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Esta obra foi publicada origina/mente em russo com o título ESTETIKA SLOVIÉSNOVA TVÓRTCHESTVA. Copyright © by Edições hkustvo. Moscou, 1979. Copyright © ¡992 e 2003, Livraria Martins Fontes Editora Lida.. São Paulo, para a presente edição. 1" edição ¡992 4» edição 2003 (nova tradução a partir do russo) 2* tiragem 2006 Tradução PAULO BEZERRA Acompanhamento editorial Ivete Batista dos Santos Revisões gráficas Maria Luiza Favret Ivete Batista dos Santos Dinarte Zorzanelli da Silva Produção gráfica Geraldo Alves Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bakhtin, Mikhail Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin ; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra ; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. - 4 e ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2003. - (Coleção biblioteca universal) Título original: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva. ISBN 85-336-1807-7 I. Literatura - Estética 2. Literatura - História e crítica I. Bezerra, Paulo. II. Todorov. Tzvetan. III. Título. IV Série. 03-3855 CDD-809 índices para catálogo sistemático: 1. Literatura : História e crítica 809 Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados d Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11)3241.3677 Fax (11)3105.6993 e-mail: [email protected] http:llwww.martinsfontes.com.br ÍNDICE Introdução IX Prefácio à edição francesa XIII Arte e responsabilidade XXXIII O AUTOR E A PERSONAGEM NA ATIVIDADE ESTÉTICA CAPÍTULO 11 O autor e a personagem 3 CAPÍTULO ii | A forma espacial da personagem 21 1. O excedente da visão estética 21 2. A imagem externa 25 3. O vivenciamento das fronteiras externas do ho- mem 34 4. A imagem externa da ação 39 5. O corpo como valor: o corpo interior 44 6. O corpo exterior 56 7. O todo espacial da personagem e do seu mundo. Teoria do "horizonte" e do "ambiente" 84 CAPÍTULO III | O todo temporal da personagem (A questão do homem interior - da alma) 91 1. A personagem e sua integridade na obra de arte . 91 2. A relação volitivo-emocional com a determinida-

Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin ; introdução etradução do russo Paulo Bezerra ; prefácio à edição francesaTzvetan Todorov. - 4e ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2003.

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Esta obra foi publicada originamente em russo com o tiacutetulo ESTETIKA SLOVIEacuteSNOVA TVOacuteRTCHESTVA

Copyright copy by Ediccedilotildees hkustvo Moscou 1979 Copyright copy iexcl992 e 2003 Livraria Martins Fontes Editora Lida

Satildeo Paulo para a presente ediccedilatildeo

1 ediccedilatildeo iexcl992 4raquo ediccedilatildeo 2003

(nova traduccedilatildeo a partir do russo) 2 tiragem 2006

T r a d u ccedil atilde o

PAULO BEZERRA

Acompanhamento editorial Ivete Batista dos Santos

Revisotildees graacutef icas Maria Luiza Favret

Ivete Batista dos Santos Dinarte Zorzanelli da Silva

Produccedilatildeo graacutefica Geraldo Alves

PaginaccedilatildeoFotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

(Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

Bakhtin Mikhai l

Esteacutetica da criaccedilatildeo verbal Mikhail Bakhtin introduccedilatildeo e

traduccedilatildeo do russo Paulo Bezerra prefaacutecio agrave ediccedilatildeo francesa

Tzvetan Todorov - 4 e ed - Satildeo Paulo Martins Fontes 2003 -

(Coleccedilatildeo biblioteca universal)

Tiacutetulo original Estetika Slovieacutesnova Tvoacutertchestva ISBN 85-336-1807-7

I Literatura - Esteacutetica 2 Literatura - Histoacuteria e criacutetica I Bezerra Paulo I I Todorov Tzvetan I I I Tiacutetulo I V Seacuterie

03-3855 CDD-809

iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico 1 Literatura Histoacuteria e criacutetica 809

Todos os direitos desta ediccedilatildeo para o Brasil reservados d

Livraria Martins Fontes Editora Ltda

Rua Conselheiro Ramalho 330 01325-000 Satildeo Paulo SP Brasil

Tel (11)32413677 Fax (11)31056993

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Iacute N D I C E

Introduccedilatildeo IX Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo francesa X I I I Arte e responsabilidade XXXIII

O AUTOR E A PERSONAGEM NA ATIVIDADE ESTEacuteTICA

CAPIacuteTULO 11 O autor e a personagem 3

CAPIacuteTULO ii | A forma espacial da personagem 21 1 O excedente da visatildeo esteacutetica 21 2 A imagem externa 25 3 O vivenciamento das fronteiras externas do hoshy

mem 34 4 A imagem externa da accedilatildeo 39 5 O corpo como valor o corpo interior 44 6 O corpo exterior 56 7 O todo espacial da personagem e do seu mundo

Teoria do horizonte e do ambiente 84

CAPIacuteTULO III | O todo temporal da personagem (A questatildeo do homem interior - da alma) 91 1 A personagem e sua integridade na obra de arte 91 2 A relaccedilatildeo volitivo-emocional com a determinida-

O S G Eacute N E R O S D O D I S C U R S O

1 O PROBLEMA E SUA DEFINICcedilAtildeO

Todos os diversos campos da atividade humana estatildeo ligados ao uso da linguagem Compreende-se perfeitamente que o caraacuteter e as formas desse uso sejam tatildeo multiformes quanto os campos da atividashyde humana o que eacute claro natildeo contradiz a unidade nacional de urna liacutengua O emprego da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e uacutenicos proferidos pelos integrantes desse ou dashyquele campo da atividade humana Esses enunciados refletem as conshydiccedilotildees especiacuteficas e as finalidades de cada referido campo natildeo soacute por seu conteuacutedo (temaacutetico) e pelo estilo da linguagem ou seja pela sele-ccedilatildeo dos recursos lexicais fraseoloacutegicos e gramaticais da liacutengua mas acima de tudo por sua construccedilatildeo composicional Todos esses trecircs ele-

T

Bakhtin emprega o termo viskaacutezivanie derivado do infinitivo viskaacutezivat que significa ato de enunciar de exprimir transmitir pensamentos sentimentos etc em palavras O proacuteprio autor situa viskaacutezivanie no campo da parole saussuriana Em Marxismo e filosofia da linguagem (Hucitec Satildeo Paulo) o mesmo termo aparece traduzido como enunciaccedilatildeo e enunciado Mas Bakhtin natildeo faz distinccedilatildeo entre enunciado e enunshyciaccedilatildeo ou melhor emprega o termo viskaacutezivanie quer para o ato de produccedilatildeo do discurshyso oral quer para o discurso escrito o discurso da cultura um romance jaacute publicado e absorvido por uma cultura etc Por essa razatildeo resolvemos natildeo desdobrar o termo (jaacute que o proacuteprio autor natildeo o fez) e traduzir viskaacutezivanie por enunciado (N do T)

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mentos - o conteuacutedo temaacutetico o estilo a construccedilatildeo composicional -estatildeo indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e satildeo igualmenshyte determinados pela especificidade de um determinado campo da coshymunicaccedilatildeo Evidentemente cada enunciado particular eacute individual mas cada campo de utilizaccedilatildeo da liacutengua elabora seus tipos relativamente estaacuteshyveis de enunciados os quais denominamos geacuteneros do discurso

A riqueza e a diversidade dos geacuteneros do discurso satildeo infinitas porshyque satildeo inesgotaacuteveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade eacute integral o repertoacuterio de geacuteneshyros do discurso que cresce e se diferencia agrave medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos geacuteneros do discurso (orais e escritos) nos quais devemos incluir as breves reacuteplicas do diaacutelogo do cotidiano (sa-liente-se que a diversidade das modalidades de diaacutelogo cotidiano eacute exshytraordinariamente grande em funccedilatildeo do seu tema da situaccedilatildeo e da comshyposiccedilatildeo dos participantes) o relato do dia-a-dia a carta (em todas as suas diversas formas) o comando militar lacoacutenico padronizado a orshydem desdobrada e detalhada o repertoacuterio bastante vaacuterio (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado univershyso das manifestaccedilotildees publiciacutesticas (no amplo sentido do termo sociais poliacuteticas) mas aiacute tambeacutem devemos incluir as variadas formas das mashynifestaccedilotildees cientiacuteficas e todos os geacuteneros literaacuterios (do proveacuterbio ao roshymance de muitos volumes) Pode parecer que a heterogeneidade dos geacuteneros discursivos eacute tatildeo grande que natildeo haacute nem pode haver um plano uacutenico para o seu estudo porque neste caso em um plano do estudo apashyrecem fenoacutemenos sumamente heterogeacuteneos como as reacuteplicas mono-vocais do dia-a-dia e o romance de muitos volumes a ordem militar padronizada e ateacute obrigatoacuteria por sua entonaccedilatildeo e uma obra liacuterica proshyfundamente individual etc A heterogeneidade funcional como se pode pensar torna os traccedilos gerais dos geacuteneros discursivos demasiadamente abstratos e vazios A isto provavelmente se deve o fato de que a questatildeo geral dos geacuteneros discursivos nunca foi verdadeiramente colocada Estu-davam-se - e mais que tudo - os geacuteneros literaacuterios Mas da Antiguidashyde aos nossos dias eles foram estudados num corte da sua especificidade artiacutestico-literaacuteria nas distinccedilotildees diferenciais entre eles (no acircmbito da literatura) e natildeo como determinados tipos de enunciados que satildeo di-

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ferentes de outros tipos mas tecircm com estes uma natureza verbal (linshyguumliacutestica) comum Quase natildeo se levava em conta a questatildeo linguumliacutestica geral do enunciado e dos seus tipos Comeccedilando pela Antiguidade es-tudavam-se os geacuteneros retoacutericos (demais as eacutepocas subsequentes poushyco acrescentaram agrave teoria antiga) aiacute jaacute se dava mais atenccedilatildeo agrave natureza verbal desses geacuteneros como enunciados a tais momentos por exemplo como a relaccedilatildeo com o ouvinte e sua influecircncia sobre o enunciado soshybre a conclusibilidade verbal especiacutefica do enunciado (agrave diferenccedila da con-clusibilidade do pensamento) etc Ainda assim tambeacutem aiacute a especifishycidade dos geacuteneros retoacutericos (juriacutedicos poliacuteticos) encobria a sua natureza linguumliacutestica geral Estudavam-se por uacuteltimo tambeacutem os geacuteneros disshycursivos do cotidiano (predominantemente as reacuteplicas do diaacutelogo cotishydiano) e ademais precisamente do ponto de vista da linguumliacutestica geral (na escola de Saussure1 em seus adeptos modernos - os estruturalistas nos behavioristas americanos2 e em bases linguumliacutesticas totalmente disshytintas nos seguidores de Vossler3) Contudo esse estudo tambeacutem natildeo podia redundar em uma definiccedilatildeo correta da natureza universalmente linguumliacutestica do enunciado uma vez que estava restrito agrave especificidade do discurso oral do dia-a-dia por vezes orientando-se diretamente em enunciados deliberadamente primitivos (os behavioristas americanos)

Natildeo se deve de modo algum minimizar a extrema heterogeneishydade dos geacuteneros discursivos e a dificuldade daiacute advinda de definir a natureza geral do enunciado Aqui eacute de especial importacircncia atentar para a diferenccedila essencial entre os geacuteneros discursivos primaacuterios (simples) e secundaacuterios (complexos) - natildeo se trata de uma diferenccedila funcional Os geacuteneros discursivos secundaacuterios (complexos - romances dramas pesshyquisas cientiacuteficas de toda espeacutecie os grandes geacuteneros publiciacutesticos etc) surgem nas condiccedilotildees de um conviacutevio cultural mais complexo e relatishyvamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o esshycrito) - artiacutestico cientiacutefico sociopoliacutetico etc No processo de sua formashyccedilatildeo eles incorporam e reelaboram diversos geacuteneros primaacuterios (simples) que se formaram nas condiccedilotildees da comunicaccedilatildeo discursiva imediata Esses geacuteneros primaacuterios que integram os complexos aiacute se transformam e adquirem um caraacuteter especial perdem o viacutenculo imediato com a realishydade concreta e os enunciados reais alheios por exemplo a reacuteplica do diaacutelogo cotidiano ou da carta no romance ao manterem a sua forma e

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o significado cotidiano apenas no plano do conteuacutedo romanesco inteshygram a realidade concreta apenas atraveacutes do conjunto do romance ou seja como acontecimento artiacutestico-literaacuterio e nao da vida cotidiana No seu conjunto o romance eacute um enunciado como a reacuteplica do diaacutelogo coshytidiano ou urna carta privada (ele tem a mesma natureza dessas duas) mas agrave diferenccedila deles eacute um enunciado secundaacuterio (complexo)

A diferenccedila entre os geacuteneros primaacuterio e secundaacuterio (ideoloacutegicos) eacute extremamente grande e essencial e eacute por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da anaacutelise de ambas as modalidades apenas sob essa condiccedilatildeo a definiccedilatildeo pode vir a ser adeshyquada agrave natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais importantes) a orientaccedilatildeo unilateral centrada nos geacuteshyneros primaacuterios redunda fatalmente na vulgarizaccedilatildeo de todo o problema (o behaviorismo linguumliacutestico eacute o grau extremado de tal vulgarizaccedilatildeo) A proacutepria relaccedilatildeo muacutetua dos geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios e o processhyso de formaccedilatildeo histoacuterica dos uacuteltimos lanccedilam luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relaccedilatildeo de reciprocidade entre linguagem e ideologia)

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de geacutenero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana eacute de enorme importacircncia para quase todos os campos da linguumliacutestica e da fishylologia Porque todo trabalho de investigaccedilatildeo de um material linguumliacutestishyco concreto - seja de histoacuteria da liacutengua de gramaacutetica normativa de conshyfecccedilatildeo de toda espeacutecie de dicionaacuterios ou de estiliacutestica da liacutengua etc -opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) relashycionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicaccedilatildeo - anais tratados textos de leis documentos de escritoacuterio e outros dishyversos geacuteneros literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos cartas oficiais e coshymuns reacuteplicas do diaacutelogo cotidiano (em todas as suas diversas modalishydades) etc de onde os pesquisadores haurem os fatos linguumliacutesticos de que necessitam Achamos que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessaacuteria uma noccedilatildeo precisa da natureza do enunciado em geshyral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primaacuterios e secundaacuterios) isto eacute dos diversos geacuteneros do discurso O desconhecishymento da natureza do enunciado e a relaccedilatildeo diferente com as peculia-

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ridades das diversidades de geacutenero do discurso em qualquer campo da investigaccedilatildeo linguiacutestica redundam em formalismo e em uma abstraccedilatildeo exagerada deformam a historicidade da investigaccedilatildeo debilitam as reshylaccedilotildees da liacutengua com a vida Ora a liacutengua passa a integrar a vida atrashyveacutes de enunciados concretos (que a realizam) eacute igualmente atraveacutes de enunciados concretos que a vida entra na liacutengua O enunciado eacute um nuacutecleo problemaacutetico de importacircncia excepcional Examinemos nesse corte alguns campos e problemas da linguiacutestica

Tratemos em primeiro lugar da estiliacutestica Todo estilo estaacute indissoshyluvelmente ligado ao enunciado e agraves formas tiacutepicas de enunciados ou seja aos geacuteneros do discurso Todo enunciado - oral e escrito primaacuterio e secundaacuterio e tambeacutem em qualquer campo da comunicaccedilatildeo discursishyva (rietchevoacuteie obschecircnieacute) - eacute individual e por isso pode refletir a indishyvidualidade do falante (ou de quem escreve) isto eacute pode ter estilo inshydividual Entretanto nem todos os geacuteneros satildeo igualmente propiacutecios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado ou seja ao estilo individual Os geacuteneros mais favoraacuteveis da literatura de ficccedilatildeo aqui o estilo individual integra diretamente o proacuteprio edifiacuteshycio do enunciado eacute um de seus objetivos principais (contudo no acircmshybito da literatura de ficccedilatildeo os diferentes geacuteneros satildeo diferentes possibishylidades para a expressatildeo da individualidade da linguagem atraveacutes de diferentes aspectos da individualidade) As condiccedilotildees menos propiacutecias para o reflexo da individualidade na linguagem estatildeo presentes naqueles geacuteneros do discurso que requerem uma forma padronizada por exemplo em muitas modalidades de documentos oficiais de ordens militares nos sinais verbalizados da produccedilatildeo etc Aqui podem refletir-se natildeo soacute os aspectos mais superficiais quase bioloacutegicos da individualidade (e ainda assim predominantemente na realizaccedilatildeo oral dos enunciados desses tipos padronizados) Na imensa maioria dos geacuteneros discursivos (exceto nos artiacutestico-literaacuterios) o estilo individual natildeo faz parte do plano

bull

Obschecircnieacute substantivo neutro eacute comunicaccedilatildeo rietchevoacuteie eacute derivaccedilatildeo de rieacutetch que eacute discurso fala em alguns aspectos linguagem mas aqui na acepccedilatildeo bakhtiniana eacute discurso daiacute traduzirmos rietchevoacutei como discursivo e rietchevoacuteie obschecircnieacute como coshymunicaccedilatildeo discursiva porque eacute esse o sentido do pensamento de Bakhtin (N do T)

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do enunciado natildeo serve como um objetivo seu mas eacute por assim dizer um epifenocircmeno do enunciado seu produto complementar Em difeshyrentes geacuteneros podem revelar-se diferentes camadas e aspectos de uma personalidade individual o estilo individual pode encontrar-se em dishyversas relaccedilotildees de reciprocidade com a liacutengua nacional A proacutepria quesshytatildeo da liacutengua nacional na linguagem individual eacute em seus fundamenshytos o problema do enunciado (porque soacute nele no enunciado a liacutengua nacional se materializa na forma individual) A proacutepria definiccedilatildeo de estilo em geral e de estilo individual em particular exige um estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de geacuteneros discursivos

