10
0^W3í pudermos entender por “estilo” o movimento originário da imaginação quando ele toma a fisionomia da troca. Mas eis- nos já sobre o registro da história. A expressão é linguagem, obra de arte, ética: todos os problemas de estilo, todos os momentos históricos cujo devir objetivo é constituinte desse mundo, de que o sonho nos mostra o momento originário e as significações diretrizes para nossa existência. Não é que o sonho seja a verdade da história, mas, ao fazer surgir o que na existência é o mais irredutível à história, ele mostra ao máximo o sentido que ela pode tomar para uma liberdade que ainda não atingiu, em uma expressão objetiva, o momento de sua universalidade. Por isso é que o primado do sonho é absoluto para o conhecimento antropológico do homem concreto; mas a ultrapassagem desse primado é uma tarefa de futuro para o homem real - uma tarefa ética e uma necessidade de história: “Sem dúvida cabe a esse homem, inteiramente às voltas com o mal cujo rosto voraz e medular ele conhece, transformar o fato fabuloso em fato histórico. Nossa convicção inquieta não deve denegri-lo, mas interrogá- lo, nós, ardentes matadores de seres reais na pessoa sucessiva de nossa quimera... A evasão em seu semelhante com imensas promessas de poesia será, talvez, um dia possível.”76 Mas tudo isso concerne a uma antropologia da expressão, mais fundamental, em nossa opinião, que uma antropologia da imaginação; não está em nosso propósito esboçá-la hoje. Quise- mos simplesmente mostrar tudo o que o texto de Binswanger sobre o sonho podia trazer a um estudo antropológico do imagi- nário. O que ele trouxe à luz no sonho é o momento fundamental em que o movimento da existência encontra o ponto decisivo da divisão entre as imagens onde ela se aliena em uma subjetividade patológica e a expressão onde ela se conclui em uma história objetiva. O imaginário é o meio, o “elemento” dessa escolha. Podemos, portanto, indo ao encontro da significação do sonho no coração da imaginação, restituir as formas fundamentais da existência, manifestar sua liberdade, designar sua felicidade e infortúnio, já que o infortúnio da existência inscreve-se sempre na alienação, e que a felicidade, na ordem empírica, não pode ser senão felicidade de expressão. 76. (NA.) Char (R.), Partageformei op. cit, LV, p. 169. 132 Michel Foucault - Ditos e Escritos a mM asm •w .*;- MMà 1957 A Psicologia de 1850 a 1950 “La psychologie de 1850 à 1950”, tn Huisman (D.) e Weber (A.), Histoire de la philosophie européenne, t. II: Tableau de philosophie contemporaine, Paris, Librairie Fischbacher, 1957, 33, rue de Seine, p. 591-606. Introdução A psicologia do século XIX herdou da Aufklárung a preocu- pação de alinhar-se com as ciências da natureza e de encon- trar no homem o prolongamento das leis que regem os fenô- menos naturais. Determinação de relações quantitativas, ela- boração de leis que se apresentam como funções matemáticas, colocação de hipóteses explicativas, esforços através dos quais a psicologia tenta aplicar, não sem sacrifício, uma metodologia que os lógicos acreditaram descobrir na gênese e no desenvolvi- mento das ciências da natureza. Ora, foi o destino dessa psi- cologia, que se queria conhecimento positivo, apoiar-se sem- 2 ~ pre em dois postulados filosóficos: que a verdade do homem está exaurida em seu ser natural e que o caminho de todo conhecimento científico deve passar pela determinação de relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental. Toda a história da psicologia até o meado do século XX é a história paradoxal das contradições entre esse projeto e esses postulados; ao perseguir o ideal de rigor e de exatidão das ciências da natureza, ela foi levada a renunciar aos seus postulados; foi conduzida por uma preocupação de fidelidade objetiva em reconhecer na realidade humana outra coisa que - não um setor da objetividade natural, e em utilizar para reconhecê-lo outros métodos diferentes daqueles de que as ciências da natureza poderiam lhe dar o modelo. Mas o projeto de rigorosa exatidão que a levou, pouco a pouco, a abandonar seus postulados tomou-se vazio de sentido quando esses

FOUCAULT, Michel. A Psicologia de 1850 a 1950

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Ditos & Escritos, Vol. 1.

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  • 0^ W3pudermos entender por estilo o movimento originrio da imaginao quando ele toma a fisionomia da troca. Mas eis- nos j sobre o registro da histria. A expresso linguagem, obra de arte, tica: todos os problemas de estilo, todos os momentos histricos cujo devir objetivo constituinte desse mundo, de que o sonho nos mostra o momento originrio e as significaes diretrizes para nossa existncia. No que o sonho seja a verdade da histria, mas, ao fazer surgir o que na existncia o mais irredutvel histria, ele mostra ao mximo o sentido que ela pode tomar para uma liberdade que ainda no atingiu, em uma expresso objetiva, o momento de sua universalidade. Por isso que o primado do sonho absoluto para o conhecimento antropolgico do homem concreto; mas a ultrapassagem desse primado uma tarefa de futuro para o homem real - uma tarefa tica e uma necessidade de histria: Sem dvida cabe a esse homem, inteiramente s voltas com o mal cujo rosto voraz e medular ele conhece, transformar o fato fabuloso em fato histrico. Nossa convico inquieta no deve denegri-lo, mas interrog- lo, ns, ardentes matadores de seres reais na pessoa sucessiva de nossa quimera... A evaso em seu semelhante com imensas promessas de poesia ser, talvez, um dia possvel.76

    Mas tudo isso concerne a uma antropologia da expresso, mais fundamental, em nossa opinio, que uma antropologia da imaginao; no est em nosso propsito esbo-la hoje. Quisemos simplesmente mostrar tudo o que o texto de Binswanger sobre o sonho podia trazer a um estudo antropolgico do imaginrio. O que ele trouxe luz no sonho o momento fundamental em que o movimento da existncia encontra o ponto decisivo da diviso entre as imagens onde ela se aliena em uma subjetividade patolgica e a expresso onde ela se conclui em uma histria objetiva. O imaginrio o meio, o elemento dessa escolha. Podemos, portanto, indo ao encontro da significao do sonho no corao da imaginao, restituir as formas fundamentais da existncia, manifestar sua liberdade, designar sua felicidade e infortnio, j que o infortnio da existncia inscreve-se sempre na alienao, e que a felicidade, na ordem emprica, no pode ser seno felicidade de expresso.

    76. (NA.) Char (R.), Partageformei op. cit, LV, p. 169.

