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Eurípides Medéia Transubstanciação de Millôr Fernandes ct vtLrzAÇÃo tìRAStLtÌtRA - Rio de Janeiro 2004

Eurípides - Medéia

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Page 1: Eurípides - Medéia

Eurípides

MedéiaTransubstanciação deMillôr Fernandes

ct vtLrzAÇÃo tìRAStLtÌtRA

-Rio de Janeiro2004

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lii

-lôR TERNANDES

alma, espírito e agora também o corPo. Bin Laden, Bush?

O nosso tempo. Medéia, a meu ver' nos coloca nos dias

de hoje. O crime da esquina, os grandes crimes da hu-

manidade, e o crime nenhum. Apenas a resposta a uma

constante e perpétua humilhação aos mais humildes -os "bárbaros".

Eurípides nos entregou essa corda bamba, esse terreno

preciso e nebuloso, e Millôr nos entregou o caminho.

Neste momento - neste século -, €ú que as palavras

perderam sua importância, em que os sentimentos fo-

ram banalizados e fragmentados, penso que essa reto-

mada da essência - tanto no conteúdo como no sentido

da forma (palavras poucas e objetivas) - pode tÍazer

ao teatro algo que ele perdeu.

O valor de cada palavra. Nada é dito que não seja es-

sencial. Como se o texto voltasse a ter valor, ele não é o

representante de pensamentos aleatórios, mas a represen-

tação do que é absolutamente necessário. Esse para mim é

o trabalho do Millôr sob a Medéia de Eurípides. Agrade-

ço a honra de poder ter trabalhado diante de sua batuta.

maio de 2004

Bia Lessa*

*Bia Lessa é diretora do espetáculo Medéia, em cârtâz no Rio de Janeiroem abril de2004.

Personagens(Por ordem da entrada em cena)

AMA

TUTOR

Coro das mulheres de Corinto

MEDÉIA, neta do Sol, filha de Aietes, rei da Cólquida

CREONTE, rei de Corinto

JASÃO, comandante dos Argonautas.

Filho de Esone, rei de Iolco.

EGEU, rei de Atenas

MENSAGEIRO

Filhos de Jasão e Medéia(A cena é em Corinto, em frente à mansiÍo de

Medéia, perto do palácio de Creonte.)

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lBlï

l,

AMA

Ah, que os céus jamais tivessem permitido à nave Argo voar

sobre as neblinas cinzentas que cobrem o mar azul das

rochas Cienaias, essas montanhas de pedras movediças que

esmagam os barcos temerários. Que nunca os bosques de

pinheiros do Pélion tivessem sido derrubados e transfor-

mados em poderosos remos nas máos dos nobres heróis

que foram se apossar do Velocino de Ouro para Pélias.

Pois aí, Medéia, minha senhora, também não teria

navegado pâra as torres de Iolco, com sua alma incen-

diada por amor a Jasão, nem, dominada por essa pai-

xão, teria convencido as filhas de Pélias a matarem o

pai, enquanto ela fugia com seus próprios filhos, vindoviver aqui em Corinto, com eles e o marido, Jasão.

Aqui, embora estrangeira e fugitiva, encontrou sim-

patiae proteção de todos os coríntios, pois vivia em per-

feita harmonia comJasão, os dois formando uma pessoa

só, ela e o marido. Pois o escudo para a felicidade con-jugal é a mulher náo discordar jamais de seu esposo. Mas

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MItLÔR FERNANDES

agora o mais profundo amor se transformou no mais

rasgado ódio. Jasáo traiu seus próprios filhos, traiu mi-

nha senhora, casou com a filha de Creonte, rei desta ter-

ra, tem o poder, dorme em leito real.

Medéia, ultraiada, desgraçada, invoca os juramen-

tos que Jasão sacramentou com a mão direita' e as su-

premas promessas de fidelidade feitas por ele, quando,

usando seus poderes de feitiçaria, elao apoiou em tudo

e contra todos para alcançar o Velocino, aiudando-o até

na luta contra os gigantescos touros de patas de bronze

e bocas de fogo. E agon ela brada aos céus para que

sejam testemunhas do que Jasão lhe deu em paga.

Aqui jaz minha senhora, jejuando, sem tocar alimen-

to, entregue à dor, se desfazendo em lágrimas o tempo

todo, desde que soube da traigo do esposor l'amais erguen-

do o olhar, o rosto rente ao chão. Seus ouvidos são roche-

dos em meio às ondas - surdos à voz de todos os amigos.

Apenas de vezem quando, quase imperceptivelmente, ela

ergue o pescoço alvinitente, lamenta por si mesma, pelo

pai, pela pátria que traiu, por tudo que abandonou Parajuntar-se ao homem que agora assim a menospreza.

Ela, pobre senhora, aprendeu, na triste experiência, o

irreparável que é abandonar a terra pátria. Agora odeia os

filhos, jánão sente alegria em contemplá-los. Tenho medo

de que cometa algum terrível desatino. Seu gênio é terrível

- não suportará essa ofensa por múto tempo. Eu a conhe-

MEDÉIA

ço demais, e me aPavoro com a idéia de que entre silencio-

samente em seu quano conjugal e, afiandoumaadag4atra-

vcsse o próprio cora$o. Ou que vâmatat orei e o próprio

csposo, transformando em ttagédiaa desgraça atual. Seu

ódio é assustador. Náo há ninguém gue, incorrendo em

seu ódio, tenha tempo de cantar um cântico de vitória.

Mas, ó!, aí estão seus filhos voltando do recreio.

Nem percebem as desventuras da máe. A alma infantil

náo reconhece o sofrimento adulto.

(Entra o Tutor corn os filhos de Medéia)

TUTOR

Por que estás aí, a mais antiga Ama de minha senhora,

parada nessa porta, lamentando apenas Para ti mesma' em

altos brados, fatos tão lamentáveis? Como te permite

Medéia que fiques aqui sozinha, e que a deixes lá, sozinha?

AMA

Tïr, o mais velho Tutor dos filhos de Jasão, sabes bem

que as desgraças dos senhores alcançam logo seus es-

cravos mais fiéis, penetram seus corações. A minha an-

gústia ê tanta, que me senti dominada pela ânsia de vir

aqui e proclamar ao céu e à terra os duros golpes que o

destino descarregou sobre minha senhora.

Í110

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Ill

MILtÔR FERNANDES

TUTOR

Mas a desditosa senhora não vai nunca interromperesses lamentos?

AMA

Eu gostaria de ser como tu és. Nem percebes que os in-fortúnios estão mal começando.

TUTOR

Que desvairada!, se é que posso me referir assim a mi-nha senhora. Desvairada nesse pranto, que deveria pre-servar para novas desgraças.

AMA

O que queres revelar, fingindo assim que escondesì Con-ta, velho!

TUTOR

Náo mais tenho a dizer. E me arrependo do pouco quejá disse.

AMA

Por tuas barbas, não ocultes nada desta antiga compa-nheira-escrava. De tudo que ouvir, guardarei cada pa-

lavra em meu silêncio.

MEDÊIA

TUTOR

Ali, junto à sagrada fonte de Pirene, onde os mais velhos

anciáos desta cidade jogam dados para iludir a morte, me

aproximei fingindo náo ouvir nada, e ouvi mais do que

devia. Creonte, rei desta terra, pretende expulsar de

Corinto Medéia e seus meninos. Se o que dizem é verda-

de, eu náo sei, vamos rogar aos deuses que não seja.

AMA

E Jasão, Jasão!, permitirá que façam isso com seus fi-lhos, só porque está em contenda com Medéia?

TUTOR

Velhos laços se rompem quando se fazem novos laços.

Jasáo já não ama esta família.

AMA

Estamos arruinados, quando novas desgraças se juntam

às anteriores antes que o tempo absorva a dor antiga.

TUTOR

Mantém tua calma e cala tua voz, nem uma palavra

daqui deve ser repetida. Ainda não é hora da senhora

saber o que sabemos.

13

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MITLôR FERNANDES

AMA

Ouvis, crianças, como esse pai vos trata? Quais são seus

sentimentos? Que a perdiçáo o alcance! Eu quero que

ele morra! Não, não, ainda é meu senhor' Mas, por am-

bi$o, traiu os que lhe eram mais caros e mais próximos'

TUTOR

E quem, entre os mortais, náo age assim? Só agora

aprendes que todo ser humano ama primeiro a si mes-

mo e depois - quando pode - ao seu vizinho? Ou

porque tem o egoísmo nas entranhas ou porque o im-

pulsiona uma cobiça. Este deixou de amar aos que ama-

va, envolvido por nova e diabólica paixão'

AMA

Vamos, crianças, para dentro. Está tudo bem' E tu,

procura mantê-las bem longe, não deixa que se aproxi-

mem da mãe e aumentem sua afliçáo' Pois já notei que

a senhora olha pra elas com olhares ferozes, como se

tencionasse alguma ação funesta' Ah, bem sei que sua

fúria só será aplacada quando encontrar alguma vítima'

ouve o que digo. Que pelo menos recaia sobre inimi-

gos, náo sobre os amigos.

ueoÉte

MEDÉtA(Dentro da casa)

Ai de mim, desgraçada, miserável com mil chagas e pe-

rrrs. Ai, de mim! Quem me dera morrer!

AMA

Vcjam aí, ó crianças queridas, como o coração de vossa

,rrá. .rtá perrurbado. Os dedos do ódio sufocam sua alma'

l'rrra dentro de casa, iá! Longe de suavista!Não se aproxi-

rrrcm dela, fujum do seugênio selvagem, danafrxezafetoz

com que foi dotada. Para dentro, mais depressa' corram!

É .luro que sua fúria vai crescer enquanto não satis-

fcita. Esses gritos são apenas os arautos' trovões que

Irnunciam uma reuniáo de nuvens negras de onde logo

ceirão os raios, não importa onde ou sobre quem' Ela é

cf,pazde tudo, essa alma orgulhosa e implacável' movi-

tla por tanta angústia e desespero'

(Tutor e uianças saem)

MEDÉIA(Fora de cena)

Ai de mim!, desgraçada, não tenho lamentos parataÍfta

agonia! (Vendo os filhos que entram) Vocês, filhos maldi-

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llt;ul*

-LÔR TERNANDES

tos de uma mãe odiosa, deveriam morrer junto com seu

maldito pai. Que o extermínio alcance essa família toda!

AMA

Ai de mim, ai de mim, também tão miserável! O que teus

filhos têm a ver com a culpa do pai? Por que os odeias?

Crianças, não quero vê-las sofrer, temo que o desespero

da máe lance sobre vocês alguma injúria grave'

Terrível é a vontade e a decisão dos príncipes' Como

sempre mandam, raramente têm que obedecer, é impos-

sível fazê-los recuar do que decidem. E melhor, portan-

to, aprendermos a viver como todos os outros' Que meu

destino seja atingir a velhice longe de qualquer pompa'

em lugar bem seguro. A mediocridade, como apalavra

jâdiz,é o melhor que os homens devem pretender' Mo-

deraçáo, modéstia, o justo meio. O esplendor, o exces-

so, náo oferece paz ao ser mortal. Logo os deuses se

irritam com os orgulhosos, e arruínam toda uma família'

(O Coro de mulheres entrd. As linhas seguintes,

entre Am4 Coro e Medéia, são cantadas)

CORO

Ouvi a voz, essa voz gritante

Da mísera princesa estrangeira

Voz que não se cala.

