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A filosofia de Frege por Roger Scruton Não há maior prova do fato de que a história da filosofia precisa ser constantemente reescrita do que a mudança de perspectiva que se seguiu à recente descoberta da importância de Gottlob Frege. Nascido em 1848, mas não trazendo marcas das convulsões políticas daquele ano, Frege viveu e ensinou em Jena de 1874 a 1914, levando uma vida acadêmica reclusa, desligado de questões mundanas. Quando morreu, em 1925, um lógico moderno escreveu: "Eu estava para colar grau, já interessado em lógica, e acho que teria percebido se tivesse havido discursos ou artigos publicados naquele ano em seu louvor. Mas não consigo me lembrar de nada desse tipo." Apesar desse descaso (ele viveu à sombra da nova fenomenologia), Frege angariou a admiração de Russell e de Wittgenstein, cujos respectivos pensamentos foram formados e transformados na luta com os problemas e concepções que ele lhes havia legado. Em seu próprio país, sua obra passou despercebida, e foi só durante os últimos vinte anos que ficou evidente que Frege foi não apenas o verdadeiro fundador da lógica moderna, mas também um dos maiores filósofos do final do século XIX. Ele não teve o alcance de Mill, Brentano ou Husserl; mas o que lhe faltou em extensão, ele compensou em profundidade, e sua ocorrência numa época em que a filosofia estava em grave necessidade de uma mente que pudesse se concentrarem questões fundamentais garantiu tanto sua eventual fama quanto seu esquecimento contemporâneo. As conquistas de Frege foram, primeiro, derrubar a lógica aristotélica que, de uma forma ou de outra, dominava a filosofia ocidental desde o tempo da Antigüidade; segundo, lançar as fundações para a moderna filosofia da linguagem; terceiro, demonstrar a profunda continuidade entre lógica e matemática. Juntas, essas conquistas forneceram base para a filosofia analítica moderna, e também para a filosofia de Wittgenstein, tanto em suas versões iniciais quanto posterior. Nas mãos de Russell e Wittgenstein, a concepção fregeana de lógica e matemática viria a proporcionar uma nova epistemologia, uma nova metafísica e uma nova visão da natureza da argumentação filosófica. Forçosamente, só me referirei a Russell raramente: como personagem, ele é bastante conhecido, e seus copiosos poderes de autopromoção talvez possam ser suficientes para justificar meu tratamento superficial de sua filosofia. No entanto, boa parte do que atribuo a Frege poderia igualmente ser atribuído a Russell. Eles lançaram juntos (embora em grande parte independentemente) os fundamentos da lógica moderna, e cada um deles usou esses fundamentos para explorar os princípios do pensamento matemático. Escolhi concentrar-me em Frege porque, embora a longo prazo sua influência não tenha se mostrado mais decisiva, seu pensamento foi mais profundo e mais rigoroso. 1 / 12

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A filosofia de Frege

por Roger Scruton

Não há maior prova do fato de que a história da filosofia precisa ser constantemente reescritado que a mudança de perspectiva que se seguiu à recente descoberta da importância deGottlob Frege. Nascido em 1848, mas não trazendo marcas das convulsões políticas daqueleano, Frege viveu e ensinou em Jena de 1874 a 1914, levando uma vida acadêmica reclusa,desligado de questões mundanas. Quando morreu, em 1925, um lógico moderno escreveu:"Eu estava para colar grau, já interessado em lógica, e acho que teria percebido se tivessehavido discursos ou artigos publicados naquele ano em seu louvor. Mas não consigo melembrar de nada desse tipo."

