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International Congress of Critical Applied Linguistics Brasília, Brasil 19-21 Outubro 2015 26 FANFICTION: ESCRITA, COLABORAÇÃO E REESCRITA NO AMBIENTE DIGITAL Elizabeth Conceição de Almeida ALVES [email protected] Secretaria de Estado de Educação de Cuiabá-MT RESUMO Com o avanço da tecnologia, surgem variadas formas de ler, escrever, interagir, aprender, mediadas pelas mídias digitais que têm feito parte da vivência de jovens e adolescentes nos dias atuais. Esses usuários têm utilizado a internet para jogar, participar de comunidades virtuais dentre elas a fanfiction, compreendida como uma prática de letramento on-line e espontânea que nasce da interação dos fãs com várias fontes da indústria do entretenimento. Esse tipo de gênero não apresenta caráter comercial nem lucrativo, pois são escritos por fãs que se utilizam de personagens ficcionais já existentes. Os autores de fanfiction escrevem a partir de certa afinidade que desenvolveram com personagens conhecidas através de leituras de livros, filmes, seriados, bandas e são postadas em websites próprios onde abundam trabalhos produzidos por participantes dessa emergente prática social. Com o tempo, esse estilo tem se constituído uma realidade virtual de que os usuários contemporâneos, em sua maioria do sexo feminino, se socorrem para ler e divulgar histórias criadas por fãs sobre personagens, ficções ou qualquer outro produto cultural, pelos quais desenvolvem certo valor afetivo. A produção de fanfiction surgiu da necessidade cada vez mais intensa de uma geração que não se restringe apenas ao que lhe é ofertada, mas que procura participar de plataformas colaborativas, exercendo papéis de leitores, escritores, comentaristas. Nessa interação, por meio de suportes digitais, todos têm algo a contribuir escrevendo e reescrevendo histórias num processo de construção colaborativa de leitura/escrita possibilitando ampliar a noção de leitor e autor no ciberespaço. Dessa forma, assumindo uma postura ativa de agenciamento. Considerando esse cenário, este trabalho tem como objetivo descrever práticas de letramentos vivenciadas por jovens e adolescentes no gênero fanfiction. O percurso teóricometodológico é de base interpretativista. Os resultados podem sinalizar que o processo de escrita e reescrita no ambiente digital se constitui de forma dinâmica, colaborativa, permeada de elementos multimodais ampliando a noção de autor no ciberespaço. Palavras-chave: Letramentos, Fanfiction, Reescrita. 1. INTRODUÇÃO A LUA NO CINEMA A lua foi ao cinema, passava um filme engraçado, a história de uma estrela que não tinha namorado. Não tinha porque era apenas uma estrela bem pequena, dessas que, quando apagam, ninguém vai dizer, que pena! Era uma estrela sozinha, ninguém olhava pra ela, e toda a luz que ela tinha cabia numa janela. A lua ficou tão triste com aquela história de amor que até hoje a lua insiste: Amanheça, por favor!

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Brasília, Brasil – 19-21 Outubro 2015

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FANFICTION: ESCRITA, COLABORAÇÃO E REESCRITA NO AMBIENTE

DIGITAL

Elizabeth Conceição de Almeida ALVES

[email protected]

Secretaria de Estado de Educação de Cuiabá-MT

RESUMO

Com o avanço da tecnologia, surgem variadas formas de ler, escrever, interagir, aprender,

mediadas pelas mídias digitais que têm feito parte da vivência de jovens e adolescentes nos dias

atuais. Esses usuários têm utilizado a internet para jogar, participar de comunidades virtuais

dentre elas a fanfiction, compreendida como uma prática de letramento on-line e espontânea que

nasce da interação dos fãs com várias fontes da indústria do entretenimento. Esse tipo de gênero

não apresenta caráter comercial nem lucrativo, pois são escritos por fãs que se utilizam de

personagens ficcionais já existentes. Os autores de fanfiction escrevem a partir de certa

afinidade que desenvolveram com personagens conhecidas através de leituras de livros, filmes,

seriados, bandas e são postadas em websites próprios onde abundam trabalhos produzidos por

participantes dessa emergente prática social. Com o tempo, esse estilo tem se constituído uma

realidade virtual de que os usuários contemporâneos, em sua maioria do sexo feminino, se

socorrem para ler e divulgar histórias criadas por fãs sobre personagens, ficções ou qualquer

outro produto cultural, pelos quais desenvolvem certo valor afetivo. A produção de fanfiction

