia simples, e desta deveriam fazer parte,principalmente, a pregao do evangelho da ressurreio, hinos de

    louvor, salmos e corais. A justificao por graa, e no a vida dapessoa falecida, tornou-se o centro do funeral cristo.

    A preparao para a morte era vista pelo reformador comoalgo muito valioso. Em meados de outubro de 1519, Lutero escreveuUm sermo sobre a preparao para a morte. Nesse sermo, ele semostra como pastor que vai ao encontro dos anseios existenciais daspessoas, enfrentando suas mais profundas angstias e preocupaes a

    partir da teologia da cruz35. Para enfrentar o medo da morte, Lutero

    34 WHITE, 2005, p. 235-236.WHITE, 2005, p. 235-236.35 Cf. FISCHER, Joachim. Um sermo sobre a preparao para a morte: Introduo.Cf. FISCHER, Joachim. Um sermo sobre a preparao para a morte: Introduo.Um sermo sobre a preparao para a morte: Introduo.

    In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: Os primrdios: Escritos de 1517 a1519. So Leopoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concrdia, 1987. v. 1, p. 385.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    27/144

    27

    direciona a ateno das pessoas para Jesus Cristo, que venceu a mortena cruz, assim como o pecado e o inferno. F evanglica agarrar-se a Cristo, pois a f sustenta a pessoa, no apenas no dia a dia, mastambm no fim desta vida, na morte36.

    Em Um sermo sobre a preparao para a morte, Lutero falada necessidade de o ser humano, na iminncia da morte, despedir-se deste mundo tanto corporal quanto espiritualmente. Isto significa,segundo o reformador, que a pessoa deve dispor com clareza sobre osseus bens temporais, para que, depois, no haja rixa e discrdia entreos parentes; deve perdoar amavelmente todas as pessoas, por maisque elas a tenham ofendido e, assim, tambm deve desejar o perdo

    de todas as pessoas. Aps isso, a pessoa se volta inteiramente paraDeus, apega-se aos sacramentos, crendo em sua fora consoladora.Conforme Lutero, os sacramentos so um consolo muito grandee como que um sinal visvel do propsito divino, a que devemosnos apegar com uma f firme, como se fossem um bom cajado, qualaquele com que Jac, o patriarca, atravessou o Jordo, ou como sefossem uma lanterna pela qual devemos nos orientar e para a qualdevemos olhar com todo o empenho ao trilharmos o caminho obscuroda morte, do pecado e do inferno37. Olhar a imagem de Cristo (Bild)nos ajuda a vencer no s o medo da morte, mas o poder de Satans,diz Lutero.

    Aspectos antropolgicos

    14. A morte faz parte da vidaNo Brasil se diz que a morte faz parte da vida. Esta , sem

    dvida, a mais difcil constatao humana. Talvez este seja o preoque pagamos por sermos seres racionais e termos conscinciade que vamos morrer e perder pessoas que amamos. Ao mesmotempo, esta profunda e difcil constatao humana a base pararepensarmos a vida. Viver tambm significa morrer. Desde que somos

    concebidos estamos, de certa forma, morrendo, porque a morte

    36 FISCHER, 1987, p. 386.37 LUTERO, Martinho. Um sermo sobre a preparao para a morte. In: LUTERO,

    Martinho. Obras selecionadas: Os primrdios: Escritos de 1517 a 1519. So Le-opoldo / Porto Alegre: Sinodal / Concrdia, 1987. v. 1, p. 394.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    28/144

    28

    uma contingncia biolgica. Clulas precisam morrer para queoutras nasam. Nosso corpo dotado deste mecanismo para evitardegeneraes. Biologicamente falando, portanto, a morte umanecessidade; algo natural.

    Se no existisse a morte, a vida seria totalmente diferente. Noseramos o que somos. No haveria ciclos, incio, meio e fim das coisas.A percepo de tempo seria sem movimento, esttica. Racionalmentefalando, a vida no planeta no seria vivel. A longevidade redundarianum colapso do equilbrio ecolgico. A vida no planeta terra seestrutura atravs de um mecanismo cclico de trocas, onde o morrer,o transformar-se e o reintegrar-se ao sistema so parte imprescindvel

    da existncia. Basta observarmos a natureza das plantas: suas folhascaem, secam-se e se decompem, transformando-se em aduboorgnico que enriquece a terra e alimenta novas plantas. a vida setransformando em alimento que nutre outras vidas. A morte do serhumano, cujo corpo se decompe e se transforma, est perfeitamenteintegrada neste sistema cclico da vida.

    Da mesma forma que a morte algo natural, resistir a elatambm o . Na vida est embutida uma fora que a impulsiona. Porisso, resistimos morte, ao fim das coisas. Temos pavor at mesmoda conscincia de tal condio. Esta resistncia e este pavor so,portanto, naturais e no, necessariamente, frutos da cultura38. Tudoque vive resiste morte. A planta luta contra a extino. Os animaisexpressam sinais de medo diante do perigo. A oposio morte inerente vida. A morte desejvel apenas na medida em que a vidase deteriora39.