Apesar desse descaso (ele viveu à sombra da nova fenomenologia), Frege angariou aadmiração de Russell e de Wittgenstein, cujos respectivos pensamentos foram formados etransformados na luta com os problemas e concepções que ele lhes havia legado. Em seupróprio país, sua obra passou despercebida, e foi só durante os últimos vinte anos que ficouevidente que Frege foi não apenas o verdadeiro fundador da lógica moderna, mas também umdos maiores filósofos do final do século XIX. Ele não teve o alcance de Mill, Brentano ouHusserl; mas o que lhe faltou em extensão, ele compensou em profundidade, e sua ocorrêncianuma época em que a filosofia estava em grave necessidade de uma mente que pudesse seconcentrarem questões fundamentais garantiu tanto sua eventual fama quanto seuesquecimento contemporâneo. As conquistas de Frege foram, primeiro, derrubar a lógicaaristotélica que, de uma forma ou de outra, dominava a filosofia ocidental desde o tempo daAntigüidade; segundo, lançar as fundações para a moderna filosofia da linguagem; terceiro,demonstrar a profunda continuidade entre lógica e matemática. Juntas, essas conquistasforneceram base para a filosofia analítica moderna, e também para a filosofia de Wittgenstein,tanto em suas versões iniciais quanto posterior. Nas mãos de Russell e Wittgenstein, aconcepção fregeana de lógica e matemática viria a proporcionar uma nova epistemologia, umanova metafísica e uma nova visão da natureza da argumentação filosófica. Forçosamente, sóme referirei a Russell raramente: como personagem, ele é bastante conhecido, e seuscopiosos poderes de autopromoção talvez possam ser suficientes para justificar meutratamento superficial de sua filosofia. No entanto, boa parte do que atribuo a Frege poderiaigualmente ser atribuído a Russell. Eles lançaram juntos (embora em grande parteindependentemente) os fundamentos da lógica moderna, e cada um deles usou essesfundamentos para explorar os princípios do pensamento matemático. Escolhi con­centrar-meem Frege porque, embora a longo prazo sua influência não tenha se mostrado mais decisiva,seu pensamento foi mais profundo e mais rigoroso.

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O terreno foi preparado para a lógica de Frege por certas descobertas nos fundamentos damatemática, e pelas técnicas de formalização. Mas a nova lógica brotou também do senso deFrege da profunda ligação entre lógica e metafísica e dos erros filosóficos que se haviamperpetuado em nome da lógica. Frege acreditava em particular que a teoria kantiana damatemática — que toda verdade matemática é sintética a priori— era errada e que era possíveldemonstrar seu erro pela adoção de uma lógica livre das idéias preconcebidas aristotélicas quehaviam mesmerizado Kant. Frege propôs-se a demonstrar que a verdade aritmética não ésintética, mas analítica, no sentido de partir de leis sem autocontradição. Frege foi uma espéciede "platonista"; ele acreditava em um reino de verdade matemática independente dacapacidade humana de obter conhecimento dela. Não obstante, como resultado de suas idéias,a ciência da matemática logo viria a ser concebida, não como a exploração de um reino deentidades atemporais, não como um exemplo fundamental de conhecimento sintético a priori,mas como a projeção, no espaço lógico, de nossas próprias propensões ao argumentocoerente. O que se apresenta como um reino independente de entidades matemáticas ouverdade matemática é simplesmente uma sombria representação de nossos próprios poderesintelectuais. O número um não é uma entidade mais do que o homem 'mediano e as leis damatemática não são mais verdades sobre um mundo independente do que a afirmação "todosos solteiros não se casaram".

Por essa razão (que Frege tornou possível, mas só aceitava parcialmente), se temos umconhecimento a priori de verdade matemática, é porque nós próprios arquitetamos essaverdade. (Esta explicação do conhecimento a priori é antiga, e foi dada pelos nominalistasmedievais, a quem faltavam os meios para determinar se ela poderia ser aplicada àmatemática.) Claramente, tal interpretação da matemática tem enormes conseqüênciasfilosóficas. Não só o platonismo, mas também a tradição racionalista inteira apoiaram-se de ummodo ou de outro na matemática como proporcionando um exemplo imediatamente inteligíveldas "verdades da razão", e assim demonstrando a superioridade da razão sobre a investigaçãoempírica em questões de certeza, completude e máxima veracidade. Uma vez que Kantidentificou a metafísica com o reino do conhecimento sintético a priori, e deu a matemáticacomo o exemplo mais convincente desse conhecimento, a demonstração de que a matemáticaé analítica abriria o caminho para uma rejeição totalmente nova e caracteristicamente modernado argumento metafísico.