surgiu da necessidade cada vez mais intensa de uma geração que não se restringe apenas ao que

lhe é ofertada, mas que procura participar de plataformas colaborativas, exercendo papéis de

leitores, escritores, comentaristas. Nessa interação, por meio de suportes digitais, todos têm algo

a contribuir escrevendo e reescrevendo histórias num processo de construção colaborativa de

leitura/escrita possibilitando ampliar a noção de leitor e autor no ciberespaço. Dessa forma,

assumindo uma postura ativa de agenciamento. Considerando esse cenário, este trabalho tem

como objetivo descrever práticas de letramentos vivenciadas por jovens e adolescentes no

gênero fanfiction. O percurso teóricometodológico é de base interpretativista. Os resultados

podem sinalizar que o processo de escrita e reescrita no ambiente digital se constitui de forma

dinâmica, colaborativa, permeada de elementos multimodais ampliando a noção de autor no

ciberespaço.

Palavras-chave: Letramentos, Fanfiction, Reescrita.

1. INTRODUÇÃO

A LUA NO CINEMA

A lua foi ao cinema, passava um filme engraçado,

a história de uma estrela que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas uma estrela bem pequena,

dessas que, quando apagam, ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha, ninguém olhava pra ela,

e toda a luz que ela tinha cabia numa janela.

A lua ficou tão triste com aquela história de amor

que até hoje a lua insiste:

— Amanheça, por favor!

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(Paulo Leminski)1

A epígrafe de Paulo Leminski me remete ao comportamento dos alunos com os

quais convivi no início de minha carreira profissional. Assim como a estrela,

mostravam-se sempre passivos, apagados, e não havia interesse de minha parte em olhar

para as suas práticas letradas. No entanto, nos últimos anos, percebi que os alunos do

ensino fundamental (6º ao 9º anos) comportavam-se de forma diferente, se comparada à

do começo de minha carreira profissional. Comecei a sentir certa inquietação quando os

via em rodas ou em grupos com celulares, participando de redes sociais digitais,

interessados em questões que fugiam dos tópicos tratados na sala de aula. À medida que

a atenção pela vida virtual aumentava, mais desinteressados se revelavam nas aulas. Em

minha residência, também, passei a perceber esse interesse pelo ambiente digital.

Minhas filhas, com idades de 19, 16 e 13 anos, mergulhavam dia a dia no espaço

cibernético. Notei, porém, que elas escreviam, produziam textos, tornando esse lugar

relevante para sua vida.

Diante disso, senti-me impulsionada a entender como a aquisição da

modalidade escrita ocorria entre jovens adolescentes na internet.

Por onde começar? Foi na observação da vida digital pulsante das minhas

filhas que descobri a fanfiction,

Fanfiction é uma prática de letramento on-line. A fanfic, abreviação do termo

em inglês fanfiction, ou seja, "ficção criada por fãs", que também pode ser chamada de

fic, ocupa-se de contos ou romances escritos por terceiros. Os autores dessas fics são

chamados de fictores. Esse tipo de gênero não apresenta caráter comercial nem

lucrativo, pois é escrito por fãs que se utilizam de personagens ficcionais já existentes.

De acordo com Vargas (2005), no Brasil, essa prática se tornou mais visível e ganhou

impulso a partir de 2000, ano em que foi publicado o primeiro livro da Série Harry

Potter, de J. K. Rowling.

Os autores de fanfiction escrevem a partir de certa afinidade que

desenvolveram com personagens conhecidas através de leituras de livros, filmes,

seriados, bandas. Tais personagens despertam neles um sentimento que ultrapassa o

1Disponível em <http://pauloleminskipoemas.blogspot.com.br/2008/09/lua-no-cinema-paulo-

leminski.html>. Acesso em: 25 jul. 2013.

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contentamento em apenas ler, assistir, ouvir, levando-os a interagir por intermédio da

produção escrita, criando e recriando histórias fictícias, agindo como autores, ainda que

sem fins lucrativos.

Vargas (2005) assinala que esse estilo é obscuro para a maioria da comunidade

não virtual e desconhecido igualmente no meio educacional. Tais produções se

circunscrevem tão apenas ao universo do aluno, pois, na sala de aula, ele só pode

produzir algo que a professora solicitar, havendo aí, então, discrepância entre a agência

escola e o sujeito aluno.