    15. S para a morte no h soluo

    Para o ser humano de todos os tempos, a morte a principalfonte de inconformidade. S para a morte no h soluo, dizemas pessoas. A morte algo absurdo, porque questiona o que temosde mais precioso, a vida. Ela contradiz a vida por ser um estado

    absoluto de abandono, uma condio de no-relacionamento total.A mesma resistncia natural que se apresenta na dimenso biolgicase transfere para a dimenso antropolgica. Diante do absurdo da

    38 BRAEMEIER, 2002, p. 173.BRAEMEIER, 2002, p. 173.39 BRAEMEIER, 2002, p. 173.BRAEMEIER, 2002, p. 173.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    29/144

    29

    finitude da vida, o ser humano ensaia diferentes possibilidades delidar com a morte. Os ideais de eterna juventude e de imortalidadepermeiam as mais variadas expresses da nossa cultura: as artes, ascincias e a religio.

    16. A morte na contemporaneidade

    Na atualidade, vivemos novas nuances do ideal de imortalidade,pela primeira vez embalado por avanos cientficos e tecnolgicosque, por vezes, trazem consigo grandes riscos para a prpria vida.O ser humano da contemporaneidade um ser que se depara com a

    real possibilidade de se livrar da dor e das perdas. Criam-se artifciosque prolongam a vida, seja atravs de medicamentos e transplantesde rgos, seja pela possibilidade de reproduo da vida, ou de partedela, por meio da manipulao gentica. Sonha-se, como nunca, coma eternidade real. Por isso, a morte se torna, cada vez mais, um tabu.Evita-se o memento moriat mesmo para os moribundos. Pesquisasdemonstram que boa parte dos jovens na faixa dos 20 anos jamaisse confrontou com um cadver. Pessoas do nosso crculo de relaesmorrem em clnicas e hospitais, isoladas e distantes dos vivos. Ocuidado com os corpos de pessoas falecidas e o funeral se transformamem atividades de institutos que, com as mais variadas tcnicas erecursos, buscam amenizar a feiura da morte. A prpria cremao setorna, neste quadro, um distanciamento da morte, onde, em vez de seconfrontar com o corpo sem vida ou a ideia da decomposio, pessoasassistem, quando assistem, ao enterro de uma urna, ou, simplesmente,

    as cinzas so lanadas na natureza. Quando se ignora a realidade damorte, no se vive a vida real, ou se vive de modo a esgotar todasas potencialidades da vida, numa corrida desesperada aos bens deconsumo, depredao ambiental e individualismo exacerbado.

    Aspectos pastorais

    17. Diante da morte a comunidade crist chamada para asua vocao pastoral

    Os ritos fnebres tm, em muitas religies, a funo de separaro morto e a morte das pessoas vivas. No caso cristo, e principalmente

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    30/144

    30

    para a f evanglica luterana, no essa a principal funo do funeral.Alm de encomendar a pessoa falecida solicitude graciosa de Deus,atravs do seu sepultamento ou da sua cremao, o rito funeral tema funo de organizar a crise instalada com a morte e perda de um

    ente querido. E, para ajudar as pessoas num momento de profundador, o ritual cristo procura mostrar o amor de Deus e o apoio dacomunidade no consolo aos enlutados40. Como define a IECLB, osepultamento para a Igreja oportunidade de testemunho pblicode sua f na ressurreio e de consolo aos enlutados. Representaigualmente um ato de respeito ao defunto, lembrando que o corpohumano, mesmo falecido, criao de Deus.41

    Consolar as pessoas enlutadas no significa fazer especulaessobre a morte. A f crist ajuda as pessoas a lidar com a realidade damorte, pois esta no negada por uma religio em cujo cerne est acrucificao42. O verdadeiro consolo vem da fidedignidade de Deus,revelada em sua palavra, atravs da Escritura e dos sacramentos. Ofuneral cristo uma ocasio especial para lembrarmos que, pormeio do batismo, Deus nos aceitou incondicionalmente e que issocontinua valendo para a pessoa em sua morte. Por isso, encomendara pessoa falecida a Deus significa coloc-la sob a guarda do Deuscujo amor j foi demonstrado antes mesmo da morte dela. Sendoa esperana da ressurreio em Cristo to central para a f crist,encomendar uma pessoa falecida a Deus tambm significa orar paraque Deus realize o seu desgnio para com ela.

    De suma importncia para as pessoas enlutadas so a presenae o apoio da comunidade da qual elas so parte. A comunidade de f

    tambm representa o corpo de Cristo no qual a pessoa falecida entroupelas guas do batismo do qual no pode ser separada nem pela morte.A comunidade reunida marca a transio da pessoa falecida parauma nova relao dentro da igreja: ela passa para a igreja triunfante,alm da igreja militante aqui na terra. O papel de outros cristos nofuneral de tornar visvel, por meio de sua presena, o ambiente deamor que cerca os enlutados.43

    40 WHITE, 2005, p. 238-239.WHITE, 2005, p. 238-239.41 O SEPULTAMENTO eclesistico: um posicionamento da IECLB referente a enter-

    ro e cremao. Boletim informativo 157,Porto Alegre, 1997. (Anexo 4).42 WHITE, 2005, p. 239.43 WHITE, 2005, p. 239.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    31/144

    31

    18. O funeral parte de um amplo processo ritual de consoloe construo da esperana

    O funeral no momento de ensinamentos sobre a morte,

    nem sobre o significado do seu ritual. O funeral parte de umamplo processo ritual de consolo cristo e construo da esperanaem Cristo (catequese teolgico-litrgica). Por isso, em sentidopastoral, o funeral cumprir melhor a sua funo se for precedidode acompanhamento poimnico-litrgico s pessoas que esto naiminncia da morte e, posteriormente, s pessoas enlutadas. Ritosps-funeral so instrumentos valiosos para a elaborao do luto.