MEDÉIA

Fala, escrava velha,

Pois ao Passar Pela casa

Que tem Portas duPlas

Ouvi o pranto vindo lá de dentro

E, mulher, meu coração ficou menor

Pelas tristezas desta casa que amo'

AMA

Há muito tempo a casa náo existe mais'

Não existe mais nada.

Uma noiva real prendeu Jasáo em seu leito'

Medéia, minha senhora,

Agora consome a vida em sua alcova,

E nenhuma palavra do melhor amigo

Consegue aliviar seu coração.

MEDÉlA(De dentro)

Ai! Ai! Que as chamas celestes arrebentem minha cabeça,

Abram-na em duas!

Que vantagem eu tenho de viver ainda?

Ai! Pobre de mim! Só espero a morte chegar,

Me libertar, dar um fim a esta existência desprezível'

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lt

|lI',

MILTÔR FERNANDES

coRo

Escutas, ô Zeus, que és terra e que és luz,

O gemer plangente

Dessa mulher aflita?

Louca, que deseio insaciável

te faz guardar esse leito de amor?

Por que invocas a morte?

A morte chega sempre, náo é preciso invocá-la.

E se teu amante prefere um amor novo

Não te tornes, por isso, desgraçada.

Zeus te defenderá,

Na hora de decidir entre o que um fez

E o que o outro suportou.Não gastes mais lágrimas e gritosDo que um marido vale.

MEDÉTA

(De dentro)

Ó grande Zeus e sua amada Têmis,

Deusa das leis eternas,

Da justiça divina,Olhem bem o que sofroPor me ter ligado a esse malditoPor tantos e táo profundos juramentos.

Ah, se eu pudesse um dia,

ueoÉra

Ver a ele e a eladestruídos

Junto com seu palácio,

Reduzidos alama,

Eles que ousaram ofender-me

E humilhar-me.

Ó -eu pai, ó minha Pâtria,

Que para minha vergonha abandonei,

Depois de assassinar meu próprio irmão!

AMA

Ouçam bem essa voz,

Com inaudita força apela a Têmis,

Guardiã da justiça

E aZeus, que vela o cumprimento das promessas.

Invoca apenas esses deuses

Pois náo serão forças menores

Que terão o poder de aPlacar

Sua cólera sobre-humana.

coRo

Como poderemos nós trazê-la até aqui

Diante de nossos olhos

Ao alcance de nossa voz

Para ouvir nossos conselhos

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MILtÔR FERNANDES

E abrandar o furor

Que lhe incendeia a alma?

Jamais fui impedida

De prestar solicitude aos meus amigos.

Vai lá e obriga-a a vir aqui foraConvence-a de que os que estão aqui são seus amigos.

Depressa, antes que ela cometa algum desatino

Contra os que estáo lá dentro,Pois a dor que a consome aumenta a cada hora.

AMA

Vou correndo; mas tenho medo

De não poder convencer minha senhora.

Vou só para servir a vossas ordens.

Pois ela olha os servos

E o primeiro que chega perto dela

Com o olhar furiosoDa leoa que acabou de ter filhos

Não erraríamos se chamássemos

Os homens que nos precederam

De ilógicos ou estúpidos

Pois inventaram cantos para as festas,

Banquetes e ocasiões de alegria,

Aumentando o prazer dos já felizes.

Mas ninguém jamais criou músicas e cantos

MEDÉtA

l);rre ameoizar momentos de ódio e afliçãol)c onde surgem mortes e desastres()rrc destroem lares e reinados.

N:ro seria mais sábio curar as feridas e agonias humanas(,om a música que esbanjam nas festas e banquetes?( )s banquetes ricos, os festins faustosos

l;i vêm com seu contentamento.

coRo

( )uvi um grito amargo de lamento! Amargo berro de furor

Que ela lança sobre o pérfido esposo, profanadortlo leito conjugal.

Para vingá-la de injúrias e humilhações, ela conclama

l'ômis,

Companheira de Zeus, fiadora das juras e promes-sus de Jasão,

Que com isso trouxe Medéia atê a Grécia, pelo es-

rrcito asiático, enfrentando o mar negro e as ondas gi-

lliìntescas, o horizonte infinito,Para viver em terra estranha.

MEDÉtA(Entra, ainda em prantos, seguida pela Ama)

Mulheres de Corinto, saí de minha casa por medo de que

sc revoltem comigo. Pois sei bem que muitas pessoas são

soberbas, às vezes com o próximo, algumas até quando

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MILLÔR FERNANDES

estáo sozinhas. Algumas, como eu, podem adquirir fama

de indiferentes ou de cruéis apenas pela maneira com que

se comportam diante de seus concidadãos. Perdem a ra-

zãotanto os que se exibem mais do que o devido quanto

os que se recolhem à sua própria vida e intimidade.Pois não existe discernimento na visão dos mortais.

Antes de conhecerem o que vai no coração do outro, re-

pelem logo, só pela aparência, aquele que nunca lhes fez

nada de mal. Por isso, o estrangeiro, mais do que todos,

deve integrar-se aos costumes da terra. Mas também não

aprovo o cidadão que, por soberba nativa, ofende os que

considera estranhos, só porque vêm de fora. A desgraça

que caiu sobre mim fez minha vida em pedaços. Amigas,

arruinada que estou, perdida toda a minha alegria, só

desejo morrer, ele era tudo para mim, ele era o mundo.Agora é apenas o mais vil dos homens, o meu esposo.

De todas as coisas que têm vida e razáo, somos nós,

as mulheres, as mais desventuradas. Primeiro temos que

comprar, com alto dote, um marido, que assim se tornasenhor, e mais, tirano de nosso corpo. Mas, ainda pior;temos que adivinhar como nos comportamos (pois não

nos ensinaram nada em nossa casa) com o companheiroque nos coube no leito. Se conseguimos cumprir nos-

sos deveres com sensibilidade e tato, e o esposo sente o

gozo e náo o jugo, podemos ter uma vida digna de in-veja. Se nâo,é melhor morrer.

22 23

ueoÉre

E ficamos esperando que o primeiro mal náo traga

rrrrrl pior. Pois, se erramos na escolha do marido, não

podemos jamais repudiá-lo. A separação conjugal é uma

rlcsonra para as mulheres.

O homem, quando aborrece do que vive em casa,

sc distancia e livra a alma desse peso e tédio na compa-rrhia de algum amigo ou companheiro de sua mesma

idade. Nós, mulheres, temos que manter a vida presa a

um único ser o tempo todo.Argumentam porém que vivemos seguras em nosso

lar, enquanto eles enfrentam as guerras. Lamentável ar-

gumento: é preferível ir três vezes à guerra do que pa-

rir uma só vez.

Mas basta; esta linguagem serve a mim, amiga, não

serve a ti. Tens aqui tua cidade, a casa de teus pais, aalegria de viver, a convivência de amigos. Eu, destituídae sem pâtría, ultrajada por um marido que me trouxepara câ como presa caçada em terra bârbara, não tenhomáe, nem irmão, parente algum em que me ampare ouconsole, em quem me abrigue do meu infortúnio.

Às mulheres de Corinto, aqui presentes, peço ape-

nas - se eu encontrar o caminho de fazer Jasáo pagar

pelo que fez, e se puder me vingar também desse rei que

lhe entregou a filha, e dessa filha, que agoÍa será a es-

posa de Jasão -, repito, peço apenas silêncio. Que se

calem.

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i.

MtLtÔR FERNANDES

A mulher, todos sabem, é medrosa demais, fraca

diante da força, covarde diante do brilho de um sim-ples punhal. Porém, lesada em seu leito, ferida em sua

honra, não existe coração mais feroz e insaciável.

CORIFÉh

Silêncio. Isso te prometemos, Medéia. Pois a tua vin-gança é mais que justa. Não surpreende o pranto que

derramas por teu sofrimento. Mas espera, aí estâ

Creonte, rei deste país, na certa para anunciar suas no-

vas decisões.

CREONTE(Entra, com séquito)

É a ti mesma, Medéia, que eu me dirijo; tira deste país

essa cara funérea, cheia de pensamentos sinistros con-

tra teu marido, e leva contigo para o exílio os teus dois

filhos. E sem demora! Pois sou autor e juiz desta sentença

e não voltarei a meu palácio antes de te expulsar para

além das fronteiras desta terra.

MEDÉTA

Pobre Medéia! Agora cai sobre minha cabeça a destrui-

ção final, infeliz mais que infeliz. Os inimigos avançam

MEDÉIA

.,.rlrre mim com as velas plenas, e náo tenho um só por-

ro onde abrigar minha desgraça. Mas, já que me agri-

tlcs assim, eu te pergunto, Creonte: por que razão me

,'xpulsas desta terra?

CREONTE

lL'rrho medo de ti. É inútil tentar esconder num véu de

l)irlavras meu temor de que faças algum mal irreparável

.r rninha filha. Muitas razões contribuem Para este meu

r cccio. Tu és feiticeira desde que nasceste, hábil e capaz

,lc rnil malefícios que pretendes usar, por te sentires rou-

l';rrla do teu leito e preterida por teu homem.

Ouvi dizer, assim me dizem, que fazes ameaças ao

1,rri da noiva, além de fazeres ao esPoso e à esposa. Por-

r.urto, para que não ocorra nada de mais grave, tomo

rrrinhas decisões. Prefiro incorrer logo no teu ódio do

,1rrc chorar depois de arrependimento amargo por agir

,ìl',ora com ftaqueza.

MEDÉIA

Ai!, não é a primeiravez' ó Creonte, mas muitas vezes

;:i, que minha reputação prejudica minha vida. Apren-

tli: qualquer pai com alguma sabedoria deve evitar que

,cLrs filhos se instruam em demasia, ficando acima de

scus concidadãos. Vão adquirir a fama de insolentes, e

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LLÔR FERNANDES

serão alvo de invejas e agressões. Pois, se mostrarem co-

nhecimentos novos aos tolos, serão considerados tolos

pelos tolos. Em resumo; se na cidade tua fama de sábio

ultrapassar a dos que se julgam donos da sabedoria, se-

rás um estorvo e um desagrado.

Eu multiplico em mim essa má-sorte; para uns, eu

sei demais e por isso me odeiam, outros não me enten-

dem e me acham fechada, outros que sou exatamente o

oposto. Há os que me acham incapaz de ser satisfeita e

atê náo muito experta. Ti:, por exemplo, me temes por-

que pensas que tenho o poder de perturbar tua paz. Náo

tenhas esse medo, Creonte, o meu poder náo chega para

que eu possa ameaçar um rei. E por que o faria? Em

que tu me ofendeste? Deste tua filha como esposa a

quem a pretendia. Tu, eu penso, agiste sabiamente.

Odeioéomeumarido.Não tenho inveja de ti nem de tua prosperidade; casa

tua filha e sê feliz. Mas deixa que eu viva nesta terra,

pois, embora tenha sido injustiçada, permanecerei ca-

lada, obedecendo aos meus superiores.

CREONTE

Tüas palavras são humildes, agradáveis de ouvir, mas

atrás delas deves estar premeditando alguma coisa ne-

f.anda. Acredito em ti cada vez menos. É mais fácil nos

uroÉrn

tlcfcndermos de uma mulher ameaçadora ou de umIromem também assim do que de alguém pérfido, que

sc cala e finge. Vai, desaparece daqui! Não me digas mais

rrrna palavra. Está decretado. Não adianta artimanha

l)rìra permanecer aqui, pois sei que me odeias.

MEDÉTA

(Suplicante, abraçada aos joelhos do rei)

Não, a teus joelhos e pela felicidade de tua filha, a noi-v:ì, eu te suplico, deixa-me ficar.