É salutar ressaltar que, diante desse contexto, busquei investigar quatro

adolescentes que leem e escrevem fanfiction, procurando entender como as práticas

letradas na internet têm contribuído para a aprendizagem de jovens e adolescentes ao

longo de suas vivências. As participantes foram adolescentes que interagem nessa

emergente prática social e se aglutinam em ambientes virtuais, partilhando leituras,

escritas, opiniões, sem barreiras geográficas. Os dados foram coletados por meio de

entrevistas dentro de uma perspectiva interpretativista (ERICKSON, 1990).

Para melhor organização deste texto, afiguro-o em duas sessões. Na primeira,

exponho os embasamentos teóricos sobre letramentos. Na segunda parte, empenho-me

nas análises de diálogos que realçam as participações das adolescentes2 em práticas

sociais de letramento. Para percorrer esse caminho, recorrerei à metáfora da luz,

entendendo que o estilo figurativo pretenderá externar momentos distintos vividos por

mim, nos quais, simbolicamente, ora me sentia cercada de incerteza, como

pesquisadora, ora tomada de compreensão, diante da percepção dos dados gerados.

2. LETRAMENTOS: ABORDAGENS CONCEITUAIS A RELUZIR

Letramento não é pura e simplesmente um

conjunto de habilidades individuais; é o conjunto

de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que

os indivíduos se envolvem em seu contexto social!

(SOARES, 1998, p. 72).

A revolução tecnológica tem oportunizado um espaço diferente de interação,

2 Este trabalho é parte da minha dissertação de mestrado intitulada Fanfiction e práticas de

letramentos na internet (ALVES, 2014).

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criação, distribuição, acompanhado por suportes midiáticos que passam a oferecer

ambientes com diferentes maneiras não apenas de ler, como também de escrever. Diante

desse fascínio que as novas tecnologias digitais vêm exercendo sobre a vida das

pessoas, percebe-se que, nos últimos anos, estamos diante de novas formas de

aprendizagem, algumas evidenciadas pelo mundo digital, chamadas práticas sociais de

letramento.

Nesse contexto, indispensável é apontar alguns conceitos de letramentos.

Inicialmente, é essencial, nesse percurso teórico, entender a definição de letramento,

conforme vinca Takaki (2012). Para essa pesquisadora, o conceito de letramento se

reporta a um processo ininterrupto que caracteriza variadas habilidades e

conhecimentos; agrega práticas sociais que abarcam usos heterogêneos de leitura,

escrita e outros estilos de linguagens, entre elas a digital.

Já no âmbito de letramentos, Soares (2002) sugere que a pluralização da palavra

se dá pela necessidade de reconhecer que o surgimento de diversificados tipos de

tecnologia de escrita geram variados letramentos. Com a instalação das novas

tecnologias, há uma mobilização orbitando as práticas sociais, tornando-as mais

complexas. Ainda consoante a autora:

Na verdade, essa necessidade de pluralização da palavra letramento e,

portanto, do fenômeno que ele designa já vem sendo reconhecida

internacionalmente, para designar diferentes efeitos cognitivos,

culturais e sociais em função ora dos contextos de interação com a

palavra escrita, ora em função de variadas e múltiplas formas de

interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas também a

comunicação visual, auditiva, espacial. (SOARES, 2002, p. 155, 156).

Alinhados a esse pensamento, Lankshear e Knobel (2007) denominam esses

eventos como novos letramentos, pelo fato de vivermos em uma sociedade marcada

pela digitalidade. Para os autores, digitalidade sinaliza para a maneira técnica, ou seja, a

condição dada pelo computador de modificar “textos, sons, cores”. Portanto, é

necessário um novo pensamento, uma nova forma de agir diante das tecnologias

avançadas.

Daí a relevância de ressaltar a importância dos diversos letramentos, dirigindo-

nos especificamente para os multiletramentos que instauram novas práticas de ler e

escrever. Os jovens contemporâneos têm acesso a uma vasta gama de recursos digitais,

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que impulsiona sua participação em diferentes práticas, com a possibilidade de

transformar a tecnologia em algo significativo (BUZATO, 2010). Os usuários criam e

recriam textos, frequentam variados ambientes simultaneamente e se valem de

interações colaborativas, franqueando a circulação de suas criações na internet.