    Conforme se descreve no item 19, esta uma fase de transio emque a pessoa lida mais concretamente com o significado da mortee, portanto, necessita de acompanhamento pastoral-litrgico maisde perto. Ritos podem ajudar as pessoas a externarem sentimentosreprimidos. Prantear, lamentar, jejuar, rasgar as vestes so, porexemplo, gestos rituais de manifestao do luto encontrados naBblia, conforme observado acima no item 8. Temos que aprender adar a devida ateno e o devido tempo para a manifestao do lutoe do pranto44.

    Na IECLB, h o costume da orao memorial45, incorporadaao culto da comunidade, a qual inclui leitura dos dados biogrficosda pessoa falecida e a incluso da famlia enlutada na oraode intercesso. Essa forma de comunicao de falecimento queacontece no culto tem um aspecto poimnico inerente; contudo, ela insuficiente. Alm disso, necessrio refletir sobre como se realiza

    esse ato de comunicao. Cultos com enlutados, cultos em memriados mortos (na Pscoa, no Dia de Finados ou no ltimo Domingodo Ano Eclesistico) e a redescoberta, atravs da catequese litrgica,de elementos poimnicos na liturgia do culto, como os mementosedpticos46, na orao eucarstica, so prticas de acompanhamentocomunitrio a pessoas enlutadas, desenvolvidas na IECLB, que tm

    44 HOCH, Lothar Carlos. As minhas lgrimas tm sido o meu alimento: desafiospastorais no trabalho com enlutados. In: HOCH, Lothar Carlos; HEIMANN, Tho-mas (Orgs.). Aconselhamento pastoral e espiritualidade: Anais do VI Simpsio deAconselhamento e Psicologia Pastoral. So Leopoldo: Sinodal / EST, 2008. p. 64.

    45 Sobre a orao memorial, confira MARTINI, Romeu Ruben (Org.). Livro de culto.So Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 37.

    46 Confira acima o item 11 e o Anexo 1 deste livro.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    32/144

    32

    importncia fundamental. Mas essas modalidades jamais deveriamdispensar o contato pessoal e prximo atravs da visitao famliaou pessoa enlutada. Essas visitas possuem igualmente aspecto ritual. imprescindvel orar com as pessoas enlutadas, ler um texto bblico,

    alm de ouvi-las atentamente e, mesmo, silenciar com elas. Nesseacompanhamento pessoal, importante considerar que no cabe ans atropelar as pessoas no seu trabalho de luto. Podemos confiar quecada pessoa enlutada ficar bem a seu tempo, uma vez que h tempocerto para todas as coisas.47

    19. Fases no processo de luto

    Algumas fases no processo de luto devem ser consideradasno acompanhamento s pessoas enlutadas, respeitando-se asindividualidades de cada pessoa e de cada caso.

    Baseado em estudos de Spiegel e Lindner, Hoch descreve quatrofases do luto: a) fase do choque o primeiro contato com a notciada morte; mesmo em casos j esperados, ela causa grande impactofsico e emocional; b) fase controlada o momento intermedirio,aquele em que a pessoa se envolve nos assuntos do funeral e estrodeada de outras pessoas. A, os sentimentos so confusos. Esta fasese encerra, geralmente, com o funeral; c) fase do vazio existencial a mais importante, a mais prolongada e a mais dramtica no processode luto. O sentimento da perda se instala de forma intensa e pareceimpossvel pensar em outra coisa. A pessoa enlutada se d conta doque, de fato, aconteceu. Sobrevm a muitos o sentimento de perda

    do sentido da vida e a depresso. Nessa fase, o acompanhamentopoimnico-litrgico comunitrio de extrema importncia; d) fase dereadaptao esta surge aos poucos, medida que a pessoa enlutadaconsegue reorganizar a sua vida e reencontrar alegria nas atividadescotidianas48.

    importante salientar que os casos extremos, como a morte dejovens, crianas, natimortos, suicdios, homicdios e perda de entes

    47 HOCH, 2008, p. 69.48 HOCH, Lothar Carlos. Acompanhamento pastoral a moribundos e enlutados. In:

    MOLZ, Cludio; WEHRMANN, Guenter . F. (Orgs.). Ofcios: estudos temticose auxlios homilticos: Proclamar libertao, suplemento 2. So Leopoldo: Sino-dal, 1988. p. 75-76.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    33/144

    33

    queridos em catstrofes, agravam ainda mais a intensidade de cadauma das fases do luto.