    132 Michel Foucault - Ditos e Escritos

    a m Masm

    w.*;- MM

    1957

    A Psicologia de 1850 a 1950

    La psychologie de 1850 1950, tn Huisman (D.) e Weber (A.), Histoire de la philosophie europenne, t. II: Tableau de philosophie contemporaine, Paris, Librairie Fischbacher, 1957, 33, rue de Seine, p. 591-606.

    Introduo

    A psicologia do sculo XIX herdou da Aufklrung a preocupao de alinhar-se com as cincias da natureza e de encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenmenos naturais. Determinao de relaes quantitativas, elaborao de leis que se apresentam como funes matemticas, colocao de hipteses explicativas, esforos atravs dos quais a psicologia tenta aplicar, no sem sacrifcio, uma metodologia que os lgicos acreditaram descobrir na gnese e no desenvolvimento das cincias da natureza. Ora, foi o destino dessa psicologia, que se queria conhecimento positivo, apoiar-se sem- 2 ~ pre em dois postulados filosficos: que a verdade do homem est exaurida em seu ser natural e que o caminho de todo conhecimento cientfico deve passar pela determinao de relaes quantitativas, pela construo de hipteses e pelaverificao experimental.

    Toda a histria da psicologia at o meado do sculo XX a histria paradoxal das contradies entre esse projeto e esses postulados; ao perseguir o ideal de rigor e de exatido das cincias da natureza, ela foi levada a renunciar aos seus postulados; foi conduzida por uma preocupao de fidelidade objetiva em reconhecer na realidade humana outra coisa que - no um setor da objetividade natural, e em utilizar para reconhec-lo outros mtodos diferentes daqueles de que as cincias da natureza poderiam lhe dar o modelo. Mas o projeto de rigorosa exatido que a levou, pouco a pouco, a abandonar seus postulados tomou-se vazio de sentido quando esses

  • 134 Michel Foucault - Ditos e Escritos

    mesmos postulados desapareceram: a ideia de uma preciso objetiva e quase matemtica no domnio das cincias humanas no mais conveniente se o prprio homem no mais da ordem da natureza. Portanto, a uma renovao total que a psicologia obrigou a si prpria no curso de sua histria; ao descobrir um novo status do homem, ela se imps, como cincia, um novo estilo.

    Ela precisou buscar novos princpios e desvelar para si mesma um novo projeto: dupla tarefa que os psiclogos nem sempre compreenderam com todo o rigor e que, com muita frequncia, tentaram rematar com a economia; uns, ainda que percebendo a exigncia de novos projetos, permaneceram ligados aos antigos princpios de mtodo: as psicologias que tentaram analisar a conduta, mas que para faz-lo utilizaram os mtodos das cincias da natureza o testemunham; outros no entenderam que a renovao dos mtodos implicava a emergncia de novos temas de anlise: assim, as psicologias descritivas, que permaneceram ligadas aos velhos conceitos. A renovao radical da psicologia como cincia do homem no , portanto, simplesmente um fato histrico do qual podemos situar o desenrolar durante os ltimos cem anos; ela ainda uma tarefa incompleta a ser preenchida e, a esse ttulo, permanece na ordem do dia.

    Foi igualmente no decorrer desses ltimos cem ano que a psicologia instaurou relaes novas com a prtica: educao, medicina mental, organizao de grupos. Ela se apresentou como seu fundamento racional e cientfico; a psicologia gentica constituiu-se no quadro de toda pedagogia possvel, e a psicopatologia ofereceu-se como reflexo sobre a prtica psiquitrica. Inversamente, a psicologia se colocou como questo os problemas suscitados por essas prticas: problema do sucesso e do fracasso escolar, problema da insero do doente na sociedade, problema da adaptao do homem sua profisso. Atravs desse lao apertado e constante com a prtica, atravs dessa reciprocidade de suas trocas, a psicologia torna-se semelhante a todas as cincias da natureza. Mas estas no respondem seno aos problemas colocados pelas dificuldades da prtica, seus fracassos temporrios, as limitaes provisrias de seu exerccio. A psicologia, em contrapartida, nasce nesse ponto no qual a prtica do homem encontra sua prpria contradio; a psicologia do desenvolvimento nasceu

    1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 135

    como uma reflexo sobre as interrupes do desenvolvimento; a psicologia da adaptao, como uma anlise dos fenmenos de inadaptao; a da memria, da conscincia, do sentimento surgiu, primeiro, como uma psicologia do esquecimento, do inconsciente e das perturbaes afetivas. Sem forar uma exatido, pode-se dizer que a psicologia contempornea , em sua origem, uma anlise do anormal, do patolgico, do conflituoso, uma reflexo sobre as contradies do homem consigo mesmo.E se ela se transformou em uma psicologia do normal, do adaptativo, do organizado, de um segundo modo, como que por um esforo para dominar essas contradies.

    O problema da psicologia contempornea - e que para ela prpria um problema de vida ou de morte - saber em que medida ela consegue efetivamente dominar as contradies que a fizeram nascer, atravs desse abandono da objetividade naturalista, que parece ser sua outra caracterstica maior. A essa pergunta a prpria histria da psicologia deve responder.

    O preconceito de natureza

    Sob sua diversidade, as psicologias do final do sculo XIX possuem esse trao comum, de tomar emprestado das cincias da natureza seu estilo de objetividade e de buscar, em seus mtodos, seu esquema de anlise.

    1 ) O modelo fisico-qumico. ele que serve de denominador comum a todas as psicologias da associao e da anlise rAifc elementar. Encontramo-lo definido com a maior clareza na Logique, de J. S. Mill, e em seu Preface to James Mills Analysis. 1 Os fenmenos do esprito, assim como os fenmenos materiais, exigem duas formas de pesquisa: a primeira tenta, a partir dos fatos, ter acesso s leis mais gerais, segundo o princpio da universalizao newtoniana; a segunda, tal como t) ouv a anlise qumica para os corpos compostos, reduz os fenmenos complexos em elementos simples. Assim, a psicologia ter por tarefa encontrar, nos fenmenos do pensamento mais abstrusos, os segmentos elementares que os compem; no

    1. (N.A.) Mill (J. S.), A system of logic ratiocinative and inductive, Londres,Parker, 1851, 2 vol. (Systme de logique deductive et inductive, trad. L. Peisse,Paris, Ladrange, 1866, 2 vol. (N.E.).) Preface to James Mills analysis of thephenomena of the human mind Londres, Longmans, 1869.