A relaccedilatildeo orgacircnica e indissoluacutevel do estilo com o geacutenero se revela nishytidamente tambeacutem na questatildeo dos estilos de linguagem ou funcionais No fundo os estilos de linguagem ou funcionais natildeo satildeo outra coisa senatildeo estilos de geacutenero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicaccedilatildeo Em cada campo existem e satildeo empregados geacuteneros que correspondem agraves condiccedilotildees especiacuteficas de dado campo eacute a esses geacuteneshyros que correspondem determinados estilos Uma determinada funccedilatildeo (cientiacutefica teacutecnica publiciacutestica oficial cotidiana) e determinadas conshydiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva especiacuteficas de cada campo geram determinados geacuteneros isto eacute determinados tipos de enunciados estiliacutesshyticos temaacuteticos e composicionais relativamente estaacuteveis O estilo eacute inshydissociaacutevel de determinadas unidades temaacuteticas e - o que eacute de especial importacircncia - de determinadas unidades composicionais de determishynados tipos de construccedilatildeo do conjunto de tipos do seu acabamento de tipos da relaccedilatildeo do falante com outros participantes da comunicaccedilatildeo discursiva - com os ouvintes os leitores os parceiros o discurso do oushytro etc O estilo integra a unidade de geacutenero do enunciado como seu elemento Isto natildeo significa evidentemente que o estilo de linguagem natildeo possa se tornar objeto de um estudo especial independente Semeshylhante estudo ou seja a estiliacutestica da liacutengua como disciplina autoacutenoma tambeacutem eacute possiacutevel e necessaacuterio No entanto esse estudo soacute seraacute correshyio e eficaz se levar permanentemente em conta a natureza do geacutenero dos estilos linguiacutesticos e basear-se no estudo preacutevio das modalidades de geacuteshyneros do discurso Ateacute hoje a estiliacutestica da liacutengua tem sido desprovida de semelhante base Daiacute a sua fraqueza Natildeo existe uma classificaccedilatildeo dos

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estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral Os autores das classhysificaccedilotildees frequentemente deturpam a principal exigecircncia loacutegica da classificaccedilatildeo - a unidade do fundamento As classificaccedilotildees satildeo sumashymente pobres e natildeo diferenciadas Por exemplo numa gramaacutetica acashydeacutemica da liacutengua russa recentemente publicada satildeo apresentadas as seguintes variedades estiliacutesticas da liacutengua o discurso do livro o disshycurso popular o discurso abstrato-cientiacutefico teacutecnico-cientiacutefico jorna-liacutestico-publiciacutestico oficial familiar cotidiano discurso popular vulgar Paralelamente a esses estilos de linguagem figuram como modalidashydes estiliacutesticas palavras dialeacuteticas palavras arcaicas expressotildees profisshysionais Semelhante classificaccedilatildeo dos estilos eacute absolutamente casual baseia-se em diferentes princiacutepios (ou fundamentos) de divisatildeo em esshytilos Aleacutem disso essa classificaccedilatildeo eacute tambeacutem pobre e pouco diferenshyciada Tudo isso eacute resultado direto da incompreensatildeo da natureza de geacutenero dos estilos de linguagem e da ausecircncia de uma classificaccedilatildeo bem pensada dos geacuteneros discursivos por campos de atividade (bem como da distinccedilatildeo muito importante para a estiliacutestica entre geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios)

A separaccedilatildeo dos estilos em relaccedilatildeo aos geacuteneros manifesta-se de forshyma particularmente nociva na elaboraccedilatildeo de uma seacuterie de questotildees hisshytoacutericas As mudanccedilas histoacutericas dos estilos de linguagem estatildeo indissoshyluvelmente ligadas agraves mudanccedilas dos geacuteneros do discurso A linguagem literaacuteria eacute um sistema dinacircmico e complexo de estilos de linguagem o peso especiacutefico desses estilos e sua inter-relaccedilatildeo no sistema da linguagem literaacuteria estatildeo em mudanccedila permanente A linguagem da literatura cuja composiccedilatildeo eacute integrada pelos estilos da linguagem natildeo literaacuteria eacute um sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases Para entenshyder a complexa dinacircmica histoacuterica desses sistemas para passar da descrishyccedilatildeo simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estatildeo preshysentes e se alternam para a explicaccedilatildeo histoacuterica dessas mudanccedilas faz-se necessaacuteria uma elaboraccedilatildeo especial da histoacuteria dos geacuteneros discursivos

bull

Classificaccedilotildees igualmente pobres vagas e sem um fundamento bem pensado dos estilos de linguagem satildeo apresentadas por A N Gvoacutezdiev em seu livro Ensaios de estilo da liacutenshygua russa (Moscou 1952 pp 13-5) Essas classificaccedilotildees se baseiam numa assimilaccedilatildeo acriacutetica das noccedilotildees tradicionais de estilos de linguagem (N da ed russa)

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(tanto primarios quanto secundaacuterios) que refletem de modo mais imeshydiato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que transcorrem na vida soshycial Os enunciados e seus tipos isto eacute os geacuteneros discursivos satildeo correias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum fenoacutemeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de geacuteneros e estilos

Em cada eacutepoca de evoluccedilatildeo da linguagem literaacuteria o tom eacute dado por determinados geacuteneros do discurso e natildeo soacute geacuteneros secundaacuterios (literaacuterios publiciacutesticos cientiacuteficos) mas tambeacutem primaacuterios (determishynados tipos de diaacutelogo oral - de salatildeo iacutentimo de ciacuterculo familiar-coshytidiano sociopoliacutetico filosoacutefico etc) Toda ampliaccedilatildeo da linguagem literaacuteria agrave custa das diversas camadas extraliteraacuterias da liacutengua nacional estaacute intimamente ligada agrave penetraccedilatildeo da linguagem literaacuteria em todos os geacuteneros (literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos de conversaccedilatildeo etc) em maior ou menor grau tambeacutem dos novos procedimentos de geacutenero de construccedilatildeo do todo discursivo do seu acabamento da inclusatildeo do oushyvinte ou parceiro etc o que acarreta uma reconstruccedilatildeo e uma renovashyccedilatildeo mais ou menos substancial dos geacuteneros do discurso Quando reshycorremos agraves respectivas camadas natildeo literaacuterias da liacutengua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambeacutem aos geacuteneros do discurso em que se realizam essas camadas Trata-se na maioria dos casos de diferentes tipos de geacuteneros de conversaccedilatildeo e diaacutelogo daiacute a dialogizaccedilatildeo mais ou menos brusca dos geacuteneros secundaacuterios o enfraquecimento de sua comshyposiccedilatildeo monoloacutegica a nova sensaccedilatildeo do ouvinte como parceiro-inter-locutor as novas formas de conclusatildeo do todo etc Onde haacute estilo haacute geacutenero A passagem do estilo de um geacutenero para outro natildeo soacute modifica o som do estilo nas condiccedilotildees do geacutenero que natildeo lhe eacute proacuteprio como destroacutei ou renova tal geacutenero

Desse modo tanto os estilos individuais quanto os da liacutengua satisshyfazem aos geacuteneros do discurso Um estudo mais profundo e amplo des-

T

Essa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do primado do estiliacutestico sobre o gramaacutetico Nossa exposiccedilatildeo subsequente o mostraraacute com plena clareza (N da ed russa)

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tes eacute absolutamente indispensaacutevel para uma elaboraccedilatildeo eficaz de todas as questotildees da estiliacutestica

Contudo tanto a questatildeo metodoloacutegica de princiacutepio quanto a quesshytatildeo geral relativa agraves relaccedilotildees reciacuteprocas do leacutexico com a gramaacutetica por um lado e com a estiliacutestica por outro baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos geacuteneros do discurso

A gramaacutetica (e o leacutexico) se distingue substancialmente da estiliacutestica (alguns chegam ateacute a colocaacute-la em oposiccedilatildeo agrave estiliacutestica) mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramaacutetica (jaacute nem falo de gramaacutetica normashytiva) pode dispensar observaccedilotildees e incursotildees estiliacutesticas Em toda uma seacuterie de casos eacute como se fosse obliterada a fronteira entre a gramaacutetica e a estiliacutestica Haacute fenoacutemenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramaacutetica outros ao campo da estiliacutestica Um deles eacute o sintagma

Pode-se dizer que a gramaacutetica e a estiliacutestica convergem e divergem em qualquer fenoacutemeno concreto de linguagem se o examinamos apeshynas no sistema da liacutengua estamos diante de um fenoacutemeno gramatical mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do geacutenero discursivo jaacute se trata de fenoacutemeno estiliacutestico Porque a proacutepria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante eacute um ato estiliacutestico Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenoacutemeno concreto da liacutengua natildeo devem ser mutuamente impenetraacuteveis nem simshyplesmente substituir mecanicamente um ao outro devendo poreacutem combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinccedilatildeo metodoloacuteshygica) com base na unidade real do fenoacutemeno da liacutengua Soacute uma conshycepccedilatildeo profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos geacuteneros discursivos pode assegurar a soluccedilatildeo correta dessa complexa questatildeo metodoloacutegica

O estudo da natureza dos enunciados e dos geacuteneros discursivos eacute segundo nos parece de importacircncia fundamental para superar as conshycepccedilotildees simplificadas da vida do discurso do chamado fluxo discursishyvo da comunicaccedilatildeo etc daquelas concepccedilotildees que ainda dominam a nossa linguiacutestica Aleacutem do mais o estudo do enunciado como unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva permitiraacute compreender de modo mais correto tambeacutem a natureza das unidades da liacutengua (enquanto sistema) - as palavras e oraccedilotildees

Eacute para essa questatildeo mais geral que passamos agora

270 I M I K H A I L B A K H T I N

2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

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Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

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Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

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Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

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Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 2: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

O S G Eacute N E R O S D O D I S C U R S O

1 O PROBLEMA E SUA DEFINICcedilAtildeO

Todos os diversos campos da atividade humana estatildeo ligados ao uso da linguagem Compreende-se perfeitamente que o caraacuteter e as formas desse uso sejam tatildeo multiformes quanto os campos da atividashyde humana o que eacute claro natildeo contradiz a unidade nacional de urna liacutengua O emprego da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e uacutenicos proferidos pelos integrantes desse ou dashyquele campo da atividade humana Esses enunciados refletem as conshydiccedilotildees especiacuteficas e as finalidades de cada referido campo natildeo soacute por seu conteuacutedo (temaacutetico) e pelo estilo da linguagem ou seja pela sele-ccedilatildeo dos recursos lexicais fraseoloacutegicos e gramaticais da liacutengua mas acima de tudo por sua construccedilatildeo composicional Todos esses trecircs ele-

T

Bakhtin emprega o termo viskaacutezivanie derivado do infinitivo viskaacutezivat que significa ato de enunciar de exprimir transmitir pensamentos sentimentos etc em palavras O proacuteprio autor situa viskaacutezivanie no campo da parole saussuriana Em Marxismo e filosofia da linguagem (Hucitec Satildeo Paulo) o mesmo termo aparece traduzido como enunciaccedilatildeo e enunciado Mas Bakhtin natildeo faz distinccedilatildeo entre enunciado e enunshyciaccedilatildeo ou melhor emprega o termo viskaacutezivanie quer para o ato de produccedilatildeo do discurshyso oral quer para o discurso escrito o discurso da cultura um romance jaacute publicado e absorvido por uma cultura etc Por essa razatildeo resolvemos natildeo desdobrar o termo (jaacute que o proacuteprio autor natildeo o fez) e traduzir viskaacutezivanie por enunciado (N do T)

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mentos - o conteuacutedo temaacutetico o estilo a construccedilatildeo composicional -estatildeo indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e satildeo igualmenshyte determinados pela especificidade de um determinado campo da coshymunicaccedilatildeo Evidentemente cada enunciado particular eacute individual mas cada campo de utilizaccedilatildeo da liacutengua elabora seus tipos relativamente estaacuteshyveis de enunciados os quais denominamos geacuteneros do discurso

A riqueza e a diversidade dos geacuteneros do discurso satildeo infinitas porshyque satildeo inesgotaacuteveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade eacute integral o repertoacuterio de geacuteneshyros do discurso que cresce e se diferencia agrave medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos geacuteneros do discurso (orais e escritos) nos quais devemos incluir as breves reacuteplicas do diaacutelogo do cotidiano (sa-liente-se que a diversidade das modalidades de diaacutelogo cotidiano eacute exshytraordinariamente grande em funccedilatildeo do seu tema da situaccedilatildeo e da comshyposiccedilatildeo dos participantes) o relato do dia-a-dia a carta (em todas as suas diversas formas) o comando militar lacoacutenico padronizado a orshydem desdobrada e detalhada o repertoacuterio bastante vaacuterio (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado univershyso das manifestaccedilotildees publiciacutesticas (no amplo sentido do termo sociais poliacuteticas) mas aiacute tambeacutem devemos incluir as variadas formas das mashynifestaccedilotildees cientiacuteficas e todos os geacuteneros literaacuterios (do proveacuterbio ao roshymance de muitos volumes) Pode parecer que a heterogeneidade dos geacuteneros discursivos eacute tatildeo grande que natildeo haacute nem pode haver um plano uacutenico para o seu estudo porque neste caso em um plano do estudo apashyrecem fenoacutemenos sumamente heterogeacuteneos como as reacuteplicas mono-vocais do dia-a-dia e o romance de muitos volumes a ordem militar padronizada e ateacute obrigatoacuteria por sua entonaccedilatildeo e uma obra liacuterica proshyfundamente individual etc A heterogeneidade funcional como se pode pensar torna os traccedilos gerais dos geacuteneros discursivos demasiadamente abstratos e vazios A isto provavelmente se deve o fato de que a questatildeo geral dos geacuteneros discursivos nunca foi verdadeiramente colocada Estu-davam-se - e mais que tudo - os geacuteneros literaacuterios Mas da Antiguidashyde aos nossos dias eles foram estudados num corte da sua especificidade artiacutestico-literaacuteria nas distinccedilotildees diferenciais entre eles (no acircmbito da literatura) e natildeo como determinados tipos de enunciados que satildeo di-

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ferentes de outros tipos mas tecircm com estes uma natureza verbal (linshyguumliacutestica) comum Quase natildeo se levava em conta a questatildeo linguumliacutestica geral do enunciado e dos seus tipos Comeccedilando pela Antiguidade es-tudavam-se os geacuteneros retoacutericos (demais as eacutepocas subsequentes poushyco acrescentaram agrave teoria antiga) aiacute jaacute se dava mais atenccedilatildeo agrave natureza verbal desses geacuteneros como enunciados a tais momentos por exemplo como a relaccedilatildeo com o ouvinte e sua influecircncia sobre o enunciado soshybre a conclusibilidade verbal especiacutefica do enunciado (agrave diferenccedila da con-clusibilidade do pensamento) etc Ainda assim tambeacutem aiacute a especifishycidade dos geacuteneros retoacutericos (juriacutedicos poliacuteticos) encobria a sua natureza linguumliacutestica geral Estudavam-se por uacuteltimo tambeacutem os geacuteneros disshycursivos do cotidiano (predominantemente as reacuteplicas do diaacutelogo cotishydiano) e ademais precisamente do ponto de vista da linguumliacutestica geral (na escola de Saussure1 em seus adeptos modernos - os estruturalistas nos behavioristas americanos2 e em bases linguumliacutesticas totalmente disshytintas nos seguidores de Vossler3) Contudo esse estudo tambeacutem natildeo podia redundar em uma definiccedilatildeo correta da natureza universalmente linguumliacutestica do enunciado uma vez que estava restrito agrave especificidade do discurso oral do dia-a-dia por vezes orientando-se diretamente em enunciados deliberadamente primitivos (os behavioristas americanos)

Natildeo se deve de modo algum minimizar a extrema heterogeneishydade dos geacuteneros discursivos e a dificuldade daiacute advinda de definir a natureza geral do enunciado Aqui eacute de especial importacircncia atentar para a diferenccedila essencial entre os geacuteneros discursivos primaacuterios (simples) e secundaacuterios (complexos) - natildeo se trata de uma diferenccedila funcional Os geacuteneros discursivos secundaacuterios (complexos - romances dramas pesshyquisas cientiacuteficas de toda espeacutecie os grandes geacuteneros publiciacutesticos etc) surgem nas condiccedilotildees de um conviacutevio cultural mais complexo e relatishyvamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o esshycrito) - artiacutestico cientiacutefico sociopoliacutetico etc No processo de sua formashyccedilatildeo eles incorporam e reelaboram diversos geacuteneros primaacuterios (simples) que se formaram nas condiccedilotildees da comunicaccedilatildeo discursiva imediata Esses geacuteneros primaacuterios que integram os complexos aiacute se transformam e adquirem um caraacuteter especial perdem o viacutenculo imediato com a realishydade concreta e os enunciados reais alheios por exemplo a reacuteplica do diaacutelogo cotidiano ou da carta no romance ao manterem a sua forma e

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o significado cotidiano apenas no plano do conteuacutedo romanesco inteshygram a realidade concreta apenas atraveacutes do conjunto do romance ou seja como acontecimento artiacutestico-literaacuterio e nao da vida cotidiana No seu conjunto o romance eacute um enunciado como a reacuteplica do diaacutelogo coshytidiano ou urna carta privada (ele tem a mesma natureza dessas duas) mas agrave diferenccedila deles eacute um enunciado secundaacuterio (complexo)

A diferenccedila entre os geacuteneros primaacuterio e secundaacuterio (ideoloacutegicos) eacute extremamente grande e essencial e eacute por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da anaacutelise de ambas as modalidades apenas sob essa condiccedilatildeo a definiccedilatildeo pode vir a ser adeshyquada agrave natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais importantes) a orientaccedilatildeo unilateral centrada nos geacuteshyneros primaacuterios redunda fatalmente na vulgarizaccedilatildeo de todo o problema (o behaviorismo linguumliacutestico eacute o grau extremado de tal vulgarizaccedilatildeo) A proacutepria relaccedilatildeo muacutetua dos geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios e o processhyso de formaccedilatildeo histoacuterica dos uacuteltimos lanccedilam luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relaccedilatildeo de reciprocidade entre linguagem e ideologia)

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de geacutenero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana eacute de enorme importacircncia para quase todos os campos da linguumliacutestica e da fishylologia Porque todo trabalho de investigaccedilatildeo de um material linguumliacutestishyco concreto - seja de histoacuteria da liacutengua de gramaacutetica normativa de conshyfecccedilatildeo de toda espeacutecie de dicionaacuterios ou de estiliacutestica da liacutengua etc -opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) relashycionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicaccedilatildeo - anais tratados textos de leis documentos de escritoacuterio e outros dishyversos geacuteneros literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos cartas oficiais e coshymuns reacuteplicas do diaacutelogo cotidiano (em todas as suas diversas modalishydades) etc de onde os pesquisadores haurem os fatos linguumliacutesticos de que necessitam Achamos que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessaacuteria uma noccedilatildeo precisa da natureza do enunciado em geshyral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primaacuterios e secundaacuterios) isto eacute dos diversos geacuteneros do discurso O desconhecishymento da natureza do enunciado e a relaccedilatildeo diferente com as peculia-

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ridades das diversidades de geacutenero do discurso em qualquer campo da investigaccedilatildeo linguiacutestica redundam em formalismo e em uma abstraccedilatildeo exagerada deformam a historicidade da investigaccedilatildeo debilitam as reshylaccedilotildees da liacutengua com a vida Ora a liacutengua passa a integrar a vida atrashyveacutes de enunciados concretos (que a realizam) eacute igualmente atraveacutes de enunciados concretos que a vida entra na liacutengua O enunciado eacute um nuacutecleo problemaacutetico de importacircncia excepcional Examinemos nesse corte alguns campos e problemas da linguiacutestica