No entanto, vivemos em um país em que é recorrente ouvirmos que os jovens

não gostam de ler, principalmente as leituras tradicionais sugeridas nos currículos

escolares. Se bem assim, nos dias atuais, temos percebido uma alteração nessa

realidade, graças às comunidades virtuais que têm dedicado horas de lazer à leitura. Não

à leitura prescrita pela professora, que pouco tem que ver com seus interesses, desejos,

mas leituras atrativas, envolventes, que despertam a afetividade e a autoria. Desses

leitores e autores, que navegam na internet, que leem livros impressos, nascem histórias

ficcionais depois de muita dedicação de tempo e fluidez de pensamento, constituindo,

assim, as fanfictions. Os fãs se envolvem no processo de escrita e expressam afeição por

outros fãs que, por sua vez, dedicam-se à produção e sedimentam a participação em um

mesmo grupo de afinidade.

Na trilha do pensar de Jenkins (1992), os autores e leitores que produzem as

fanfictions podem ser, em sua maioria, mulheres com idade que vai da pré-adolescência

à idade adulta. Esses grupos são desconhecidos pela escola, que permanece apenas com

as atividades de sala de aula, circunscritas às quatro paredes, anulando, assim, a

ubiquidade de seus alunos. Tradicionalmente, a escola valoriza o aprendizado

presencial. Contudo, os alunos estão aprendendo em todos os lugares, qualquer que seja

a circunstância, independentemente do tempo real, por força da tecnologia digital

ininterrupta. Eles podem estar na sala de aula e em uma biblioteca virtual a um só

tempo, mas isso ainda parece não ser tão natural nas experiências escolares.

Nas palavras de Jesus (2010), faz se necessário um movimento escolar em

espaços isentos de barreiras territoriais, dirimindo, assim, o estilo tradicional

evidenciado pela presença do educador e do educando.

Diante dessas expressivas mudanças, vividas pela sociedade contemporânea,

adolescentes têm vivenciado um aumento exponencial da interação, em virtude da

interconectividade que permite a circulação ininterrupta nos espaços com fluxo de

informação e produção, por meio das mais variadas semioses.

Consoante Vargas (2005), é básico entender que os sujeitos que dispõem de

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meios, informações e disponibilizam tempo para partilhar em uma comunidade virtual

representam nova elite pró-ativa que permeia a sociedade contemporânea e que abarca

saberes que os diferenciam dos navegadores da Web 1.03, que utilizavam a rede para

checar informações.

Uma das características que une esses adolescentes, mediados pela expansão da

internet e da web 2.0, é a cultura de participação. Segundo Vargas (2005), essa cultura

“é um novo estilo de consumo, que emergiria precisamente do tipo de oferta

disponibilizada pela popularização de novas tecnologias e pela convergência de mídias!

(VARGAS, 2005, p. 51).

Cabe ressaltar que, o construto teórico de letramentos oportuniza a

compreensão das mudanças que têm ocorrido na sociedade contemporânea, abarcando

práticas sociais como a fanfiction ante os avanços da leitura e da produção escrita

vivenciados por adolescentes em comunidades virtuais.

Na seção seguinte, trago um recorte dos dados com sua respectiva análise.

Cabe ressaltar que os excertos que aparecerão no corpus da análise são fiéis ao original

e foram mantidos de acordo com a transcrição das falas das adolescentes.

3. FANFICTION E A CONSTRUÇÃO DA ESCRITA NA INTERNET

Para cultivarem suas almas, as pessoas

precisam sentir uma sensação de controle, significado,

e mesmo de especialização em face do risco e complexidade.

Elas querem e precisam se sentir como heróis

em suas próprias histórias de vida

e sentir que as suas histórias fazem sentido.

k2k1ttsElas precisam sentir que são importantes

e que têm importância nas histórias de outras pessoas.

Se o corpo se alimenta de comida,

a alma se alimenta de agência e significado.

3 Conforme Moita Lopes (2010), “O mundo da Web 1.0, pode ser entendido como aquele no

qual a tela do computador era um lugar de consumo ou a ser consumido pelo usuário”. Já na

Web 2.0, “opera-se sob uma outra lógica: a da participação, a da colaboração, a da inteligência

coletiva e a da possibilidade de intensificação das relações sociais nas wikis, espaços de

afinidades, fanfiction, etc.”

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(James Gee)4

Esta seção tem por finalidade apresentar a análise dos dados. Para isso, procedi

à leitura das transcrições das entrevistas, com vistas a identificar os temas gerados e, a

partir deles, chegar às categorias predominantes nas falas e vivências de adolescentes

participantes da pesquisa.

Essas categorias constituem também elementos que acredito serem centrais

para uma definição do letramento no ambiente digital, caracterizado principalmente pela

versatilidade, fluidez, colaboração e onde há o real exercício de práticas de leitura e

escrita.

Na sequência, passo a descrever e analisar duas categorias observadas nos

diálogos com as entrevistadas.