  • 136 Michel Foucault - Ditos e EscritosSKJtit't

    * U"princpio da percepo e do conhecimento da matria, ela encontrar a sensao (a matria pode ser definida como uma possibilidade permanente de sensao); no princpio do es- prito e do conhecimento que o esprito tem de si mesmo, a psicologia descobrir o sentimento. Mas esses elementos, em sua relao e em seu agrupamento, so regidos pela lei absolutamente geral da associao, j que ela universal, mas somente as formas de aplicao nos diversos tipos de fenme-____ X onos mentais.2

    t

    2) O modelo orgnico. No se busca mais definir o domnio psicolgico por coordenadas tomadas da fsica de Newton ou da qumica de Lavoisier; fazem-se esforos para se manter em vista a realidade humana definindo-a por sua natureza orgnica, tal como se a conhece depois de Bichat, Magendie,Claude Bernard. O psiquismo, tal como o organismo, caracterizado por sua espontaneidade, sua capacidade de adaptao e seus processos de regulaes internas.

    Bain, a partir de um estudo dos instintos,3 Fechner, pela anlise das relaes entre estimulao e o efeito sensorial,4 Wundt, retomand o problema da atividade especfica dos nervos,5 todos ressaltaram esse tema essencial de que o aparelho psquico no funciona como um mecanismo, mas como um conjunto orgnico cujas reaes so originais, e, consequentemente, irredutveis s aes que os desencadeiam. preciso, portanto, como dizia Wundt, substituir o princpio ^da energia material pelo princpio do acrscimo da energia espiritual. nesse sentido que foram empreendidas, no final do sculo XIX, as pesquisas experimentais dos limiares absolutos e diferenciais da sensibilidade, os estudos sobre o tempo de reao e sobre as atividades reflexas: em suma, toda essa constelao de estudos psicofisiolgicos nos quais se buscava manifestar a insero orgnica do aparelho psquico.

    m i

    2. A frase est manifestamente truncada.3. (N.A.) Bain (A), The senses and the intellect, Londres, Longmans, 1864.; (Les sens et lintelligence, trad. E. Cazelles, Paris, Baillire, 1874 (N.E.).)4. (N.A.) Fechner (T. G.), in Sachen der Psychophysik, Leipzig, Breitkopf e Hrtel, 1877.5. (N.A.) Wundt (W.), Grundzge der Physiologischen Psychologie, Leipzig, W. Engelmann, 1874. (lments de psychologie physiologique, trad. E. Rouvier, Paris, Alcan, 2 vol., 2S ed., 1886 (N.E.).).

    1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 137

    Foi a mesma inspirao orgnica que suscitou as pesquisas sobre as regulaes internas do psiquismo: prazer e dor, tendncias, sentimentos, emoes, vontade. Para Bain, o prazer resulta da harmonia das sensaes; a dor, de suas contradies e conflitos.6 sob os fenmenos conscientes que Ribot busca o princpio dessas regulaes que caracterizam a vida ativa e a vida afetiva: em uma regio onde o prazer e a dor ainda nem mesmo afloram, h um inconsciente dinmico que trabalha, que elabora na sombra das combinaes incoerentes ou adaptadas; essa subpersonalidade envolve em sua profundeza a origem da grande trindade afetiva, constituda pelo medo, pela raiva e pelo desejo; so os trs instintos procedentes diretamente da vida orgnica: instinto defensivo, instinto ofensivo, instinto nutritivo.7

    3 ) O modelo evolucionista. A origem das espcies esteve, jv^JCo na metade do sculo XIX, no incio de uma renovao conside- rvel nas cincias do homem; ela provocou o abandono do mito newtoniano e assegurou sua substituio atravs de um mito darwiniano, cujos temas imaginrios ainda no desapareceram totalmente do horizonte dos psiclogos. essa mitologia grandiosa que serve de cenrio ao Systme de philosophic de Spencer; nele, os Prncipes de psychologic so precedidos dos Prncipes de biologic e seguidos dos Prncipes de sociologic. A evoluo do indivduo ali descrita, ao mesmo tempo, como um-w* processo de diferenciao - movimento horizontal de expanso ^ para o mltiplo - e por um movimento de organizao hierrquica WdJty - movimento vertical de integrao na unidade; assim procede---**^ 3^ ram as espcies no curso de sua evoluo; assim procedero as sociedades no curso de sua histria; assim procede o indivduo ^ v no curso de sua gnese psicolgica, desde o feeling indiferenciado at a unidade mltipla do conhecimento.8

    Jackson, para a neurologia, Ribot, para a psicologia patolgica, retomaram os temas spencerianos. Jackson define a evoluo das estruturas nervosas atravs de trs princpios: ela se faz do simples ao complexo, do estvel ao instvel, do

    6. (N.A.) Bain (A.), The emotions and the will, Londres, Parker, 1859. (Les motions et la volont, trad. P.-L. de Monnier, Paris, Alcan, 1885 (N.E.).)7. (N.A.) Ribot (T.), La psychologie des sentiments, Paris, Alcan, 1897.8. (N.A.) Spencer (H.), The principles of psychology, Londres, Longmans, 1855. (Principes de psychologie, trad. A. Espinas e Th. Ribot, Paris, Baillire, 2 vol., 2aed 1875 (N.E.).)

  • 138 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 139

    mais organizado ao menos organizado; o que implica, em compensao, que a doena siga o caminho inverso ao da evoluo, e que ela se afronte, a princpio, com as estruturas mais instveis e mais recentes, para progredir rapidamente na direo das estruturas mais slidas e mais antigas; mas a doena tambm dissociativa: a supresso das estruturas superiores provoca uma desintegrao que descobre e libera as instncias inferiores.9 Ribot transferiu as anlises neuro- JpoV psiquitricas de Jackson para os domnios da personalidade, dos sentimentos, da vontade, da memria: 10 nas amnsias, so as lembranas mais antigas e mais estveis que permanecem, quando so varridas as mais recentes e as mais superficiais; nas alteraes da vida afetiva, os sentimentos egostas que so tambm os mais arcaicos reaparecem, assim como surgem uma vez mais os automatismos, quando a vontade 1desmorona, ou as estruturas inconscientes da personalidade, quando as formas lcidas so obnubiladas.