    Quando se fala em fases do luto, no se pretende estabelecerum processo padro que ser necessariamente percorrido

    durante o luto. Cada situao de luto especial e nica.49

    Diversos fatores determinam a forma do luto, tais como aspectosculturais, caractersticas de personalidade, tipo de relacionamentoque houve entre pessoa falecida e enlutada. Mesmo assim, falarem fases do processo de luto constitui-se numa ajuda para quemlida com pessoas enlutadas, pois, conhecendo melhor as formasque o prantear pode assumir, possvel relacionar-se com essa

    pessoa de forma mais adequada e de modo a que ela se sintamelhor compreendida.50

    20. A importncia do cemitrio para as pessoas enlutadas

    Que importncia tem o cemitrio para as pessoas? A experinciado luto, na vida de muitas pessoas, indica que o cemitrio possuium significado especial. As pessoas enlutadas precisam de um lugarque represente, de forma concreta, a presena da pessoa falecida.Elas precisam de um lugaronde seu pranto possa se expressar51. Ocemitrio esse lugar. A agonia e inquietao de familiares de pessoasmortas e desaparecidas mostram, igualmente, a necessidade desselugar. As pessoas vo ao cemitrio, se colocam junto sepulturapara meditar, orar, lembrar de momentos importantes, agradecer peloamor recebido e expressar a culpa por eventuais erros cometidos.52

    O cemitrio, portanto, assume uma funo muito importante para aspessoas em seu processo de luto.

    A Igreja crist, desde os seus incios, teve o cuidado de criarlugares especiais para sepultar os mortos. As pessoas visitam seusfalecidos no lugar onde esto sepultados. As comunidades daIECLB fazem bem ao cultivar e preservar seus cemitrios e celebrarcultos especiais no Dia de Finados. A inteno no reverenciar os

    49 HOCH, 2008, p. 68.50 HOCH, 2008, p. 69.51 HOCH, Lothar Carlos.O cemitrio: lugar para prantear os mortos. Jornal

    Evanglico Luterano, Porto Alegre, ano 33, n. 672, nov. 2003, p. 15.52 HOCH, 2003, p. 15.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    34/144

    34

    mortos, mas preservar a sua memria e entreg-los em f nas mosde Deus, donde viemos e para onde retornaremos.53Os cemitriosso lugares antropologicamente necessrios. Servem para expressarnossa tristeza, nosso pranto. Servem tambm para receber o abrao

    de amigos e de irmos e irms na f e, assim, ir curando aos poucosnossas feridas.54

    A palavra cemitrio vem do grego koimeterion e significaliteralmente lugar do sono55. Cemitrio lugar de paz, demeditao, de encontro conosco mesmos. lugar que nos confrontacom a finitude da nossa vida. lugar de encontro com Deus.56

    21. A prtica da cremao na IECLB

    Em documento referente ao sepultamento, a IECLB apresentapontos elucidativos sobre a prtica da cremao e esclarece oseguinte:

    Aforma de sepultamento livre. Os familiares do/a falecido/adecidem sobre ela. A comunidade evanglica de confisso luteranarespeitar a deciso tomada e acompanhar o sepultamento na formaescolhida.

    Na Igreja crist tem prevalecido a forma de enterro. Ocadver est sendo devolvido terra de que, conforme Gn 3.19, foiformado. Mas tambm a cremao uma forma de devoluo dapessoa terra. Ela no contradiz os princpios cristos, e mais e maistem se tornado praxe nas igrejas luteranas.

    A membros que se escandalizam com a cremao de uma

    pessoa falecida, ou que se sentem inseguros diante da deciso atomar, diga-se:

    a. A f crist no prescreve a forma de sepultamento; portanto,no existe um modo especificamente cristo desse ato;

    b. A escolha da forma de sepultamento faz parte do exerccioda liberdade crist;

    53 HOCH, 2003, p. 15.54 HOCH, 2003, p. 15.55 PHILLIPS, Edward L. verbete Funerals (Early christianity). In: BRADSHAW, PaulPHILLIPS, Edward L. verbete Funerals (Early christianity). In: BRADSHAW, Paul

    F. (Ed.). The new Westminster dictionary of liturgy and worship. Louisville, en-tucky: Westminster John nox, 2002. p. 214.

    56 HOCH, 2003, p. 15.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    35/144

    35

    c. Dentro desta liberdade lcito levar em considerao aspectoseconmicos, higinicos, de espao fsico, de distncia geogrfica ououtros, na opo por uma ou outra modalidade.

    Quanto a possveis objees teolgicas cremao, convm

    lembrar:a. O receio de que a cremao do corpo impediria a ressurreio infundada. Deus saber recriar o que uma vez criou, mesmo que aosolhos humanos a pessoa falecida tenha desaparecido completamente;

    b. Quando, no incio da Igreja crist, mrtires foram queimados/as e suas cinzas espalhadas ao vento ou na gua pelos inimigosda Igreja, esta sempre afirmou que estes/as mrtires, sem dvida,

    participariam da ressurreio dos mortos.A cremao, pois, no se presta a demonstrao anticrist. Elano limita ou impossibilita a ao recriadora de Deus.

    H que se combater, isto sim, a idia de que a cremaoliberta ou purifica a alma ou o esprito de seus laos materiais e atingesomente o corpo. Toda pessoa, com corpo, alma e esprito, morree desaparece desta vida, no havendo a nenhuma diferena entreenterro e cremao.57

    Aspectos jurdicos58

    22. As decises sobre o transcurso normal do rito funerrio

    A legislao nacional omissa com relao ao direito funerriode forma especfica. No entanto, h dispositivos legais que garantemo direito das pessoas envolvidas (familiares, amigas, conhecidas) deno serem perturbadas na cerimnia funerria e protegem a pessoafalecida.