Tratemos em primeiro lugar da estiliacutestica Todo estilo estaacute indissoshyluvelmente ligado ao enunciado e agraves formas tiacutepicas de enunciados ou seja aos geacuteneros do discurso Todo enunciado - oral e escrito primaacuterio e secundaacuterio e tambeacutem em qualquer campo da comunicaccedilatildeo discursishyva (rietchevoacuteie obschecircnieacute) - eacute individual e por isso pode refletir a indishyvidualidade do falante (ou de quem escreve) isto eacute pode ter estilo inshydividual Entretanto nem todos os geacuteneros satildeo igualmente propiacutecios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado ou seja ao estilo individual Os geacuteneros mais favoraacuteveis da literatura de ficccedilatildeo aqui o estilo individual integra diretamente o proacuteprio edifiacuteshycio do enunciado eacute um de seus objetivos principais (contudo no acircmshybito da literatura de ficccedilatildeo os diferentes geacuteneros satildeo diferentes possibishylidades para a expressatildeo da individualidade da linguagem atraveacutes de diferentes aspectos da individualidade) As condiccedilotildees menos propiacutecias para o reflexo da individualidade na linguagem estatildeo presentes naqueles geacuteneros do discurso que requerem uma forma padronizada por exemplo em muitas modalidades de documentos oficiais de ordens militares nos sinais verbalizados da produccedilatildeo etc Aqui podem refletir-se natildeo soacute os aspectos mais superficiais quase bioloacutegicos da individualidade (e ainda assim predominantemente na realizaccedilatildeo oral dos enunciados desses tipos padronizados) Na imensa maioria dos geacuteneros discursivos (exceto nos artiacutestico-literaacuterios) o estilo individual natildeo faz parte do plano

bull

Obschecircnieacute substantivo neutro eacute comunicaccedilatildeo rietchevoacuteie eacute derivaccedilatildeo de rieacutetch que eacute discurso fala em alguns aspectos linguagem mas aqui na acepccedilatildeo bakhtiniana eacute discurso daiacute traduzirmos rietchevoacutei como discursivo e rietchevoacuteie obschecircnieacute como coshymunicaccedilatildeo discursiva porque eacute esse o sentido do pensamento de Bakhtin (N do T)

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do enunciado natildeo serve como um objetivo seu mas eacute por assim dizer um epifenocircmeno do enunciado seu produto complementar Em difeshyrentes geacuteneros podem revelar-se diferentes camadas e aspectos de uma personalidade individual o estilo individual pode encontrar-se em dishyversas relaccedilotildees de reciprocidade com a liacutengua nacional A proacutepria quesshytatildeo da liacutengua nacional na linguagem individual eacute em seus fundamenshytos o problema do enunciado (porque soacute nele no enunciado a liacutengua nacional se materializa na forma individual) A proacutepria definiccedilatildeo de estilo em geral e de estilo individual em particular exige um estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de geacuteneros discursivos

A relaccedilatildeo orgacircnica e indissoluacutevel do estilo com o geacutenero se revela nishytidamente tambeacutem na questatildeo dos estilos de linguagem ou funcionais No fundo os estilos de linguagem ou funcionais natildeo satildeo outra coisa senatildeo estilos de geacutenero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicaccedilatildeo Em cada campo existem e satildeo empregados geacuteneros que correspondem agraves condiccedilotildees especiacuteficas de dado campo eacute a esses geacuteneshyros que correspondem determinados estilos Uma determinada funccedilatildeo (cientiacutefica teacutecnica publiciacutestica oficial cotidiana) e determinadas conshydiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva especiacuteficas de cada campo geram determinados geacuteneros isto eacute determinados tipos de enunciados estiliacutesshyticos temaacuteticos e composicionais relativamente estaacuteveis O estilo eacute inshydissociaacutevel de determinadas unidades temaacuteticas e - o que eacute de especial importacircncia - de determinadas unidades composicionais de determishynados tipos de construccedilatildeo do conjunto de tipos do seu acabamento de tipos da relaccedilatildeo do falante com outros participantes da comunicaccedilatildeo discursiva - com os ouvintes os leitores os parceiros o discurso do oushytro etc O estilo integra a unidade de geacutenero do enunciado como seu elemento Isto natildeo significa evidentemente que o estilo de linguagem natildeo possa se tornar objeto de um estudo especial independente Semeshylhante estudo ou seja a estiliacutestica da liacutengua como disciplina autoacutenoma tambeacutem eacute possiacutevel e necessaacuterio No entanto esse estudo soacute seraacute correshyio e eficaz se levar permanentemente em conta a natureza do geacutenero dos estilos linguiacutesticos e basear-se no estudo preacutevio das modalidades de geacuteshyneros do discurso Ateacute hoje a estiliacutestica da liacutengua tem sido desprovida de semelhante base Daiacute a sua fraqueza Natildeo existe uma classificaccedilatildeo dos

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estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral Os autores das classhysificaccedilotildees frequentemente deturpam a principal exigecircncia loacutegica da classificaccedilatildeo - a unidade do fundamento As classificaccedilotildees satildeo sumashymente pobres e natildeo diferenciadas Por exemplo numa gramaacutetica acashydeacutemica da liacutengua russa recentemente publicada satildeo apresentadas as seguintes variedades estiliacutesticas da liacutengua o discurso do livro o disshycurso popular o discurso abstrato-cientiacutefico teacutecnico-cientiacutefico jorna-liacutestico-publiciacutestico oficial familiar cotidiano discurso popular vulgar Paralelamente a esses estilos de linguagem figuram como modalidashydes estiliacutesticas palavras dialeacuteticas palavras arcaicas expressotildees profisshysionais Semelhante classificaccedilatildeo dos estilos eacute absolutamente casual baseia-se em diferentes princiacutepios (ou fundamentos) de divisatildeo em esshytilos Aleacutem disso essa classificaccedilatildeo eacute tambeacutem pobre e pouco diferenshyciada Tudo isso eacute resultado direto da incompreensatildeo da natureza de geacutenero dos estilos de linguagem e da ausecircncia de uma classificaccedilatildeo bem pensada dos geacuteneros discursivos por campos de atividade (bem como da distinccedilatildeo muito importante para a estiliacutestica entre geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios)

A separaccedilatildeo dos estilos em relaccedilatildeo aos geacuteneros manifesta-se de forshyma particularmente nociva na elaboraccedilatildeo de uma seacuterie de questotildees hisshytoacutericas As mudanccedilas histoacutericas dos estilos de linguagem estatildeo indissoshyluvelmente ligadas agraves mudanccedilas dos geacuteneros do discurso A linguagem literaacuteria eacute um sistema dinacircmico e complexo de estilos de linguagem o peso especiacutefico desses estilos e sua inter-relaccedilatildeo no sistema da linguagem literaacuteria estatildeo em mudanccedila permanente A linguagem da literatura cuja composiccedilatildeo eacute integrada pelos estilos da linguagem natildeo literaacuteria eacute um sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases Para entenshyder a complexa dinacircmica histoacuterica desses sistemas para passar da descrishyccedilatildeo simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estatildeo preshysentes e se alternam para a explicaccedilatildeo histoacuterica dessas mudanccedilas faz-se necessaacuteria uma elaboraccedilatildeo especial da histoacuteria dos geacuteneros discursivos

bull

Classificaccedilotildees igualmente pobres vagas e sem um fundamento bem pensado dos estilos de linguagem satildeo apresentadas por A N Gvoacutezdiev em seu livro Ensaios de estilo da liacutenshygua russa (Moscou 1952 pp 13-5) Essas classificaccedilotildees se baseiam numa assimilaccedilatildeo acriacutetica das noccedilotildees tradicionais de estilos de linguagem (N da ed russa)

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(tanto primarios quanto secundaacuterios) que refletem de modo mais imeshydiato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que transcorrem na vida soshycial Os enunciados e seus tipos isto eacute os geacuteneros discursivos satildeo correias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum fenoacutemeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de geacuteneros e estilos

Em cada eacutepoca de evoluccedilatildeo da linguagem literaacuteria o tom eacute dado por determinados geacuteneros do discurso e natildeo soacute geacuteneros secundaacuterios (literaacuterios publiciacutesticos cientiacuteficos) mas tambeacutem primaacuterios (determishynados tipos de diaacutelogo oral - de salatildeo iacutentimo de ciacuterculo familiar-coshytidiano sociopoliacutetico filosoacutefico etc) Toda ampliaccedilatildeo da linguagem literaacuteria agrave custa das diversas camadas extraliteraacuterias da liacutengua nacional estaacute intimamente ligada agrave penetraccedilatildeo da linguagem literaacuteria em todos os geacuteneros (literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos de conversaccedilatildeo etc) em maior ou menor grau tambeacutem dos novos procedimentos de geacutenero de construccedilatildeo do todo discursivo do seu acabamento da inclusatildeo do oushyvinte ou parceiro etc o que acarreta uma reconstruccedilatildeo e uma renovashyccedilatildeo mais ou menos substancial dos geacuteneros do discurso Quando reshycorremos agraves respectivas camadas natildeo literaacuterias da liacutengua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambeacutem aos geacuteneros do discurso em que se realizam essas camadas Trata-se na maioria dos casos de diferentes tipos de geacuteneros de conversaccedilatildeo e diaacutelogo daiacute a dialogizaccedilatildeo mais ou menos brusca dos geacuteneros secundaacuterios o enfraquecimento de sua comshyposiccedilatildeo monoloacutegica a nova sensaccedilatildeo do ouvinte como parceiro-inter-locutor as novas formas de conclusatildeo do todo etc Onde haacute estilo haacute geacutenero A passagem do estilo de um geacutenero para outro natildeo soacute modifica o som do estilo nas condiccedilotildees do geacutenero que natildeo lhe eacute proacuteprio como destroacutei ou renova tal geacutenero

Desse modo tanto os estilos individuais quanto os da liacutengua satisshyfazem aos geacuteneros do discurso Um estudo mais profundo e amplo des-

T

Essa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do primado do estiliacutestico sobre o gramaacutetico Nossa exposiccedilatildeo subsequente o mostraraacute com plena clareza (N da ed russa)

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tes eacute absolutamente indispensaacutevel para uma elaboraccedilatildeo eficaz de todas as questotildees da estiliacutestica

Contudo tanto a questatildeo metodoloacutegica de princiacutepio quanto a quesshytatildeo geral relativa agraves relaccedilotildees reciacuteprocas do leacutexico com a gramaacutetica por um lado e com a estiliacutestica por outro baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos geacuteneros do discurso

A gramaacutetica (e o leacutexico) se distingue substancialmente da estiliacutestica (alguns chegam ateacute a colocaacute-la em oposiccedilatildeo agrave estiliacutestica) mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramaacutetica (jaacute nem falo de gramaacutetica normashytiva) pode dispensar observaccedilotildees e incursotildees estiliacutesticas Em toda uma seacuterie de casos eacute como se fosse obliterada a fronteira entre a gramaacutetica e a estiliacutestica Haacute fenoacutemenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramaacutetica outros ao campo da estiliacutestica Um deles eacute o sintagma

Pode-se dizer que a gramaacutetica e a estiliacutestica convergem e divergem em qualquer fenoacutemeno concreto de linguagem se o examinamos apeshynas no sistema da liacutengua estamos diante de um fenoacutemeno gramatical mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do geacutenero discursivo jaacute se trata de fenoacutemeno estiliacutestico Porque a proacutepria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante eacute um ato estiliacutestico Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenoacutemeno concreto da liacutengua natildeo devem ser mutuamente impenetraacuteveis nem simshyplesmente substituir mecanicamente um ao outro devendo poreacutem combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinccedilatildeo metodoloacuteshygica) com base na unidade real do fenoacutemeno da liacutengua Soacute uma conshycepccedilatildeo profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos geacuteneros discursivos pode assegurar a soluccedilatildeo correta dessa complexa questatildeo metodoloacutegica

O estudo da natureza dos enunciados e dos geacuteneros discursivos eacute segundo nos parece de importacircncia fundamental para superar as conshycepccedilotildees simplificadas da vida do discurso do chamado fluxo discursishyvo da comunicaccedilatildeo etc daquelas concepccedilotildees que ainda dominam a nossa linguiacutestica Aleacutem do mais o estudo do enunciado como unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva permitiraacute compreender de modo mais correto tambeacutem a natureza das unidades da liacutengua (enquanto sistema) - as palavras e oraccedilotildees

Eacute para essa questatildeo mais geral que passamos agora

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2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

bull

Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

bull

Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

bull

Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 3: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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mentos - o conteuacutedo temaacutetico o estilo a construccedilatildeo composicional -estatildeo indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e satildeo igualmenshyte determinados pela especificidade de um determinado campo da coshymunicaccedilatildeo Evidentemente cada enunciado particular eacute individual mas cada campo de utilizaccedilatildeo da liacutengua elabora seus tipos relativamente estaacuteshyveis de enunciados os quais denominamos geacuteneros do discurso

A riqueza e a diversidade dos geacuteneros do discurso satildeo infinitas porshyque satildeo inesgotaacuteveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade eacute integral o repertoacuterio de geacuteneshyros do discurso que cresce e se diferencia agrave medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo Cabe salientar em especial a extrema heterogeneidade dos geacuteneros do discurso (orais e escritos) nos quais devemos incluir as breves reacuteplicas do diaacutelogo do cotidiano (sa-liente-se que a diversidade das modalidades de diaacutelogo cotidiano eacute exshytraordinariamente grande em funccedilatildeo do seu tema da situaccedilatildeo e da comshyposiccedilatildeo dos participantes) o relato do dia-a-dia a carta (em todas as suas diversas formas) o comando militar lacoacutenico padronizado a orshydem desdobrada e detalhada o repertoacuterio bastante vaacuterio (padronizado na maioria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado univershyso das manifestaccedilotildees publiciacutesticas (no amplo sentido do termo sociais poliacuteticas) mas aiacute tambeacutem devemos incluir as variadas formas das mashynifestaccedilotildees cientiacuteficas e todos os geacuteneros literaacuterios (do proveacuterbio ao roshymance de muitos volumes) Pode parecer que a heterogeneidade dos geacuteneros discursivos eacute tatildeo grande que natildeo haacute nem pode haver um plano uacutenico para o seu estudo porque neste caso em um plano do estudo apashyrecem fenoacutemenos sumamente heterogeacuteneos como as reacuteplicas mono-vocais do dia-a-dia e o romance de muitos volumes a ordem militar padronizada e ateacute obrigatoacuteria por sua entonaccedilatildeo e uma obra liacuterica proshyfundamente individual etc A heterogeneidade funcional como se pode pensar torna os traccedilos gerais dos geacuteneros discursivos demasiadamente abstratos e vazios A isto provavelmente se deve o fato de que a questatildeo geral dos geacuteneros discursivos nunca foi verdadeiramente colocada Estu-davam-se - e mais que tudo - os geacuteneros literaacuterios Mas da Antiguidashyde aos nossos dias eles foram estudados num corte da sua especificidade artiacutestico-literaacuteria nas distinccedilotildees diferenciais entre eles (no acircmbito da literatura) e natildeo como determinados tipos de enunciados que satildeo di-

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ferentes de outros tipos mas tecircm com estes uma natureza verbal (linshyguumliacutestica) comum Quase natildeo se levava em conta a questatildeo linguumliacutestica geral do enunciado e dos seus tipos Comeccedilando pela Antiguidade es-tudavam-se os geacuteneros retoacutericos (demais as eacutepocas subsequentes poushyco acrescentaram agrave teoria antiga) aiacute jaacute se dava mais atenccedilatildeo agrave natureza verbal desses geacuteneros como enunciados a tais momentos por exemplo como a relaccedilatildeo com o ouvinte e sua influecircncia sobre o enunciado soshybre a conclusibilidade verbal especiacutefica do enunciado (agrave diferenccedila da con-clusibilidade do pensamento) etc Ainda assim tambeacutem aiacute a especifishycidade dos geacuteneros retoacutericos (juriacutedicos poliacuteticos) encobria a sua natureza linguumliacutestica geral Estudavam-se por uacuteltimo tambeacutem os geacuteneros disshycursivos do cotidiano (predominantemente as reacuteplicas do diaacutelogo cotishydiano) e ademais precisamente do ponto de vista da linguumliacutestica geral (na escola de Saussure1 em seus adeptos modernos - os estruturalistas nos behavioristas americanos2 e em bases linguumliacutesticas totalmente disshytintas nos seguidores de Vossler3) Contudo esse estudo tambeacutem natildeo podia redundar em uma definiccedilatildeo correta da natureza universalmente linguumliacutestica do enunciado uma vez que estava restrito agrave especificidade do discurso oral do dia-a-dia por vezes orientando-se diretamente em enunciados deliberadamente primitivos (os behavioristas americanos)

Natildeo se deve de modo algum minimizar a extrema heterogeneishydade dos geacuteneros discursivos e a dificuldade daiacute advinda de definir a natureza geral do enunciado Aqui eacute de especial importacircncia atentar para a diferenccedila essencial entre os geacuteneros discursivos primaacuterios (simples) e secundaacuterios (complexos) - natildeo se trata de uma diferenccedila funcional Os geacuteneros discursivos secundaacuterios (complexos - romances dramas pesshyquisas cientiacuteficas de toda espeacutecie os grandes geacuteneros publiciacutesticos etc) surgem nas condiccedilotildees de um conviacutevio cultural mais complexo e relatishyvamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o esshycrito) - artiacutestico cientiacutefico sociopoliacutetico etc No processo de sua formashyccedilatildeo eles incorporam e reelaboram diversos geacuteneros primaacuterios (simples) que se formaram nas condiccedilotildees da comunicaccedilatildeo discursiva imediata Esses geacuteneros primaacuterios que integram os complexos aiacute se transformam e adquirem um caraacuteter especial perdem o viacutenculo imediato com a realishydade concreta e os enunciados reais alheios por exemplo a reacuteplica do diaacutelogo cotidiano ou da carta no romance ao manterem a sua forma e

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o significado cotidiano apenas no plano do conteuacutedo romanesco inteshygram a realidade concreta apenas atraveacutes do conjunto do romance ou seja como acontecimento artiacutestico-literaacuterio e nao da vida cotidiana No seu conjunto o romance eacute um enunciado como a reacuteplica do diaacutelogo coshytidiano ou urna carta privada (ele tem a mesma natureza dessas duas) mas agrave diferenccedila deles eacute um enunciado secundaacuterio (complexo)