3.1 COLABORAÇÃO

Em um contexto de conexão, leitura, produção e interação ininterruptas, no

qual as informações se agregam em velocidade cibernética, o que se percebe na

categoria colaboração é o envolvimento que torna possível o diálogo e a autoria. Nesse

ambiente, as relações não são imparciais, uma vez que suscitam, nos participantes, a

autoestima e possibilitam o exercício de autoria.

De acordo com as respostas coletadas, os comentários são prioritários na

produção de fanfics, como evidenciados nos excertos a seguir:

Excerto 1

P: “Você nunca postou uma fanfic completa?”

A4: “Só one shot, só de um capítulo.”

P: “Você postar capítulo por capítulo tem um por quê”? Qual seria?”

A4: “Não terminou de escrever o próximo capítulo (risos).”

P: “Você acha que seria só isso?”

A4: “Na verdade, vou escrevendo a história conforme os comentários, então, não tem

como postar tudo.”

P: “Então os comentários servem para dar uma energia para o escritor”?

A4: “A história vai de acordo com eles (risos).” (Entrevista 8, em 6-11-2013)

4James Gee, Video Games are Good for Your Soul. Disponível em:

<http://newlearningonline.com/new-learning/chapter-1-new-learning/james-gee-video-games-

are-good-for-your-soul>. Acesso em: 16 jun. 2014.

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Excerto 2

P: “Os autores gostam que façam comentários?”

A2: “Sim. Dessa forma, estamos avaliando. Às vezes, elas são inseguras demais com

a escrita. Elas precisam de alguém para falar que está bom para continuar

escrevendo. Tem muitas garotas que abandonam as fanfics, por causa disso: porque

não têm ninguém para comentar não têm ninguém para falar: “Nossa, como essa

história é legal! É tão interessante! Escreve mais. Então elas acabam abandonando.”

(Entrevista 6, em 28-10-2013)

Nesses excertos, pude perceber que, no processo da produção de escrita na

fanfiction, quanto à elaboração do texto, há uma expectativa referente as intervenções

provenientes dos comentários de A4 – “A história vai de acordo com eles” – uma vez

que, nesse perfil de atividade, o processo colaborativo está intimamente concatenado à

constituição da escrita. No ato de escrever uma fanfic, parece haver uma conexão por

meio da interação e do trabalho associado ao grupo. Desse modo, as adolescentes

rompem com antigos paradigmas de autoria, desmistificando a ideia do autor como o

possuidor do que diz, já que, ao tomar a palavra, passa a falar a linguagem, e não o autor

(SANTAELLA, 2007).

Essas adolescentes, a partir das opiniões, promovem a linguagem, pois a

autoria se torna híbrida, isenta de padronização. Desse modo, o que sobressai é a

produção ganhando conotação no universo ficcional.

Adiciono a esta discussão inicial a fala da participante A4, em que expõe

explicitamente o valor contundente dos comentários no seu trajeto de criação: “Na

verdade, vou escrevendo a história conforme os comentários, então, não tem como

postar tudo”. No exemplo, há indício de que a autoria é construída com base em uma

relação colaborativa e não possessiva. Soma-se a esse exemplo a afirmação da A2, no

trecho abaixo:

Excerto 3

P: “Mas algumas escritoras fazem alterações na escrita da fanfic?”

A2: “Sim, tanto que é normal você entrar em uma fanfic e ver alguém falando: ‘ah,

essa parte aqui, eu que contribuí’, e também tem leitoras que pedem para fazer a

correção do português dizendo: ‘olha essa frase está legal, você podia colocar assim’,

e as autoras sempre agradecem; elas falam: ‘ nossa, obrigada, é sempre bom ter

alguém para colaborar’. As autoras agradecem pelas ideias.”

P: “Mas algumas autoras mudam tanto a gramática quanto o enredo?”

A2: “Sim. Geralmente as leitoras comentam e a escritora dialoga com as amigas

sobre os comentários no sentido de incluir na história.” (Entrevista 9, em 14-3- 2013)

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Nesse sentido, a escrita, como um exercício colaborativo e participativo,

converge para uma diferente função do autor, nas palavras de A2: “[...] tanto que é

normal você entrar em uma fanfic e ver alguém falando: ' ah, essa parte aqui, eu que

contribuí”. Essa visão parece corroborar o que afirmam Azzari e Custódio (2013),

atrelando a função do autor ao nascimento do leitor como um indivíduo que se envolve

com uma diversidade de leituras, acrescida de debates e criações, que podem viabilizar

sua atuação como protagonista: “[...] geralmente as leitoras comentam e a escritora

dialoga com as amigas sobre os comentários no sentido de incluir na história.”