    Em razo da ausncia de legislao, as decises da famliasobre o transcurso funerrio devem ser respeitadas, inclusive pelos

    57 Esses itens referem-se aos pontos 8 a 12 do documento: O SEPULTAMENTO

    eclesistico: um posicionamento da IECLB referente a enterro e cremao. Bole-tim Informativo 157, Porto Alegre, 1997. (Anexo 4).

    58 Com base no direito funerrio, o texto referente aos Aspectos jurdicos destelivro foi escrito com o objetivo de orientar os ministros e as ministras religiososna sua atividade com o rito funerrio.Esta seo foi elaborada pelo advogado Jeferson de Boni Almeida, a quem agra-decemos por essa contribuio valiosa.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    36/144

    36

    ministros e ministras religiosos envolvidos. A estes dada a nomenos difcil misso de ajudar os familiares na sua tarefa de tomaras decises necessrias para o transcurso normal do rito funerrio.Contudo, deve-se lembrar sempre que as decises cabem famlia

    ou, quando da ausncia de familiares, s pessoas responsveis pelapessoa falecida.

    23. As providncias referentes aos trmites burocrticos e legais

    Para desempenhar seu mister religioso numa cerimnia funer-ria, o ministro religioso ou a ministra religiosa no necessita solicitar

    qualquer documento relacionado ao evento da morte, assim como irrelevante o conhecimento da causa desta. importante lembrar,no entanto, que todas as providncias referentes aos trmites buro-crticos e legais perante os rgos competentes so de obrigao dosresponsveis pela pessoa falecida.

    Como medida acautelatria, com o objetivo de preservar a se-gurana sanitria e evitar problemas legais futuros, o ministro reli-gioso ou a ministra religiosa pode, todavia, sem ter obrigao legalde faz-lo, buscar informaes sobre a causa da morte e orientar osfamiliares a providenciar o atestado de bito. As informaes sobrea causa da morte podem ser teis, especialmente no caso da pessoafalecida ter sido portadora de doena contagiosa, quando a urna de-ver ser lacrada pelo servio oficial de sade pblica, no podendoser aberta em hiptese alguma.

    Por ser importante, ressaltamos que responsabilidade do ser-

    vio de sade oficial e do mdico responsvel o procedimento delacrar a urna funerria para evitar a exposio de outras pessoas aorisco de contrair a doena.

    24. A apresentao do atestado de bito

    Quanto ao atestado de bito, a obrigao de exigir sua apresen-

    tao do responsvel legal pelo cemitrio, ficando, pois, facultadoao ministro religioso ou ministra religiosa orientar as pessoas queprovidenciem o documento para evitar problemas com a administra-o do cemitrio na hora do sepultamento.

    Neste sentido, os responsveis pelos cemitrios comunitriosdevem tomar o cuidado de exigir a apresentao do atestado de bito

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    37/144

    37

    e, caso este no seja apresentado, devem se recusar a proceder aosepultamento.

    As pessoas responsveis pelos cemitrios, ao contrrio dosministros e ministras religiosos, so obrigadas, pelo art. 77 da Lei Re-

    gistros Pblicos, a exigir a apresentao do atestado de bito original,do qual dever ficar cpia arquivada na administrao do cemitrio,sob pena de praticar ato ilcito, como mostra a redao do referidodispositivo legal:

    Art. 77. Nenhum sepultamento ser feito sem certido do oficial de registrodo lugar do falecimento,extrada aps a lavratura do assento de bito, emvista do atestado do mdico, se houver no lugar, ou em caso contrrio, de

    duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte.(Renumerado e alterado pela Lei n 6.216, 30/06/75).

    Com tal exigncia, a lei busca evitar, por exemplo, o enter-ro clandestino de pessoas, que poder implicar responsabilizao daadministrao do cemitrio, bem como o enterro de uma pessoa viva,situao esta que, se comprovada, poder implicar a tipificao do

    crime de homicdio culposo, sem inteno de matar, na forma do art.121, 3 e 4 do Cdigo Penal, que tem a seguinte redao: 3 Se o homicdio culposo: Pena deteno, de 1 (um) a 3 (trs) anos.4 No homicdio culposo, a pena aumentada de 1/3 (um tero), seo crime resulta de inobservncia de regra tcnica de profisso, arte ouofcio, [...].

    25. Procedimentos diante de eventuais tumultos durante umacerimnia funerria

    Durante as cerimnias funerrias bastante comum, at mes-mo pelo fato de as pessoas estarem emocionalmente abaladas, ocor-rerem discusses e, inclusive, brigas entre familiares, podendo estaster sua origem em divergncias de cunho religioso. Nesse momento, importante o ministro religioso ou a ministra religiosa ter em menteque deve evitar o tumulto e, se necessrio, deixar o local. Com isso,evitar ser acusado de estar perturbando a cerimnia funerria, que tipificado como crime pelo nosso Cdigo Penal (art. 209).

    Por outro lado, no caso de tumulto de propores maiores, aorientao deve ser no sentido de chamar a segurana pblica e at

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    38/144

    38

    mesmo entrar em contato com o Ministrio Pblico, na pessoa doPromotor de Justia.