A diferenccedila entre os geacuteneros primaacuterio e secundaacuterio (ideoloacutegicos) eacute extremamente grande e essencial e eacute por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da anaacutelise de ambas as modalidades apenas sob essa condiccedilatildeo a definiccedilatildeo pode vir a ser adeshyquada agrave natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais importantes) a orientaccedilatildeo unilateral centrada nos geacuteshyneros primaacuterios redunda fatalmente na vulgarizaccedilatildeo de todo o problema (o behaviorismo linguumliacutestico eacute o grau extremado de tal vulgarizaccedilatildeo) A proacutepria relaccedilatildeo muacutetua dos geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios e o processhyso de formaccedilatildeo histoacuterica dos uacuteltimos lanccedilam luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relaccedilatildeo de reciprocidade entre linguagem e ideologia)

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de geacutenero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana eacute de enorme importacircncia para quase todos os campos da linguumliacutestica e da fishylologia Porque todo trabalho de investigaccedilatildeo de um material linguumliacutestishyco concreto - seja de histoacuteria da liacutengua de gramaacutetica normativa de conshyfecccedilatildeo de toda espeacutecie de dicionaacuterios ou de estiliacutestica da liacutengua etc -opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) relashycionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicaccedilatildeo - anais tratados textos de leis documentos de escritoacuterio e outros dishyversos geacuteneros literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos cartas oficiais e coshymuns reacuteplicas do diaacutelogo cotidiano (em todas as suas diversas modalishydades) etc de onde os pesquisadores haurem os fatos linguumliacutesticos de que necessitam Achamos que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessaacuteria uma noccedilatildeo precisa da natureza do enunciado em geshyral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primaacuterios e secundaacuterios) isto eacute dos diversos geacuteneros do discurso O desconhecishymento da natureza do enunciado e a relaccedilatildeo diferente com as peculia-

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ridades das diversidades de geacutenero do discurso em qualquer campo da investigaccedilatildeo linguiacutestica redundam em formalismo e em uma abstraccedilatildeo exagerada deformam a historicidade da investigaccedilatildeo debilitam as reshylaccedilotildees da liacutengua com a vida Ora a liacutengua passa a integrar a vida atrashyveacutes de enunciados concretos (que a realizam) eacute igualmente atraveacutes de enunciados concretos que a vida entra na liacutengua O enunciado eacute um nuacutecleo problemaacutetico de importacircncia excepcional Examinemos nesse corte alguns campos e problemas da linguiacutestica

Tratemos em primeiro lugar da estiliacutestica Todo estilo estaacute indissoshyluvelmente ligado ao enunciado e agraves formas tiacutepicas de enunciados ou seja aos geacuteneros do discurso Todo enunciado - oral e escrito primaacuterio e secundaacuterio e tambeacutem em qualquer campo da comunicaccedilatildeo discursishyva (rietchevoacuteie obschecircnieacute) - eacute individual e por isso pode refletir a indishyvidualidade do falante (ou de quem escreve) isto eacute pode ter estilo inshydividual Entretanto nem todos os geacuteneros satildeo igualmente propiacutecios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado ou seja ao estilo individual Os geacuteneros mais favoraacuteveis da literatura de ficccedilatildeo aqui o estilo individual integra diretamente o proacuteprio edifiacuteshycio do enunciado eacute um de seus objetivos principais (contudo no acircmshybito da literatura de ficccedilatildeo os diferentes geacuteneros satildeo diferentes possibishylidades para a expressatildeo da individualidade da linguagem atraveacutes de diferentes aspectos da individualidade) As condiccedilotildees menos propiacutecias para o reflexo da individualidade na linguagem estatildeo presentes naqueles geacuteneros do discurso que requerem uma forma padronizada por exemplo em muitas modalidades de documentos oficiais de ordens militares nos sinais verbalizados da produccedilatildeo etc Aqui podem refletir-se natildeo soacute os aspectos mais superficiais quase bioloacutegicos da individualidade (e ainda assim predominantemente na realizaccedilatildeo oral dos enunciados desses tipos padronizados) Na imensa maioria dos geacuteneros discursivos (exceto nos artiacutestico-literaacuterios) o estilo individual natildeo faz parte do plano

bull

Obschecircnieacute substantivo neutro eacute comunicaccedilatildeo rietchevoacuteie eacute derivaccedilatildeo de rieacutetch que eacute discurso fala em alguns aspectos linguagem mas aqui na acepccedilatildeo bakhtiniana eacute discurso daiacute traduzirmos rietchevoacutei como discursivo e rietchevoacuteie obschecircnieacute como coshymunicaccedilatildeo discursiva porque eacute esse o sentido do pensamento de Bakhtin (N do T)

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do enunciado natildeo serve como um objetivo seu mas eacute por assim dizer um epifenocircmeno do enunciado seu produto complementar Em difeshyrentes geacuteneros podem revelar-se diferentes camadas e aspectos de uma personalidade individual o estilo individual pode encontrar-se em dishyversas relaccedilotildees de reciprocidade com a liacutengua nacional A proacutepria quesshytatildeo da liacutengua nacional na linguagem individual eacute em seus fundamenshytos o problema do enunciado (porque soacute nele no enunciado a liacutengua nacional se materializa na forma individual) A proacutepria definiccedilatildeo de estilo em geral e de estilo individual em particular exige um estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de geacuteneros discursivos

A relaccedilatildeo orgacircnica e indissoluacutevel do estilo com o geacutenero se revela nishytidamente tambeacutem na questatildeo dos estilos de linguagem ou funcionais No fundo os estilos de linguagem ou funcionais natildeo satildeo outra coisa senatildeo estilos de geacutenero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicaccedilatildeo Em cada campo existem e satildeo empregados geacuteneros que correspondem agraves condiccedilotildees especiacuteficas de dado campo eacute a esses geacuteneshyros que correspondem determinados estilos Uma determinada funccedilatildeo (cientiacutefica teacutecnica publiciacutestica oficial cotidiana) e determinadas conshydiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva especiacuteficas de cada campo geram determinados geacuteneros isto eacute determinados tipos de enunciados estiliacutesshyticos temaacuteticos e composicionais relativamente estaacuteveis O estilo eacute inshydissociaacutevel de determinadas unidades temaacuteticas e - o que eacute de especial importacircncia - de determinadas unidades composicionais de determishynados tipos de construccedilatildeo do conjunto de tipos do seu acabamento de tipos da relaccedilatildeo do falante com outros participantes da comunicaccedilatildeo discursiva - com os ouvintes os leitores os parceiros o discurso do oushytro etc O estilo integra a unidade de geacutenero do enunciado como seu elemento Isto natildeo significa evidentemente que o estilo de linguagem natildeo possa se tornar objeto de um estudo especial independente Semeshylhante estudo ou seja a estiliacutestica da liacutengua como disciplina autoacutenoma tambeacutem eacute possiacutevel e necessaacuterio No entanto esse estudo soacute seraacute correshyio e eficaz se levar permanentemente em conta a natureza do geacutenero dos estilos linguiacutesticos e basear-se no estudo preacutevio das modalidades de geacuteshyneros do discurso Ateacute hoje a estiliacutestica da liacutengua tem sido desprovida de semelhante base Daiacute a sua fraqueza Natildeo existe uma classificaccedilatildeo dos

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estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral Os autores das classhysificaccedilotildees frequentemente deturpam a principal exigecircncia loacutegica da classificaccedilatildeo - a unidade do fundamento As classificaccedilotildees satildeo sumashymente pobres e natildeo diferenciadas Por exemplo numa gramaacutetica acashydeacutemica da liacutengua russa recentemente publicada satildeo apresentadas as seguintes variedades estiliacutesticas da liacutengua o discurso do livro o disshycurso popular o discurso abstrato-cientiacutefico teacutecnico-cientiacutefico jorna-liacutestico-publiciacutestico oficial familiar cotidiano discurso popular vulgar Paralelamente a esses estilos de linguagem figuram como modalidashydes estiliacutesticas palavras dialeacuteticas palavras arcaicas expressotildees profisshysionais Semelhante classificaccedilatildeo dos estilos eacute absolutamente casual baseia-se em diferentes princiacutepios (ou fundamentos) de divisatildeo em esshytilos Aleacutem disso essa classificaccedilatildeo eacute tambeacutem pobre e pouco diferenshyciada Tudo isso eacute resultado direto da incompreensatildeo da natureza de geacutenero dos estilos de linguagem e da ausecircncia de uma classificaccedilatildeo bem pensada dos geacuteneros discursivos por campos de atividade (bem como da distinccedilatildeo muito importante para a estiliacutestica entre geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios)

A separaccedilatildeo dos estilos em relaccedilatildeo aos geacuteneros manifesta-se de forshyma particularmente nociva na elaboraccedilatildeo de uma seacuterie de questotildees hisshytoacutericas As mudanccedilas histoacutericas dos estilos de linguagem estatildeo indissoshyluvelmente ligadas agraves mudanccedilas dos geacuteneros do discurso A linguagem literaacuteria eacute um sistema dinacircmico e complexo de estilos de linguagem o peso especiacutefico desses estilos e sua inter-relaccedilatildeo no sistema da linguagem literaacuteria estatildeo em mudanccedila permanente A linguagem da literatura cuja composiccedilatildeo eacute integrada pelos estilos da linguagem natildeo literaacuteria eacute um sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases Para entenshyder a complexa dinacircmica histoacuterica desses sistemas para passar da descrishyccedilatildeo simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estatildeo preshysentes e se alternam para a explicaccedilatildeo histoacuterica dessas mudanccedilas faz-se necessaacuteria uma elaboraccedilatildeo especial da histoacuteria dos geacuteneros discursivos

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Classificaccedilotildees igualmente pobres vagas e sem um fundamento bem pensado dos estilos de linguagem satildeo apresentadas por A N Gvoacutezdiev em seu livro Ensaios de estilo da liacutenshygua russa (Moscou 1952 pp 13-5) Essas classificaccedilotildees se baseiam numa assimilaccedilatildeo acriacutetica das noccedilotildees tradicionais de estilos de linguagem (N da ed russa)

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(tanto primarios quanto secundaacuterios) que refletem de modo mais imeshydiato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que transcorrem na vida soshycial Os enunciados e seus tipos isto eacute os geacuteneros discursivos satildeo correias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum fenoacutemeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de geacuteneros e estilos

Em cada eacutepoca de evoluccedilatildeo da linguagem literaacuteria o tom eacute dado por determinados geacuteneros do discurso e natildeo soacute geacuteneros secundaacuterios (literaacuterios publiciacutesticos cientiacuteficos) mas tambeacutem primaacuterios (determishynados tipos de diaacutelogo oral - de salatildeo iacutentimo de ciacuterculo familiar-coshytidiano sociopoliacutetico filosoacutefico etc) Toda ampliaccedilatildeo da linguagem literaacuteria agrave custa das diversas camadas extraliteraacuterias da liacutengua nacional estaacute intimamente ligada agrave penetraccedilatildeo da linguagem literaacuteria em todos os geacuteneros (literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos de conversaccedilatildeo etc) em maior ou menor grau tambeacutem dos novos procedimentos de geacutenero de construccedilatildeo do todo discursivo do seu acabamento da inclusatildeo do oushyvinte ou parceiro etc o que acarreta uma reconstruccedilatildeo e uma renovashyccedilatildeo mais ou menos substancial dos geacuteneros do discurso Quando reshycorremos agraves respectivas camadas natildeo literaacuterias da liacutengua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambeacutem aos geacuteneros do discurso em que se realizam essas camadas Trata-se na maioria dos casos de diferentes tipos de geacuteneros de conversaccedilatildeo e diaacutelogo daiacute a dialogizaccedilatildeo mais ou menos brusca dos geacuteneros secundaacuterios o enfraquecimento de sua comshyposiccedilatildeo monoloacutegica a nova sensaccedilatildeo do ouvinte como parceiro-inter-locutor as novas formas de conclusatildeo do todo etc Onde haacute estilo haacute geacutenero A passagem do estilo de um geacutenero para outro natildeo soacute modifica o som do estilo nas condiccedilotildees do geacutenero que natildeo lhe eacute proacuteprio como destroacutei ou renova tal geacutenero

Desse modo tanto os estilos individuais quanto os da liacutengua satisshyfazem aos geacuteneros do discurso Um estudo mais profundo e amplo des-

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Essa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do primado do estiliacutestico sobre o gramaacutetico Nossa exposiccedilatildeo subsequente o mostraraacute com plena clareza (N da ed russa)

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tes eacute absolutamente indispensaacutevel para uma elaboraccedilatildeo eficaz de todas as questotildees da estiliacutestica

Contudo tanto a questatildeo metodoloacutegica de princiacutepio quanto a quesshytatildeo geral relativa agraves relaccedilotildees reciacuteprocas do leacutexico com a gramaacutetica por um lado e com a estiliacutestica por outro baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos geacuteneros do discurso

A gramaacutetica (e o leacutexico) se distingue substancialmente da estiliacutestica (alguns chegam ateacute a colocaacute-la em oposiccedilatildeo agrave estiliacutestica) mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramaacutetica (jaacute nem falo de gramaacutetica normashytiva) pode dispensar observaccedilotildees e incursotildees estiliacutesticas Em toda uma seacuterie de casos eacute como se fosse obliterada a fronteira entre a gramaacutetica e a estiliacutestica Haacute fenoacutemenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramaacutetica outros ao campo da estiliacutestica Um deles eacute o sintagma

Pode-se dizer que a gramaacutetica e a estiliacutestica convergem e divergem em qualquer fenoacutemeno concreto de linguagem se o examinamos apeshynas no sistema da liacutengua estamos diante de um fenoacutemeno gramatical mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do geacutenero discursivo jaacute se trata de fenoacutemeno estiliacutestico Porque a proacutepria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante eacute um ato estiliacutestico Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenoacutemeno concreto da liacutengua natildeo devem ser mutuamente impenetraacuteveis nem simshyplesmente substituir mecanicamente um ao outro devendo poreacutem combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinccedilatildeo metodoloacuteshygica) com base na unidade real do fenoacutemeno da liacutengua Soacute uma conshycepccedilatildeo profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos geacuteneros discursivos pode assegurar a soluccedilatildeo correta dessa complexa questatildeo metodoloacutegica

O estudo da natureza dos enunciados e dos geacuteneros discursivos eacute segundo nos parece de importacircncia fundamental para superar as conshycepccedilotildees simplificadas da vida do discurso do chamado fluxo discursishyvo da comunicaccedilatildeo etc daquelas concepccedilotildees que ainda dominam a nossa linguiacutestica Aleacutem do mais o estudo do enunciado como unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva permitiraacute compreender de modo mais correto tambeacutem a natureza das unidades da liacutengua (enquanto sistema) - as palavras e oraccedilotildees

Eacute para essa questatildeo mais geral que passamos agora

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2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

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Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

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Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

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Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 4: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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o significado cotidiano apenas no plano do conteuacutedo romanesco inteshygram a realidade concreta apenas atraveacutes do conjunto do romance ou seja como acontecimento artiacutestico-literaacuterio e nao da vida cotidiana No seu conjunto o romance eacute um enunciado como a reacuteplica do diaacutelogo coshytidiano ou urna carta privada (ele tem a mesma natureza dessas duas) mas agrave diferenccedila deles eacute um enunciado secundaacuterio (complexo)

A diferenccedila entre os geacuteneros primaacuterio e secundaacuterio (ideoloacutegicos) eacute extremamente grande e essencial e eacute por isso mesmo que a natureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio da anaacutelise de ambas as modalidades apenas sob essa condiccedilatildeo a definiccedilatildeo pode vir a ser adeshyquada agrave natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais importantes) a orientaccedilatildeo unilateral centrada nos geacuteshyneros primaacuterios redunda fatalmente na vulgarizaccedilatildeo de todo o problema (o behaviorismo linguumliacutestico eacute o grau extremado de tal vulgarizaccedilatildeo) A proacutepria relaccedilatildeo muacutetua dos geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios e o processhyso de formaccedilatildeo histoacuterica dos uacuteltimos lanccedilam luz sobre a natureza do enunciado (e antes de tudo sobre o complexo problema da relaccedilatildeo de reciprocidade entre linguagem e ideologia)

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de geacutenero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana eacute de enorme importacircncia para quase todos os campos da linguumliacutestica e da fishylologia Porque todo trabalho de investigaccedilatildeo de um material linguumliacutestishyco concreto - seja de histoacuteria da liacutengua de gramaacutetica normativa de conshyfecccedilatildeo de toda espeacutecie de dicionaacuterios ou de estiliacutestica da liacutengua etc -opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos e orais) relashycionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicaccedilatildeo - anais tratados textos de leis documentos de escritoacuterio e outros dishyversos geacuteneros literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos cartas oficiais e coshymuns reacuteplicas do diaacutelogo cotidiano (em todas as suas diversas modalishydades) etc de onde os pesquisadores haurem os fatos linguumliacutesticos de que necessitam Achamos que em qualquer corrente especial de estudo faz-se necessaacuteria uma noccedilatildeo precisa da natureza do enunciado em geshyral e das particularidades dos diversos tipos de enunciados (primaacuterios e secundaacuterios) isto eacute dos diversos geacuteneros do discurso O desconhecishymento da natureza do enunciado e a relaccedilatildeo diferente com as peculia-

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ridades das diversidades de geacutenero do discurso em qualquer campo da investigaccedilatildeo linguiacutestica redundam em formalismo e em uma abstraccedilatildeo exagerada deformam a historicidade da investigaccedilatildeo debilitam as reshylaccedilotildees da liacutengua com a vida Ora a liacutengua passa a integrar a vida atrashyveacutes de enunciados concretos (que a realizam) eacute igualmente atraveacutes de enunciados concretos que a vida entra na liacutengua O enunciado eacute um nuacutecleo problemaacutetico de importacircncia excepcional Examinemos nesse corte alguns campos e problemas da linguiacutestica

Tratemos em primeiro lugar da estiliacutestica Todo estilo estaacute indissoshyluvelmente ligado ao enunciado e agraves formas tiacutepicas de enunciados ou seja aos geacuteneros do discurso Todo enunciado - oral e escrito primaacuterio e secundaacuterio e tambeacutem em qualquer campo da comunicaccedilatildeo discursishyva (rietchevoacuteie obschecircnieacute) - eacute individual e por isso pode refletir a indishyvidualidade do falante (ou de quem escreve) isto eacute pode ter estilo inshydividual Entretanto nem todos os geacuteneros satildeo igualmente propiacutecios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado ou seja ao estilo individual Os geacuteneros mais favoraacuteveis da literatura de ficccedilatildeo aqui o estilo individual integra diretamente o proacuteprio edifiacuteshycio do enunciado eacute um de seus objetivos principais (contudo no acircmshybito da literatura de ficccedilatildeo os diferentes geacuteneros satildeo diferentes possibishylidades para a expressatildeo da individualidade da linguagem atraveacutes de diferentes aspectos da individualidade) As condiccedilotildees menos propiacutecias para o reflexo da individualidade na linguagem estatildeo presentes naqueles geacuteneros do discurso que requerem uma forma padronizada por exemplo em muitas modalidades de documentos oficiais de ordens militares nos sinais verbalizados da produccedilatildeo etc Aqui podem refletir-se natildeo soacute os aspectos mais superficiais quase bioloacutegicos da individualidade (e ainda assim predominantemente na realizaccedilatildeo oral dos enunciados desses tipos padronizados) Na imensa maioria dos geacuteneros discursivos (exceto nos artiacutestico-literaacuterios) o estilo individual natildeo faz parte do plano

bull

Obschecircnieacute substantivo neutro eacute comunicaccedilatildeo rietchevoacuteie eacute derivaccedilatildeo de rieacutetch que eacute discurso fala em alguns aspectos linguagem mas aqui na acepccedilatildeo bakhtiniana eacute discurso daiacute traduzirmos rietchevoacutei como discursivo e rietchevoacuteie obschecircnieacute como coshymunicaccedilatildeo discursiva porque eacute esse o sentido do pensamento de Bakhtin (N do T)