CREONTE

I'rrlavras insinceras. Não vão me convencer.

MEDÉlA

Vris me expulsar sem a menor atenção às minhas súplicas?

CREONTE

Nho te expulsar é pôr em perigo a minha casa.

MEDÉlA

('), minha pâtriartua lembrança é tudo que possuo agora.

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MtLLôR IERNANDES

CREONTE

Sei o que é isso. Tâmbém para mim, tirando meus fi-lhos, só amo a minha cidade.

MEDÉIA

Porque para os homens o amor é um flagelo.

CREONTE

Nosso amor de homens depende de suas circunstâncias.

MEDÉTA

(Maos para o céu)

O Zeus, não deixes escapar impune o responsável pormeu infortúnio.

CREONTE

Parte, mulher tola, não aprofundes a minha aflição.

MEDÉTA

Que é tua afliçáo diante das minhas?

CREONTE(Faz sinal aos guardas)

Resistes? Meus homens te arrancarão daqui à força.

MEDÊIA

MEDÉIA

lsso não, Creonte, isso náo! Eu te peço apenas.

CREONTE(Soberbo)

l)rrrece-me, senhora, que deseja conduzir-me a extremos.

MEDÉIA

lru irei para o exílio. Não é sobre isso que te falo agora.

CREONTE

Mas resistes ainda. Por que não partes logo?

MEDÉIA(Suplicante. Insinuante)

Concede que eu demore apenas mais um dia. Deixa-me

aqui só hoje, para que planeje meu exílio, arranje os meios

de amparar meus filhos, pois não posso contar com qual-

quer providência do pai deles. Tem piedade dos meni-

nos. Tü também és pai, pensa em tua filha, e trata meus

filhos com mais benevolência. Não falo ou cuido de mim,

pouco me importa, pois já sou uma exilada. Choro por

eles, que não conhecem ainda essa desventura.

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MILLÔR FERNANDES

CREONTE

Minha natrrÍeza nada tem de tirânica - iá sofri desastres

por ceder a ela. E, bem, mesmo sabendo que isso é umerro, vou atender a teu pedido. Mas advirto: se a primeira

luz do sol iluminar ati e ateus filhos ainda lançando sua

sombra sobre terras de Corinto, morreráo todos. Nuncapalavradita foi táo verdadeira. Ficas por mais um dia. Só

um dia. Nesse espaço de tempo náo poderás cometer ne-

nhum dos atos bárbaros de que és capaz.

(Creonte sai com a guarda)

CORIFÉtA

Ah, infeliz senhora, piedade de ti. Ah, infortunada,paraque terra seguiráo teus passos? Que proteção, que lar,que pátria encontrarás que te ponham a salvo da desdi-

ta? Ó Medéia, em que tempesËuoso mar de infinitas des-

venturas os deuses te lançaram.

MEDÉIA(Triunfante e irônica)

Infortúnios me cercam por todos os lados. Mas nem

tudo está perdido - podem ficar tranqüilos. Conjuroenormes perigos para os recém-casados, e perigos náomenores para quem os juntou no leito. Acham que eu

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--d#*

MEDÉIA

lrsorrjearia Creonte sem um objetivo ou premeditação?

St' fosse assim, eu náo lhe teria falado humildemente,rrcrn lhe elevaria em súplica estas mãos. Creonte, o que

tt'rn de poder tem de tolice, pois, podendo derrotar mi-f rf ìa trama expulsando-me daqui agota,logo!, permite(luc eu fique mais um dia. Um dia em que hão de virarcudáveres os meus três inimigos - ele, a filha, e Jasão,irgora seu marido. Como posso usar vários meios para

l)rovocar suas mortes, ainda devo me decidir. Se... eis

rrrinha dúvida final.Se transformarei em fogueira infernal a alcova em que

os dois se amam, ou se, penetrando furtivamente nessa

:rlcova, enfiarei no fígado de ambos o afiado gume de umacspada. Mas existe, claro, o perigo de ser apanhada an-tes de penetrar na alcova e, condenada à morte, morrercm meio ao alívio e às gargalhadas dos meus inimigos.

Melhor usar para destruí-los o caminho mais curtoc mais seguro, o veneno - nisso as mulheres são peri-tas, e em mim é parte de minha própria natureza.

Pois bem, eles estaráo mortos. E aí, que terra, que cida-de me dará abrigo? Que anfitrião me abrirá sua terra comoasilo seguro, sua casa como lar onde eu possa descansar a

minha alma atribulada? Nenhum. Ninguém. Então devo

esperar um pouco até que me apareça um escudo de prote-

ção em que confie. Aí, com dissimulaSo silenciosa e habili-dosa astúcia, poderei executar o ato fatal. Mesmo que

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Page 15: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDES

algumaforçaterrível apareça em meu caminho, aindaassim

matarei a ambos, pois estou disposta a morrer junto com

eles. Minha ousadia sou eu, uma só coisa, é meu destino.

Pela terrível deusa que venero acima de todas, por Hécata,

a protetora das feitiçarias, que entronizei no mais íntimoaltar de minha casa, e a quem apelei e apelo para me ampa-

rar nesta missáo, nenhum deles sobreviverâ, náo voltarâjamais a atormentar meu coração. Esse casamento será tris-

te e amargo. A amargura de todos, que irei pagar com omeu também amargo exílio. Levanta-te então, Medéia, é

a hora da coragem. Náo poupanada dos segredos dessa

arte do ludíbrio e da traição. Este é o agora do perigo. Este

é o momento. Mostra até onde vai tua coragem. É o teu

sofrimento, Medéia, contra a alegria que roubaram de ti.Tu, filha do sol, filha de um pai táo nobre, não podes conti-nuar motivo de escárnio paraJasáo e essa descendente de

Sísifo. Tü tens todos os ludíbrios. Conheces todos os ardis.

E mais que isso. Nasceste mulher. E nós, mulheres,

que a natuÍeza fez inaptas para as virtudes, devemos

demonstrar que somos insuperáveis nas perversidades.

CORO

Todos os rios sagrados voltam para as nascentes. E a jus-

tiça agora também caminha para trás. A ordem do univer-so está invertida. Os conselhos humanos sáo traiçoeiros, e

MEDEIA

lrran-ìentos diante dos deuses não são mais confiáveis. Mas

,r voz das praças mudará minha vida, recuperando minhar('putação: o amanhecer da honra iluminará a raça das

nrulheres, e as vozes daperfídiase calarão diante dela.

As canções dos antigos poetas deixarão de falar da

rninha infidelidade. Febo, o brilhante, o senhor das me-Iodias, não nos dotou, a nós, mulheres, da dádiva celestial

cla música, senáo eu entoaria um hino devastador sobre a

raça dos machos. Pois o tempo, que corre todo o tempohá tanto tempo, tece temas iguais para homens e mulheres.

Com o coraçáo e a mente perturbados, tu, Medéia,desertaste da casa de teu pai, navegaste por entre as pe-

rigosas rochas gêmeas do Helesponto, vieste habitar em

terra estranha, tiveste o leito conjugal abandonado pelo

companheiro, ó mulher infeliz. E agora és uma exilada,sem pátria, desonrada e perseguida.

Idos são os tempos de respeito aos juramentos. Ahonra desapareceu da nobre Hélade. Náo se encontramais em toda a vastidão da nossa terrai voou além dos

céus. Não tens mais espaço na casa de teus pais, pobre

de ti; era teu porto, o teu abrigo seguro para as tempes-

tades da existência. E aqui teu leito foi ocupado por ou-tra mais ditosa, teu lar tem outra rainha.

Page 16: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDES

(Entra [asão)

JAsÃo

Não é a primeira vez que noto, muitas vezes notei, a

desgraça que é um temperamento exacerbado' Por

exemplo, agoÍa,bem poderias permanecer neste país e

nesta casa, se soubesses obedecer à vontade dos que te

são superiores. Quem te expulsa de Corinto não somos

nós, até condescendentes. São tuas palavras insensatas'

A mim essas palavras náo me dizem nada' Pode conti-

nuar apregoando ao mundo que Jasáo é o mais vil dos

homens. Mas, depois do que gritas contra o soberano,

o baniment o é, atê uma punição bastante generosa' Ten-

tei de toda forma conter a irritaçáo do rei Creonte, pois

meu desejo era que continuasses aqui.

Mas teu temperamento' a que me referi, fez com

que, com palavras execráveis, continuasses incansável

nas injúrias ao rei. Foste banida. Porém, apesar disso

tudo, não vim aqui para repudiar o que, ainda!, me é

caro, mas, ainda!, preocupado por ti, mulher, com tua

sorte. Para que não sejas exilada com teus filhos, sem

recursos, uma indigente. O destertotraz sempre um cor-

tejo de misérias. Bem sei o quanto me odeias; mas contra

d jamais alimentarei um sentimento igual.

ueoÉtn

MEDÉIA(Soberba)

A rrrrica expressão que minha língua encontra para de-

lrrrir teu carâter, rua falta de virilidade, ê o mais baixo

Jrx candlhd.s. Vieste a mim, estás aqui, para quê, tu' ser

,,tliudo pelos deuses, odiado por mim e por toda a hu-

rrr.rrridade? Não é Prova de coragem nem de magnani

rrritlade olhar na cara os ex-amigos, na esperança de que

('\(lueçam todo o mal que lhes fizeste. A isso se chama

r ilìrsrrÌo' e vem com as piores doenças do caráter hu-

f riuìo - a f.alta de pudor, a ausência de vergonha'

Ainda assim, fizeste bem em vir, aliviarei meu cora-

ç,ro injuriando-te, pois sofrerás ouvindo meus insultos'

t ,onreçarei do começo. Salvei tua vida, como sabem to-

tlrs os helenos que embarcaram contigo naArgo, quan-

tl, foste enviado para subjugar o touro de ventas de fogo

(' sernear a morte em nossos camPos. Fui eu que matei

' rlragáo que guardava o Velocino de Ouro com seus

'llros que jamais dormiam, e seus anéis, que prendiam

,, Vclocino, tornando impossível liberá-lo. Abandonei

1,.ri e pátria e vim contigo para lolco; meu amor era

rrurior que a minha Prudência.Depois provoquei a morte de Pélias do modo mais

rt'rrível: nas máos das próprias filhas. E assim te livrei

tlt' todos os temores. Tïrdo isso eu fiz por ti, e, vil trai

35

Page 17: Eurípides - Medéia

l)

MILLÔR FERNANDES

dor, procuraste uma nova esposa, embora já tivéssemos

procriado dois filhos. Se eu náo houvesse te dado des-

cendência, teria perdoado tua busca de um novo leito.

Já morreu em mim há muito tempo toda e qualquer

confiança em tuas juras. Acho até que acreditas que nos-

sos velhos deuses jâ não reinam. Ou que estabeleceram

novas leis para os mortais. Se não, como poderias justi-

ficar tua tremenda vilania? Olha minha mão direita, que

tanto cobiçaste. E estes joelhos que abraçaste tantas ve-

zes. Como deixei tuas mãos pérfidas me tocarem? Céus,

a que coraçáo traiçoeiro confiei minha esperança.