Os empiristas tentaram rejeitar a teoria kantiana da verdade matemática, e essas tentativasforam renovadas por J. S. Mill em seu System of Logic. Esta obra, como a mais sistemáticaexposição do século XIX dos dogmas do empirismo inglês, merece tratamento mais alentadodo que posso dispensar-lhe aqui. Não só Mill apresentou uma teoria prolongada e, de muitosmodos, convincente da distinção entre lógica e ciência (entre a lógica de dedução e a lógica deindução), assim lançando as ba­ses para a moderna filosofia da ciência; ele também voltou-separa muitos dos padrões de pensamento que haviam feito surgir as ilusões metafísicas

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predominantes. O fato de que suas próprias ilusões lhe escaparam no decorrer desse exame émais motivo de satisfação do que de surpresa, pois foi o absurdo da teoria de Mill damatemática que deixou claro para Frege o estranho fato de que a matemática pode sercompletamente conhecida para alguém que não a entende absolutamente. Para Mill, nossasidéias de números são abstrações a partir da experiência. O número três torna-se familiar paranós na percepção de trincas, o quatro na percepção de grupos de quatro coisas e assim pordiante. Além do mais, as próprias verdades matemáticas, assim como 2 + 3 = 5, podem servistas como refletindo leis muito básicas da natureza, que se observou governarem osagregados a que se referem. Frege afirmou em seu Fundamentos da aritmética (1884), quenem esta, nem qualquer outra explicação empírica da natureza dos números, podia ser aceita.Não só Mill não nos dá nenhuma pista quanto a como entendermos o número zero, eletambém estabelece o limite de nosso conhecimento matemático no limite de nossa experiência.Mas "quem está realmente preparado para demonstrar o fato, segundo Mill, contido nadefinição de um número de 18 algarismos, e quem está preparado para negar que o símbolopara esse número tem, não obstante, um sentido?" Ao afirmar que as leis da aritmética sãogeneralizações indutivas, Mill confunde a aplicação da matemática com a própria matemática.A matemática é inteligível independentemente de suas aplicações. Finalmente, Frege destaca,"a indução deve se basear na teoria da probabilidade, uma vez que ela jamais pode tornar umaproposição mais do que provável. Mas como uma teoria de probabilidade poderia serdesenvolvida sem pressupor leis aritméticas é algo além da compreensão".

Frege não foi o primeiro filósofo a acreditar que as verdades da aritmética são analíticas.Leibniz tentou provar o mesmo. No entanto, uma vez que Leibniz acreditava que todas asproposições sujeito-predicado são, pelo menos do ponto de vista de Deus, analíticas, issodificilmente podaria ser chamado de uma teoria característica da aritmética. Além do mais,Frege foi o primeiro a desenvolver uma lógica na qual esta teoria pudesse ser afirmada eprovada. Os detalhes da teoria vão além do âmbito desta obra, mas um ou dois passosimportantes de sua argumentação precisam ser entendidos como um prelúdio para secompreender a filosofia de Frege como um todo. Se fizermos a pergunta "O que sãonúmeros?", ficamos, afirma Frege, sem ter o que responder. Eles são objetos? Sãopropriedades? São abstrações? Nenhuma dessas sugestões parece satisfatória. Quando digo"Sócrates é um", não atribuo uma propriedade a Sócrates; eu lhe atribuo uma propriedade,chamando-o de sábio. Se Sócrates é sábio e Tales é sábio, então concluo que Sócrates eTales são sábios: cada um possui a propriedade isoladamente, e assim continuam a possuí-laquando descritos como um par. Mas de "Sócrates é um" e "Tales é um" não podemos concluirque "Sócrates e Tales são um". Se, por outro lado, os números são objetos, como osidentificamos? Devíamos ser capazes de indicar que objetos eles são. É aí que caímos emuma vertigem filosófica — parecemos incapazes de dar uma definição, ostensiva ou descritiva,de qualquer número real. Números são como objetos no sentido de que são o sujeito deidentidades. Quando dizemos que o número dos planetas é nove, asseveramos que doistermos, "o número dos planetas" e "nove", referem-se a uma coisa. Mas números sãodiferentes de objetos no fato de que a referência a eles é inteiramente dependente daidentificação de um conceito ao qual eles estão ligados. Se aponto para um exército no campoe faço a pergunta "Quantos?", então a única resposta sensata é: "Quantos de quê?" Eu posso

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dizer 12 mil, 50 ou dois, dependendo de se estou contando homens, companhias ou divisões.Em outras palavras, a resposta é indeterminada até que eu tenha especificado um conceito deacordo com o qual a contagem deve ser feita. Um número é então uma propriedade de umconceito, uma, de certa forma, propriedade de segunda ordem? Essa foi a sugestão a partir daqual Frege começou, e ele tirou sua inspiração de uma área da lógica cuja descoberta foiamplamente dele — a lógica da existência (ou quantificação, como hoje é chamada).