    26. A urna funerria lacrada pelos rgos competentes

    O ministro religioso ou a ministra religiosa, assim como todasas pessoas que participarem de alguma forma da cerimnia fnebre,so proibidos de abrir urna funerria lacrada por rgo responsveldo poder pblico. A relevncia desta informao decorre do fato deque apenas pessoas autorizadas e devidamente instrudas podem re-alizar tal procedimento.

    27. O contato fsico com as pessoas falecidas

    Os agentes funerrios, mdicos e demais pessoas da rea, rece-bem material, vacinas e instrues sobre como proceder com cad-veres, diferentemente dos ministros religiosos. Logo, do ofcio da-queles a manipulao de urnas e pessoas mortas, devendo o ministro

    religioso ou a ministra religiosa evitar o contato fsico com o defunto.28. A livre escolha do servio de uma agncia funerria

    No mbito das orientaes, os ministros religiosos podem infor-mar as pessoas que as funerrias so apenas prestadoras de servios e,como tais, so de livre escolha do contratante, ou seja, da famlia dapessoa falecida. Havendo abuso por parte de qualquer agente funer-rio, o fato deve ser comunicado imediatamente delegacia de polciae ao Ministrio Pblico.

    29. A prtica da cremao e as obrigaes legais

    A prtica da cremao est cada vez mais difundida, especial-mente por evitar despesas com o cemitrio. Mas, para realizar a cre-

    mao, as pessoas responsveis pelos crematrios tm obrigao derespeitar a legislao local. Especial cuidado deve ser tomado, se amorte ocorrer em circunstncias violentas ou o de cujus [falecidocujos bens esto em inventrio] estiver envolvido em uma Ao dePaternidade e de Alimentos. Diante dessas hipteses, a cremao po-

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    39/144

    39

    der ser realizada apenas mediante autorizao judicial, uma vez quepoder implicar a destruio de provas perante o processo judicial.

    Especificamente, no existe qualquer obrigao legal para osministros e as ministras religiosos em relao cremao, sendo de

    total responsabilidade dos familiares e do crematrio a realizao detodos os atos burocrticos envolvidos com tal atividade.

    30. Aspectos legais diversos

    Outros aspectos legais envolvendo o funeral de pessoas comohorrio do sepultamento ou da cremao, transferncia de restos

    mortais, cabem novamente aos familiares envolvidos ou s pessoasdocumentalmente habilitadas, no sendo incumbncia do ministroreligioso ou da ministra religiosa. As pessoas responsveis devem ve-rificar junto legislao municipal, ao regulamento interno do cemi-trio e perante a autoridade policial local quais as regras existentespara realizar de forma regular tais procedimentos.

    Em suma, aos ministros e s ministras religiosos cabe fazer oacompanhamento religioso, devendo, dentro do possvel, ficar dis-tantes das atividades burocrticas atinentes ao funeral, limitando-sea orientar as pessoas em tais momentos, at mesmo para estar emmelhores condies de aconselhar, de orientar, consolar e acolher aspessoas diretamente envolvidas com o ente falecido.

    Aspectos litrgicos

    31. O funeral ritual de passagem, que serve para ordenaruma situao de profunda crise

    Uma funo do rito colocar ordem. O rito permite que aspessoas vivam num mundo organizado, no catico, saibam o quefazer e como se comportar diante de determinadas situaes. Osritos de passagem esto presentes em todas as sociedades e culturas.Eles so necessrios vida humana, pois esta se caracteriza por umasucesso de etapas e transies, com mudanas ora bruscas, ora bemordenadas. Os ritos de passagem ajudam as pessoas a enfrentar asmudanas em suas vidas. Eles encaminham as pessoas em sua tra-vessia de uma situao a outra, ou a sua entrada num mundo novo

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    40/144

    40

    e desconhecido. Os ritos auxiliam pessoas e grupos a vivenciar ascrises decorrentes das passagens59.

    Conforme estudos antropolgicos, todo rito de passagem pos-sui trs estgios bem definidos, que podem ser denominados de ritos

    preliminares (marcados pela separao do grupo ou da situao an-terior), ritos liminares ou de margem (marcados pela transio de umgrupo a outro ou de uma situao a outra) e ritos ps-liminares (mar-cados pela incorporao de uma pessoa a um novo grupo ou a umanova situao). Cada passagem possui ritos de separao (prelimina-res), de margem (liminares) e de incorporao (ps-liminares), mascada uma enfatiza um desses ritos especificamente, de acordo com

    as necessidades que a passagem em questo impe. Por exemplo, nosrituais de morte, o funeral um rito de separao muito importante,tendo a funo de ajudar a ordenar a situao de crise instalada. Ele uma forma real de lidar com a constatao da morte e a necessi-dade de separar-se de um ente querido, mas os ritos de margem, oude transio, so os mais acentuados dentro do processo de morte eseparao do ente querido. O luto, por sua vez, corresponde ao per-odo de margem, um tempo de transio marcado por diversas fases60,em que as pessoas lidam mais concretamente com o significado damorte e da perda. Infelizmente, carecemos de recursos rituais ou ofe-recemos poucos rituais para esse perodo que, alm de marcante, omais extenso dentro do processo que envolve a morte61.