(Pausa)

Mas seja, vou me dirigir a ti como se fosses amigo. Em-

bora saiba que não posso esperar qualquer gesto de afeto

ou caridade de um ser tão indigno, sei também que mi-

nhas perguntas te obrigarâo a te mostrares em toda tua

infâmia. Para onde devo me encaminhar agora? Para a casa

de meu pai, paraa minha pâtriartudo a que traí e abando-

nei por tua causa? Ou devo pedir proteção às desgraçadas

filhas de Pélias? Certamente abriráo suas portas, felizes de

receber aquela que matou seu pai. i) amarga o que sou,

mas é aqui que estou; me transformei na inimiga odiada

de meu próprio lar. Daqueles que ajudei a destruir para

ganhar teu amor. Mas me recompensaste milvezes por iso;

uepÉra

.ros olhos de muitas mulheres; nr eras um esposo fiel er r rcsmo impe cârvel.ÍJreu mesma fui a invejada Medéia, aqui,rrrlc me vês uma mulher humilhada e expulsa desta ter-

Í.r, sem um amigo -condenada

a ser solitríria para sem-

1'rc, seguida apenas por seus filhos degradados. Belo

Irrcsente de bodas para o teu esponsalício; os filhos e eu,

.1rc salvamos tua vida, errando como vagabundos e indi-g('rìtes mundo afon Ó, Zeus! Por que deste ao ser huma-rro a capacidade de saber se o ouro é falso e não puseste

rur fronte do homem um sinal pelo qual reconhecer que

,rlrriga uma alma abjeta?

CORIFEU

I lá algo terrível e incurável, acima de qualquer compreen-rìo mortâI, no ódio que nasce entre próximos e amados.

JAsÁO

ír preciso agora que eu me torne orador e, como hábil ti-r r roneiro, recolha as minhas velas, fugindo da tempestade

.'lc insultos de tua língua impudente. É preciso afirmar, já

rprc exaltas tão exageradamente a ajuda que prestaste, que

irl)cnas a Cípris, entre deuses e mortais, devo a vitória e a

11lória da minha expedição. Tens ironia envolvente, e vais

.rchar odioso admitir que foi essa deusa quem te constran-

1;cu a salvar-me, atingindo-te com seus dardos de paixão.

36 37

Page 18: Eurípides - Medéia

MILTÔR FERNANDTS

Bem, não pretendo insistir sobre esse ponto. Tua

ajuda, qualquer que tenha sido, foi feita com amor. Con-

tudo, pelo que me fizeste, já recebeste mais do que me

deste. Primeiro, vieste morar na Grécia, não vives mais

na terra bárbara em que vivias. E aprendeste o que é a

justiça, a viver na proteção da lei, não mais sob o medo

constante de forças brutais. E logo todos os helenos

reconheceram tua sabedoria - ganhaste f.ama e Prestí-gio. Se continuasses a viver nos confins da terra, nin-

guém saberia sequer teu nome. Eu não queria ter uma

casa de ouro, nem uma voz mais bela do que a de Orfeu,

se a minha fama não chegasse ao mundo.Mas basta de avaliações entre teus feitos e os meus

- e náo fui eu quem começou este debate.

Quanto às acusações que me diriges por ter-me casado

com a princesa, tens que reconhecer que fui mais do que

sensato, fui úbio e amigo consciente de ti e de nossos filhos.

(Medéia tem um gesto de indignação)

ïbm calma! Quando cheguei aqui na terra de Iolco, en-

volvido com problemas insolúveis e perigos invencíveis,

que solução mais feliz eu poderia arquitetar, eu, um des-

terrado, do que me casar com a filha do rei? Não o fiz,

como gritas na amargura de teu coraçáo, por desprezar

teu leito, nem pelo deseio de uma nova esposa ou Por

tr,|eoÉte

.rrnbicionar prole maior. A que tinha me f.aziafeliz e me

l)lÌStava.

Nem me queixo de ti.O que fiz - e isso é tudo o que importa - foi asse-

gurar para nós uma vida próspera, habitaçáo segura, sem

carência de nada - pois a amizade foge ante a necessi-

clade. Para poder dar a meus filhos educação digna de

rninha casa, para gerar irmãos reais para os filhos de teu

ventre, criar todos iguais, na mais alta condição, todos

da mesma estirpe, uma família só, e nós todos felizes

numa união sublime. Tu não tens necessidade de mais

filhos. E eu, com os filhos que virão, protegerei os que já

estáo aqui. Diz-me onde é que errei. Tü concordarias que

não errei, se não estivesses ferida pelo ciúme que te de-

vora o corpo. Vocês, mulheres, têm a estranha idéia de

que tudo está perfeito se o leito conjugal foi preservado.

Mas se alguém macula os lençóis que julgam intocáveis,

a vida se desfaz, tudo é infelicidade. Os homens deveriam

descobrir outra maneira de ter filhos, sem necessidade

da raça das mulheres, praga da humanidade.

CORIFEU

Tüas palavras, ó Jasão, foram articuladas com engana-

dora habilidade. Mas eu penso, ousando contrariar o

que disseste, ser evidente que pecaste' traíste tua mulher.

3E 39

Page 19: Eurípides - Medéia

!t

MII-LÔR f ERNANDES

MEDÉIA(Para si mesma)

Não há dúvida de que em inúmeras coisas sou completa-mente diferente da massa de outros mortais. Vejam -para mim, um ser que, além de malvado, êhâbil no es-

grimir das palavras, tornando o negro branco ao lidar como que fala, merece o castigo pior. Pois, seguro de quecom suas palavras pode ocultar a injustiça, pratica qual-quer crime. Mas, olha, Jasão, náo!, no final náo és tãohábil assim. Não vais me esmagar com tua eloqüênciafalsa. Uma palavra minha, uma só, teiogarâpor terra. Se

não fosses o traidor que és, só terias contraído esse matri-mônio depois de me convencer antecipadamente de tudoque disseste, e não às escondidas de quem tanto te amava.

JASÃO(Irônico)

É evidente que tu terias me dado logo todo teu generoso

apoio se eu te contasse o que pretendia, ainda que mesmoagora não consigas conter o fel que escorre de teu coração.

MEDÉlA

Palavras sem conteúdo - pensavas apenas que teu ca-samento com Medéia, uma estrangeira bârbara,te con-denava a uma velhice inglória.

40

MEDÉIA

JASÃO

Nio duvides de mim; náo foi pela mulher, ou pelo po-

tk'r, Çü€ me casei com a filha do rei, minha esposa atual.

Mrrs, repito, foi para garantir tua segurança, me tornan-

,kr pai de filhos reais, ligados por sangue a nossos pró-prios filhos, um escudo de proteção a nossa casa.

MEDÉIA

()ue essa segurança, tão indigna, nunca seja a minha,(lue essa opulência nunca oprima o meu coração.

JASÃO

Muda essa tua súplica, abranda essa ladainha, faz comocu te digo e serás bem mais sábia. Não vistas de negro a

felicidade, nem mostres cara funesta à fortuna que te sorri.

MEDÉIA

Tu me espezinhas porque tens um refúgio. Eu estou só

- logo serei só e desterrada.

JASAO

A escolha foi tua, a culpa também. Não acuses mais

ninguém.

Page 20: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDE5

MEDÉIA

Que foi que eu fiz? Fui eu que traí?

JASÃO

Lançaste ao rei terríveis maldições.

MEDÉIA

E amaldiçôo também teu novo lar.

JASÁO

Não pretendo mais discutir contigo sobre o que já é.

Mas, se queres receber parte do que possuo para os

meninos e parateu exílio, fala; estou disposto a dar com

mão generosa. E a pleitear junto a senhores de outras

terras para que te recebam como amiga. Se recusares

esta minha oferta é porque estás louca. Reprime tua

mâgoa ganho será teu.

MEDÉIA

Jamais recorrerei a teus amigos, jamais aceitarei nada

de ti. Não me ofereças nada. O que vem de um velhaco

é sempre uma velhacaria.

42

MEDÉIA

JASÃO

( )s deuses são testemunhas de que estou disposto a servir:r ti e a teus filhos em tudo, mas insistes em recusar meus

Íevores. Tua permanente e indestrutível arrogância ofen-rlc a todos que são teus amigos. Continua, teu sofrimentoscrá cada vez mais amargo, até se tornar insuportável.

MEDÉtA

Vai embora!Já que náo consegues esconder a impaciên-cia de voltar ao leito de tua nova mulher. Contas os mi-nutos que passas longe dela. Realiza logo o enlace porque anseias, essas bodas de que, se os Deuses me escu-

tam, cedo te arrependerás amargamente.

(lasão sai)

CORO

Amor desvairado nâo traz aos mortais glória ou virtude.Mas quando Cípris se oferece com brandura, não há di-vindade mais cheia de graça. Porém, minha deusa sobera-

n4 jamais lances contra mim os dardos de teu arco de ouroquando embebidos no veneno da paixão sem limites.

Que a castidade, suprema dâdivados deuses, me en-

volva com seu doce olhar. Que nunca a aterradora Cípris

43

Page 21: Eurípides - Medéia

II

MItLÔR FERNANDES

faça surgir em mim ódios insaciáveis, ciúmes sem limi-tes, incendiando minha alma com paixão ignóbil. E que

bendiga os afetos tranqüilos, a paz dos lares fiéis, dis-

tribuindo com sabedoria os leitos e os casais.

Ó minha pâtria,ó meu perdido e amado lar! Queirao destino que eu nunca seja expulsa de minha cidade, vivendo o resto de meus dias consumida numa existência

em que todo dia é sofrimento e miséria. Que me seja

permitido encerrar logo a minha vida, me entregar à

morte, pois não há miséria maior do que não ter pâtria.

Não repito, náo falo por ter ouvido alguém dizer -sei por meus próprios olhos. Não há cidade que te pro-teja, nem amigo que te ampare em momento de horrorde teu destino. Pereça logo, morra sem piedade aquele

que não ê capazde proteger os seus amigos, abrindo-lhesas portas de seu coração. Esse jamais será meu amigo.

(Durante o recitatiuo do Coro, Meüia pertltanece

sentada na soleira da porta. Entram Egeu,

rei. de Atenas, e seu séquito)

EGEU

Salve, Medéia, eu te saúdo. Salve - essa palavra é o mais

belo prelúdio para um encontro de amigos.

MEDÉIA

MEDÉTA

S;rlve a ti também, Egeu, rei de Atenas, filho do sábio

l';rndion. De onde vieste?

EGEU

l)o velho templo dedicado a Apolo.

MEDÉTA

O que te levou em tuas andanças a visitar o umbigo pro-

fótico do mundo?

EGEU

O desejo de fertilizar meu sêmen e gerar filhos.

MEDÉTA

Pelos deuses, viveste uma vida estéril atê agora?

EGEU

Sem filhos, pelavontade de algum deus que não conheço.

MEDÉI.A

Tens mulher ou náo possuis um leito conjugal?

Page 22: Eurípides - Medéia

ti

MILLÔR FERNANDES

EGEU

Tenho uma esposa, unida a mim em vínculo sagrado.

MEDÉIA

E que te disse Apolo acerca de ter filhos?

EGEU

Palavras sábias demais para a compreensão humana.

MEDÉIA

Posso saber quais foram essas palavras?

EGEU

Claro que sim; é mesmo o que procuro, tua mente aguda.

Fala então. Qual foidizeres.

MEDÉlA

o vaticínio? Se não é sacrilégio me

EGEU

"Não abrir muito cedo a boca do odre."

MEDÉIA

MEDÉlA

Antes de quê ou de chegar onde?

EGEU

Antes de voltar à terra de meus pais.

MEDÉIA

E que desígnio te trouxe então a esta terra?

EGEU

O de encontrar Piteu, rei dos trezênios.

MEDÉTA

Filho de Pélope, homem muito devoto, é o que dizem.