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do enunciado natildeo serve como um objetivo seu mas eacute por assim dizer um epifenocircmeno do enunciado seu produto complementar Em difeshyrentes geacuteneros podem revelar-se diferentes camadas e aspectos de uma personalidade individual o estilo individual pode encontrar-se em dishyversas relaccedilotildees de reciprocidade com a liacutengua nacional A proacutepria quesshytatildeo da liacutengua nacional na linguagem individual eacute em seus fundamenshytos o problema do enunciado (porque soacute nele no enunciado a liacutengua nacional se materializa na forma individual) A proacutepria definiccedilatildeo de estilo em geral e de estilo individual em particular exige um estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de geacuteneros discursivos

A relaccedilatildeo orgacircnica e indissoluacutevel do estilo com o geacutenero se revela nishytidamente tambeacutem na questatildeo dos estilos de linguagem ou funcionais No fundo os estilos de linguagem ou funcionais natildeo satildeo outra coisa senatildeo estilos de geacutenero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicaccedilatildeo Em cada campo existem e satildeo empregados geacuteneros que correspondem agraves condiccedilotildees especiacuteficas de dado campo eacute a esses geacuteneshyros que correspondem determinados estilos Uma determinada funccedilatildeo (cientiacutefica teacutecnica publiciacutestica oficial cotidiana) e determinadas conshydiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva especiacuteficas de cada campo geram determinados geacuteneros isto eacute determinados tipos de enunciados estiliacutesshyticos temaacuteticos e composicionais relativamente estaacuteveis O estilo eacute inshydissociaacutevel de determinadas unidades temaacuteticas e - o que eacute de especial importacircncia - de determinadas unidades composicionais de determishynados tipos de construccedilatildeo do conjunto de tipos do seu acabamento de tipos da relaccedilatildeo do falante com outros participantes da comunicaccedilatildeo discursiva - com os ouvintes os leitores os parceiros o discurso do oushytro etc O estilo integra a unidade de geacutenero do enunciado como seu elemento Isto natildeo significa evidentemente que o estilo de linguagem natildeo possa se tornar objeto de um estudo especial independente Semeshylhante estudo ou seja a estiliacutestica da liacutengua como disciplina autoacutenoma tambeacutem eacute possiacutevel e necessaacuterio No entanto esse estudo soacute seraacute correshyio e eficaz se levar permanentemente em conta a natureza do geacutenero dos estilos linguiacutesticos e basear-se no estudo preacutevio das modalidades de geacuteshyneros do discurso Ateacute hoje a estiliacutestica da liacutengua tem sido desprovida de semelhante base Daiacute a sua fraqueza Natildeo existe uma classificaccedilatildeo dos

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estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral Os autores das classhysificaccedilotildees frequentemente deturpam a principal exigecircncia loacutegica da classificaccedilatildeo - a unidade do fundamento As classificaccedilotildees satildeo sumashymente pobres e natildeo diferenciadas Por exemplo numa gramaacutetica acashydeacutemica da liacutengua russa recentemente publicada satildeo apresentadas as seguintes variedades estiliacutesticas da liacutengua o discurso do livro o disshycurso popular o discurso abstrato-cientiacutefico teacutecnico-cientiacutefico jorna-liacutestico-publiciacutestico oficial familiar cotidiano discurso popular vulgar Paralelamente a esses estilos de linguagem figuram como modalidashydes estiliacutesticas palavras dialeacuteticas palavras arcaicas expressotildees profisshysionais Semelhante classificaccedilatildeo dos estilos eacute absolutamente casual baseia-se em diferentes princiacutepios (ou fundamentos) de divisatildeo em esshytilos Aleacutem disso essa classificaccedilatildeo eacute tambeacutem pobre e pouco diferenshyciada Tudo isso eacute resultado direto da incompreensatildeo da natureza de geacutenero dos estilos de linguagem e da ausecircncia de uma classificaccedilatildeo bem pensada dos geacuteneros discursivos por campos de atividade (bem como da distinccedilatildeo muito importante para a estiliacutestica entre geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios)

A separaccedilatildeo dos estilos em relaccedilatildeo aos geacuteneros manifesta-se de forshyma particularmente nociva na elaboraccedilatildeo de uma seacuterie de questotildees hisshytoacutericas As mudanccedilas histoacutericas dos estilos de linguagem estatildeo indissoshyluvelmente ligadas agraves mudanccedilas dos geacuteneros do discurso A linguagem literaacuteria eacute um sistema dinacircmico e complexo de estilos de linguagem o peso especiacutefico desses estilos e sua inter-relaccedilatildeo no sistema da linguagem literaacuteria estatildeo em mudanccedila permanente A linguagem da literatura cuja composiccedilatildeo eacute integrada pelos estilos da linguagem natildeo literaacuteria eacute um sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases Para entenshyder a complexa dinacircmica histoacuterica desses sistemas para passar da descrishyccedilatildeo simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estatildeo preshysentes e se alternam para a explicaccedilatildeo histoacuterica dessas mudanccedilas faz-se necessaacuteria uma elaboraccedilatildeo especial da histoacuteria dos geacuteneros discursivos

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Classificaccedilotildees igualmente pobres vagas e sem um fundamento bem pensado dos estilos de linguagem satildeo apresentadas por A N Gvoacutezdiev em seu livro Ensaios de estilo da liacutenshygua russa (Moscou 1952 pp 13-5) Essas classificaccedilotildees se baseiam numa assimilaccedilatildeo acriacutetica das noccedilotildees tradicionais de estilos de linguagem (N da ed russa)

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(tanto primarios quanto secundaacuterios) que refletem de modo mais imeshydiato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que transcorrem na vida soshycial Os enunciados e seus tipos isto eacute os geacuteneros discursivos satildeo correias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum fenoacutemeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de geacuteneros e estilos

Em cada eacutepoca de evoluccedilatildeo da linguagem literaacuteria o tom eacute dado por determinados geacuteneros do discurso e natildeo soacute geacuteneros secundaacuterios (literaacuterios publiciacutesticos cientiacuteficos) mas tambeacutem primaacuterios (determishynados tipos de diaacutelogo oral - de salatildeo iacutentimo de ciacuterculo familiar-coshytidiano sociopoliacutetico filosoacutefico etc) Toda ampliaccedilatildeo da linguagem literaacuteria agrave custa das diversas camadas extraliteraacuterias da liacutengua nacional estaacute intimamente ligada agrave penetraccedilatildeo da linguagem literaacuteria em todos os geacuteneros (literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos de conversaccedilatildeo etc) em maior ou menor grau tambeacutem dos novos procedimentos de geacutenero de construccedilatildeo do todo discursivo do seu acabamento da inclusatildeo do oushyvinte ou parceiro etc o que acarreta uma reconstruccedilatildeo e uma renovashyccedilatildeo mais ou menos substancial dos geacuteneros do discurso Quando reshycorremos agraves respectivas camadas natildeo literaacuterias da liacutengua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambeacutem aos geacuteneros do discurso em que se realizam essas camadas Trata-se na maioria dos casos de diferentes tipos de geacuteneros de conversaccedilatildeo e diaacutelogo daiacute a dialogizaccedilatildeo mais ou menos brusca dos geacuteneros secundaacuterios o enfraquecimento de sua comshyposiccedilatildeo monoloacutegica a nova sensaccedilatildeo do ouvinte como parceiro-inter-locutor as novas formas de conclusatildeo do todo etc Onde haacute estilo haacute geacutenero A passagem do estilo de um geacutenero para outro natildeo soacute modifica o som do estilo nas condiccedilotildees do geacutenero que natildeo lhe eacute proacuteprio como destroacutei ou renova tal geacutenero

Desse modo tanto os estilos individuais quanto os da liacutengua satisshyfazem aos geacuteneros do discurso Um estudo mais profundo e amplo des-

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Essa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do primado do estiliacutestico sobre o gramaacutetico Nossa exposiccedilatildeo subsequente o mostraraacute com plena clareza (N da ed russa)

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tes eacute absolutamente indispensaacutevel para uma elaboraccedilatildeo eficaz de todas as questotildees da estiliacutestica

Contudo tanto a questatildeo metodoloacutegica de princiacutepio quanto a quesshytatildeo geral relativa agraves relaccedilotildees reciacuteprocas do leacutexico com a gramaacutetica por um lado e com a estiliacutestica por outro baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos geacuteneros do discurso

A gramaacutetica (e o leacutexico) se distingue substancialmente da estiliacutestica (alguns chegam ateacute a colocaacute-la em oposiccedilatildeo agrave estiliacutestica) mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramaacutetica (jaacute nem falo de gramaacutetica normashytiva) pode dispensar observaccedilotildees e incursotildees estiliacutesticas Em toda uma seacuterie de casos eacute como se fosse obliterada a fronteira entre a gramaacutetica e a estiliacutestica Haacute fenoacutemenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramaacutetica outros ao campo da estiliacutestica Um deles eacute o sintagma

Pode-se dizer que a gramaacutetica e a estiliacutestica convergem e divergem em qualquer fenoacutemeno concreto de linguagem se o examinamos apeshynas no sistema da liacutengua estamos diante de um fenoacutemeno gramatical mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do geacutenero discursivo jaacute se trata de fenoacutemeno estiliacutestico Porque a proacutepria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante eacute um ato estiliacutestico Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenoacutemeno concreto da liacutengua natildeo devem ser mutuamente impenetraacuteveis nem simshyplesmente substituir mecanicamente um ao outro devendo poreacutem combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinccedilatildeo metodoloacuteshygica) com base na unidade real do fenoacutemeno da liacutengua Soacute uma conshycepccedilatildeo profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos geacuteneros discursivos pode assegurar a soluccedilatildeo correta dessa complexa questatildeo metodoloacutegica

O estudo da natureza dos enunciados e dos geacuteneros discursivos eacute segundo nos parece de importacircncia fundamental para superar as conshycepccedilotildees simplificadas da vida do discurso do chamado fluxo discursishyvo da comunicaccedilatildeo etc daquelas concepccedilotildees que ainda dominam a nossa linguiacutestica Aleacutem do mais o estudo do enunciado como unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva permitiraacute compreender de modo mais correto tambeacutem a natureza das unidades da liacutengua (enquanto sistema) - as palavras e oraccedilotildees

Eacute para essa questatildeo mais geral que passamos agora

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2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

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Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

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Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

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Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 5: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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do enunciado natildeo serve como um objetivo seu mas eacute por assim dizer um epifenocircmeno do enunciado seu produto complementar Em difeshyrentes geacuteneros podem revelar-se diferentes camadas e aspectos de uma personalidade individual o estilo individual pode encontrar-se em dishyversas relaccedilotildees de reciprocidade com a liacutengua nacional A proacutepria quesshytatildeo da liacutengua nacional na linguagem individual eacute em seus fundamenshytos o problema do enunciado (porque soacute nele no enunciado a liacutengua nacional se materializa na forma individual) A proacutepria definiccedilatildeo de estilo em geral e de estilo individual em particular exige um estudo mais profundo tanto da natureza do enunciado quanto da diversidade de geacuteneros discursivos

A relaccedilatildeo orgacircnica e indissoluacutevel do estilo com o geacutenero se revela nishytidamente tambeacutem na questatildeo dos estilos de linguagem ou funcionais No fundo os estilos de linguagem ou funcionais natildeo satildeo outra coisa senatildeo estilos de geacutenero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicaccedilatildeo Em cada campo existem e satildeo empregados geacuteneros que correspondem agraves condiccedilotildees especiacuteficas de dado campo eacute a esses geacuteneshyros que correspondem determinados estilos Uma determinada funccedilatildeo (cientiacutefica teacutecnica publiciacutestica oficial cotidiana) e determinadas conshydiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva especiacuteficas de cada campo geram determinados geacuteneros isto eacute determinados tipos de enunciados estiliacutesshyticos temaacuteticos e composicionais relativamente estaacuteveis O estilo eacute inshydissociaacutevel de determinadas unidades temaacuteticas e - o que eacute de especial importacircncia - de determinadas unidades composicionais de determishynados tipos de construccedilatildeo do conjunto de tipos do seu acabamento de tipos da relaccedilatildeo do falante com outros participantes da comunicaccedilatildeo discursiva - com os ouvintes os leitores os parceiros o discurso do oushytro etc O estilo integra a unidade de geacutenero do enunciado como seu elemento Isto natildeo significa evidentemente que o estilo de linguagem natildeo possa se tornar objeto de um estudo especial independente Semeshylhante estudo ou seja a estiliacutestica da liacutengua como disciplina autoacutenoma tambeacutem eacute possiacutevel e necessaacuterio No entanto esse estudo soacute seraacute correshyio e eficaz se levar permanentemente em conta a natureza do geacutenero dos estilos linguiacutesticos e basear-se no estudo preacutevio das modalidades de geacuteshyneros do discurso Ateacute hoje a estiliacutestica da liacutengua tem sido desprovida de semelhante base Daiacute a sua fraqueza Natildeo existe uma classificaccedilatildeo dos

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estilos de linguagem que tenha reconhecimento geral Os autores das classhysificaccedilotildees frequentemente deturpam a principal exigecircncia loacutegica da classificaccedilatildeo - a unidade do fundamento As classificaccedilotildees satildeo sumashymente pobres e natildeo diferenciadas Por exemplo numa gramaacutetica acashydeacutemica da liacutengua russa recentemente publicada satildeo apresentadas as seguintes variedades estiliacutesticas da liacutengua o discurso do livro o disshycurso popular o discurso abstrato-cientiacutefico teacutecnico-cientiacutefico jorna-liacutestico-publiciacutestico oficial familiar cotidiano discurso popular vulgar Paralelamente a esses estilos de linguagem figuram como modalidashydes estiliacutesticas palavras dialeacuteticas palavras arcaicas expressotildees profisshysionais Semelhante classificaccedilatildeo dos estilos eacute absolutamente casual baseia-se em diferentes princiacutepios (ou fundamentos) de divisatildeo em esshytilos Aleacutem disso essa classificaccedilatildeo eacute tambeacutem pobre e pouco diferenshyciada Tudo isso eacute resultado direto da incompreensatildeo da natureza de geacutenero dos estilos de linguagem e da ausecircncia de uma classificaccedilatildeo bem pensada dos geacuteneros discursivos por campos de atividade (bem como da distinccedilatildeo muito importante para a estiliacutestica entre geacuteneros primaacuterios e secundaacuterios)

A separaccedilatildeo dos estilos em relaccedilatildeo aos geacuteneros manifesta-se de forshyma particularmente nociva na elaboraccedilatildeo de uma seacuterie de questotildees hisshytoacutericas As mudanccedilas histoacutericas dos estilos de linguagem estatildeo indissoshyluvelmente ligadas agraves mudanccedilas dos geacuteneros do discurso A linguagem literaacuteria eacute um sistema dinacircmico e complexo de estilos de linguagem o peso especiacutefico desses estilos e sua inter-relaccedilatildeo no sistema da linguagem literaacuteria estatildeo em mudanccedila permanente A linguagem da literatura cuja composiccedilatildeo eacute integrada pelos estilos da linguagem natildeo literaacuteria eacute um sistema ainda mais complexo e organizado em outras bases Para entenshyder a complexa dinacircmica histoacuterica desses sistemas para passar da descrishyccedilatildeo simples (e superficial na maioria dos casos) dos estilos que estatildeo preshysentes e se alternam para a explicaccedilatildeo histoacuterica dessas mudanccedilas faz-se necessaacuteria uma elaboraccedilatildeo especial da histoacuteria dos geacuteneros discursivos

bull

Classificaccedilotildees igualmente pobres vagas e sem um fundamento bem pensado dos estilos de linguagem satildeo apresentadas por A N Gvoacutezdiev em seu livro Ensaios de estilo da liacutenshygua russa (Moscou 1952 pp 13-5) Essas classificaccedilotildees se baseiam numa assimilaccedilatildeo acriacutetica das noccedilotildees tradicionais de estilos de linguagem (N da ed russa)

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(tanto primarios quanto secundaacuterios) que refletem de modo mais imeshydiato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que transcorrem na vida soshycial Os enunciados e seus tipos isto eacute os geacuteneros discursivos satildeo correias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum fenoacutemeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de geacuteneros e estilos

Em cada eacutepoca de evoluccedilatildeo da linguagem literaacuteria o tom eacute dado por determinados geacuteneros do discurso e natildeo soacute geacuteneros secundaacuterios (literaacuterios publiciacutesticos cientiacuteficos) mas tambeacutem primaacuterios (determishynados tipos de diaacutelogo oral - de salatildeo iacutentimo de ciacuterculo familiar-coshytidiano sociopoliacutetico filosoacutefico etc) Toda ampliaccedilatildeo da linguagem literaacuteria agrave custa das diversas camadas extraliteraacuterias da liacutengua nacional estaacute intimamente ligada agrave penetraccedilatildeo da linguagem literaacuteria em todos os geacuteneros (literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos de conversaccedilatildeo etc) em maior ou menor grau tambeacutem dos novos procedimentos de geacutenero de construccedilatildeo do todo discursivo do seu acabamento da inclusatildeo do oushyvinte ou parceiro etc o que acarreta uma reconstruccedilatildeo e uma renovashyccedilatildeo mais ou menos substancial dos geacuteneros do discurso Quando reshycorremos agraves respectivas camadas natildeo literaacuterias da liacutengua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambeacutem aos geacuteneros do discurso em que se realizam essas camadas Trata-se na maioria dos casos de diferentes tipos de geacuteneros de conversaccedilatildeo e diaacutelogo daiacute a dialogizaccedilatildeo mais ou menos brusca dos geacuteneros secundaacuterios o enfraquecimento de sua comshyposiccedilatildeo monoloacutegica a nova sensaccedilatildeo do ouvinte como parceiro-inter-locutor as novas formas de conclusatildeo do todo etc Onde haacute estilo haacute geacutenero A passagem do estilo de um geacutenero para outro natildeo soacute modifica o som do estilo nas condiccedilotildees do geacutenero que natildeo lhe eacute proacuteprio como destroacutei ou renova tal geacutenero