    A importncia do evolucionismo na psicologia deve-se, sem dvida, a ele ter sido o primeiro a mostrar que o fato psicolgico no tem sentido seno com relao a um futuro e a um passado, que seu contedo atual assenta-se sobre um fundo silencioso de estruturas anteriores que o carregam de toda uma histria, mas que ele implica, ao mesmo tempo, um horizonte aberto sobre o eventual. O evolucionismo mostrou que a vida psicolgica tinha uma orientao. Mas, para desligar a psicologia do preconceito de natureza, restava ainda mostrar que essa orientao no era k apenas fora que se desenvolve, mas significao que nasce.

    pertencer a uma paisagem comum, e a mesma direo parece

    m \

    e s b o a r -se: trata-se de deixar de lado as hipteses demasiado amplas e gerais pelas quais se explica o homem como um setor determinado do mundo natural; trata-se de retomar um exame | mais rigoroso da realidade humana, ou seja, mais de acordo com sua medida, mais fiel s suas caractersticas especficas, mais apropriado a tudo o que, no homem, escapa s determinaes de natureza. Tomar o homem no no nvel desse denominador comum que o assimila a todo ser vivente, mas no seu prprio nvel, nas condutas nas quais se exprime, na conscincia em que se reconhece, na histria pessoal atravs da qualele se constituiu.

    Janet, 11 sem dvida, permanece ainda bem prximo ao evolucionismo e aos seus preconceitos de natureza; a hierarquia das tendncias que se estende das mais simples e das mais automticas (tendncia reao imediata) at as mais complexas e as mais integradas (aes sociais), a noo cie energia psquica que se reparte entre essas tendncias para ativ-las so temas que lembram Jackson e Ribot. No entanto, Janet chegou a sair fora desse quadro naturalista dando como tema psicologia no as estruturas reconstitudas nem energias supostas, mas a conduta real do indivduo humano. Por conduta, Janet no entende esse comportamento externo de que se esgotam o sentido e a realidade, confrontando-o com a situao que o provocou: reflexo ou reao, no conduta. H conduta quando se trata de uma reao submetida a uma regulao, quer dizer, cujo desenrolar depende sem cessar do resultado que ela acaba de obter. Essa regulao pode ser interna e apresentar-se sob a forma de sentimento (o esforo que faz recomear a ao para aproxim-la do sucesso; a alegria que a limita e a conclui no triunfo); ela pode ser externa e tomar como ponto de referncia a conduta do outro: a conduta , ento, reao reao de um outro, adaptao sua

    A^ Jackso? Croonicm lectures on the evolutionand dissolution qf ? f ff: ~conduta, e ela exige, assim, um desdobramento cuio exemplothe nervous sustem, inThelancet. 29 de marro Rp19Hp ahrii Ho irra Sn rJ moio +' - j j i i* j i mais tpico e dado pela lmguagem que se desenrola sempresystem, in The lancet, 29 de maro, 5 e 12 de abril de 1884. (Sur lvolution et la dissolution du systme nerveux, trad. A. Pariss, Archives suisses de neurologie et de psychiatrie, vol. VIII, 1921, ne .2, p. 293-302: vol. IX, 1922, ns 1, p. 131-152 (N.E.).)10. (N.A.) Ribot (T.), Les maladies de la mmoire, Paris, Baillire, 1878; Ls maladies de la volont, Paris, Baillire, 1883; Les maladies de la personnalit , Paris, Alcan, 1885.

    A descoberta do sentido

    A descoberta do sentido fez-se, no final do sculo XLX, por caminhos bem diversos. Mas eles parecem, no entanto, j

    -

    :

    mBsBBtL (NA.) Janet (P.), Les obsessions et la psychasthnie (em col. com F. Raymond), Paris, Alcan, 1903, 2 vol. Les nvroses, Paris, Flammarion, 1909.

    e l angoisse lextase. ludes sur les croyances et les sentiments, Paris, can> 1926. Les dbuts de lintelligence, Paris, Flammarion, 1935.

  • 140 Michel Foucault - Ditos e Escritos

    como dilogo eventual. A doena, ento, no nem um de/dnein uma regresso, mas um distrbio dessas regulaes, uma alterao funcional do sentimento: disso testemunha a linguagem do psicastnico, que no pode mais regular-se pelas normas do dilogo, mas prossegue em um monlogo sem auditor; testemunhas tambm so os escrpulos dos obsessivos que no podem concluir suas aes, porque perderam essa regulao que lhes permite iniciar e concluir uma conduta.

    O surgimento das significaes na conduta humana se fez igualmente a partir da anlise histrica. O homem, segundo Dilthey, no aprende o que ele ruminando sobre si mesmo, ele o aprende pela histria .12 Ora, o que a histria lhe ensina que ele no um elemento segmentar dos processos naturais, mas uma atividade espiritual cujas produes depositaram-se sucessivamente no tempo, como atos cristalizados, significaes doravante silenciosas. Para reencontrar essa atividade originria, ser preciso enderear-se s suas produes, fazer reviver seus sentidos atravs de uma anlise dos produtos do esprito destinada a nos dar acesso a um apanhado sobre a gnese do conjunto psicolgico. Mas essa gnese no nem um processo mecnico, nem uma evoluo biolgica; ela movimento prprio do esprito que sempre sua prpria origem e seu prprio termo. Portanto, no se trata de explicar o esprito por outra coisa do que por ele prprio; mas, ao se colocar no interior de sua atividade, ao tentar coincidir com esse movimento no qual ele cria e se cria, preciso, antes de mais nada, compreend-lo. Esse tema da compreenso, oposto explicao, foi retomado pela fenomenologia que, seguindo Husserl, fez da descrio rigorosa do vivido o projeto de toda filosofia tida como cincia. O tema da compreenso conservou sua validade; mas, em vez de fundament-la em uma metapsico- logia do esprito, como Dilthey, a fenomenologia estabeleceu-a sobre uma anlise do sentido imanente a toda experincia vivida. Assim, Jaspers13 pde distinguir nos fenmenos pato-

    12. (NA.) Dilthey [W.), Ideen ber eine beschreibende und zergliedernde Psychologie (1894), in Gesammelte Schriften, Leipzig, Teubner, 1924, t. geistige Welt. Einleitung in die Philosophie des Lebens, p. 129-240.13. (NA.) Jaspers (K.), Allgemeine Psychopathologie, Berlim, J. Springer, 1913. (Psychopathologie gnrale, trad. A. Kastler e J. Mendousse, 3 ed., Pans,Alcan, 1933 (N.E.).)

    1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 141

    lgicos os processos orgnicos referidos explicao causai, e as reaes ou os desenvolvimentos da personalidade que envolvem uma significao vivida de que o psiquiatra deve tera tarefa de compreender.