Kant afirmou, contra o argumento ontológico, que a existência não é um verdadeiro predicado(ou propriedade), mas ele não conseguiu desenvolver uma lógica que conciliasse esse fato.Leibniz, que fez certos progressos em lógica formal, reconheceu as diferenças entreproposições existenciais (preposições do tipo "x existe") e proposições sujeito-predicado,porém mais uma vez foi incapaz de representar essas diferenças de um modo sistemático.Essa deficiência na lógica tradicional era de longo alcance. Foi o que erigiu a barreira artificial(como Frege a con­siderou) entre aritmética (a lógica da quantidade) e lógica (a lógica daqualidade).

Sabemos, independentemente da teoria, que existe uma lógica coerente governando termoscomo "existe". Sabemos que a afirmação "Existe alguma coisa que não é vermelha" acarreta afalsidade da generalização "Tudo é vermelho". A lógica aristotélica tradicional não tinha meiode representar essa relação. Ela só pode ser representada, afirmou Frege, quando nos damosconta de que "existe" e "tudo" têm um caráter lógico especial. Eles denotam não propriedadesde objetos, mas propriedades de segunda ordem de propriedades. Dizer que existe uma coisavermelha é dizer que a vermelhidade tem uma instância. E dizer que todas as coisas não sãovermelhas é dizer que a vermelhidade não tem instâncias.

Mostrou-se possível, sobre esta base, dar uma lógica formal de existência e universalidade, ejustificar o vislumbre de Kant de que a existência não é um predicado e leva a falácias, quandotratada como tal.  Hoje têm de ser reconhecidas novas verdades analíticas, que não são do tiposujeito-predicado, e as leis da lógica devem ser expandidas para poder abrangê-las. Parecenatural sugerir que essa lógica de existência e quantificação universal devesse fornecer a basepara uma "lógica de quantidade" geral.

Mas e agora, quanto aos números? Falamos deles como objetos (que são os sujeitos daidentidade), e no entanto não lhes permitimos serem determinados independentemente de umconceito ao qual estão vinculados. Para resolver este aparente paradoxo, Frege propôs um"critério de identidade" geral para números. Esse critério teve de ser fornecidocontextualmente, ele afirmou, uma vez que expressões numéricas só podem ser usadas paradizerem coisas verdadeiras quando vinculadas a um conceito que determine o que está sendo

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contado. Em outras palavras, é somente em um dado contexto que o termo de um númerodenota alguma coisa específica. Suponhamos que se pudesse especificar o que faz com queuma afirmação aritmética do tipo "a = b" seja verdadeira sem invocar o conceito de número.Ter-se-á então explicado o uso do conceito aritmético de identidade. Ter-se-á tambémfornecido o que viria a ser chamado de uma definição "implícita" de número. Uma analogiapode deixar isso bem claro. Suponhamos que se deseje saber o que se quer dizer com adireção de uma linha. Posso dar uma definição geral de "mesma direção" que não invoca aidéia de direção. (Linhas têm a mesma direção se, e apenas se, forem paralelas.) Eu então,efetivamente, defini direção. A direção de uma linha ab é dada pelo conceito: linhas que têm amesma direção que ab.

De maneira semelhante, Frege deriva sua famosa definição de número em termos do conceitode "eqüinumerosidade", um conceito que foi introduzido na discussão dos fundamentos damatemática por Georg Cantor (1845-1918). A palavra "eqüinumerosidade" pode ser definidaem termos puramente lógicos e denota uma propriedade de um conceito. Dois conceitos sãoeqüinumerosos se os itens que se incluem em um deles puderem ser colocados emcorrespondência de um para um com os itens que se incluem no outro. Frege demonstra queessa idéia de correspondência de um para um pode ser explicada sem se invocar a idéia denúmero. Ele então define o número de um conceito F como a extensão do conceito"eqüinumeroso até F. Usei aqui o termo "extensão", como Frege o usa — esse uso remonta àlógica "de Port-Royal" discuti­da no capítulo 4. A extensão de um termo ou conceito é a classede coisas a que o termo se aplica. Daí que a definição de número incorpora a generalização daidéia, já invocada na lógica de existência, da "instância" de um conceito. As definições dosnúmeros individuais podem ser derivadas da definição geral, Frege achava, pelo uso das leisbásicas da lógica. E suficiente definir o primeiro dos números naturais — zero — e a relação desucessão pela qual os números restantes são determinados.