Além disso, chamo a atenção para o fato de A2 deixar transparecer que

considera o comentário como um leque de possibilidades para que a leitora e

comentarista se alinhe à sua produção, havendo, então, a promoção do protagonismo, ao

afirmar: “A história vai de acordo com eles (risos)”.

Com base, ainda no excerto que aduzo da leitora-comentarista – “Dessa forma,

estamos avaliando. Às vezes, elas são inseguras demais com a escrita. Elas precisam de

alguém para falar que está bom para continuar escrevendo” – pode parecer que as

participantes da pesquisa tenham agregado suas práticas sociais, mediadas pelas

correntes eletrônicas, à escrita colaborativa, indicando, assim, que a escrita na fanfiction

exige a instauração de novas habilidades.

Observo que a entrevistada, relativamente à escrita colaborativa, tenciona

esclarecer que a habilidade de comentar é determinante na construção conjunta e

participativa de fanfics, podendo-se enxergar uma diferente paisagem no processo de

criação no mundo digital. Nessa dimensão, Lopes (2010) argumenta:

Os novos letramentos digitais, como práticas sociais [...] envolvem a

participação colaborativa de atores sociais localizados sócio-histórico-

culturalmente na construção conjunta de significados. (LOPES, 2010,

p. 398)

À luz dos diálogos analisados, parece ser possível considerar a construção

conjunta de significados, característica da sociedade contemporânea e fenômeno que

revela um movimento que parece desordenar a linearidade e a hierarquia, pois, no

espaço digital, autor e leitor interagem intensamente, como afirma A2 – “Nossa, como

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essa história é legal! É tão interessante! Escreve mais” – gerando textos em uma rede

de significados.

Nesse sentido, Chartier (2002, p. 25) ressalta que, no espaço digital, há a

escrita coletiva, em que o leitor pode intervir no conteúdo, como observamos no papel

da comentarista. Enfatiza esse autor que o texto eletrônico, território flexível,

expansivo, permite engajamento, não o isolamento, pois se alimenta das ideias e

opiniões, na perspectiva de melhorar seu desempenho na escrita.

Articulando a premissa de engajamento, e não de isolamento, com a dinâmica

ainda instaurada em muitos ambientes escolares, tal como aponta Tapscott (2010), em

que é premente a prática “faça sozinho”, a participante parece admitir que o paradigma

de aprendizado individual pode soar estranho para os sujeitos intimamente imersos no

território virtual, crescidos no ambiente de colaboração, criação e participação, levando

em consideração que: “Tem muitas garotas que abandonam as fanfics, por causa disso:

porque não têm ninguém para comentar, não tem ninguém para falar [...] Então, elas

acabam abandonando”. Diante dessa fala da Adolescente 2, figura ser de central

interesse dessa geração a cumplicidade com a escrita colaborativa. Nesse comentário, há

indícios de que o ambiente digital parece ser um local de apoio mútuo, e os usuários são

impulsionados a prosseguir diante das contribuições dos leitores.

Nesse norte, compreendo que as escolas contemporâneas necessitam de uma

nova postura, um novo ethos, diante de uma sociedade híbrida, em que as relações são

fluidas em todas as suas esferas. Na perspectiva de Sibilia (2012), os habitantes dos

universos escolares estão bem diferentes daqueles que a frequentaram em épocas

passadas, tendo esse espaço como o meio prevalecente de socialização. Já as novas

gerações se socorrem de novas maneiras de comunicar, colaborar, ávidas para contribuir

com suas experiências nas comunidades das quais participam.

3.2. PARTICIPAÇÃO MEDIADA PELOS SUPORTES DIGITAIS

Essa categoria estabelece novas e inúmeras formas de leitura emergentes nas

mídias contemporâneas. Inegavelmente, uma delas é a leitura na tela.

Soares (2002, p. 152) acredita que a tela, como ambiente de leitura e escrita,

não apenas proporciona diferentes maneiras de apropriar-se de informação, como

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também acesso a novos conhecimentos prevalecentes, associados a novas práticas de ler

e escrever. Esse conjunto de características suscita um novo letramento, considerado

pela autora “um novo estado ou condição para aqueles que exercem práticas de escrita e

de leitura na tela”.