    Mas nenhuma forma de psicologia deu mais importncia significao do que a psicanlise. Sem dvida, ela ainda permanece, no pensamento de Freud, 14 ligada s suas origens naturalistas e aos preconceitos metafsicos ou morais, que no deixam de marc-la. Sem dvida, h na teoria dos instintos (instinto de vida ou de expanso, instinto de morte ou de repetio) o eco de um mito biolgico do ser humano. Sem dvida, na concepo da doena como regresso a um estdio anterior do desenvolvimento afetivo, reencontramos um velho tema spenceriano e os fantasmas evolucionistas de que Freud no nos poupa, mesmo em suas implicaes sociolgicas mais duvidosas. Mas a prpria histria da psicanlise fez ver esses elementos retrgrados. A importncia histrica de Freud vem, sem dvida, da impureza mesma de seus conceitos: foi no interior do sistema freudiano que se produziu essa reviravolta da psicologia; foi no decorrer da reflexo freudiana que a ^ r* anlise causai transformou-se em gnese das significaes,--------------------------- z,

    14. (NA.) Freud (S.), Die Traumdeutung, Viena, Franz Deuticke, 1900. (Linterprtation des rves, trad. D. Berger, Paris, PUF, 1967 (N.E.).) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, Viena, F. Deuticke, 1905. (Trois essais sur la thorie sexuelle, trad. Ph. Koeppel, Paris, Gallimard, col. Connaissance de linconscient, 1987 (N.E).) Bruchstck einer Hysterie-Analyse, Monatsschrift fr Psychiatrie und Neurologie, t. XVIII, 1905, ne 4, outubro, p. 285-310, e ne 5, novembro, p. 408-467. (Fragment dune analyse dhystrie [Dora], trad. M. Bonaparte e R. M. Loewenstein, Cinq psychanalyses, 2- ed., Paris, PUF, 1966, p. 1-91 (N.E.).) Totem undTabu. Einige bereinstimmungen im Seelenleben der Wilden und der Neurotiker, Viena, Hugo Heller, 1913. [Totem et tabou. Interprtation par la psychanalyse de la vie sociale des peuples primitifs et des nvross, trad. S. Janklvitch, Paris, Payot, col. Petite Bibliothque Payot, ne 77, 1965 (N.E.).) Vorlesungen zur Einfhrung in die Psychoanalyse, Viena,Hugo Heller, 1916-1917. (Introduction la psychanalyse, trad. S. Jankl- ^tch, Paris, Payot, 1921 (N.E.).) Jenseits des Lustprinzips, Viena, Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1920. (Au-del du principe de plaisir, trad.J. Laplanche e J.-B. Pontalis, Essais de psychanalyse, Paris, Payot, col. Petite Bibliothque Payot, ns 44, 1981, p. 41-115 (N.E.).) DasIchuruddasEs, Viena, Internationaler Psychoanalystischer Verlag, 1923. (Le moi et le a, trad. J. Laplanche, Essais de psychanalyse, op. cit., p. 219-275 (N.E.).) Neue Folge der Vorlesungen zur Einfhrung in die Psychoanalyse, Viena, Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1933. (Nouvelles confrences dintroduction la Psychanalyse, trad. R.-M. Zeitlin, Paris, Gallimard, col. Connaissance de linconscient, 1984 (N.E.).)

  • 142 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 143

    V'Jl:

    fig q. i

    que a evoluo cede seu lugar histria, e que o apelo natureza substitudo pela exigncia de analisar o meio cultural.

    1 ) Para Freud, a anlise psicolgica no deve partir de uma distribuio das condutas entre o voluntrio e o involuntrio o intencional e o automtico, a conduta normalmente organizada e o comportamento patolgico e perturbado; no h diferena de natureza entre o movimento voluntrio de um homem so e a paralisia histrica. Para alm de todas as diferenas manifestas, essas duas condutas tm um sentido: a paralisia histrica tem o sentido da ao que ela recusa* assim como a ao intencional tem o sentido da ao que ela projeta. O sentido coextensivo a toda conduta. Ali mesmo onde ele no aparece, na incoerncia do sonho, por exemplo, na absurdidade de um lapso, na interrupo de um jogo de palavras, ele tambm est presente, mas de um modo oculto. E o prprio insensato sempre uma astcia do sentido, uma forma para o sentido vir tona testemunhando contra ele prprio. A conscincia e o inconsciente no so tanto dois mundos justapostos; so, antes, duas modalidades de uma mesma significao. E a primeira tarefa teraputica ser, atravs da interpretao dos sonhos e dos sintomas, modificar essa modalidade do sentido.

    2) Quais so essas significaes imanentes conduta, mas s vezes escondidas da conscincia? So aquelas que a histria individual constituiu e cristalizou no passado em torno de acontecimentos importantes: o traumatismo um transtorno das significaes afetivas (o desmame, por exemplo, que transforma a me, objeto e princpio de todas as satisfaes, em um objeto que se recusa, em um princpio de frustraes); e quando essas significaes novas no ultrapassam e no integram as significaes antigas, ento o indivduo fica fixado nesse conflito do passado e do presente, em uma ambiguidade entre o atual e o inatual, o imaginrio e o real, o amor e o dio, sinal maior da conduta neurtica. O segundo tema da teraputica ser, portanto, a redescoberta dos contedos inatuais e das significaes passadas da conduta presente.

    3) Por mais assombrada que ela seja pelo passado, a conduta no deixa de ter um sentido atual. Dizer que um sintoma reproduz simbolicamente um traumatismo arcaico implic que o passado no invada totalmente o presente, mas que o presente se defenda contra sua reapario. O presente est

    sempre em dialtica com seu prprio passado; ele o recalca no inconsciente, separa suas significaes ambguas; ele projeta

    atualidade do mundo real os fantasmas da vidasobre a

    A A

    ---------anterior; ele transpe seus temas para nveis de expresso reconhecidos vlidos ( a sublimao); em suma, ele erige todo um conjunto de mecanismos de defesa que a cura psicanaltica *>tem o encargo de girar reatualizando as significaes do passado pela transferncia e pela ab-reao.