Zero é o número que pertence ao conceito "não idêntico a si mesmo". Frege escolheu essadefinição porque segue-se somente das leis da lógica que o conceito "não idêntico a si mesmo"não tem extensão. A cada ponto da argumentação, Frege queria prosseguir desse modo, nãointroduzindo concepções que não pudessem ser explicadas em termos lógicos. Seguindo essemétodo, ele pôde derivar as definições e leis da aritmética de forma a demonstrar, ele achava,que todas as provas matemáticas eram complexas aplicações da lógica, e todas as afirmaçõesaritméticas eram, caso verdadeiras, verdadeiras em virtude do significado dos termos usadospara expressá-las.

A façanha de Frege foi espantosa. Mas ela foi comprometida pela descoberta, por Russell, deum paradoxo e a resolução desse paradoxo pareceu exigir uma saída de idéias puramentelógicas em direção dos tipos de pressupostos metafísicos que Frege queria eliminar dosfundamentos da matemática. Além do mais, Kurt Gódel, em um teorema famoso (1931),

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demonstrou que há verdades aritméticas que são improváveis em qualquer sistema lógico quese possa demonstrar ser autoconsistente. Donde a lógica não pode, em princípio, abranger oconteúdo da matemática. À luz desses resultados, pode parecer que devíamos rejeitar a"hipótese" de Frege (como ele colocou) do caráter analítico da aritmética, e restabeleceralguma versão da teoria de Kant, de que a matemática é sintética a priori e sui generis. Noentanto, Frege chegou muito perto de reduzir aritmética a lógica, e o resultado de Gódel é tãointeressante que a questão do status da verdade matemática em conseqüência tornou-se umdos problemas filosóficos modernos mais importantes. Parece impossível abandonar a direçãoem que Frege nos dirigiu e, no entanto, também impossível prosseguir nela. Não é pouca coisater criado um problema filosófico insolúvel a partir de algo que qualquer criança podecompreender.

As pesquisas de Frege sobre os fundamentos da matemática viriam a ter profundasconseqüências filosóficas, entre elas, o reconhecimento de que concepções matemáticaspodiam e deviam ser usadas para dar forma a problemas nebulosos na filosofia da lógica e dalinguagem. Nos Begriffsschrift (1879), Frege propôs o primeiro sistema de lógica formalverdadeiramente completo. Seu propósito era dar um claro alicerce filosófico aos argumentosde sua obra inicial sobre os fundamentos da aritmética, e também representar a lógica de umamaneira que a libertava das confusões nela introduzidas por seu uso de termos da linguagemvulgar. Com isso, ele inventou a ciência moderna da lógica formal; e ao fazê-lo derrubou asteorias da lógica aristotélica e pós-aristotélica que durante dois mil anos haviam impedidoavanços nessa matéria.

Houve uma conseqüência particular dessa derrubada que Frege a princípio não previu. A velhalógica havia seguido a orientação da gramática da linguagem vulgar. Foi isso que tornou tãodifícil representar a diferença entre "Sócrates existe" e "Sócrates vive". A diferença é naverdade tão radical que somos forçados a concluir que a forma gramatical na linguagem vulgarnão serve de guia para o comportamento lógico. Rua dizer à maneira de Russell, a verdadeiraforma lógica da sentença "Sócrates existe" não se reflete em sua gramática. Como entãodeveríamos representar essa sentença? A resposta natural é buscar um sistema de símbolosque só permitisse expressão à verdadeira "forma lógica" de qualquer sentença. A intromissãodo método matemático nos fundamentos da lógica foi a primeira de muitas. Uma vez que aprópria lógica governa boa parte da argumentação filosófica, o processo pode ser prolongadoainda mais; eventualmente isso resultou nas filosofias quase inteiramente matemáticas doatomismo e do positivismo, que mencionarei no capítulo final. Há modos mais específicos emque a adoção e a extensão de idéias matemáticas por Frege mudaram a natureza da filosofia.Isso pode ser visto na teoria de Frege sobre a natureza da linguagem. Para Frege era claro,como o fora para Leibniz, que expressões de identidade são diferentes na forma de expressõesque afirmam uma propriedade de um objeto. O "é" de identidade e o "é" predicativo sãologicamente distintos. Se eu digo "Vênus é a Estrela Matinal", faço então uma afirmação deidentidade. A afirmação continua verdadeira (ou, caso falsa, falsa), quando os nomes sãoinvertidos: a Estrela Matinal é Vênus tanto quanto Vênus é a Estrela Matinal. Na sentença