EGEU

Devo comunicar a ele a mensagem do oráculo.

MEDÉIA

É um homem sábio, versado em vaticínios.

47

Page 23: Eurípides - Medéia

I

MILtÔR TERNANDES

EGEU

ii.Eparamim o mais querido dos companheiros de luta.

MEDÉTA

Vai entáo, boa sorte! Que sejas feliz no que procuras.

EGEU

(Olhando-a com atenção)

Mas por que essa expressão sofrida, esse olhar aflito?

MEDÉTA

Egeu, Jasão, meu marido, se revelou o mais cruel doshomens.

EGEU

Cruel como? Esclarece-me mais sobre teu desespero.

MEDÉIA

Jasão me ultrajou sem que eu lhe desse motivo.

EGEU

Ultrajou como? Fala mais claramente.

MEDEIA

MEDÉlA

'lìomou outra mulher como esposa e senhora da casa.

EGEU

Perpetrou, Jasáo, ação táo infame?

MEDÉTA

Agora o sabes. A mim, a quem ele diziaamar pelos tem-pos afora, agora me olha com olhar de náusea.

EGEU

Encontrou amor novo? Ou apenas tem desprezo por teuleito?

Não, um amor novo.dor do amor antigo.

MEDEIA

E por ele se transformou em trai-

EGEU

Basta. É realmente um vilão, como tu dizes.

MEDÉIA

Com a mulher que obteve, uma princesa, ele se

um rei.

Page 24: Eurípides - Medéia

MILtÔR FERNANDES

EGEU

Que rei é esse que assim lhe entrega a filha?

MEDÉIA

Creonte, o senhor de Corinto.

EGEU

Ah, senhora, nla aflição bem que se explica.

MEDÉTA

Antes me degradaram.rinto.

Agora me expulsam de Co-

EGEU

Expulsa por quem? Falas de uma desgraça atrás de outra.

MEDÉIA

Por Creonte, o rei, agora protetor de Jasão.

EGEU

E Jasáo consentiu? Mal posso acreditar.

MEDÉIA

MEDÉIA

Não consentiu com palavras, mas não ficarâ no cami-

rrho do rei. Oh, eu te imploro; ergue tuas mãos e dobrarcus joelhos ante os poderes, pede por mim. Tem com-

paixão da minha desdita. Náo consinta que me aban-

donem e me desterrem. Acolhe-me em teu país, no calordc teu coração e de teu lar. E farei com que os deuses te

rctribuam, te dêem todos os filhos que desejas, e que

vivas feliz todos teus dias, até o último dia em que vive-res. Nem imaginas a sorte que tiveste vindo encontrar-me aqui, pois farei com que cesse tua esterilidade e

possas gerar filhos e filhas, tantos quanto desejes. Bem

sabes o poder dos filtros e poções que controlo.

EGEU

Por inúmeras razões, senhora, sou obrigado a favorecer agraça que me pede. Primeiro por respeito aos deuses; de-

pois, pelos filhos que prometes me tazer gerar e que eu já

tinha perdid o aÍé de conseguir. Eu te prometo; se em qual-

quer tempo alcançares minha terra, te darei abrigo e pro-teção. De uma coisa apenas te previno, senhora; náo fareinada para tiráìa deste reino. Só lhe darei a proteçáo e não

a entregarei seja a quem for, desde que chegue à minhaterra por seus próprios meios. Tem que escapar sozinha.

Não pretendo entrar em conflito com meus aliados.

51

Page 25: Eurípides - Medéia

Ii

MILtÔR FERNANDES

MEDÉIA

Pois, sendo assim, que assim seja. Mas quero a certezade que empenhas nisso tua palavra, para que eu possa

agir com segurança. Quero teu juramento.

EGEU

Náo confias em mim? Qualé teu medo?

MEDÉTA

Confio em ti, mas a casa de Pélias e o poderoso Creontesão meus inimigos. Preso a mim por juramento nãopoderás me abandonar quando quiserem arrancar-medaqui. Só o juramento dianre dos deuses te impediráde ceder às ameaças. Toda a proteção que me pro-metes ê fraca diante da riqueza e poderio de meusinimigos.

EGEU

Tiras palavras sáo de muita prudência e previsáo, senho-ra. Em vista do que, se lhe parece assim, náo tenho comorecusar. Tâmbém me sentirei em maior segurança se

puder apresentar motivo bem forte parate defender deteus inimigos. Diz então quais são teus deuses?

l

Jura pelo chão da Terra, pelo Sol, pai de meu pai, e,

transformando tudo numa jura, jura por todos os deuses.

EGEU

Mas o que devo jurar que vou tazer, o que devo jurarque não? Fala.

MEDEIA

Jura que nunca me expulsarás de tua terra, por tua pró-pria vontade, nem, enquanto fores vivo, me entrega-rás a qualquer inimigo ou deixarás que me arrastemde lá.

EGEU

Pela Terra eu juro, eu juro pela brilhante e sagrada luzdo Sol. E por todos os deuses te prometo que morrereiagarrado a estes juramentos que te faço.

MEDÉIA

É o bastante. E que castigo invocas para ti mesmo, caso

falhes em cumprir tal juramento?

53

Page 26: Eurípides - Medéia

MItLÔR FERNANDES

EGEU

As penas que caem sobre todos os ímpios.

MEDÉIA

Está tudo bem; vai em paz. Chegarei a teu país o mais

depressa que possa. Assim que cumprir meu intento e

satisfizer meu desejo.

(Egeu sai, acomPanhado do séquito)

coRo

Que o filho de Maia, o príncipe Hermes, deus dos ca-

minhos, te conduza em segurança até tua casa' e que

tenhas satisfeito o desejo maior de tua vida, Egeu, pois

para mim foste mais do que generoso.

MEDÉTA

ÓZeus,óJustiça, filha de Zeus,e luz do Deus-Sol, ago-

ra, minhas amigas, começa meu triunfo sobre meus ini-migos. Ponho o pé, dou o primeiro Passo no caminho

da minha vingança sobre aqueles que odeio. Pois quan-

do estava no mais fundo da mâgoa me apareceu este

porto seguro para onde dirigir meu destino.

ueoÉta

(Ao Corifeu)

Agora vou te contar meus planos. Escuta bem minhas

pelavras, pois não são palavras agradáveis. Um de meus

scrvidores procurará Jasão rogando-lhe que venha até

lc1ui. Quando Jasão estiver iunto a mim, só lhe direi

palavras doces e sensatas comor "Está muito bem", "Isto

nre agrada", "Eu penso assim".

E, mesmo sobre o casamento com a princesa, que

meu traiçoeiro senhor está celebrando, eu vou dizer

"Convém a nós dois", "Está bem pensado". E então

pedirei para que meus filhos permaneçam aqui. Não

para abandoná-los nesta terra hostil, expostos ao ultra-

ie constante de nossos inimigos, mas para que ajudem

em meu ardil e eu possa alcançar e matar a filha do rei.

lrão atê ela os meus filhos, rogando para que inter-

ceda a fim de não serem banidos. Levarão nas próprias

máos presentes raros: um manto do mais fino tecido e

uma coroa de ouro cinzelado. Se ela colocar no corpo

esses adornos morrerá morte horrível, e morrerá tam-

bém qualquer um que a toque, tão fortes e maléficos os

venenos untados nos presentes.

E aqui eu mudo meu discurso e tremo pelas ações

que vou praticar em seguida. Eu vou matar meus filhos.

É, ninguém poderá livrá-los da minha decisão. Aí, de-

pois de destruir totalmente a casa deJasáo, deixarei esta

55

Page 27: Eurípides - Medéia

MILLOR FERNANDES

terra, fugirei daqui, escapando à punição que mereçopela morte de meus queridos filhos, pelo horror daaçâonefanda. É isso, amigas, não poderei permitir que os

inimigos escarneçam de mim.Mas chega! Que tenho a esperar da vida depois dis-

so? Sem pâtria, lar, não tenho porto onde esconder a

minha desventura. Ah, bem sei agora o quanto erreiquando deixei a casa de meus pais, enganada pelas pa-

lavras desse grego infame. Mas agora, com a proteçãodos deuses, ele me pagarâ por tudo. Não tornarâavervivos os filhos que lhe dei, nem gerarânovos filhos comessa mulher nova, pois ela terá morte hedionda porminhas drogas fatais. Ninguém mais verá em mim umapobre mulher, de mãos postas e olhar vazio, mas umamulher feita de outro molde, outro carâter; protetorados amigos, terrível para os inimigos. A vida é mais glo-riosa para os que vivem a vida como eu.

CORIFEU

Já que me comunicaste teu intento, para te defender e

para fazer respeitar as leis humanas, eu te aviso, ffiu-lher, contém teu braço.

MEDÉlA

Náo há como me deter, e só perdôo tuas palavras por-que não sofreste a violência que sofri.

tvtgoÉte

CORIFEU

Ó, senhora, estás mesmo tão empedernida que te sen-

rcs capaz de exterminar teus próprios filhos?

MEDÉlA

Só assim poderei destruir o coração do pai.

CORIFEU

E ser logo a mais odiada e a mais solitária das mulheres.

MEDÉTA

Que assim seja. Agora são inúteis todas as palavras en-

meoqueéeoqueserá.Ó!

(AAma obedece à sua uoz)

É a ti que confio todas as missões que julgo impossí-

veis. Vai e me trazJasáo aqui. Sei que, aravés de ti, Jasão

não perceberá o menor sinal do que pretendo. Pois és

totalmente fiel a tua senhora nosso sexo.

(AAma sai)

56 57

Page 28: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDES

coRo

Filhos de Erecteus, felizes heróis dos tempos de outrora,

descendentes de deuses bem-avenfurados, cultivados na

límpida sabedoria e no orgulho de uma terra nunca domi-

nada. Vós que aprendestes a caminhar num chão de flores,

respirando um ar eternamente brilhante e puro' onde, a

lenda conta, a loura Harmonia deu à luz as nove Musas,

Calíope, Euterpe, Tâlía - a todas as formas de arte e de

beleza. E contam também que Cípris buscava água nas

correntes límpidas do rio Césifo, que espalha sobre as mar-

gens uma brisa suave e perfumada. Brisa que ainda sopra

por lá quando a deusa enfeita seus cabelos com uma gri-

nalda de botões de rosas e oferece ao Amor a companhia

da Sabedoria, alcançando assim o supremo da felicidade.

Como entáo a cidade dos rios sagrados, a terra que

acolhe todos a quem ama, poderá, em meio aos outros,

acolher também a ti, assassina de teus próprios filhos?

Pensa no golpe sangrento que dás em teus filhos, pensa

na afronta para todos nós. De joelhos te imploramos,

nós, cada uma e todas: poupa teus filhos.

E onde encontraráo, em ti mesma, teu braço e teu

coração, a dureza para executar o projeto sinistro de

tua mente execrável? Como olharás para teu filhos e

MEDEIA

conterás as lágrimas enquanto os assassinas? Como

rnergulharás tuas máos em seu sangue enquanto' de joe-

ll.ros, eles te pedem piedade?

(Entra lasão)

JASÁO

Vim, atendendo a teu chamado, pois, ainda que teu ódio

por mim náo diminua, quero escutar' mulher, o que

ainda pretendes de mim.

MEDEIA

Peço que me perdoes, Jasão, pelas palavras que disse.

Compreende meus arrebatamentos de paixão, iguais aos

que tanto sentimos em momentos de amor e desamor.