Da mesma forma, diz Xavier (2005, p. 135) que o usuário precisa tornar-se

letrado, levando em conta a evolução nas interfaces de leitura e escrita. Isso “[...]

pressupõe assumir mudanças nos modos de ler e escrever os códigos e sinais verbais e

não verbais, como imagens e desenhos, se compararmos às formas de leitura e escrita

feitas no livro, até porque o suporte sobre o qual estão os textos digitais é a tela, também

digital”.

Essa constatação se verifica na fala das adolescentes entrevistadas, que

transitam nesse “artefato” de leitura.

Excerto 4

P: “E onde você lê as fanfics? Em casa, no computador, no celular, impressa.”

A3: “Principalmente no celular ou no tablet?”

P: “Mas você lê direto da internet ou você baixa?”

A3: “Direto da internet, nunca baixei”.

P: “Então, sempre direto do site?”

A3: “É”.

P: “Então nunca baixou nem imprimiu para fazer leitura?”

A3: “Não”. (Entrevista 7, em 28-10-2013)

Excerto 5

P: “Você lê e escreve fanfic no celular, no computador, em casa, na Universidade.

Qual é o seu ambiente de leitura e escrita?”

A4: “Em casa, no computador apenas (risos).”

P: “Você lê todas on-line ou você baixa para ler depois?”

A4: “On-line.”

P: “Só on-line?”

A4: “Só on-line.” (Entrevista 8, em 27-10-2013)

Excerto 6

P: “Quando você está lendo, você visita outros sites da internet ou só lê?”

A2: “Eu visito outros sites porque...”

P: “Sai da tela, vai para outra ou fica só na tela?”

A2: “Não, eu leio, aí eu converso no Twitter, eu mexo no Facebook ou vou assistir

algum filme”.

P: “Volta pra ler depois?”

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A2: “Hum hum.” (Entrevista 6, em 28-10-2013)

Nos excertos, 4, 5 e 6, as adolescentes parecem expressar que a tela do

computador se torna espaço de leitura e produção.

Especificamente ao retratarem suas experiências de leitura e escrita “no celular

ou no tablet, no computador”, as adolescentes parecem validar o que explica Lopes

(2010), ao relatar que esse ambiente – a tela –, torna-se um ambiente de produção, e não

apenas espaço onde se encontram informações. O autor argumenta, ainda, que esses

suportes se tornam espaços de variados encontros com outros sujeitos que

desempenham diferentes papéis sociais.

No que se refere aos letramentos, Lankshear e Knobel (2006) pontuam que

essa é uma abordagem contemporânea que transcende a leitura e a escrita tradicionais.

Trata-se de um contexto com uma nova forma de ação, em consonância com as novas

tecnologias, em que a leitura se concretiza, conforme A4, “Principalmente no celular ou

no tablet”.

Do mesmo modo, Chartier (2009, p. 137) sugere que, para certas demandas, a

leitura no papel já não condiz com algumas realidades: “A composição na tela, a

transmissão ao leitor, a recepção, a leitura e o armazenamento na memória informática

são efetuados sem que em nenhum momento haja inscrição em papel”. Mediante essa

realidade, é natural que as entrevistadas leiam “Só on-line”, pois cresceram em meio

aos novos recursos midiáticos, sendo esses recursos utilizados para uma condição

diferente de leitura e produção.

Nessa mesma linha, Vargas (2005) postula que, embora as antigas gerações

considerem a leitura na tela “desmotivante”, as adolescentes leitoras, escritoras e

comentaristas de fanfiction demonstram ter o hábito de ler, na tela, histórias fictícias,

pelas quais demonstram admiração, conforme aclarado nos diálogos da Adolescente 4,

no excerto 5.

Esses leitores de tela refletem um pensamento, já disseminado por Chartier

(2009, p. 13), de que a leitura na tela causa uma quebra sequencial do texto, pois as

fronteiras deixam de ser tão visíveis assim como no livro que termina seu fluxo dentro

de sua encadernação ou de sua capa. Ainda na mesma esfera eletrônica, esse leitor pode

ter a possibilidade de embaralhar e entrecruzar outros ambientes, como confirma a

Adolescente 2: “Eu leio aí eu converso no Twitter, eu mexo no Facebook ou vou assistir

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algum filme”. Todas essas escolhas parecem querer reforçar a dinâmica instaurada pelos

novos letramentos, que indicam marcas de colaboração, distribuição, fluidez,

hibridismo, agência e autoria.