    4) Mas qual o contedo desse presente? Qual seu peso ante a massa latente do passado? Se ele no vazio, ou instantneo, na medida em que ele essencialmente a instncia social, o conjunto de normas que, em um grupo, reconhece ou invalida tal ou tal forma de conduta. A dialtica do passado e do presente reflete o conflito entre as formas individuais de satisfao e as normas sociais de conduta, ou ainda, como diz Freud, entre o id e o superego; o ego, com os mecanismos de defesa, o lugar de seu conflito e o ponto onde a angstia faz irrupo na existncia. No tratamento psicanaltico, o papel do terapeuta , justamente, atravs de um jogo de satisfao e de frustrao, reduzir a intensidade do conflito, flexibilizar a dominao do id e do superego, ampliar e abrandar os mecanismos de defesa; ele no tem o projeto mtico de suprimir o conflito, mas de transformar sua contradio neurtica em uma tenso normal.

    Ao levar a seus limites extremos a anlise do sentido, Freud q, deu sua orientao psicologia moderna; se ele foi mais longe . que Janet e que Jaspers, por ter conferido um estatuto objetivo significao; ele buscou reapreend-la no nvel dos smbolos expressivos, no prprio material do comportamento; ele lhe deu como contedo uma histria real, ou melhor, o afrontamento de duas histrias reais: a do indivduo, na sequncia de suas experincias vividas, e a da sociedade, nas estruturas pelas quais ela se impe ao indivduo. Nessa medida, pode-se ultrapassar a oposio entre o subjetivo e o objetivo, entre o indivduo e a sociedade. Um estudo objetivo das sig-

    V ^vWjiificaes tomou-se possvel. jy .~W&SSS&Sl;

    O estudo das significaes objetivas

    Esse estudo recobre um domnio do qual no podemos, aqui, seno delimitar as regies essenciais.

  • 144 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 145

    fenomenal define a objetividade pela pregnncia e constncia das figuras; e ele substitui o processo causai por toda uma interao de foras entre o sujeito e o meio. O campo dinmico do comportamento torna-se, assim, o objeto maior da psicologia.

    2) Evoluo e gnese. Essas estruturas de conjunto e as significaes que habitam nelas evoluem no decorrer do devir individual. Para certos psiclogos, como Gesell, 17 a emergncia das estruturas se faz na conduta por uma maturao surda dos esquemas fisiolgicos. Para outros, como Kuo, ela se faz pela coeso progressiva de condutas segmentares e adquiridas que, pela fora de iterao da facilitao, organizam-se emesteretipos gerais de condutas. 18

    Entre essas duas formas extremas de interpretao, a psicologia gentica, depois de Baldwin, busca levar em conta a maturao e a aquisio, o desenvolvimento necessrio e o progresso ligado s circunstncias. Piaget19 atribui o mximo ao desenvolvimento necessrio das estruturas ao memo tempo biolgicas e lgicas; ele busca mostrar no desenvolvimento das primeiras - desde as que so irreversivelmente orientadas e concretas at as que so reversveis e abstratas, desde a reao imediata operao tcnica - um processo que refaz em sentido inverso a marcha da histria das cincias - desde a geometria euclidiana at o clculo vetorial e tensorial: o devir psicolgico da criana no seno o inverso do devir histrico do esprito. Em contrapartida, Wallon atribui o mximo ao meio, mostrando na individualidade psicolgica no um dado, mas um resultado, como o ponto de interferncia entre os movimentos centrpetos da emoo, da simpatia, da fuso afetiva, e os movimentos centrfugos da experincia do outro e do reconhecimento de si. O pensamento no , portanto, o modelo lgico e j constitudo da ao, mas o ato desdobran-

    17. (N.A.) Gesell (A.) e Ilg (F.), The first Jive years of life. A guide to the study of the preschool child Nova Iorque, Harper, 1940. The childfromfive to ten, Nova Iorque, Harper, 1946. (Lenfant de 5 10 ans, trad. N. Granjon e I. Lzine, PUF, 1949 (N.E.).) Gesell (A.) e Amatruda (C.), The embryology of behavior; the beginnings of the human mind Nova Iorque, Harper, 1945. (Lembryologie du comportement; les dbuts de la pense humaine, trad. P. Chauchard, Paris, PUF, 1952 (N.E.).)

    g 18. (N A.) Ruo (Z.-Y.), Les principes fondamentaux du comportement, 1941.19. (NA.) Piaget (J.), La reprsentation du monde chez lenfant, Paris, Alcan, 1926. La naissance de lintelligence chez lenfant, Paris, Delachaux e Niestl, 1936. La psychologie de lintelligence, Paris, A. Colin, ne 249, 1947.

  • 146 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 147

    do-se em um meio que se constitui como pensamento, atravs da intermediao do rito, do smbolo e, finalmente, da representao. 20 O devir psicolgico no o desenvolvimento de estruturas inteiramente preparadas, ele a preparao efetiva de estruturas adultas; no se trata mais de evoluo espontnea, mas de gnese ativa.

    3) Performances e aptides. Um outro problema colocado pela existncia dessas significaes objetivas o de suas manifestaes, seu afloramento no domnio da observao. Ele se d sob duas formas: a da performance, da realizao, da Leistung, como dizem os alemes, e a da expresso.

    A psicologia tradicional era uma psicologia do virtual; as faculdades no se inscreviam nunca seno entre as possibilidades abstratas. atualmente no nvel mesmo do real, e no quadro por ele definido, que se buscam determinar as eventualidades do comportamento. Disso surgiu o princpio do teste, devido a Cattell e a Binet, e definido como uma prova estandartizada cujo resultado estimado por comparao estatstica entre os indivduos a ele submetidos. Quanto s crianas retardadas, Binet e Simon21 foram os primeiros a buscar definir o nvel mental de um indivduo, em relao aos sujeitos de sua idade; o teste toma, ento, a forma de uma escala de desenvolvimento. O imenso acaso dos testes mentais conduziu Spearman22 a definir como critrio de inteligncia as nicas performances que se podem aferir sob a forma de testes: a inteligncia seria um fator geral que, em um grau mais ou menos elevado segundo a natureza da prova, daria conta de uma parte das performances, em todos os testes de aptides. A determinao da importncia do fator g" em tal ou tal prova se faz por uma elaborao estatstica, um clculo de correlaes que esto na origem da anlise fatorial. Mais

    m

    t a r d e , Thurstone,23 Thomson e Vernon praticaram o mtodo de anlise multifatorial, que tambm, atravs do mesmo mtodo de anlise estatstica das performances, busca determinar, ao lado, ou eventualmente no lugar do fator g, fatores polimorfos (aptido verbal, compreenso espacial, aptido numrica). Em todo esse movimento fatorial, a objetividade das significaes s mantida e garantida pela fragilidade das relaes estatsticas que alteram sua necessidade e a J------jam de todo contedo efetivo.