Refleti comigo mesma e de dentro de mim tirei estas cen-

suras; "Ah, pobre inf"eliz, por que estou táo desesperada,

por que táo raivosa contra tudo e todos que me dáo bons

conselhos e me apontam o bom senso? Por que me tornar

inimiga dos senhores daqui e de meu marido também, se

ele fazpor mim tudo que pode, e até mais? O que ele pre-

tende, ao casar com a princesa, eu sei, é dar aos meus fi-

lhos irmãos nobres. Náo devo entáo controlar meu rancor?

Como permanecer possessa, se os deuses dispõem tanto a

meu favor? Não tenho meus filhos a considerar? Ignoro

59

Page 29: Eurípides - Medéia

I

MItLÔR TÊRNANDES

que somos fugitivos de nossa própria terra, necessitando

de amigos? Pensei sobre tudo isso e vi como tenho sido

imprudente. Percebi a loucura do meu ressentimento.

Então, Jasão, sabe que agora aprovo o que fizeste. Foste

bastante sábio ao estabelecer para nós tais ligações, eu éque fui insensata. Pois deveria ter apoiado logo teus desíg-

nios, ajudado em teus planos, servido tua nova união em

tudo que pudesse, mostrando meu orgulho em acompa-

nhar e servir tua esposa. Mas somos o que somos, nós, mu-lheres. Não direi que más. Só te peço que não desças ao

nosso triste nível combatendo estupidez com insensatez.

Concedo e confesso que estava loucamente errada eque só agora recupero arazão. Venham cá, meus filhos,venham aqui fora e, junto comigo, alegremente, cumpri-mentem seu pai, esquecendo um rancor que jamais de-veria ter existido entre pessoas que se amam. Estamos

reconciliados, desapareceu entre nós toda a amargura.

(A Ama sai da casa corn os meninos)

Peguem a mão direita de seu pai...

(Àparte, enquanto os filhos seguram a rnão de Jasão)

Ah, triste de mim!ïliste de mim quando vejo meu tristedestino. Filhos meus, por quanto tempo ainda poderáoestender os braços para um terno abraço? Pobre de mim.

60

:l

MEDÉIA

Com que facilidade eu choro, tremendo cheia de medo.

l'ois agora, que estabeleci uma trégua com seu pai, posso

cleixar meus olhos descansarem lavando-se em lágrimas.

CORIFEU

De meus olhos também desce um copioso pranto. Ó,que não surja mal c paz de provocar pranto ainda maior.

JASÃO

Senhora, louvo tua conduta e não reprovo o que já épassado. Pois é natural ao sexo feminino agredir comfuror um marido que procura secretamente outro enla-

ce, outra boda. Mas teu coração abriu-se agoragenero-so e sensato, embora tardiamente, a melhores razões.

Assim agem as mulheres de juízo. Quanto a vós, meus

filhos, pela graça de Deus, vosso pai providenciou compreciso cuidado um refúgio tranqüilo nesta terra. Jun-to com vossos irmãos, tereis posição nobre e segura nos

mais altos escalões do reino de Corinto. Basta cresce-

rem, que do resto cuidará vosso pai e algum deus gene-

roso. Que eu possa ver um dia atingirem o ponto mais

alto da masculinidade, sempre superiores aos mais for-tes entre aqueles que odeio. Mas por que, senhora, temos olhos cheios de lágrimas raface escondida, como evi-tando ouvir estas palavras de alegria?

61

Page 30: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDES

MEDÉTA

Não é nada; meu pensamento estava em nossos filhos.

JASÁO

Pois não pense, providenciarei para que rudo esteja bem

com eles. Fica tranqüila.

MEDÉtA

Ficarei. Não duvido mais de tua palavra nem do que podes.

Mas a mulher é criatura fraca, um ser desfeito em lágrimas.

JASÁO

Mas por que, infeliz, chorar pelos meninos?

MEDÉIA

Fui eu quem os gerou. E quando tu falavas sobre sua gló-ria futura, me veio o pavor de que não fosse assim. Masagora que a razáo de te chamar aqui foi em parte dita,vou te falar de outras razões ainda não ditas. Já que é

vontade do rei banir-me daqui, e sei muito bem que omelhor a fazer é não me tornar empecilho aos que go-vernam, nem colocar obstáculos em teu caminho, poissou considerada inimiga de todos, devo partir logo parao exílio. Mas essas crianças, para que fiquem protegidaspor tuas mãos de pai, pede a Creonte que não as desterre.

ueoÉrn

JASÁO

Vou tentar. Mas duvido que consiga convencê-lo.

MEDEIA

Pede então a tua esposa que o faça.

JASÁO

Sim, está bem, a ela sei que posso convencer; é uma mu-lher como as outras.

MEDÉIA

Vou tentar facilitar rua tarefa. Mandarei a ela, pelas mãos

de meus filhos, alguns adornos que, garanto, são mais belos

do que tudo que existe entre os mortais. Um manto sunruo-

so, do mais fino tecido, e uma coroa de ouro cinzelada.

Que um dos servos imediatamente traga aqui os presentes.

(Um dos seruos entra na casa)

Ela será feliz, náo só uma vez, mas milhares de vezes,

pois em ti ela ganha a alma mais nobre com que com-partilhar teu amor. E recebe também estas dádivas iguais

àquelas com que um dia o Deus-Sol, pai de meu pai,premiou seus descendentes.

62

Page 31: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDES

(O seruo entrega os presentes às crianças)

Meus filhos, peguem estes regalos nupciais e entreguem-

nos como oferenda minha nas máos dafeliz princesa, e

esposa ainda mais feliz; a ela oferecemos estas dádivas,para sempre inesquecíveis.

JASÁO

Mas por que tanta pressa em se desprender de bens tãopreciosos? Achas que o palácio real tem escassez de man-

tos ou de ouro? Guarda-os, guarda esses bens contigo,não te desfaças deles. Pois acredito que, se minha novaesposa realmente me estima, o meu preço para ela esta-

râ acima de qualquer riqueza.

MEDÉIA

Não afirme tal coisa. A Grécia inteira sabe que dádivas

generosas tentam até os deuses. O ouro tem, sobre o espí-

rito humano, mais poder do que mil palavras de convicção.

A fornrna sorri à tua noiva, e o céu se abre em luz para

saudar seu triunfo. É d.h a juventude. São dela a glória eo poder do Reino. Para salvar meus filhos do desterro, doumais do que o ouro, dou minha vida. Meus filhos, quan-

do chegarem ao ricopalácio, nomesmo momento em que

entregam a ela estes presentes, peçam à nova esposa deseu pai e minha nova senhora, com voz suplicante, que

uroÉta

não os expulse desta terra. Mas é importante que - os

ornamentos - ela os receba em sua próprias mãos. Va-

rnos, depressa; sejam bem-sucedidos e tragam logo para

sua máe a notícia feliz por que ela tanto anseia.

(Saem lasão, a Ama. e os meninos)

coRo

Perdidas são nossas esperanças pela vida dessas crianças.

Já se encaminham a seu destino nefasto. A infortunadaesposa logo receberâ, coitadal, a calamidade cinzelada

em ouro. E ela mesma, com suas próprias mãos, colo-carâ em suas madeixas douradas o ornamento fatal.

Abeleza e o fulgor divino dos presentes a levarão a

usar logo a coroa e o manto, sem saber que está se ves-

tindo como noiva da morte. Essa é a armadilha na qual

vai se emaranhar a desditada princesa, essa a maldição

da qual não vai escapar.

E tu, pobre infeliz, que, para tua desgraça, casas com

a filha de um rei, também mal sabias que isso traria aruína de teus filhos e a morte cruel dessa tua nova es-

posa. Quão mísero és tu, caindo de tão alto nessa que-

da sem fim.

E logo eu pranteio por ti, mãe que morres tambémcom teus filhos, esses que matas para destruir tua rival,

64 65

Page 32: Eurípides - Medéia

FMILtÔR FERNANDES MEDÉIA

esses que teu marido desertou sem piedade por um novo MEDÉ6himeneu'

Mais uma vez repito, ai de mim!

(A Ama entra com os meninos) AMA

AMA

Eis aqui teus filhos, senhora, já salvos do exílio. Pois a

noiva real recebeu, em suas próprias mãos, alegremen-

te, as generosas dádivas que enviaste por eles.

No Reino agorahâ paz para os teus filhos.

Ai! Ai de mim!

MEDÉIA

AMAl

Por que te lamentas em hora táo generosa? Por que vi- ;

ras a face às esplêndidas notícias que te trago? i

MEDEIA

Ai de mim!

AMA

Esses gemidos náo estão de acordo com o que te anuncio.

Quem sabe, sem perceber, revelei algum mal escondido

no bem? Errei em acreditar que eram boas notícias?

MEDÉlA

Narraste o que narraste, não estou te reprovando.

AMA

Então por que a cabeça baixa, a torrente de lágrimas?

MEDÉ1A

Velha amiga, choro porque devo chorar. Os deuses e eu

própria, desvairada, tramamos o que vai acontecer e

nem eu nem eles podemos mais desfazer.

AMA

Tem ânimo, senhora. Com amparo de teus filhos, mais

dia menos dia voltarás a Corinto.

67

Page 33: Eurípides - Medéia

MITLÔR TTRNANDES

MEDÉI,A

Não, se provoquei o exílio de outros para terras sem

fim, a infeliz que sou.

AMA

Não és a única mãe que teve os filhos arrancados de seus

braços. Mortais não podem escapar aos golpes do destino.

MEDÉTA

Aceitarei resignadamente. Entra em casa e prepara para

os meninos as provisóes de todo dia.

(A Ama entra em casa. Medéia fala aos filhos)

Meus filhos, meus filhos, ainda têm uma cidade e uma

pâtria, onde, longe de mim e de meu triste fado, pode-

rão viver suas vidas, embora arrebatados de sua mãe para

todo o sempre. Eu viverei no exílio distante, sem jamais

compartilhar a felicidade que deveria ter a seu lado, go-

zar junto a felicidade que me cabe, e preparar, chegado o

tempo, seu leito matrimonial, acendendo sobre ele a tocha

do himeneu. Ai, de mim!, vítima de meu próprio orgu-lho! Tornei inútil o cuidado com que os criei, foram vãs

as angústias e fadigas que passei, desde as dores atrozes

com que vos dei ao mundo. Bem sabem os céus de todaa minha esperança, pobre de mim!, de que os filhos me

MEoÉtA

cuidassem na velhice e enterrassem meu corpo com mãos

carinhosas, piedosamente, último desejo de todos os mor-

tais. Mas agora, quem está morta sem esperança é essa

minha doce fantasia. Pois, perdidos os dois, devo arras-

tar solitária e dorida o que me resta de existência. Nunca

mais porão sobre a pobre máe esses queridos olhos' pois

váo partir para outra espécie de vida.

Ah, filhos meus, ai de mim, por que me olhais assim,

com esses olhos? Por que esse sorriso tão doce, se é o último

sorriso? Ai de mim, o que posso fazet? Meu coraçáo falece

quando olho nos olhos sorridentes de meus filhos. Náo,

eu náo posso. Tenho que desistir do que tramei. Ïrareimeus filhos desta terra, não posso deixar nesta terra os fi-

lhos que gerei. Louca! Por que, para ferir o pai, faço a des-

graça deles e jogo sobre mim mesma uma desgraça dupla?

Não, nunca, eu não farei isso!Adeus, desígnios funestos!

Mas, que força me possui ainda? Posso deixar meus

inimigos escapar sem puniçáo' me transformando em

gargalhadas de escárnio permanente? Tenho que ousar.