    32. O funeral cristo uma prtica da comunidade crist

    O Evangelho, em especial a esperana dos cristos na ressur-reio dos mortos pela f na ressurreio de Jesus Cristo, o ann-cio central no funeral cristo. No obstante, todo rito funeral ummomento especial, que precisa levar em considerao a histria dapessoa falecida, dos familiares e, inclusive, das pessoas que esto pre-sentes no momento da despedida. O funeral no deixa jamais de seruma celebrao da comunidade qual a pessoa falecida pertence.

    No uma celebrao dos parentes enlutados, nem uma celebrao

    59 MANS, Erli. A ritualizao das passagens da vida: desafios para a prtica litrgicada Igreja. So Leopoldo: EST/PPG, 2009. p. 18-23, 82-85. (Tese de Doutorado).

    60 Sobre as fases no processo de luto, confira acima o item 19.61 MANS, 2009, p. 29-31, 44-45.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    41/144

    41

    privada ou de enaltecimento da pessoa falecida, mas uma celebraoda comunidade crist que anuncia as promessas bblicas a respeitodo amor gracioso de Deus sinalizado, em especial, no batismo.

    33. O funeral cristo est relacionado ao batismo

    Como vimos acima no item 6, para a comunidade crist a morteest profundamente relacionada ao batismo, razo pela qual a liturgiado rito funeral deve ser permeada pela teologia batismal. A liturgia dofuneral cristo sustenta, portanto, que, pelo batismo, j pertencemosa Deus, estamos em suas mos e o medo da morte pode ser superado

    mediante a f na ressurreio. Alm da pregao e das oraes queremetem ao batismo, elementos ou smbolos do batismo deveriamestar presentes na liturgia do funeral cristo e no espao litrgico,como, por exemplo, vela batismal, crio pascal, pia batismal.

    importante lembrar que, por ocasio do batismo, as pessoasso chamadas pelo nome. Assim, tambm deveria s-lo durante osfunerais.

    34. Aceia do Senhor no est desligada da morte de pessoascrists

    O funeral cristo momento em que a comunidade crist seassegura de que nem mesmo a morte nos separa do amor de Deus.O ritual fnebre deve salientar as vigorosas promessas bblicas arespeito da fidedignidade de Deus, e no se basear em nada menosdo que isto. Uma liturgia da palavra essencial para proclamar que,por meio de Cristo, Deus demonstrou o seu grande amor por ns,nos deu a salvao e a promessa da vida eterna. Salmdia e leiturada Bblia so fundamentais, apoiadas por sermo, hinos, oraes ecredo.62

    A ceia do Senhor, por sua vez, no est desligada da morte doscristos e das crists; ela concretiza a comunho dos santos, da qual a

    pessoa, mesmo na morte, continua sendo parte; proclama o relaciona-mento contnuo entre os membros vivos e os mortos dentro do corpode Cristo. Portanto, h fortes argumentos em favor da celebrao da

    62 WHITE, 2005, p. 241.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    42/144

    42

    ceia eucarstica no ritual fnebre. Entretanto, dadas as circunstnciasde um ritual fnebre, o lugar, a formao de um grupo com pessoasde diferentes tradies religiosas e as necessidades mais prementes,essa celebrao pouco vivel, alm de ser totalmente estranha para a

    nossa tradio comunitria. Por isso, fica o desafio de recuperar a ce-lebrao da ceia do Senhor no culto com orao memorial. A, sim,ela tem funo relevante. Em especial, os mementos ou dpticos63da orao eucarstica fazem uma ligao explcita com os membrosfalecidos que continuam pertencendo ao corpo de Cristo.

    35. O consolo e a proteo aos enlutados esto acima de

    qualquer costume teolgico-doutrinrio

    possvel que alguns funerais no se enquadrem nos regula-mentos da comunidade local e sejam oficiados por motivos pastorais.O falecimento de crianas no batizadas, filhas de pais batizados, um dos casos em que o aspecto pastoral muito mais relevante queeventuais ressalvas teolgicas, pois a graa e o amor de Deus so

    maiores que nossos costumes, ritos e explicaes racionais. Confor-me o documento Nossa f, nossa vida, a comunidade expressa oamor cristo ao sepultar suicidas e crianas natimortas ou no bati-zadas64. Tal princpio condiz muito mais com a essncia da f crist,pois realiza um servio diaconal a pessoas falecidas e vai ao encontroda necessidade de consolo das pessoas enlutadas. Negar o funeral deuma pessoa que se suicidou significa se colocar acima do juzo e dagraa de Deus. Importa consolar e compreender que Deus v o cora-o das pessoas (1Sm 16.7) e sensvel s razes que levam alguma uma atitude extrema como a do suicdio.

    O mesmo princpio deveria, em determinadas circunstncias,valer para membros batizados de outras denominaes religiosas,membros afastados da comunidade ou em atraso com sua contribui-o, mas, como prev Nossa f, nossa vida, estes casos dependemde deciso especfica a ser tomada pelo presbitrio65.

    63 Confira acima item 11.64 IGREJA Evanglica de Confisso Luterana no Brasil. Nossa f, nossa vida. 4. ed.

    So Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 40.65 IGREJA Evanglica de Confisso Luterana no Brasil. Nossa f, nossa vida. 4. ed.

    So Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 40.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    43/144

    43

    Questes que estejam em desacordo com combinaes deordem financeira, filiao, desentendimentos podem, sim, ser abor-dadas, mas em momento posterior, como continuidade do serviopastoral.