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"Sócrates é sábio" os termos não podem ser invertidos do mesmo modo. O sentido total dasentença depende de minha atribuição de um papel diferente ao

termo de sujeito, "Sócrates", e ao termo de predicado, "sábio". Ora, a distinção entre sujeito epredicado é básica para o pensamento. Uma criatura que não conseguisse entendê-la, que sófalasse de identidade, não conheceria nada de seu mundo; conheceria apenas asdeterminações arbitrárias de sua própria utilização, por meio do que é capaz de substituir umnome por outro. Mas não conheceria nada sobre as coisas a que, desse modo, dá nome. Cabea nós, portanto, tentar entender a relação entre sujeito e predicado — na medida em que algotão básico venha a prestar-se à investigação lógica.

A análise de Frege dessa relação está contida em uma série de artigos entre os quais o maisimportante é "Sobre Sentido e Referência". Nele, Frege apresenta várias teses, algumas dasquais já demonstraram sua importância na descrição da natureza da aritmética. Duas teses departicular interesse são as seguintes: primeiro, a de que é só no contexto de uma sentençainteira que uma palavra tem um sentido definido; segundo, que o sentido de qualquer sentençadeve ser derivável dos sentidos de suas partes. Essas parecem ser, mas não são,contraditórias. A primeira (uma aplicação da qual é encontrada na definição contextual deFrege para número) diz que o sentido de uma palavra não pertence a ela isoladamente, masconsiste em sua potencialidade de contribuir para um "pensamento" completo. E porquesentenças podem expressar pensamentos que as palavras que as compõem têm um sentido. Atese seguinte diz que o sentido da sentença toda (ou de qualquer outra entidade lingüísticamúltipla) deve ser totalmente determinado pelas variadas "potencialidades" pertencentes asuas partes. Assim, a palavra "homem" tem o sentido que tem porque a usamos para falarsobre homens. Igualmente, as sentenças com as quais falamos sobre homens derivam seusentido em parte desse de "homem". Essa dependência mútua da parte do todo e do todo daparte é característica da linguagem. Como os lingüistas começaram a perceber, é isso quetorna possível aprender a linguagem. Se o sentido da sentença é determinado pelo sentido desuas partes, então, conhecendo apenas um vocabulário finito, posso entender indefinidamentemuitas sentenças. Meu uso da linguagem é automaticamente "criativo" e me dá a capacidadede pensamento ilimitado.

Como, então, passamos a descrever as partes componentes de uma sentençasujeito-predicado? Considerem a sentença "Sócrates é sábio". Frege diz que, para fins derepresentação mais clara, podemos pressupor que esta se compõe de duas partes, um nome eum predicado. Nomes podem parecer ser mais inteligíveis do que predicados: nós osentendemos porque eles representam objetos, e se sabemos que objetos eles representam,parecemos já saber o que querem dizer. Mas, diz Frege, as coisas são mais complicadas doque isso. Considerem a sentença "Hesperus é Phosphorus". Esta utiliza dois nomes que, naverdade, indicam o nome da Estrela Vespertina"". Será certo que eu conseguiria entendê-la

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sem saber que é verdadeira? Mas se entender "Hesperus" é saber a que objeto ela se refere,então eu deveria saber que a sentença é verdadeira no momento em que a emendo. Mas nãofico sabendo. Frege pegou esse exemplo como prova de que existe em linguagem umadistinção geral entre aquilo que entendemos (o sentido de um termo) e aquilo a que um termose refere, aquilo que um termo "especifica" (a referência do termo). O sentido de um termo nosdirige para a referência, mas não é idêntico a ela. No caso de um nome, o sentido é algo comouma descrição complexa — "o planeta que..." ou "o homem que...". A referência, por outrolado, é um objeto. Isso pode parecer intuitivamente aceitável — embora na verdade seja hojeamplamente consagrado. Mas e quanto a predicados? E quanto à sentença tomada como umtodo?