Que débil coração o meu!Acolher pensamentos hones-

tos tão vis, tão vacilantes. Entrem logo, meus filhos.

('4s crianças entram)

Aqueles a quem a piedade divina não permite assistir a este

sacrifício, que hajam como entenderem. Eu não vacilarei

68 69

Page 34: Eurípides - Medéia

,rG-q@4{@l*4ÉFGüE6qd*,,íd, . FMITtôR FERNANDES

mais. Não pouparei minha mão. Oh, não, náo, meu cora-

ção, não permitas que eu o faça. Deixa ir as crianças, mu-lher infeliz. Deixa-as, desditada, poupa-as do sacrifício.Pois, vivos, sua alegria alegrarâteu exflio. Não. Pelos de-mônios dos abismos do inferno, iamais entregarei meus

filhos ao insulto e ao escárnio de meus inimigos. Morrer,eles iráo morrer, e, sendo assim, que seja eu, que os trou-xe àvida, que lhes desfira o golpe fatal. E, como está fixa-do, seja assim consumado. Neste momento, com a coroana cabeça, envolvida no manto, a princesinha morre, eu

bem o sei. Pois seja, jâque tenho pela frente um caminhopenoso, e ainda mais penoso é o caminho a que conduzomeus filhos. Preciso despedir-me deles.

(Os meninos entrlm nouamente)

Venham, venham, queridos filhos meus, dêem-me as

mãos para que eu as beije. Ah, mãos que amo tanto, ólábios queridos, ó nobres feições dos que sáo meus.

Que reconquistem aalegria,sejam felizes nesse outrolugar, pois aqui vosso pai lhes roubou o lar. Oh, o doceaconchego de um abraço, a carne terna desses rostos, esse

hálitosuave demeusfilhos. Andem. Vão. Deixem-me. Nãoconsigo mais olhálos; a angústia me domina. Finalmentecompreendo toda a extensão do ato terrível que vou prati-car, mas a paixão, causa das mais profundas desgraças

humanas, triunfou sobre tudo que tenho de ternura.

MEDÉIA

coRo

Quantas vezes temos refletido sobre temas sutis, muito mais

graves do que esses que o sexo feminino ê capazde enten-

der. Mas cultivamos também uma musa mulher, que co-

nosco busca a sabedoria. Náo me refiro a todas, são poucas

- uma entre inúmeras na classe feminina que percebem

o saber. E posso também afirmar que os mortais que não

passaram pela experiência de gerarem filhos são muito mais

felizes do que os que geraram. Os que não geraram sáo

poupados de muitos inforúnios. Mas os que pensam terem casa um florido jardim de herdeiros, gastam, corroem

a existência inteira, primeiro em como instruíìos no ca-

minho do bem, depois em como lhes garantir meios de

sobrevivência. Sem saber se todo esse cuidado redundará

em resultados bons ou perversos. Mas devo falar também

do pior que pode acontecer ao homem mortal: suponham

que aos filhos ele tenha dado todos os meios de existên-

cia, que eles tenham crescido como homens de bem. Aí o

destino se interpõe, a morte chega inesperada e leva os

corpos paÍa o Hades. Que lucram os deuses ao lançar as-

sim sobre os mortais, além de todos os outros sofrimen-

tos, este sofrimento maior, que é a perda dos filhos?

MEDÉIA

Bons amigos, esperei longamente, ansiosa, para saber co-

mo as coisas acontecem no Palácio Real. Mas, ah!, agora

7170

Page 35: Eurípides - Medéia

FMILLOR FERNANDES

vejo um dos servidores de Jasão chegando ali, respirandocom grande dificuldade, como quem traz novas desgraças.

(O mensageiro entra)

MENSAGEIRO

Foge, foge, Medéia, tu que premeditaste essa ação mons-truosa, violentando todas as leis, escapa! Por todo e qual-quer modo, por qualquer meio, pelas naves do mar,pelos carros da terra.

MEDÉIA

Por quê? Que acontecimento terrível assim me impõe afuga?

MENSAGEIRO

A princesa morreu agora mesmo, e morreu com ela opai, Creonte, vítimas de tuas drogas infernais.

MEDÉIA

Belas e propícias notícias, as que me trazes. A partir deagoÍa estás na distinçáo mais alta entre meus amigos e

benfeitores.

MEDÊIA

MENSAGEIRO

Assombras-me. Que dizes, mulher? Estás em teu plenojuízo? Deves esfar louca, isso sim, por demonstrar ale-gria ao saber que destruiu nossa casa real, e não estre-

mecer de horror e não tremer de medo.

MEDÉIA

Tenho muito a dizer sobre aquilo que dizes. Porém, é rua

vez, fala tu primeiro. Diz como morreram, e me darás

uma dupla alegria se contares que tiveram morte odiosa.

MENSAGEIRO

Quando as duas crianças geradas por ti entraram no pa-

lácio da noiva, seguidas pelo pai, nós, todos os servos,que tínhamos acompanhado teus sofrimentos, nos enche-

mos de alegria, pois imediatamente, de ouvido em ouvi-do, correu a notícia de que tu e teu esposo haviam se

reconciliado. Alguns beijavam as mãos, outros, os cabelos

dourados de tuas crianças. Eu mesmo, sem conter a ale-gria, acompanhei-as até o proibido gineceu. A princesa,que agora reverenciávamos em teu lugar, antes de ver teusfilhos, lançou a Jasão olhar cheio de ternura. Mas logodesviou o olhar e o rosto, desagradada com a entrada dos

meninos, enquantoJasáo tentava diminuir sua cólera comestas palavras: 'Ah, não fiques irritada com os teus ami-

Page 36: Eurípides - Medéia

F

MILtÔR FERNANOES

gos. Desfaz esse ar de revolta e desprezo, olha novamen-

te para eles, trata como amigos os que me são caros. Aceita

esses presentes e, por consideração a mim, pede a teu pai

que transforme o cruel exílio deles em generoso asilo."Logo que ela olhou abeleza dos mimos ofertados,

náo resistiu mais e cedeu em tudo a seu senhor. E maleste se afastou, saindo do palácio com seus filhos, ela

vestiu o manto bordado, colocou na cabeça a coroa de

ouro e pôs-se aajeitâ-lanos cabelos, em frente ao enor-me espelho, sorrindo feliz diante de sua brilhante simu-lação sem vida. Levantando-se do trono, atravessou oaposento em passos delicados, na ponta de seus belospés, uma vez ou outra olhando para trás, deslumbrada

com a própria imagem assim adornada. E foi aí que

começou a cena de indescritível horror. Ela ficou mais

branca, se inclinou para trás, o corpo inteiro tremen-do, e se jogou sobre o trono para não cair ao chão. Umavelha serva, pensando que a ama estava sendo atacadapelo furor de Pan ou algum outro mal enviado pelos

deuses, elevou aos berros uma oração, até que viu es-

correr da boca da princesa uma espuma gosmenta, en-quanto seus olhos davam voltas nas órbitas e todo osangue lhe abandonava o rosto. Logo a princesinhaemitiu um grito diferente de tudo quanto é grito. Umacriada se precipita paraacasa do pai, outra vai em bus-ca do seu novo esposo, e toda a pompa do palácio se

MEDÉIA

transforma numa algaraviade soluços, berros, ordens e

lamentos, a casa inteira ressoando a passos indo e vin-

do. No breve tempo em que um corredor teria percor-

rido os duzentos metros de um estádio, a princesa voltou

a si, abriu os olhos e saiu do seu transe de mudez com

um gemido longo e angustiado. Duas calamidades a ata-

cavam ao mesmo temPo; a coroa em sua cabeça se trans-

formara numa torrente de chamas corrosivas, e o manto

colara nas carnes brancas da infeliz. Ela se ergueu do

trono, uma fogueira humana, tentando escapar de si

mesma, sacudindo a cabeça em todos os sentidos, Pro-curando em vão se livrar da coroa de fogo. Mas o ador-

no flamejante enterrava-se cada vez mais na cabeça

agitada, e as chamas cresciam com redobrada fúria a

cada movimento. Por fim ela caiu no chão, aniquilada,

desfigurada, irreconhecível, exceto ao olhar de um pai.

Não se distinguia nem a forma dos olhos, do rosto táo

belo nada se presenara; do alto da cabeça, um caldo de

fogo e sangue fluía sem cessar, as carnes' roídas pelos

dentes de tuas drogas malditas, desprendiam-se dos os-

sos, como pinheiros feridos desprendem lágrimas de re-

sina, uma visão horrenda! E todos tínhamos medo de

tocar no cadáver, pois sabíamos bem o que estava acon-

tecendo. O pai, porém, ainda inocente, entra alheado

na câmara de horror, tropeça na tragédia, se atira em

prantos e lamentos sobre o corpo da morta, envolve-a

74 75

Page 37: Eurípides - Medéia

MItLÔR FERNANDES

com os braços e beija-a, gritando palavras como estas

"Filha desventurada, pobre filha, qual deus enlouque-cido te destruiu dessa maneira? Quem está me rouban-do de ti, filha, velho que sou, jâ tão perto do fim? Ai,filha, ai, deixa-me morrer contigo."

Cessado seu dorido lamento, tentou levantar dochão a velha carcaça, mas o manto em chamas lhe gru-dou ao corpo como a hera parasita se gruda ao troncodo loureiro, e uma luta assustadora aconteceu. Ele bus-cava se erguer sobre os joelhos, mas o manto o retinha,e, com quanto mais violência ele tentava fugir, mais ra-pidamente as velhas carnes eram arrancadas de seus

ossos. Por fim, vencido, o desgraçado abandonou a vidano meio de sofrimento atroz, derrotado pela força dadesgraça. E ali jazem os dois, a jovem princesa e o ve-lho rei, mortos lado a lado, uma visão sinistra suplican-do lágrimas. Quanto a ti, não sei o que considerar, poissó a ti cabe descobrir como escapar à punição. Náo é

esta a primeira vez que vejo a vida apenas como umasombra que se agita, e, sem medo de errar, afirmo queos que se julgam mais sábios são os mais castigados porsua tolice. Pois nenhum ser mortal é feliz; a fortuna podesorrir a um e fazê-lo mais feliz do que os outros. Masfeliz nenhum é.

(Saì de cena)

76

rueoÉre

coRo

Este é o dia em que os deuses, parece, acumularam sobre

Jaúo todos os castigos e desventuras merecidos. Infeliz de

ti, filha de Creonte! Lamentamos o teu trâgico destino,

indo antes do tempo para o mundo subterrâneo de Hades,

a mansão dos mortos. Preço de teu enlace comJasão.

MEDÉlA

Amigos, minha ação está decidida. Matarei meus filhosimediatamente e logo me irei daqui. Não deixarei que

os inimigos detenham meus filhos e os entreguem às

máos dos carniceiros. Eles devem morrer, e, como isso

é inevitável, eu mesma , a mãe que os gerou, devo matá-los. Endurece, coração meu! Fica insensível!

Não permita que eu hesite em realizar esse horrordeterminado. Vem, pegaaespada, mão desgraçada, Se-

gura-a firme e dá o primeiro passo para recomeçar tuaexistência amaldiçoada. Náo seja covarde. Esquece que

são teus filhos, como te são caros, que tLl os pariste -que és mãe deles. Por um breve momento esquece isso

tudo, age, e lamenta depois. Pois, embora vá eliminá-los, eles sáo a minha carne, me fazem toda pranto.