Considero interessante salientar que essas adolescentes, de modo diferente

daquelas da geração com a mente tipográfica centrada na mídia impressa – e que ainda

está arraigada no formato de leitura linear, “legítima” – manuseiam diferentes

ferramentas: “Twitter [...] Facebook [...] assistir algum filme”. Em reforço, circulam e

marcam presença em variados eventos de multiletramentos, intensificando

vertiginosamente o acesso à tecnologia digital, na qual os textos irrompem da tela para

uma área que resplandece (CHARTIER, 2002).

Em virtude das novas configurações mediadas pelas atuais tecnologias, que

reformulam as ações dos sujeitos que delas participam, podemos salientar a presença de

uma geração dispersa e distribuída que vivencia uma diversidade de letramentos,

tornando possível o leitor reinventar modos de ler e escrever, como afirma A2 no

excerto 6. Suponho ser importante compreendermos que, ao lerem na tela, os

participantes, no âmbito da internet, sinalizam uma mobilidade isenta de limites, que

propicia relações sociais com pessoas com as quais se integram na sociedade

contemporânea.

4. REFLEXÕES FINAIS

Sem ler, o homem

jamais saberia a extensão do prazer.

Não experimentaria nunca

o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer.

(Guiomar de Grammont)5

Este estudo advém de certas indagações na qualidade de docente e de mãe, a

propósito da participação de adolescentes em eventos de letramento mediados pelas

tecnologias digitais no contexto contemporâneo.

Ao acompanhar o percurso das adolescentes, trilhando o caminho da escrita em

espaços onde a luz se faz presente, pois escrevem, leem e comentam na tela do

5 GRAMMONT, G. Ler devia ser proibido. <Disponível em: http://www.leialivro.com.br/ler-

devia-ser-proibido-guiomar-grammont/#axzz34oMKOIXL>. Acesso em: 16 jun. 2014

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computador, pude observar alguns indícios da constituição da escrita.

O primeiro se refere ao recurso colaborativo e participativo utilizado pelas

participantes, com a finalidade de criar histórias ficcionais em ambiente virtual. Parece-

me que esse exercício revela um engajamento com relação à escrita, como apontam

diversas pesquisas (AZZARI; CUSTÓDIO, 2013; PINHEIRO, 2013) que retratam a

colaboração como um processo compartilhado, ativo, conjunto e de apoio mútuo.

Outra característica condizente com as participantes da pesquisa é a forma

como interagem, leem, escrevem e comentam, sendo a tela, do computador, do tablet,

do celular ou do iPhone a principal mediadora do gênero fanfiction. Essa prática é

abundante entre os adolescentes que navegam diuturnamente e que têm a tela como uma

das ferramentas com real significação no desenrolar da escrita no meio digital.

Acredito que, através desta investigação, tenha aprendido, mediada pela

pesquisa interpretativista, a ver as adolescentes com um olhar mais analítico, podendo

observá-las em suas práticas sociais e entender que elas poderiam me ensinar a ponderar

minha prática. Isso sem desmerecer a relevância do contexto histórico em que elas

vivem, no qual cada detalhe observado teria relevância na busca de superação das

minhas limitações, como professora da rede pública de ensino, interposta com uma nova

cultura contemporânea. Tenho, então, novos olhares sobre o ambiente digital e não

negligencio mais as tecnologias.

Ainda, no papel de mãe, passei a observar o cotidiano de minhas filhas e de

suas amigas, podendo entrevistá-las e ter a oportunidade de me colocar bem próxima

delas. Percebi quão pouco as conhecia e compreendia. Parece-me que, antes, as via

apenas como “viciadas” na tela iluminada, sendo a rotina de estarem constantemente

conectadas, lendo, escrevendo e transitando na web 2.0 algo invisível, destituído de

significado para mim. No entanto, pelo fato de me aproximar da pesquisa qualitativa,

que tem como relevância os estudos das relações sociais (FLICK, 2009), pude constatar

que as adolescentes participavam de um evento de letramento pelo qual interagiam com

inúmeras pessoas e que investiam o tempo de lazer em leituras on-line, escreviam

colaborativamente histórias ficcionais e construíam amizades com fãs navegadores de

diferentes partes do mundo.

Quanto à prática pedagógica, acredito ser preciso revisitar minha própria

prática, ingressar, por meio dos letramentos que os alunos já possuem, não os

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menosprezando ou tecendo-lhes críticas, em ações que validem, ampliem e

potencializem sua interação, participação, criação, permitindo que agenciem, sob a valia

dos novos letramentos. Tais percepções encenam expectativa positiva, pontos de luz,

que podem ser refletidos nas ações da professora.

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