    Carecemos ainda de um rito diferenciado para pessoas adultasno batizadas ou no pertencentes tradio crist. Lembremos queos cristos foram os primeiros a sepultar pessoas encontradas mortas,mesmo desconhecendo sua histria de f. Trata-se, sem dvida, deum gesto de solidariedade.

    36. Estrutura litrgica

    A estrutura litrgica do rito fnebre segue o mesmo padro daliturgia do culto cristo, a saber, liturgia de entrada, liturgia da pa-lavra, [liturgia daceia]e liturgia de despedida, e cada uma dessaspartes constituda por elementos litrgicos comuns ao culto cris-to66. Mas, a estrutura litrgica do ritual fnebre tambm se compede ritos especficos, como a encomendao e a destinao da urnafunerria (sepultamento ou cremao) e de elementos litrgicos espe-ciais, como o Nunc dimittis (cntico de Simeo Lc 2.29ss) e o Deprofundis (Salmo 130). Abaixo segueuma descrio dos elementosmais especficos do funeral cristo.

    37. Alocuo ou prdica

    A alocuo ou prdica um momento importante no rito f-nebre. Ela afirma a graa de Deus em Jesus Cristo como a nica es-perana para a pessoa crist. Precisa ser firme e decisiva, sem deixarmargem a questionamentos no que diz respeito concepo luteranasobre morte e ressurreio. A alocuo deve ser breve e dirigida pri-meiro s pessoas enlutadas, oferecendo-lhes a orientao da palavrade Deus, e depois comunidade reunida. Lamento, consolo, espe-rana, solidariedade (temas que vm dos textos bblicos) so funda-

    mentais na alocuo. A nfase maior dada a um ou outro aspectovai depender das particularidades do sepultamento (idade da pessoafalecida, circunstncias da morte, etc.).

    66 Para um estudo dos elementos litrgicos da estrutura do culto, confira MARTINI,Romeu Ruben (Org.). Livro de culto. So Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 31-44.

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    44/144

    44

    38. Procisso

    O rito fnebre cristo parte da grande peregrinao da vidacrist que inicia no batismo. Nada melhor para expressar este aspecto

    de peregrinao que marcar o rito fnebre, desde o velrio at o ce-mitrio, com o elemento da procisso. Por isso, em vrias partes daliturgia se propem procisses. Inclusive, o peregrinar da casa paraa igreja e depois para o cemitrio ajuda a ritualizar este aspecto toessencial da vida crist.

    39. Encomendao

    Trata-se de um elemento litrgico do ofcio fnebre. Originou-se nos sculos V e VI. Apresenta-se, geralmente, em forma de orao,cujo contedo a entrega da pessoa falecida misericrdia e bon-dade de Deus. Mesmo um corpo sem vida digno de cuidado e amor.A encomendao expressa, pois, o desejo da comunidade celebrantede que o irmo ou a irm falecida seja acolhido/a e bem guardado/anos braos de Deus. Em liturgias fnebres antigas, podem-se encon-trar at cinco oraes de encomendao.

    40. Consignao

    uma parte do rito de encomendao e ficou conhecida pelaspalavras terra terra, cinza s cinzas e p ao p. Trata-se de umaparte significativa da frmula de despedida no rito fnebre cristo. Aspalavras terra terra, cinza s cinzas e p ao p so uma aluso fragilidade do ser humano, do inevitvel fim da sua existncia terre-na, do seu sofrimento e luto. Elas lembram a origem e o destino doser humano: tu s p e ao p tornars (Gn 3.19). Remetem, pois, morte e conscincia da finitude da criatura.

    Porm, muito importante perceber que a consignao no seencerra com as palavras terra terra, cinza s cinzas e p ao p,

    mas formada ainda de outra parte, a que fala da nossa esperana, daf na ressurreio. Uma formulao completa da consignao podeser: terra terra, cinza s cinzas e p ao p, na segura e consoladoraesperana da ressurreio para a vida eterna por meio de nosso Se-nhor Jesus Cristo. Percebe-se, portanto, que a frmula de consignaoaponta, de um lado, para a condio da criatura e, de outro, lembra

  • 7/26/2019 Funeral Cristao Fundamentos e Liturgias

    45/144

    45

    que a criatura est profundamente ligada ao seu Criador e Redentor,aquele que cria, salva e ressuscita. Viemos do p e voltaremos ao p.Isso, no entanto, no constitui toda a histria do ser humano nemtodo o seu destino. A frmula de despedida no ritual fnebre cristo,

    portanto, no deixa de ser uma confisso de f da pessoa crist: somoscriaturas, sim, somos mortais, mas cremos no Deus que do p extrainova vida. Cremos no Deus que ressuscita. Essa a f que consola.

    41. Mortalha

    o nome dado ao lenol que envolve a pessoa falecida ou

    ao pano litrgico que se coloca sobre o atade fechado, cobrindo-ocompletamente.O uso da mortalha est ligado ao antigo costume dos judeus

    de envolver a pessoa falecida com um lenol morturio. A mortalhalembra, em especial, que, conforme nos relatam os evangelhos (Joo19.38-42; Mateus 27.57-61; Lucas 23.50-56 e Marcos 15.42-47), Je-sus, em seu sepultamento, foi envolvido num pano limpo de linho.A mortalha, assim como o crio pascal67, tem relao direta com obatismo. Lembra