(Entra na casa)

77

Page 38: Eurípides - Medéia

UT

MILLÔR FERNANDES

coRo

Ó terra, ó sol, cujos raios iluminam tudo, olhem, olhempara esta mulher funesta enquanto ela estende o braçoassassino que vai tirar o sangue de seus próprios filhos.Atenta: eles germinaram de nra raça de luz, são bisnetosdo Sol. Aqui todos verão o sangue dos deuses derramadopor um ser mortal. Ôrlr;u,,que procedes de Zeus, detémesa mulher, sustém sua mão, expulsa de nossa casa essa

assassina dominada por demônios sanguinários. Medéia,sofreste em vão as dores germinais paratrazer esses filhosao mundo. Em vão pariste essÍl prole querida. ïir, que atra-vessaste as traiçoeiras rochas Cienaias, que assustam omundo inteiro, como te deixaste dominar por esse ódioincontido? Como em nra alma o ódio tomou o lugar doamor e te trouxe a tal delírio sanguinário? ïir sabes que amaldição cai sobre os mortais quando sangue familiar éderramado sobre a terra, os deuses infligindo aos assass!

nos, golpe a golpe, dores e angústias maiores do que tudoque fizeram.

PRIMEIRO FILHO(De dentro da casa)

Ai de mim, que fazer? Como posso escapar das mãosde minha mãe?

MEDEIA

SEGI.JNDO FILHO(De dentro da casa)

Não sei, amado irmão, estamos perdidos.

coRo

Ouvis, ouvis esses gritos desesperados? Ah, senhora, nas-

cida para a dor, vítima de um mau destino, devo entrar

na casa? tnho que salvar da morte essas crianças.

PRIMEIRO FILHO(De dcntro)

Pelos céus, nos ajudem. Vamos morrer' socorram.

SEGUNDO FILHO(De dentro)

Não há mais tempo. Os fios da espada brilham sobre nós.

coRo

Ó desgt"çada, és feita de ferro ou pedra, para destruir

assim, com tuas próprias máos, teus próprios filhos, o

sangue de teu ventre? De todas as mulheres do passa-

do, só sei de uma que fez sua mão mortal cair sobre seus

filhos. Ino, enlouquecida pelos deuses quando a esposa

de Zeus a expulsou de casa para uma vida errante. Do

alto das escarpas batidas pelas ondas, a desditosa se lan-

79

Page 39: Eurípides - Medéia

MItLÔR FERNANDES

çou ao mar e com ela arrastou os dois filhos para a mor-te. Existe alguma espécie de horror maior que este? Ah,leitos conjugais, quantas loucuras provocastes nas mu-

lheres, com tão tristes conseqüências para os homens.

(Entram lasão e seu séquito)

JAsÁo

Senhoras que fazeis vigília em volta desta casa, ainda está

lá dentro Medéia, a autora de todas essas atrocidades,

ou já fugiu daqui? Ela tem que se esconder no buraco mais

fundo da terra ou criar asas e desaparecer no infinito docéu, se quiser escapar à vingança da casa real. Ou acredi-

ta poder sair impunemente desta casa depois de assassi-

nar os soberanos da cidade? Mas basta com isso! Só me

angustia a vida de meus filhos. Não me importa o que

aconteça a ela. Certamente receberá de suas vítimas pu-

nição igual ou pior do que o mal que lhes fez. Eu vimpara salvar meus filhos, para que descendentes da casa

real, através deles, náo lancem seu ódio contra mim em

vingança pelo crime infame perpetrado pela mãe.

CORIFEU

Homem inf.eliz, ainda não sabes o total de tua desven-

tura, ou nunca terias pronunciado essas palavras.

MEDÉIA

JAsÁo

O que dizes? Acaso ela pretende matar a mim também?

CORIFEU

Teus filhos já estão mortos. Foram mortos pela pró-

pria mãe.

JAsÃo

Ó deus! Que dizes? Este é o golpe mais fatal' Matou a

mim também.

CORIFEU

Têus filhos iânão existem; aceita o teu destino'

JASÁO

Onde ela os matou? Dentro ou fora da casa?

CORIFEU

Abre essas portas e terás a resposta no corPo de teus

filhos.

JASÃO

Corram, miseráveis criados, levantem as trancas' soltem

os ferrolhos' para que eu veja essa dupla desgraça, os

8180

Page 40: Eurípides - Medéia

F

MILLÔR FERNANDES

cadáveres de meus filhos assassinados por ela, com cujo

sangue imediatamente eu a farei pagar o crime.

(Medéia aparece sobre a casa, nurn carro de

fogo puxado por dragoes alados, onde estão

também os caüueres dos filhos)

MEDÉIA

Por que tentas forçar essas portas arrebentando suas

ferragens, procurando os mortos e a mim que os matei?

Poupa-te tantafadiga. Se queres me ver, olha, estou aqui.

Se ainda pretendes algo de mim, fala, mas jamais me

tocarás com tuas mãos traidoras, tão rápidos são estes

corcéis do Sol, pai de meu pai, que os enviou para me

livrar de qualquer fúria inimiga.

JASÁO

MaÌdita! Abominável! Odiada pelos deuses, por mim epor toda a raça dos seres humanos. Execrada como ja-

mais o foi outra qualquer mulher. Tua crueldade pene-

trou com a espada o corpo dos seres que geraste, assim

me destruindo e me deixando sem prole. E ainda ousas

fitar a Terra e o Sol depois desse ato ímpio e sangrento.

Maldição sobre ti! Todas as maldições sobre ti! Tens que

desaparecer da f.ace do mundo. Agora percebo a exten-

MEDÊIA

são de meu erro no malsinado dia em que te trouxe de

tua terra bârbara para esta terra grega, ru que traíste o

pai que te gerou e apâtriaque te alimentou. Os deuses te

lançaram contra mim como uma maldição, demônio

maligno sedento de sangue. Em teu próprio lar já tinhas

matado teu irmão para poderes subir na Argo, minha bela

nau de bela proa. Aí começou tua vida de crimes. Casa-

da então comigo, geraste dois filhos apenas para aplacar

tua desmedida lascívia. Filhos que agora destróis sem

piedade por ciúme de leito. Nenhuma mulher grega ou-

saria tal feito, e, contudo, eu, insensato, te preferi a elas

numa união odiosa e funesta. Tu, não mulher, leoa de

natureza, mais feroz do que a tirrena Cila. Sei que nem

mil maldiçóes abalarão tua natureza de granito. Mas eu

te maldigo: que sejas danada para sempre, ser hediondo,

feiticeira, assassina de teus filhos. A mim só me resta cur-

var-me ao meu destino, sem nem poder desfrutar minhas

novas núpcias. Nem aos filhos que gerei e criei poderei

dirigir a última palavra, o último adeus. Eu perdi tudo.

MEDÉIA

A todas essas tuas palavras eu poderia responder com

muitas mais, mas Zeus, o pai, bem sabe tudo o que fizpor ti, e a paga que me deste. Tu não podias querer, de-

pois de desonrar meu leito, levar vida tranqüila, escarne-

cendo de mim e de meu amor tresloucado. Nem poderia

83

Page 41: Eurípides - Medéia

MILLÔR FERNANDES

tua noiva real, nem Creonte, que te ofereceu essa se-gunda esposa, expulsar-me da terra e não pagarem porisso. Chama-me leoa feroz, Cila, monstro tirreno, onome que bem queiras. Apenas devolvi ao teu coraçãoos golpes que me deste.

JAsÁo

Mas feriste também a ti própria, estás condenada a par-tilhar essa dor.

MEDÉIA

Certo que sim. Mas é uma dor que me alivia a alma,pois não podes mais rir de mim.

JAsÃo

Filhos meus, que mãe perversa!

MEDÉIA

Ó meus filhos, a lascívia desse pai causou vossa ruína.

JASÃO

Mas não foi minha mão que os destruiu.

MEDÉIA

Foi o ultraje de tuas novas núpcias.

MEDÉIA

JAsÁo

Um leito abandonado justifica teus crimes?

MEDÉIA

Se tu fosses mulher, saberias que sim.

JAsÁo

Para a mulher que és, tudo é ofensa intolerável.

MEDÉIA(Assinalando os mortos)

Eles já não existem. Mas teu tormento é imortal.

JASÁO

Viverão sempre, também, como uma praga sobre tuacabeça.

MEDÉIA

Os deuses sabem quem começou esta espiral de horrores.

JASÃO

Conhecem melhor teu negro coração.

MEDÉTA

Odeio-te. E cada palavrarua me é igualmente odiosa.

84 85

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MILLôR FERNANDES

JASÁo

É. tacil te livrares delas.

MEDÉTA

Como? Que devo f.azer?

JAsÁO

Entrega-me esses corpos para que eu os sepulte e os reve-

rencie.

MEDÉTA

Nunca! Vou enterrá-los com minhas próprias máos, no

sanruário de Hera, que domina o cabo e o promontório

de Corinto, onde nenhum de nossos inimigos chegarâpara

ultrajáìos ou violarìhes o úmulo. Nessa terra de Sísifo,

ordenarei festas solenes e ritos místicos para abrandar a

lembrança de tanta impiedade. De lá, irei para a terra de

Erecteu, onde Egeu, filho de Pandion, me hospedará. E

tu, como é de justiça, morrerás morte humilhante enquanto

dormires; a fatídica proa da nave Argo esmagará nla ca-

beça ao cair sobre ela. A nave fugo, que viu nossa alegria,

verá também o amargo fim de nossas bodas.

MEDÉIA

JAsÃO

A maldição de nossos filhos, clamando por vingança e

iustiça, exige teu sangue.

MEDÉlA

Que deus ou qualquer outra força divina te ouvirá ain-

da, perjuro, traidor de todas as leis da hospitalidade?

JASÁo

Cala-te, celerada, assassina infame!

MEDÉlA

Volta para tlra casar vai enterrar tua mulher.

JAsÃO

Vou, roubado de meus queridos filhos.

MEDÉlA

Tua mágoa maior ainda vai chegar. Espera teus dias de

velhice.

JAsÁO

Idolatrados filhos!

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MItLôR f ERNANDES

MEDÉI.A

Para a mãe, que os trouxe ao mundo.

JASÁO

Que os matou.

MEDÉIA

Para te destruir.

JASÁO

Ai de mim, queria apenas que me deixasses imprimirum último beijo de carinho nesses lábios amados.

MEDÉI.A

Agora pedes, queres abraçá-los, implorar por um adeus,

quando ainda há pouco os rejeitavas.

JAsÁo

Deixa-me só tocar com os dedos a pele nívea desses

corpos bem-amados.

MEDÉlA

Tudo que imploras agora são palavras perdidas.

MEOÉIA

(Sai cotn o carro)

JASÃO

Zeus, ouves como estou sendo escorraçado? Vês como

me trata essa leoa feroz, infanticida hedionda, assassina

de seus próprios filhos? Porém, o quanto me seja per-

mitido e eu possa, levantarei para eles um mausoléu,

onde se entoaráo mil hinos fúnebres, que atraiam os

deuses como testemunhas de que tu, depois de assassi-

nar meus filhos, me impedes agora de enterrá-los ou

sequer tocá-los após a morte. Ah, eu náo devia jamais

tê-los gerado para náo vê-los morrer sob teus golpes.

(Sai)

CORIFEU

Do alto do seu trono olímpico, Zeus tece o fio dos fatos e

dos destinos, trama que quase sempre ultrapassa a com-

preensão dos mortais. O esperado náo se realiza, o im-

previsível encontra seu caminho. E assim termina o drama.