    4) A expresso e o carter. Em compensao, as psicologias da expresso e do carter esforam-se em reapreender o

    das significaes na forma da necessidade individual. Esse contedo individual aflora, em primeiro lugar, em

    sobretudo na projeo sobre

    despo-

    contedo

    - ; ?' corpo quanto era suas maimcsuivuco jjatuiugx^. ~^pntin'li^ 3^ 011 (H,) *9ine du caractre chez lenfant: les prludes du j morfolgico do organismo posto por Kretschmer e Sheldon

    timent de personnalit, Pans, Boivin, 1934. De Vacte la pense. Essai de | , ^ eim'hnli'zp rnmpsychologie compare, Paris, Flammarion, 1942. | em relao coma estrutura do carter: o corpo simboliza com01 ,1a * ' 3 em uma unidade na qual pode decifrar-se um estilo geral

    % :'

    r - y;psycnoLogie compare, Paris, Flammarion, 1942.21. (N.A.) Binet (A.) e Simon (T.), Mthode nouvelle pour le d i a g n o s t i c du ^ niveau intellectuel des anormaux, Anne psychologique, t. XI, 19@fj 191-244

    todos os fenmenos da projeo e ^ ---- -------------um estmulo pouco diferenciado, de interpretaes que lhe emprestam um sentido imaginrio: o princpio das provas de Rorschach e de Muway (manchas de tinta, imagens de cenas humanas). Ele aflora igualmente nesses outros fenmenos de expresso constitudos pelos julgamentos que se tm de si mesmo, ou ainda pela imagem que ns damos a ns mesmos ( esse domnio que os questionrios de Heymans ou de Woodworth exploram). H, aproximadamente, tantas caractersticas quantos forem os mtodos de investigao. Mas deve- se notar o prestgio da grande oposio delineada por Bleuler entre o tipo esquizoide (tendncia ao fechamento sobre si mesmo, ao autismo, ruptura de contato com a realidade) e o carter cicloide (tendncia expanso, labilidade afetiva,

    contato permanente com o mundo exterior).Tal como o mundo verbal e o universo imaginrio, o corpo

    mesmo detm um valor expressivo; essa ideia, desenvolvida por Klages, encontra sua validade tanto na estrutura geral do corpo quanto em suas manifestaes patolgicas. O aspecto morfolgico do organismo posto por Kretschmer e Sheldon em relao com a estrutura do carter: o corpo simboliza com

    . 1 , --------- , ---------- j _ j ____ a

    ao

    22. (N A ) Soe tc* . , . arman ( . E.), The abilities of man Their nature and meaW~^^ ^ ^ ^ ^ S y ^ /-^ |-.M-A-l_7hurstone (L.), The vectors of mind, Chicago, University of Chicago1 9 3 5 . T h o m s o n (G . ) , The factorial analysis of human ability, L o n d r e s ,

    d iv e rs ity o f L o n d o n P r e s s , 1 9 3 9 . [Lanalyse factorielle des aptitudes hu-

    opcaruian hj. The abilities of man. Their nature andmerit, Londres, MacMillan, 1927. (Les aptitudes de Vhomme, leur nature et leur ...mesure, trad. F. Brachet, Paris, Conservatoire national des arts e t mtiers, ^1936 (N.E.).)

    ; a^csh, iyjo. inomson lli.j, 1 ne jactonai analysis uj iiumu University of London Press, 1939. (Lanalyse factorielle

    Kai fe- trad. P. Naville, 3s ed., Paris, PUF, 1950 (N.E.).)

  • 148 Michel Foucault - Ditos e Escritos

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    de reao psicocorporal .24 Pela via da anlise simblica na qual os sinais corporais so lidos como uma linguagem, a psicanlise mostrou o carter expressivo do corpo e denunciou a origem psicognica de certas sndromes orgnicas; sistematizando essa pesquisa, Alexander25 pde mostrar a ligao de doenas como a hipertenso ou a ulcerao das vias digestivas com as estruturas neurticas que as provocam ou que se exprimem nelas.

    5) Condua e instituies. Expressas ou silenciosas, as significaes objetivas das condutas individuais so ligadas por um lao de essncia objetividade das significaes sociais: as obras de Janet, de Freud, de Blondel26 tentaram destacar esse elo. Conduzir-se s pode ter sentido em um horizonte cultural que d conduta sua norma (sob o aspecto do grupo), o tema, enfim, que a orienta (sob as espcies da opinio e da atitude): esses so os trs grandes setores da psicologia social.

    O estudo das instituies busca determinar as estruturas de base de uma sociedade; isolar as condies econmicas com sua incidncia direta sobre o desenvolvimento do indivduo e sobre as formas pedaggicas, no sentido amplo, que Kardiner designa como instituies primrias; descrever a maneira como o indivduo reage a essas instituies, como ele integra experincias, como ele projeta, enfim, os temas maiores sob a forma do mito, da religio, das condutas tradicionais, das regras jurdicas e sociais que se definem como instituies secundrias.27 Essa problemtica definida com preciso por Kardiner est presente de maneira mais ou menos difusa em todos os estudos antropolgicos, quer eles estudem as populaes primitivas (M. Mead em Samoa, R. Benedict no Novo Mxico, Linton em Madagascar), quer se esforcem em desafiar | eiras culturais mais desenvolvidas, como Linton em Plainville.

    1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 149

    Os problemas do grupo concernem, ao mesmo tempo, ao jogo de interao dos indivduos que esto em presena direta uns dos outros, e experincia - vivida por cada um dos membros do grupo - de sua situao prpria no interior do conjunto. Moreno focalizou mtodos de anlise do grupo, pelos quais se determinam valncias positivas ou negativas que unem e opem os indivduos em uma constelao caracterstica do grupo. Ele tentou, inclusive, estabelecer, sob o nome de sociodrama, uma teraputica de grupos, que permitiria, assim como na anlise individual, um esclarecimento e uma atualizao dos temas afetivos latentes, dos conflitos ou das ambivalncias cujas relaes manifestas so subentendidas, e que tornaria possvel, por essa via, uma readaptao mtua, e uma restruturao afetiva do grupo.28