Desse modo tanto os estilos individuais quanto os da liacutengua satisshyfazem aos geacuteneros do discurso Um estudo mais profundo e amplo des-

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Essa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do primado do estiliacutestico sobre o gramaacutetico Nossa exposiccedilatildeo subsequente o mostraraacute com plena clareza (N da ed russa)

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tes eacute absolutamente indispensaacutevel para uma elaboraccedilatildeo eficaz de todas as questotildees da estiliacutestica

Contudo tanto a questatildeo metodoloacutegica de princiacutepio quanto a quesshytatildeo geral relativa agraves relaccedilotildees reciacuteprocas do leacutexico com a gramaacutetica por um lado e com a estiliacutestica por outro baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos geacuteneros do discurso

A gramaacutetica (e o leacutexico) se distingue substancialmente da estiliacutestica (alguns chegam ateacute a colocaacute-la em oposiccedilatildeo agrave estiliacutestica) mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramaacutetica (jaacute nem falo de gramaacutetica normashytiva) pode dispensar observaccedilotildees e incursotildees estiliacutesticas Em toda uma seacuterie de casos eacute como se fosse obliterada a fronteira entre a gramaacutetica e a estiliacutestica Haacute fenoacutemenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramaacutetica outros ao campo da estiliacutestica Um deles eacute o sintagma

Pode-se dizer que a gramaacutetica e a estiliacutestica convergem e divergem em qualquer fenoacutemeno concreto de linguagem se o examinamos apeshynas no sistema da liacutengua estamos diante de um fenoacutemeno gramatical mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do geacutenero discursivo jaacute se trata de fenoacutemeno estiliacutestico Porque a proacutepria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante eacute um ato estiliacutestico Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenoacutemeno concreto da liacutengua natildeo devem ser mutuamente impenetraacuteveis nem simshyplesmente substituir mecanicamente um ao outro devendo poreacutem combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinccedilatildeo metodoloacuteshygica) com base na unidade real do fenoacutemeno da liacutengua Soacute uma conshycepccedilatildeo profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos geacuteneros discursivos pode assegurar a soluccedilatildeo correta dessa complexa questatildeo metodoloacutegica

O estudo da natureza dos enunciados e dos geacuteneros discursivos eacute segundo nos parece de importacircncia fundamental para superar as conshycepccedilotildees simplificadas da vida do discurso do chamado fluxo discursishyvo da comunicaccedilatildeo etc daquelas concepccedilotildees que ainda dominam a nossa linguiacutestica Aleacutem do mais o estudo do enunciado como unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva permitiraacute compreender de modo mais correto tambeacutem a natureza das unidades da liacutengua (enquanto sistema) - as palavras e oraccedilotildees

Eacute para essa questatildeo mais geral que passamos agora

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2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

bull

Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

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Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

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Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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(tanto primarios quanto secundaacuterios) que refletem de modo mais imeshydiato preciso e flexiacutevel todas as mudanccedilas que transcorrem na vida soshycial Os enunciados e seus tipos isto eacute os geacuteneros discursivos satildeo correias de transmissatildeo entre a histoacuteria da sociedade e a histoacuteria da linguagem Nenhum fenoacutemeno novo (foneacutetico leacutexico gramatical) pode integrar o sistema da liacutengua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de geacuteneros e estilos

Em cada eacutepoca de evoluccedilatildeo da linguagem literaacuteria o tom eacute dado por determinados geacuteneros do discurso e natildeo soacute geacuteneros secundaacuterios (literaacuterios publiciacutesticos cientiacuteficos) mas tambeacutem primaacuterios (determishynados tipos de diaacutelogo oral - de salatildeo iacutentimo de ciacuterculo familiar-coshytidiano sociopoliacutetico filosoacutefico etc) Toda ampliaccedilatildeo da linguagem literaacuteria agrave custa das diversas camadas extraliteraacuterias da liacutengua nacional estaacute intimamente ligada agrave penetraccedilatildeo da linguagem literaacuteria em todos os geacuteneros (literaacuterios cientiacuteficos publiciacutesticos de conversaccedilatildeo etc) em maior ou menor grau tambeacutem dos novos procedimentos de geacutenero de construccedilatildeo do todo discursivo do seu acabamento da inclusatildeo do oushyvinte ou parceiro etc o que acarreta uma reconstruccedilatildeo e uma renovashyccedilatildeo mais ou menos substancial dos geacuteneros do discurso Quando reshycorremos agraves respectivas camadas natildeo literaacuterias da liacutengua nacional estamos recorrendo inevitavelmente tambeacutem aos geacuteneros do discurso em que se realizam essas camadas Trata-se na maioria dos casos de diferentes tipos de geacuteneros de conversaccedilatildeo e diaacutelogo daiacute a dialogizaccedilatildeo mais ou menos brusca dos geacuteneros secundaacuterios o enfraquecimento de sua comshyposiccedilatildeo monoloacutegica a nova sensaccedilatildeo do ouvinte como parceiro-inter-locutor as novas formas de conclusatildeo do todo etc Onde haacute estilo haacute geacutenero A passagem do estilo de um geacutenero para outro natildeo soacute modifica o som do estilo nas condiccedilotildees do geacutenero que natildeo lhe eacute proacuteprio como destroacutei ou renova tal geacutenero

Desse modo tanto os estilos individuais quanto os da liacutengua satisshyfazem aos geacuteneros do discurso Um estudo mais profundo e amplo des-

T

Essa nossa tese nada tem a ver com a de Vossler acerca do primado do estiliacutestico sobre o gramaacutetico Nossa exposiccedilatildeo subsequente o mostraraacute com plena clareza (N da ed russa)

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tes eacute absolutamente indispensaacutevel para uma elaboraccedilatildeo eficaz de todas as questotildees da estiliacutestica

Contudo tanto a questatildeo metodoloacutegica de princiacutepio quanto a quesshytatildeo geral relativa agraves relaccedilotildees reciacuteprocas do leacutexico com a gramaacutetica por um lado e com a estiliacutestica por outro baseiam-se no mesmo problema do enunciado e dos geacuteneros do discurso

A gramaacutetica (e o leacutexico) se distingue substancialmente da estiliacutestica (alguns chegam ateacute a colocaacute-la em oposiccedilatildeo agrave estiliacutestica) mas ao mesmo tempo nenhum estudo de gramaacutetica (jaacute nem falo de gramaacutetica normashytiva) pode dispensar observaccedilotildees e incursotildees estiliacutesticas Em toda uma seacuterie de casos eacute como se fosse obliterada a fronteira entre a gramaacutetica e a estiliacutestica Haacute fenoacutemenos que uns estudiosos relacionam ao campo da gramaacutetica outros ao campo da estiliacutestica Um deles eacute o sintagma

Pode-se dizer que a gramaacutetica e a estiliacutestica convergem e divergem em qualquer fenoacutemeno concreto de linguagem se o examinamos apeshynas no sistema da liacutengua estamos diante de um fenoacutemeno gramatical mas se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do geacutenero discursivo jaacute se trata de fenoacutemeno estiliacutestico Porque a proacutepria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante eacute um ato estiliacutestico Mas esses dois pontos de vista sobre o mesmo fenoacutemeno concreto da liacutengua natildeo devem ser mutuamente impenetraacuteveis nem simshyplesmente substituir mecanicamente um ao outro devendo poreacutem combinar-se organicamente (na sua mais precisa distinccedilatildeo metodoloacuteshygica) com base na unidade real do fenoacutemeno da liacutengua Soacute uma conshycepccedilatildeo profunda da natureza do enunciado e das peculiaridades dos geacuteneros discursivos pode assegurar a soluccedilatildeo correta dessa complexa questatildeo metodoloacutegica

O estudo da natureza dos enunciados e dos geacuteneros discursivos eacute segundo nos parece de importacircncia fundamental para superar as conshycepccedilotildees simplificadas da vida do discurso do chamado fluxo discursishyvo da comunicaccedilatildeo etc daquelas concepccedilotildees que ainda dominam a nossa linguiacutestica Aleacutem do mais o estudo do enunciado como unidade real da comunicaccedilatildeo discursiva permitiraacute compreender de modo mais correto tambeacutem a natureza das unidades da liacutengua (enquanto sistema) - as palavras e oraccedilotildees

Eacute para essa questatildeo mais geral que passamos agora

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2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

bull

Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

bull

Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

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Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

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Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

306 I M I K H A I L B A K H T I N

de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

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Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 7: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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2 O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA C O M U N I C A Ccedil Atilde O DISCURSIVA DIFERENCcedilA ENTRE ESSA UNIDADE E AS UNIDADES

DA L Iacute N G U A (PALAVRAS E ORACcedilOtildeES)

A linguiacutestica do seacuteculo XIX a comeccedilar por Wilhelm Humboldt sem negar a funccedilatildeo comunicativa da linguagem procurou colocaacute-la em segundo plano como algo secundaacuterio promovia-se ao primeiro plano a funccedilatildeo da formaccedilatildeo do pensamento independente da comunicaccedilatildeo Daiacute a famosa foacutermula de Humboldt Sem fazer nenhuma menccedilatildeo agrave necesshysidade de comunicaccedilatildeo entre os homens a liacutengua seria uma condiccedilatildeo indispensaacutevel do pensamento para o homem ateacute mesmo na sua eterna solidatildeo Outros por exemplo os partidaacuterios de Vossler colocavam em primeiro plano a chamada funccedilatildeo expressiva A despeito de toda a diferenccedila na concepccedilatildeo dessa funccedilatildeo por teoacutericos particulares sua essecircnshycia se resume agrave expressatildeo do mundo individual do falante A liacutengua eacute deduzida da necessidade do homem de auto-expressar-se de objetivar-se A essecircncia da linguagem nessa ou naquela forma por esse ou aquele caminho se reduz agrave criaccedilatildeo espiritual do indiviacuteduo Propunham-se e ainda se propotildeem variaccedilotildees um tanto diferentes das funccedilotildees da linguashygem mas permanece caracteriacutestico senatildeo o pleno desconhecimento ao menos a subestimaccedilatildeo da funccedilatildeo comunicativa da linguagem a linguashygem eacute considerada do ponto de vista do falante como que de um falanshyte sem a relaccedilatildeo necessaacuteria com outros participantes da comunicaccedilatildeo disshycursiva Se era levado em conta o papel do outro era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o falante O enunshyciado satisfaz ao seu objeto (isto eacute ao conteuacutedo do pensamento enunciashydo) e ao proacuteprio enunciador Em essecircncia a liacutengua necessita apenas do falante mdash de um falante - e do objeto da sua fala se neste caso a liacutengua pode servir ainda como meio de comunicaccedilatildeo pois essa eacute a sua funccedilatildeo secundaacuteria que natildeo afeta a sua essecircncia Um grupo linguiacutestico a mulshytiplicidade de falantes evidentemente natildeo pode ser ignorada de maneishyra nenhuma quando se fala da liacutengua no entanto quando se define a

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Humboldt Wilhelm Sobre a diferenccedila entre os organismos da linguagem humana e a influecircncia dessa diferenccedila no desenvolvimento mental da humanidade Satildeo Petersburgo 1859 p 51 (N da ed russa)

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essecircncia da liacutengua esse momento natildeo se torna necessaacuterio e determishynante da natureza da liacutengua As vezes o grupo linguumliacutestico eacute visto como uma certa personalidade coletiva o espiacuterito do povo etc e se lhe daacute grande importacircncia (entre os representantes da psicologia dos povos) mas tambeacutem neste caso a multiplicidade de falantes dos outros em reshylaccedilatildeo a cada falante dado carece de substancialidade

Ateacute hoje ainda existem na linguumliacutestica ficccedilotildees como o ouvinte e o entendedor (parceiros do falante do fluxo uacutenico da fala etc) Tais ficccedilotildees datildeo uma noccedilatildeo absolutamente deturpada do processo comshyplexo e amplamente ativo da comunicaccedilatildeo discursiva Nos cursos de linguumliacutestica geral (inclusive em alguns tatildeo seacuterios quanto o de Saussure4) aparecem com frequecircncia representaccedilotildees evidentemente esquemaacuteticas dos dois parceiros da comunicaccedilatildeo discursiva - o falante e o ouvinte (o receptor do discurso) sugere-se um esquema de processos ativos de disshycurso no falante e de respectivos processos passivos de recepccedilatildeo e comshypreensatildeo do discurso no ouvinte Natildeo se pode dizer que esses esquemas sejam falsos e que natildeo correspondam a determinados momentos da realidade contudo quando passam ao objetivo real da comunicaccedilatildeo discursiva eles se transformam em ficccedilatildeo cientiacutefica Neste caso o oushyvinte ao perceber e compreender o significado (linguumliacutestico) do discurso ocupa simultaneamente em relaccedilatildeo a ele uma ativa posiccedilatildeo responsiva concorda ou discorda dele (total ou parcialmente) completa-o aplica-o prepara-se para usaacute-lo etc essa posiccedilatildeo responsiva do ouvinte se forshyma ao longo de todo o processo de audiccedilatildeo e compreensatildeo desde o seu iniacutecio agraves vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante Toda compreensatildeo da fala viva do enunciado vivo eacute de natureza ativa-mente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso) toda compreensatildeo eacute prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente o ouvinte se torna falante A compreensatildeo passhysiva do significado do discurso ouvido eacute apenas um momento abstrato da compreensatildeo ativamente responsiva real e plena que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta E claro que nem sempre ocorre

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Sluacutechatiel derivado de sluacutechat (ouvir) ponimaacuteiuschi derivado de ponimaacutet entender compreender (N do T)

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

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Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

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Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 8: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao enunciado logo deshypois de pronunciado a compreensatildeo ativamente responsiva do ouvido (por exemplo de uma ordem militar) pode realizar-se imediatamente na accedilatildeo (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e aceitos para execuccedilatildeo) pode permanecer de quando em quando como compreenshysatildeo responsiva silenciosa (alguns geacuteneros discursivos foram concebidos apenas para tal compreensatildeo por exemplo os geacuteneros liacutericos) mas isto por assim dizer eacute uma compreensatildeo responsiva de efeito retardado cedo ou tarde o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte Os geacuteneros da complexa comunicaccedilatildeo cultural na maioria dos casos foram conshycebidos precisamente para essa compreensatildeo ativamente responsiva de efeito retardado Tudo o que aqui dissemos refere-se igualmente mu-tatis mutandis ao discurso escrito e ao lido

Portanto toda compreensatildeo plena real eacute ativamente responsiva e natildeo eacute senatildeo uma fase inicial preparatoacuteria da resposta (seja qual for a forshyma em que ela se decirc) O proacuteprio falante esraacute determinado precisamente a essa compreensatildeo ativamente responsiva ele natildeo espera uma compreenshysatildeo passiva por assim dizer que apenas duble o seu pensamento em voz alheia mas uma resposta uma concordacircncia uma participaccedilatildeo uma objeccedilaacuteo uma execuccedilatildeo etc (os diferentes geacuteneros discursivos pressushypotildeem diferentes diretrizes de objetivos projetos de discurso dos falantes ou escreventes) O empenho em tornar inreligiacutevel a sua fala eacute apenas o momento abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante Ademais todo falante eacute por si mesmo um respondente em maior oti menor grau porque ele natildeo eacute o primeiro falante o primeiro a ter vioshylado o eterno silecircncio do universo e pressupotildee natildeo soacute a existecircncia do sistema da liacutengua que usa mas tambeacutem de alguns enunciados anteceshydentes - dos seus e alheios mdash com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relaccedilotildees (baseia-se neles polemiza com eles simplesmenshyte os pressupotildee jaacute conhecidos do ouvinte) Cada enunciado eacute um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados

Desse modo o ouvinte com sua compreensatildeo passiva que eacute represhysentado como parceiro do falante nos desenhos esquemaacuteticos das lio giiiacutesticas gerais natildeo corresponde ao participante real da comunicaccedilatildeo discursiva Aquilo que o esquema representa eacute apenas um momento abs

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trato do ato pleno e real de compreensatildeo ativamente responsiva que gera a resposta (a que precisamente visa o falante) Por si mesma essa abs-traccedilatildeo cientiacutefica eacute perfeitamente justificada mas sob uma condiccedilatildeo a de ser nitidamente compreendida apenas como abstraccedilatildeo e natildeo ser apreshysentada como fenoacutemeno pleno concreto e real caso contraacuterio ela se transforma em ficccedilatildeo E exatamente o que acontece na linguumliacutestica uma vez que esses esquemas abstratos mesmo natildeo sendo apresentados dire-tamente como reflexo da comunicaccedilatildeo discursiva real tampouco satildeo completados por alusotildees a uma maior complexidade do fenoacutemeno real Como resultado o esquema deforma o quadro real da comunicashyccedilatildeo discursiva suprimindo dela precisamente os momentos mais subsshytanciais Desse modo o papel ativo do outro no processo de comunicashyccedilatildeo discursiva sai extremamente enfraquecido

O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no processo da comunicaccedilatildeo discursiva e o empenho de contornar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impreciso e ambiacuteguo de termos como fala ou fluxo da fala Esses termos deliberadamente imprecisos habitualmente deveriam designar aquilo que eacute submetido a uma divishysatildeo em unidades da liacutengua concebidas como cortes desta unidades foacutenicas (fonema siacutelaba cadecircncia da fala) e significativas (oraccedilatildeo e pashylavra) O fluxo da fala se desintegra nossa fala se divide - eacute asshysim que nos cursos gerais de linguumliacutestica e gramaacutetica bem como nos esshytudos especiais de foneacutetica e lexicologiacutea costumam introduzir as parshytes dedicadas ao estudo das respectivas unidades da liacutengua Infelizmente ateacute a nossa gramaacutetica acadeacutemica recentemente lanccedilada emprega o messhymo termo indefinido e ambiacuteguo nossa fala Veja-se como se introduz a respectiva parte da foneacutetica Nossa fala se divide antes de tudo em oraccedilotildees que por sua vez podem decompor-se em combinaccedilotildees de pashylavras e palavras As palavras se dividem nitidamente em unidades foacuteshynicas miacutenimas - as siacutelabas As siacutelabas se dividem em sons particulares da fala ou fonemas

O que vem a ser fluxo da fala nossa fala Qual eacute a sua extenshysatildeo Teratildeo princiacutepio e fim Se tecircm duraccedilatildeo indefinida que corte deles

bull

Gramaacutetica da liacutengua russa p 1 Moscou 1952 p 51 (N da ed russa)

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

bull

Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

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Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