Ao discutir a teoria da aritmética de Frege, escrevi vagamente sobre conceitos, propriedades epredicados, desejando deixar para depois a questão da interpretação desses termos. Masagora é necessário ser mais preciso. Um predicado tem como sua referência um conceitoparticular: ao entender o predicado "é sábio" sou "levado ao" conceito de sabedoria, por seusentido ou significado. O que podemos dizer, então, do ponto de vista filosófico, sobre anatureza dos conceitos? Frege foi claro sobre uma coisa: conceitos são públicos e pertencemao aspecto publicamente reconhecível da linguagem tanto quanto as palavras que osexpressam. Os "sentidos" de predicados são, portanto, igualmente públicos. De outro modo, osignificado das palavras não poderia ser ensinado e a linguagem deixaria de ser uma forma decomunicação. Sentidos devem ser distinguidos de associações particulares, de imagens e dequalquer outro episódio meramente "interior". Eles são determinados por regras de utilizaçãoque estão disponíveis a todos os que falam. Incorporada à idéia do caráter público do "sentido"encontra-se uma rejeição das tradicionais teorias empíricas de significado. Todas essas teoriasconfundem significado e associação, uma vez que identifiquem o significado de um termo comalguma idéia subjetiva despertada na mente de uma pessoa que ou a usa ou a escuta. Fregetambém, por meio de sua teoria da referência, desenvolve a base para uma nova rejeiçãometafísica do idealismo. Como os predicados fazem referência? Como a referência deles édistinta de seu sentido? Fregue disse que, diferentemente dos nomes, os predicados são"insaturados". Sua referência pode ser compreendida não como um objeto completo, masapenas como uma operação que precisa ser completada para que qualquer objeto possa serdeterminado por ela. Tomando emprestada uma idéia matemática, ele chamou essa operaçãode uma função. Considerem, por exemplo, a função matemática ()2 + 2 (ou, usando o símbolopara uma variável, x 2 + 2).Isto produz um valor para qualquer número particular: o valor 3, para x = 1; o valor 6, para x =2, e assim por diante. E sua significação reside inteiramente nisso. A função matemáticatransforma um número em outro.

Do mesmo modo, o predicado "x é sábio", que deveria ser concebido como determinando umafunção, produz um valor para cada objeto individual que é referido pelo nome posto no lugar de"x". O que é esse "valor" ao qual a sentença se refere? Frege argumentou que ele pode sernada mais nada menos do que a referência da sentença como um todo. Tendo combinado a

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referência do sujeito à referência do predicado, devemos obter à referência dessa combinação.Então, ao que as sentenças se referem? A resposta de Frege a esta pergunta constitui o que étalvez a parte mais original de sua filosofia. É tentador pensar que se uma sentença se refere aalguma coisa é a um fato, ou a um estado de coisas, ou algo assim. "Sócrates é sábio"refere-se ao fato de que Sócrates é sábio. Mas então a que se referem sentenças falsas? Equantos estados de coisas existem? Se tentarem responder à segunda pergunta, logo se darãoconta de que o único meio de contar estados de coisas é contando ou sentenças, ou seussignificados, caso em que sua idéia da referência de uma sentença foi confundida com suaidéia ou da própria sentença, ou de seu sentido. Por uma série de argumentos extremamentesutis e convincentes, Frege pôde concluir que, na realidade, a única resposta possível àpergunta "A que uma sentença se refere?" é: "A seu valor de verdade." Isto é, a verdade ou afalsidade. Verdade e falsidade estão para sentenças como objetos para nomes. E predicadosreferem-se a conceitos que determinam funções que rendem verdade ou falsidade de acordocom os objetos a que são aplicados.

A análise da sentença sujeito-predicado é completada respondendo-se à pergunta: qual é osentido de uma sentença completa? Frege afirmou que o sentido é um pensamento: opensamento, em nosso exemplo, de que Sócrates é sábio. Um pensamento, como umconceito, é uma coisa pública, que não deve ser confundida com qualquer penumbra ou"tonalidade" particular. Deve ser identificada em termos das condições que tornam umasentença verdadeira. Qualquer um que suponha que Sócrates é sábio supõe que certascondições são preenchidas, de forma que a frase "Sócrates é sábio" seja verdade (ou, paracolocar mais formalmente, de forma que a frase se refira a um valor verdadeiro: verdade.) Aanálise final da sentença sujeito-predicado atribui-lhe assim dois níveis de significadocompletos, do seguinte modo:

 

Sujeito

Predicado

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Sentença

 