    A anlise das opinies e das atitudes busca determinar os fenmenos coletivos que servem de contexto s condutas afetivas do indivduo, assim como s suas operaes intelectuais de percepo, de julgamento e de memria. Essas pesquisas so quantitativas antes de serem estruturais e se apoiam sempre na elaborao de dados estatsticos: mede-se, assim, a extenso de uma opinio atravs de investigaes feitas sobre um grupo representativo de uma populao em seu conjunto, ou ainda a fora de uma atitude em um grupo de indivduos, atravs do apego comparado que ele manifesta com relao a tal ou tal opinio. O carter coletivo dessas opinies e dessas atitudes permite extrair a noo de esteretipo, espcie de opinio generalizada e cristalizada que provoca, em funo de atitudes preestabelecidas, reaes sempre idnticas.29

    24. (N.A.) Sheldon (W.) em col. com Stevens (S.), The varieties of temperament. A psychology of constitutional differences, Nova Iorque, Harper, 1942. (Les varits du temprament. Une psychologie des diffrences constitutionnelles, trad. A. Ombredane e J.-J. Grumbach, Paris, PUF, 1951 (N.E.).)25. (NA.) Alexander (F.), Psychosomatic medicine, its principles and applications, Nova Iorque, Norton, 1950. (Lamdecine psychosomatique. Ses principes et ses applications, trad. S. Horinson e E. Stem, Paris, Payot, 1951 (N.E.).)26. (N.A.) Blondel (C.), Introduction la psychologie collective, Paris, A. Colin ns 102, 1927.27. (NA.) Kardiner (A.) com Linton (R.), Du Bois (C.) e West (J.), Psychologicalfrontiers of society, Nova Iorque, Columbia University Press, 1945.

    'ids:

    O fundamento das significaes objetivas

    Todas essas anlises de significaes objetivas situam-se entre os dois tempos de uma oposio: totalidade ou elemento; gnese inteligvel ou evoluo biolgica; performance atual ou

    28. (N.A.) Moreno (J. L.), Who shall survive? Foundation of sociometry, Nova Iorque, Beacon Press, 1934. (Fondements de la sociomtrie, trad. Lesage e

    j s B R Maucorps, Paris, PUF, 1954 (N.E.).)v^9. (N.A.) Cantril (H.), Gauging public opinion, Princeton University Press,

    * i947. Allport (G. W.) e Postman (L.), The psychology of rumor, Nova Iorque, Henry Holt, 1947. Stoetzel (J.), Thorie de Iopinion, Paris, PUF, 1943.

  • 150 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1957 - A Psicologia de 1850 a 1950 151

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    aptido permanente e implcita; manifestaes expressivas momentneas ou constncia de um carter latente; instituio social ou condutas individuais: temas contraditrios cuja distncia constitui a dimenso prpria da psicologia. Mas cabe psicologia ultrapass-los, ou deve ela se contentar de descrev-los como formas empricas, concretas, objetivas, de uma ambiguidade que a marca do destino do homem? Diante desses limites, deve a psicologia liquidar-se como cincia objetiva e desviar-se em uma reflexo filosfica que contesta sua validade? Ou ela deve buscar descobrir fundamentos que, se no suprimem a contradio, permitem ao menos dar conta dela? i . uJJaoj

    Os esforos mais recentes da psicologia vo nessa direo e, apesar da diversidade de sua inspirao, pode-se resumir sua significao histrica deste modo: a psicologia no mais busca provar sua possibilidade por sua existncia, mas fundament-la a partir de sua essncia, e ela no mais busca p i suprimir, nem mesmo atenuar suas contradies, mas, sim, justific-las.

    A ciberntica est longe, assim parece, de um semelhante projeto. Sua positividade parece afast-la de toda especulao, e se ela toma por objeto a conduta humana, para encontrar nela, a um s tempo, o fato neurolgico dos circuitos emfeecLback, os fenmenos fsicos da autorregulao e a teoria estatstica da informao.30 Mas, ao descobrir nas reaes humanas os processos mesmos dos servomecanismos, a ciberntica no retorna a um determinismo clssico: sob a estrutura formal das estimaes estatsticas, ela deixa espao s ambiguidades dos fenmenos psicolgicos e justifica, do seu ponto de vista, as formas sempre aproximadas e sempre equvocas do conhecimento que podemos ter.

    Em um outro sentido, a ultrapassagem da psicologia se faz em direo a uma antropologia que tende a uma anlise da existncia humana em suas estruturas fundamentais. Rea- preender o homem como existncia no mundo e caracterizar cada homem pelo estilo prprio a essa existncia , para L.

    30, (NA.) Wiener (N.), Cyberrxeti.es or control and communication in the animouand the machine, Paris, Hermann, 1948. Walter (W. G.}, The living brain,Nova Iorque, Norton, 1953. (Le cerveau vivant, Paris, Delachaux e Niestl,1954 (N.E.).)

    ginswanger, para H. Kunz, atingir, mais alm da psicologia, o fundamento que lhe d sua possibilidade e d conta de suas ambiguidades: a psicologia aparece como uma anlise emprica da maneira segundo a qual a existncia humana se oferece no mundo; mas ela deve assentar-se sobre a anlise existencial da maneira segundo a qual essa realidade humana se temporaliza, se espacializa e, finalmente, projeta um mundo: ento, as contradies da psicologia, ou a ambiguidade das significaes que ela descreve, tero encontrado sua razo de ser. sua necessidade e, ao mesmo tempo, sua contingncia, na liberdade fundamental de uma existncia que escapa, com todo o direito, causalidade psicolgica.31

    Porm, a interrogao fundamental permanece. Ns mos-] tramos, no incio, que a psicologia cientfica nasceu das contradies encontradas pelo homem em sua prtica, e que, por outro lado, o desenvolvimento dessa cincia consistiu em um lento abandono do positivismo que a alinhava, no come- o, com as cincias da natureza. Esse abandono e a anlise nova das significaes objetivas puderam resolver as contradies que o motivaram? No parece, uma vez que nas formas atuais da psicologia reencontramos essas contradies sob o + aspecto de uma ambiguidade que se descreve como coexten- siva existncia humana. Nem o esforo em direo deter- j minao de uma causalidade estatstica, nem a reflexo antropolgica sobre a existncia podem ultrapass-las realmente; quando muito, podem esquivar-se delas, quer dizer, encon- tr-las finalmente transpostas e travestidas.

    O futuro da psicologia no estaria, doravante, no levar a srio essas contradies, cuja experincia, justamente, fez nascer a psicologia? Por conseguinte, no haveria desde ento psicologia possvel seno pela anlise das condies de existncia do homem e pela retomada do que h de mais humano no homem, quer dizer, sua histria.

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    ---------------------^31. (N.A.) Binswanger (L.), Grundformen und Erkenntnis des menschlichen Daseins, Zurique, Max Niehans, 1942.