286 J M I K H A I L B A K H T I N

maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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noacutes tomamos para dividi-lo em unidades A respeito de todas essas questotildees reinam a plena indefiniccedilatildeo e a reticecircncia A palavra indefinishyda rieacutetch (fala [discurso]) que pode designar linguagem processo de discurso ou seja o falar um enunciado particular ou uma seacuterie indeshyfinidamente longa de enunciados e um determinado geacutenero discursivo (ele pronunciou um rieacutetch [discurso]) ateacute hoje natildeo foi transformada pelos linguistas em um termo rigorosamente limitado pela significaccedilatildeo e definido (definiacutevel) (fenoacutemenos anaacutelogos ocorrem tambeacutem em oushytras liacutenguas) Isto se deve agrave quase completa falta de elaboraccedilatildeo do proshyblema do enunciado e dos geacuteneros do discurso e consequentemente da comunicaccedilatildeo discursiva Quase sempre se verifica o jogo confuso com todas essas significaccedilotildees (exceto com a uacuteltima) Mais amiuacutede su-bentende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa aleacutem do mais essa compreensatildeo nunca eacute sustentada ateacute o fim

Entretanto se eacute indefinido e vago o que dividem e decompotildeem em unidades da liacutengua nestas tambeacutem se introduzem a indefiniccedilatildeo e a confusatildeo

A indefiniccedilatildeo terminoloacutegica e a confusatildeo em um ponto metodoshyloacutegico central no pensamento linguiacutestico satildeo o resultado do desconheshycimento da real unidade da comunicaccedilatildeo discursiva - o enunciado Porque o discurso soacute pode existir de fato na forma de enunciaccedilotildees conshycretas de determinados falantes sujeitos do discurso O discurso sempre estaacute fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso e fora dessa forma natildeo pode existir Por mais difeshyrentes que sejam as enunciaccedilotildees pelo seu volume pelo conteuacutedo pela construccedilatildeo composicional elas possuem como unidades da comunicashyccedilatildeo discursiva peculiaridades estruturais comuns e antes de tudo limi-

bull

Aliaacutes nem haacute como sustentaacute-la Uma enunciaccedilatildeo como Ah (reacuteplica de um diaacutelogo) natildeo pode ser dividida em oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras siacutelabas Consequentemenshyte nem toda enunciaccedilatildeo serve Demais dividem a enunciaccedilatildeo (a fala) e chegam a unidades da liacutengua Com muita frequecircncia a oraccedilatildeo eacute definida como o enunciado mais simples logo jaacute natildeo pode ser uma unidade da enunciaccedilatildeo Pressupotildee-se em silecircncio a fala de um falante despreiando-se os sons harmoacutenicos dialoacutegicos Em comparaccedilatildeo com os limites dos enunciados todos os demais limites (entre oraccedilotildees combinaccedilotildees de palavras sintagmas palavras) satildeo relativos e convencionais (N da ed russa)

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tes absolutamente precisos Esses limites de natureza especialmente subsshytancial e de princiacutepio precisam ser examinados minuciosamente

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunishycaccedilatildeo discursiva satildeo definidos pela alternacircncia dos sujeitos do discurso ou seja pela alternacircncia dos falantes Todo enunciado - da reacuteplica sushycinta (monovocal) do diaacutelogo cotidiano ao grande romance ou tratado cientiacutefico - tem por assim dizer um princiacutepio absoluto e um fim absoshyluto antes do seu iniacutecio os enunciados de outros depois do seu teacutermino os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensatildeo ativamente responsiva silenciosa do outro ou por uacuteltimo uma accedilatildeo responsiva baseada nessa compreensatildeo) O falante termina o seu enunshyciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar agrave sua compreensatildeo ativamente responsiva O enunciado natildeo eacute uma unidade convencional mas uma unidade real precisamente delimitada da alternacircncia dos sushyjeitos do discurso a qual termina com a transmissatildeo da palavra ao oushytro por mais silencioso que seja o dixi percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou

Essa alternacircncia dos sujeitos do discurso que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida deshypendendo das diversas funccedilotildees da linguagem e das diferentes condiccedilotildees e situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo eacute de natureza diferente e assume formas vaacuterias Observamos essa alternacircncia dos sujeitos do discurso de modo mais simples e evidente no diaacutelogo real em que se alternam as enunshyciaccedilotildees dos interlocutores (parceiros do diaacutelogo) aqui denominadas reacuteplicas Por sua precisatildeo e simplicidade o diaacutelogo eacute a forma claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva Cada reacuteplica por mais breve e fragmentaacuteria que seja possui uma conclusibilidade especiacutefica ao exprimir certa poshysiccedilatildeo do falante que suscita resposta em relaccedilatildeo agrave qual se pode assumir uma posiccedilatildeo responsiva Essa conclusibilidade especiacutefica do enunciado seraacute objeto de nosso exame posterior (trata-se de um dos traccedilos fundashymentais do enunciado) Ao mesmo tempo as reacuteplicas satildeo interligadas Mas aquelas relaccedilotildees que existem entre as reacuteplicas do diaacutelogo - as relaccedilotildees de pergunta-resposta afirmaccedilatildeo-objeccedilatildeo afirmaccedilatildeo-concordacircncia pro-posta-aceitaccedilatildeo ordem-execuccedilatildeo etc - satildeo impossiacuteveis entre unidades da liacutengua (palavras e oraccedilotildees) quer no sistema da liacutengua (no corte vershytical) quer no interior do enunciado (no corte horizontal) Essas rela-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

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Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

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Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

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to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

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Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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ccedilotildees especiacuteficas entre as reacuteplicas do diaacutelogo satildeo apenas modalidades das relaccedilotildees especiacuteficas entre as enunciaccedilotildees plenas no processo de comushynicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees soacute satildeo possiacuteveis entre enunciaccedilotildees de diferentes sujeitos do discurso pressupotildeem outros (em relaccedilatildeo ao fashylante) membros da comunicaccedilatildeo discursiva Essas relaccedilotildees entre enunshyciaccedilotildees plenas natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo uma vez que reitereshymos natildeo satildeo possiacuteveis entre unidades da liacutengua e isso tanto no sistema daliacuten gua quanto no interior do enunciado

Nos geacuteneros secundaacuterios do discurso particularmente nos retoacutericos encontramos fenoacutemenos que parecem contrariar essa nossa tese Muishyto amiuacutede o falante (ou quem escreve) coloca questotildees no acircmbito do seu enunciado responde a elas mesmas faz objeccedilotildees a si mesmo e refuta suas proacuteprias objeccedilotildees erc Mas esses fenoacutemenos natildeo passam de represhysentaccedilatildeo convencional da comunicaccedilatildeo discursiva nos geacuteneros primaacuteshyrios do discurso Essa representaccedilatildeo caracteriza os geacuteneros retoacutericos (lato sensu incluindo algumas modalidades de popularizaccedilotildees cientiacuteficas) contudo todos os outros geacuteneros secundaacuterios (artiacutesticos e cientiacuteficos) se valem de diferentes formas de introduccedilatildeo na construccedilatildeo do enunshyciado dos geacuteneros de discurso primaacuterios e relaccedilotildees entre eles (note-se que aqui eles sofrem transformaccedilotildees de diferentes graus uma vez que natildeo haacute uma alternacircncia real de sujeitos do discurso) Eacute essa a natureza dos geacuteneros secundaacuterios Entreranto em todas essas manifestaccedilotildees as relaccedilotildees entre geacuteneros primaacuterios reproduzidos ainda que eles estejam no acircmbito de um enunciado natildeo se prestam agrave gramaticalizaccedilatildeo e conshyservam a sua natureza especiacutefica essencialmente distinta da [natureza] das relaccedilotildees entre as palavras e oraccedilotildees (e outras unidades da liacutengua -grupos de palavras etc) dentro do enunciado

Aqui com base no material do diaacutelogo e das suas reacuteplicas eacute necesshysaacuterio abordar previamente o problema da oraccedilatildeo como unidade da liacutenshygua em sua distinccedilatildeo em face do enunciado como unidade da comunicashyccedilatildeo discursiva (A questatildeo da natureza da oraccedilatildeo eacute uma das mais compleshyxas e difiacuteceis na linguiacutestica A luta de opiniotildees em torno dessa questatildeo continua em nossa ciecircncia ateacute os dias de hoje Natildeo eacute tarefa nossa eviden-

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As cicatrizes dos limites estatildeo nos geacuteneros secundaacuterios (N da ed russa)

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temente revelar essa questatildeo em toda a sua complexidade nossa intenshyccedilatildeo eacute abordar apenas um aspecto mas tal aspecto nos parece de imporshytacircncia substancial para toda a questatildeo Para noacutes importa definir com precisatildeo a relaccedilatildeo da oraccedilatildeo com o enunciado Isto ajudaraacute a elucidar com mais clareza o enunciado de um lado e a oraccedilatildeo de outro)

Posteriormente trataremos dessa questatildeo por ora observamos apeshynas que os limites da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua nunca satildeo deshyterminados pela alternacircncia de sujeitos do discurso Essa alternacircncia que emoldura a oraccedilatildeo de ambos os lados converte-a em um enunciashydo pleno Essa oraccedilatildeo assume novas qualidades e eacute percebida de modo inteiramente diverso de como eacute percebida a oraccedilatildeo emoldurada por oushytras oraccedilotildees no contexto de um enunciado desse ou daquele falante A oraccedilatildeo eacute um pensamento relativamente acabado imediatamente corshyrelacionado com outros pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enunciado ao teacutermino da oraccedilatildeo o falante faz uma pausa para passar em seguida ao seu pensamento subsequente que daacute continuidade completa e fundamenta o primeiro O contexto da oraccedilatildeo eacute o contexshyto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante) a oraccedilatildeo natildeo se corshyrelaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situaccedilatildeo o ambiente a preacute-histoacuteria) nem com as enunshyciaccedilotildees de outros falantes mas tatildeo-somente atraveacutes de todo o contexto que a rodeia isto eacute atraveacutes do enunciado em seu conjunto Se poreacutem a oraccedilatildeo natildeo estaacute cercada pelo contexto do discurso do mesmo falante ou seja se ela eacute um enunciado pleno e acabado (uma reacuteplica do diaacutelogo) entatildeo ela estaraacute imediatamente (e individualmente) diante da realidade (do contexto extraverbal do discurso) e de outras enunciaccedilotildees dos oushytros depois destas jaacute natildeo vem a pausa que eacute definida e assimilada pelo proacuteprio falante (pausas de toda espeacutecie como manifestaccedilotildees gramatishycais calculadas e assimiladas soacute satildeo possiacuteveis dentro do discurso de um falante isto eacute dentro de um enunciado as pausas entre as enunciaccedilotildees natildeo satildeo evidentemente de natureza gramatical e sim real essas pausas reais - psicoloacutegicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstacircncias exshyternas - podem destruir tambeacutem um enunciado nos geacuteneros artiacutestico-literaacuterios secundaacuterios tais pausas satildeo levadas em conta pelo artista o diretor de cena o ator mas elas satildeo diferentes por princiacutepio tanto das pausas gramaticais quanto das pausas estiliacutesticas - por exemplo entre

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

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Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

286 J M I K H A I L B A K H T I N

maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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os sintagmas - no interior do enunciado) depois delas espera-se uma resposta ou uma compreensatildeo responsiva de outro falante Semelhante oraccedilatildeo tornada enunciado pleno ganha uma validade semacircnrica especial em relaccedilatildeo a ela pode-se ocupar uma posiccedilatildeo responsiva com ela se pode concordar ou discordar executaacute-la avaliaacute-la etc no contexto a oraccedilatildeo carece de capacidade de determinar a resposta ela ganha essa capacidade (ou melhor familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado

Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente novas pershytencem natildeo agrave proacutepria oraccedilatildeo que se tornou enunciado pleno mas preshycisamente ao enunciado traduzindo a natureza dele e natildeo a natureza da oraccedilatildeo elas se incorporam agrave oraccedilatildeo completando-a ateacute tornaacute-la enunshyciado pleno A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua carece de todas esshysas propriedades natildeo eacute delimitada de ambos os lados pela alternacircncia dos sujeitos do discurso natildeo tem contato imediato com a realidade (com a situaccedilatildeo extraverbal) nem relaccedilatildeo imediata com enunciados alheios natildeo dispotildee de plenitude semacircntica nem capacidade de determinar imeshydiatamente a posiccedilatildeo responsiva do outro falante isto eacute de suscitar resshyposta A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tem natureza gramatical fronteiras gramaticais lei gramatical e unidade (Examinada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse todo ela adquire proprieshydades estiliacutesticas) Onde a oraccedilatildeo figura como um enunciado pleno ela aparece colocada em uma moldura de material de natureza diversa Quando esquecemos esse pormenor na anaacutelise de uma oraccedilatildeo deturshypamos a sua natureza (e ao mesmo tempo tambeacutem a natureza do enunshyciado gramaticalizando-o) Muitos linguumlistas e correntes linguumliacutesticas (no campo da sintaxe) satildeo prisioneiros dessa confusatildeo e o que esrudam como oraccedilatildeo eacute no fundo algum hiacutebrido de oraccedilatildeo (de unidade da liacutenshygua) e de enunciado (de unidade da comunicaccedilatildeo discursiva) Natildeo se intercambiam oraccedilotildees como se intercambiam palavras (em rigoroso sentido linguumliacutestico) e grupos de palavras intercambiam-se enunciados que satildeo construiacutedos com o auxiacutelio das unidades da liacutengua palavras combinaccedilotildees de palavras oraccedilotildees ademais o enunciado pode ser consshytruiacutedo a partir de uma oraccedilatildeo de uma palavra por assim dizer de uma unidade do discurso (predominantemente de uma reacuteplica do diaacutelogo) mas isso natildeo leva uma unidade da liacutengua a transformar-se em unidade da comunicaccedilatildeo discursiva

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A ausecircncia de uma teoria elaborada do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva redunda em uma distinccedilatildeo imprecisa da orashyccedilatildeo e do enunciado e frequentemente total confusatildeo dos dois

Voltemos ao diaacutelogo real Como jaacute dissemos trata-se da forma mais simples e claacutessica de comunicaccedilatildeo discursiva A alternacircncia dos sujeishytos do discurso (falantes) que determina os limites dos enunciados estaacute aqui representada com excepcional evidecircncia Contudo em outros campos da comunicaccedilatildeo discursiva inclusive nos campos da comunishycaccedilatildeo cultural (cientiacutefica e artiacutestica) complexamente organizada a nashytureza dos limites do enunciado eacute a mesma

Complexas por sua construccedilatildeo as obras especializadas dos diferenshytes geacuteneros cientiacuteficos e artiacutesticos a despeito de toda a diferenccedila entre elas e as reacuteplicas do diaacutelogo tambeacutem satildeo pela proacutepria natureza unishydades da comunicaccedilatildeo discursiva tambeacutem estatildeo nitidamente delimishytadas pela alternacircncia dos sujeitos do discurso cabendo observar que essas fronteiras ao conservarem a sua precisatildeo externa adquirem um ca-raacuteter interno graccedilas ao fato de que o sujeito do discurso - neste caso o autor de uma obra - aiacute revela a sua individualidade no estilo na visatildeo de mundo em todos os elementos da i d e i a de sua obra Essa marca da individualidade jacente na obra eacute o que cria princiacutepios interiores esshypeciacuteficos que a separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo cultural das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia de outras obras da mesma corrente das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc

A obra como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute disposta para a resposta do outro (dos outros) para a sua ativa compreensatildeo responsiva que pode assumir diferentes formas influecircncia educativa sobre os leitores sobre suas convicccedilotildees respostas criacuteticas influecircncia sobre seguidores e contishynuadores ela determina as posiccedilotildees responsivas dos outros nas comshyplexas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo discursiva de um dado campo da cultura A obra eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva como a reacuteplica do diaacutelogo estaacute vinculada a outras obras - enunciados com aqueshylas agraves quais ela responde e com aquelas que lhe respondem ao mesmo tempo agrave semelhanccedila da reacuteplica do diaacutelogo ela estaacute separada daquelas pelos limites absolutos da alternacircncia dos sujeitos do discurso

Desse modo a alternacircncia dos sujeitos do discurso que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme rigorosamente delimitada

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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dos outros enunciados a ele vinculados eacute a primeira peculiaridade consshytitutiva do enunciado como unidade da comunicaccedilatildeo discursiva que o distingue da unidade da liacutengua Passemos agrave segunda peculiaridade do enunciado intimamente vinculada agrave primeira Essa segunda peculiarishydade eacute a conclusibilidade especiacutefica do enunciado A conclusibilidade do enunciado eacute uma espeacutecie de aspecto interno da alternancia dos sushyjeitos do discurso essa alternacircncia pode ocorrer precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob dadas condiccedilotildees Quando ouvimos ou vemos percebemos nitidashymente o fim do enunciado como se ouviacutessemos o dixi conclusivo do falante Essa conclusibilidade eacute especiacutefica e determinada por categorias especiacuteficas O primeiro e mais importante criteacuterio de conclusibilidade do enunciado eacute a possibilidade de responder a ele em termos mais preshycisos e amplos de ocupar em relaccedilatildeo a ele uma posiccedilatildeo responsiva (por exemplo cumprir uma ordem) A esse criteacuterio corresponde tambeacutem a pergunta sucinta do cotidiano por exemplo Que horas satildeo (a ela pode-se responder) e o pedido cotidiano que pode ser cumprido ou descumprido o discurso cientiacutefico com o qual podemos concordar ou natildeo concordar (inteiramente ou em parte) e o romance ficcional que pode ser avaliado no seu conjunto Alguma conclusibilidade eacute necessaacuteshyria para que se possa responder ao enunciado Para isso natildeo basta que o enunciado seja compreendido no sentido de liacutengua Uma oraccedilatildeo abshysolutamente compreensiacutevel e acabada se eacute oraccedilatildeo e natildeo enunciado consshytituiacutedo por uma oraccedilatildeo natildeo pode suscitar atitude responsiva isso c compreensiacutevel mas ainda natildeo eacute tudo Esse tudo - indiacutecio da inteireza do enunciado - natildeo se presta a uma definiccedilatildeo nem gramaacutetica nem abs-trato-semacircntica

Essa inteireza acabada do enunciado que assegura a possibilidade de resposta (ou de compreensatildeo responsiva) eacute determinada por trecircs ele-

bull

Bakhtin emprega o termo reaccedilatildeo responsiva (ptvieacutetnaia reaacutektsiyd) Em russo como nas liacutenguas latinas (a palavra em russo eacute uma apropriaccedilatildeo do latim) reaccedilatildeo (reaacutektsiyd) e resposta (otvieacutet) satildeo sinoacutenimos mas agrave primeira vista no plano superficial natildeo criam redundacircncia Jaacute em portuguecircs sua contiguidade cria uma redundacircncia meio estranha razatildeo por que resolvi substituir reaccedilatildeo responsiva por atitude responsiva jaacute que 1 substituiccedilatildeo conserva plenamente o sentido do conceiro bakhtiniano (N do T)

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mentos (ou fatores) intimamente ligados no todo orgacircnico do enunshyciado 1) exauribilidade do objeto e do sentido 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante 3) formas tiacutepicas composicionais e de geacutenero do acabamento