Sintaxe

Sócrates

é sábio

Sócrates é sábio

Sentido

descrição

Sentido de predicado conceito

Pensamento

Referência

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objeto

função

(= condições de verdade) valor de verdade

Tal como o sentido da sentença toda é determinado pelo sentido de suas partes, assimtambém o valor de verdade é determinado pela referência das palavras individuais. Asignificação para a filosofia dessa análise quase matemática da estrutura lingüística é enorme.Se Frege está certo, então a velha distinção entre extensão e intenção pode ser aplicada asentenças. A extensão de uma sentença é seu valor de verdade, e as intenções, suascondições de verdade. A extensão de um termo é separável dele, e identificável de outrosmeios. É possível, portanto, conceder-lhe uma existência inde­pendente. Podemos pensar emuma sentença como representando o verdadeiro ou o falso. A noção de uma relação lógicaentre sentenças agora fica completamente clara. A sentença complexa "p e q", por exemplo, éverdadeira se, e apenas se, p for verdade e q for verdade. Donde a inferência de "p e q" para"q" é válida: ela nos leva da verdade para a verdade. Outros "conectivos lógicos", assim como"se" e "ou", podem ser esclarecidos do mesmo modo e sua lógica, explicada. O princípio deextensividade — o de que cada termo representa sua extensão — agora pode ser usado parase erigir uma lógica completa das relações entre sentenças. Foi esta idéia que revolucionou afilosofia, levando primeiro ao "atomismo lógico" de Russell e Wittgenstein, e então às novasformas de metafísica analítica que gradualmente vieram substituí-lo. E mais ainda, se a teoriada linguagem de Frege estiver certa, a noção fundamental envolvida em se entenderempalavras é a verdade. Alguns desejaram argumentar assim: uma sentença tem significadoporque as pessoas a usam para fazer afirmações. É portanto a função peculiar exercida naafirmação que deveríamos analisar. É esta "afirmação" que fornece a essência dacomunicação lingüística, e daí deve ser isolada como o tema básico de qualquer filosofia dalinguagem. Mas consideremos o seguinte argumento: (1) p implica g; (2) p; portanto (3) q. Em(1) a sentença "g" não é afirmada, em (3) é: o argumento, no entanto, é válido. Donde "g" devesignificar o mesmo em cada ocorrência, senão haveria uma falácia por meio de um equívoco.Segue-se, Frege afirma, que "afirmativa" não pode ser parte do significado de uma sentença.Se nos per­guntarmos o que entendemos ao entender uma sentença, ou um argumento, entãoa resposta sempre nos faz retornar não à afirmação, mas à verdade. O que entendemos é ouuma relação entre valores de verdade, ou as condições que tornam uma sentença verdadeira.Frege também acreditava que a relação de uma sentença com suas condições de verdade

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A filosofia de Frege

deve ser objetivamente determinada. Descobrimos oculta dentro da própria lógica do discursouma pressuposição metafísica. E a pressuposição de uma verdade objetiva, à qual visam todasas nossas elocuções, e da qual elas tiram seu sentido. Esses pensamentos de Frege foram,lenta e um tanto irregularmente, incorporados à estrutura da filosofia analítica moderna. Algunspensa dores são contra a idéia de Frege de que condições de verdade determinam osignificado. Outros se opõem à interpretação especificamente "realista" ou "antiidealista" queFrege deu a essa idéia. Desse modo, a discussão de Frege reativou a questão fundamentalcolocada pela metafísica de Kant. Como nos orientarmos no meio-termo entre "realismotranscendental" e "idealismo empírico"? Essa pergunta hoje passou a ser: "O que éfundamental para o entendimento da linguagem; a verdade, considerada independente denossa capacidade de avaliá-la, ou a afirmação considerada como um ato limitado por nossospróprios poderes epistemológicos?"

Outros filósofos opõem-se à descrição de Frege da natureza dos predicados e a suacaracterização da lógica da linguagem vulgar em termos quase matemáticos. Seja qual for aposição adotada, no entanto, quer na teoria do significado, ou na metafísica, podemos tercerteza de que, se a posição pertence à tradição da filosofia "analítica", terá contadotacitamente com as idéias de Frege, se não para fornecerem seus argumentos, pelo menospara fornecerem a terminologia em que são expressas.

Fonte: A filosofia de Frege , por Roger Scruton

http://portal.filosofia.pro.br/frege.html

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