O primeiro elemento - a exauribilidade semacircntico-objetal do tema do enunciado - eacute profundamente diverso nos diferentes campos da coshymunicaccedilatildeo discursiva Essa exauribilidade pode ser quase extremamente plena em alguns campos da vida (as questotildees de natureza puramente factual bem como as respostas factuais a elas os pedidos as ordens etc) em alguns campos oficiais no campo das ordens militares e proshydutivas isto eacute naqueles campos em que os geacuteneros do discurso satildeo de natureza sumamente padronizada e o elemento criativo estaacute ausente quashyse por completo Nos campos da criaccedilatildeo (particularmente no cientiacutefico evidentemente) ao contraacuterio soacute eacute possiacutevel uma uacutenica exauribilidade semacircntico-objetal muito relativa aqui soacute se pode falar de um miacutenimo de acabamento que permite ocupar uma posiccedilatildeo responsiva O objeto eacute objetivamente inexauriacutevel mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo de um trabalho cientiacutefico) ele ganha uma relativa conclusibishylidade em determinadas condiccedilotildees em certa situaccedilatildeo do problema em um dado material em determinados objetivos colocados pelo autor isto eacute jaacute no acircmbito de uma ideia definida do autor Desse modo depa-ramo-nos inevitavelmente com o elemento que estaacute intimamente ligashydo ao primeiro

Em cada enunciado - da reacuteplica monovocal do cotidiano agraves granshydes e complexas obras de ciecircncia ou de literatura - abrangemos intershypretamos sentimos a intenccedilatildeo discursiva de discurso ou a vontade disshycursiva do falante que determina o todo do enunciado o seu volume e as suas fronteiras Imaginamos o que o falante quer dizer e com essa ideia verbalizada essa vontade verbalizada (como a entendemos) eacute que medimos a conclusibilidade do enunciado Essa ideia determina tanto a proacutepria escolha do objeto (em certas condiccedilotildees de comunicaccedilatildeo disshycursiva na relaccedilatildeo necessaacuteria com os enunciados antecedentes) quanto os seus limites e a sua exauribilidade semacircntico-objetal Ele determina evidentemente tambeacutem a escolha da forma do geacutenero na qual seraacute consshytruiacutedo o enunciado (jaacute se trata do terceiro elemento que abordaremos adiante) Essa ideia - momento subjetivo do enunciado - se combina

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

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Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 13: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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em uma unidade indissoluacutevel com o seu aspecto semacircntico-objetivo resshytringindo este uacuteltimo vinculando-o a uma situaccedilatildeo concreta (singular) de comunicaccedilatildeo discursiva com todas as suas circunstacircncias individuais com seus participantes pessoais com as suas intervenccedilotildees - enunciados antecedentes Por isso os participantes imediatos da comunicaccedilatildeo que se orientam na situaccedilatildeo e nos enunciados antecedentes abrangem faacutecil e rapidamente a intenccedilatildeo discursiva a vontade discursiva do falante e desde o iniacutecio do discurso percebem o todo do enunciado em desdoshybramento

Passemos ao elemento terceiro e mais importante para noacutes - as formas estaacuteveis de geacutenero do enunciado A vontade discursiva do falanshyte se realiza antes de tudo na escolha de um certo geacutenero de discurso Essa escolha eacute determinada pela especificidade de um dado campo da coshymunicaccedilatildeo discursiva por consideraccedilotildees semacircntico-objetais (temaacuteticas) pela situaccedilatildeo concreta da comunicaccedilatildeo discursiva pela composiccedilatildeo pessoal dos seus participantes etc A intenccedilatildeo discursiva do falante com toda a sua individualidade e subjetividade eacute em seguida aplicada e adapshytada ao geacutenero escolhido constitui-se e desenvolve-se em uma detershyminada forma de geacutenero Tais geacuteneros existem antes de tudo em todos os geacuteneros mais multiformes da comunicaccedilatildeo oral cotidiana inclusive do geacutenero mais familiar e do mais iacutentimo

Falamos apenas atraveacutes de determinados geacuteneros do discurso isto eacute todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estaacuteveis e tiacutepicas de construccedilatildeo do todo Dispomos de um rico repertoacuterio de geacuteneshyros de discurso orais (e escritos) Em termos praacuteticos noacutes os empregamos de forma segura e habilidosa mas em termos teoacutericos podemos desconheshycer inteiramente a sua existecircncia Como o Jourdain de Moliegravere que fashylava em prosa sem que disso suspeitasse noacutes falamos por geacuteneros divershysos sem suspeitar da sua existecircncia Ateacute mesmo no bate-papo mais desshycontraiacutedo e livre noacutes moldamos o nosso discurso por determinadas formas de geacutenero agraves vezes padronizadas e estereotipadas agraves vezes mais flexiacuteveis plaacutesticas e criativas (a comunicaccedilatildeo cotidiana tambeacutem dispotildee de geacuteneros criativos) Esses geacuteneros do discurso nos satildeo dados quase da mesma forma que nos eacute dada a liacutengua materna a qual dominamos l i shyvremente ateacute comeccedilarmos o estudo teoacuterico da gramaacutetica A liacutengua matershyna - sua composiccedilatildeo vocabular e sua estrutura gramatical - natildeo chega

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ao nosso conhecimento a partir de dicionaacuterios e gramaacuteticas mas de enunciaccedilotildees concretas que noacutes mesmos ouvimos e noacutes mesmos reproshyduzimos na comunicaccedilatildeo discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam Noacutes assimilamos as formas da liacutengua somente nas formas das enunciashyccedilotildees e justamente com essas formas As formas da liacutengua e as formas tiacuteshypicas dos enunciados isto eacute os geacuteneros do discurso chegam agrave nossa exshyperiecircncia e agrave nossa consciecircncia em conjunto e estreitamente vinculadas Aprender a falar significa aprender a consrruir enunciados (porque fashylamos por enunciados e natildeo por oraccedilotildees isoladas e evidentemente natildeo por palavras isoladas) Os geacuteneros do discurso organizam o nosso disshycurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintaacuteticas) Noacutes aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de geacutenero e quando ouvimos o discurso alheio jaacute adivinhamos o seu geacuteshynero pelas primeiras palavras adivinhamos um determinado volume (isto eacute uma extensatildeo aproximada do conjunto do discurso) uma deshyterminada construccedilatildeo composicional prevemos o fim isto eacute desde o iniacutecio temos a sensaccedilatildeo do conjunto do discurso que em seguida apeshynas se diferencia no processo da fala Se os geacuteneros do discurso natildeo exisshytissem e noacutes natildeo os dominaacutessemos se tiveacutessemos de criaacute-los pela prishymeira vez no processo do discurso de construir livremente e pela primeishyra vez cada enunciado a comunicaccedilatildeo discursiva seria quase impossiacutevel

As formas de geacutenero nas quais moldamos o nosso discurso difeshyrem subsrancialmente eacute claro das formas da liacutengua no sentido da sua estabilidade e da sua coerccedilatildeo (normatividade) para o falante Em linhas gerais elas satildeo bem mais flexiacuteveis plaacutesticas e livres que as formas da liacutengua Tambeacutem neste sentido a diversidade dos geacuteneros do discurso eacute muito grande Toda uma seacuterie de geacuteneros sumamente difundidos no cotidiano eacute de tal forma padronizada que a vontade discursiva indivishydual do falante soacute se manifesta na escolha de um determinado geacutenero e ainda por cima na sua entonaccedilatildeo expressiva Assim satildeo por exemplo os diversos geacuteneros cotidianos breves de saudaccedilotildees despedida felicitashyccedilotildees votos de toda espeacutecie informaccedilatildeo sobre a sauacutede as crianccedilas etc A diversidade desses geacuteneros eacute determinada pelo fato de que eles satildeo diferentes em funccedilatildeo da situaccedilatildeo da posiccedilatildeo social e das relaccedilotildees pesshysoais de reciprocidade entre os participantes da comunicaccedilatildeo haacute formas elevadas rigorosamente oficiais e respeitosas desses geacuteneros paralela-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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mente a formas familiares e aleacutem disso de diversos graus de familiarishydade e formas iacutentimas (estas satildeo diferentes das familiares) Esses geacuteneshyros requerem ainda um certo tom isto eacute incluem em sua estrutura uma determinada entonaccedilatildeo expressiva Esses geacuteneros particularmente os elevados oficiais possuem um alto grau de estabilidade e coaccedilatildeo Aiacute a vontade discursiva costuma limitar-se agrave escolha de um determinado geacuteshynero e soacute leves matizes de uma entonaccedilatildeo expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso mais frio ou mais caloroso introshyduzir a entonaccedilatildeo de alegria etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional) Mas tambeacutem aqui eacute possiacutevel uma reacentuaccedilatildeo dos geacuteneros caracteriacutestica da comunicaccedilatildeo discursishyva em geral assim por exemplo pode-se transferir a forma de geacutenero da saudaccedilatildeo do campo oficial para o campo da comunicaccedilatildeo familiar isto eacute empregaacute-la com uma reacentuaccedilatildeo irocircnico-paroacutedica com fins anaacutelogos pode-se misturar deliberadamente os geacuteneros das diferentes esferas

Paralelamente a semelhantes geacuteneros padronizados existiam e exisshytem eacute claro geacuteneros mais livres e mais criativos de comunicaccedilatildeo disshycursiva oral os geacuteneros das conversas de salatildeo sobre temas do cotidiano sociais esteacuteticos e similares os geacuteneros das conversas agrave mesa das conshyversas iacutentimo-amistosas iacutentimo-familiares etc (por enquanto natildeo existe uma nomenclatura dos geacuteneros do discurso oral e tampouco estaacute claro o princiacutepio de tal nomenclatura) A maioria desses geacuteneros se presta a uma reformulaccedilatildeo livre e criadora (agrave semelhanccedila dos geacuteneros artiacutestishycos e alguns talvez ateacute em maior grau) no entanto o uso criativamenshyte livre natildeo eacute uma nova criaccedilatildeo de geacutenero - eacute preciso dominar bem os geacuteneros para empregaacute-los livremente

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma liacutengua sentem amiuacutede total impotecircncia em alguns campos da comunicaccedilatildeo precisashymente porque natildeo dominam na praacutetica as formas de geacutenero de dadas esferas Frequentemente a pessoa que domina magnificamente o discurshyso em diferentes esferas da comunicaccedilatildeo cultural sabe ler o relatoacuterio de-

bull

Esses fenoacutemenos e outros anaacutelogos interessam aos linguumlistas (predominantemente os historiadores da liacutengua) no corte meramente estiliacutestico como reflexo na liacutengua de formas de etiqueta historicamente mutaacuteveis de gentileza dececircncia Cf por exemplo F Brunots

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scnvolver uma discussatildeo cientiacutefica fala magnificamente sobre questotildees sociais cala ou interveacutem de forma muito desajeitada em uma conversa mundana Aqui natildeo se trata de pobreza vocabular nem de estilo tomado de maneira abstrata tudo se resume a uma inabilidade para dominar o repertoacuterio dos geacuteneros da conversa mundana a uma falta de acervo sushyficiente de noccedilotildees sobre todo um enunciado que ajudem a moldar de forma raacutepida e descontraiacuteda o seu discurso nas formas estiliacutestico-com-posicionais definidas a uma inabilidade de tomar a palavra a tempo de comeccedilar corretamente e terminar corretamente (nesses geacuteneros a composiccedilatildeo eacute muito simples)

Quanto melhor dominamos os geacuteneros tanto mais livremente os empregamos tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso eacute possiacutevel e necessaacuterio) refletimos de modo mais flexiacutevel e sutil a situaccedilatildeo singular da comunicaccedilatildeo em suma reashylizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso

Desse modo ao falante natildeo satildeo dadas apenas as formas da liacutengua nacional (a composiccedilatildeo vocabular e a estrutura gramatical) obrigatoacuterias para ele mas tambeacutem as formas de enunciado para ele obrigatoacuterias isto eacute os geacuteneros do discurso estes satildeo tatildeo indispensaacuteveis para a comshypreensatildeo muacutetua quanto as formas da liacutengua Os geacuteneros do discurso comparados agraves formas da liacutengua satildeo bem mais mutaacuteveis flexiacuteveis e plaacutesticos entretanto para o indiviacuteduo falante eles tecircm significado norshymativo natildeo satildeo criados por ele mas dados a ele Por isso um enunciado singular a despeito de toda a sua individualidade e do caraacuteter criativo de forma alguma pode ser considerado uma combinaccedilatildeo absolutamente livre de formas da liacutengua como o supotildee por exemplo Saussure (e muishytos outros linguistas que o secundam) que contrapotildee enunciado (la parole) como ato puramente individual ao sistema da liacutengua como feshynoacutemeno puramente social e obrigatoacuterio para o indiviacuteduo A imensa

bull

Saussure define a enunciaccedilatildeo (la parole] como ato individual da vontade e da comshypreensatildeo no qual cabe distinguir 1) combinaccedilotildees com auxiacutelio das quais o sujeito fashylante usa o coacutedigo linguiacutestico com o objetivo de exprimir o seu pensamento pessoal e 2) mecanismo psicofiacutesico que lhe permite objetivar essas combinaccedilotildees (Saussure Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral Moscou 1933 p 38) Assim Saussure ignoshyra o fato de que aleacutem das formas da liacutengua existem ainda as formas de combinaccedilotildees dessas formas isto eacute ignora os geacuteneros do discurso (N da ed russa)

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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maioria dos linguistas se natildeo na teoria na praacutetica estaacute na mesma posishyccedilatildeo vecircem no enunciado apenas uma combinaccedilatildeo individual de formas puramente da liacutengua (leacutexicas e gramaticais) e na praacutetica natildeo enxergam nem estudam nela nenhuma outra forma normativa

O desconhecimento dos geacuteneros do discurso como formas relatishyvamente estaacuteveis e normativas de enunciado deveria levar necessariashymente os linguistas agrave jaacute referida confusatildeo do enunciado com a oraccedilatildeo deveria levar a uma situaccedilatildeo (que eacute verdade nunca foi defendida coeshyrentemente) em que os nossos discursos soacute se moldam em formas estaacuteshyveis de oraccedilatildeo que nos foram dadas no entanto o nuacutemero de tais orashyccedilotildees interligadas que pronunciamos seguidamente e o momento em que paramos (tetminamos) satildeo assunto que se deixa ao pleno arbiacutetrio da vontade individual de discurso do falante ou ao capricho de um miacuteshytico fluxo da fala

Quando escolhemos um determinado tipo de oraccedilatildeo natildeo o escoshylhemos apenas para uma oraccedilatildeo natildeo o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir com determinada oraccedilatildeo escolhemos um tipo de oraccedilatildeo do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta agrave nossa imaginaccedilatildeo discursiva e determina a nossa escolha A concepccedilatildeo sobre a forma do conjunto do enunciado isto eacute sobre um determinado geacutenero do discurso guia-nos no processo do nosso discurso A i d e i a do nosso enunciado em seu conjunto pode eacute verdade exigir para sua reashylizaccedilatildeo apenas uma oraccedilatildeo mas pode exigi-las em grande nuacutemero O geacuteshynero escolhido nos sugere os tipos e os seus viacutenculos composicionais

Uma das causas do desconhecimento linguiacutestico das formas de enunciado eacute a extrema heterogeneidade destas no tocante agrave construccedilatildeo composicional e particularmente agrave sua dimensatildeo (a extensatildeo do disshycurso) - da reacuteplica monovocal ao grande romance Uma diferenccedila acenshytuada nas dimensotildees tambeacutem ocorre no acircmbito dos geacuteneros do discurso oral Por essas razotildees os geacuteneros do discurso se afiguram incomensuraacuteshyveis e inaplicaacuteveis na condiccedilatildeo de unidades do discurso

Por isso muitos linguistas (principalmente pesquisadores do camshypo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais que sejam intermeshydiaacuterias entre a oraccedilatildeo e o enunciado que possuam conclusibilidade como o enunciado e ao mesmo tempo comensurabilidade como a orashyccedilatildeo Assim satildeo a frase (por exemplo em Kartzevski7) a comunicaccedilatildeo

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(Chaacutekhmatov8 e outros) Entre os pesquisadores que empregam essas unidades natildeo existe identidade na sua concepccedilatildeo porque na vida da liacutengua a elas natildeo corresponde nenhuma realidade definida e nitidashymente delimitada Todas essas unidades artificiais e convencionais satildeo indiferentes agrave alternacircncia dos sujeitos do discurso que ocorre em qualshyquer comunicaccedilatildeo discursiva viva e real por isso se obliteram os limishytes mais substanciais em todos os campos da accedilatildeo da liacutengua - os limites entre os enunciados Daiacute (consequentemente) desaparece o criteacuterio central de conclusibilidade do enunciado como unidade autecircntica da comunicaccedilatildeo discursiva - a capacidade de determinar a ativa posiccedilatildeo responsiva dos outros participantes da comunicaccedilatildeo

Para concluir esta seccedilatildeo cabem ainda algumas observaccedilotildees sobre a oraccedilatildeo (faremos um resumo a respeito no final do nosso trabalho)

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua eacute desprovida da capacidade de determinar imediata e ativamente a posiccedilatildeo responsiva do falante Soacute depois de tornar-se um enunciado pleno uma oraccedilatildeo particular adshyquire essa capacidade Qualquer oraccedilatildeo pode figurar como enunciado acabado mas neste caso eacute completada por uma seacuterie de elementos muito substanciais de iacutendole natildeo gramatical que lhe modificam a nashytureza pela raiz E eacute essa circunstacircncia que serve de causa a uma abershyraccedilatildeo sintaacutetica especial ao analisar-se uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto inventa-se promovecirc-la a um enunciado pleno Consequenshytemente ela atinge o grau de conclusibilidade que lhe permite suscitar resposta

Como a palavra a oraccedilatildeo eacute uma unidade significativa da liacutengua Por isso cada oraccedilatildeo isolada por exemplo o sol saiu eacute absolutamenshyte compreensiacutevel isto eacute noacutes compreendemos o seu significado linguiacutesshytico o seu papel possiacutevel no enunciado Entretanto natildeo eacute possiacutevel ocushypar uma posiccedilatildeo responsiva em relaccedilatildeo a uma posiccedilatildeo isolada se natildeo sabemos que o falante disse com essa oraccedilatildeo tudo o que quis dizer que essa oraccedilatildeo natildeo eacute antecedida nem sucedida por outras oraccedilotildees do messhymo falante Mas neste caso ela jaacute natildeo eacute uma oraccedilatildeo e sim um enunciashydo plenamente vaacutelido constituiacutedo de uma soacute oraccedilatildeo ele estaacute emoldushyrado e delimitado pela alternacircncia dos sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (situaccedilatildeo) extraverbal Esse enunciado susshycita resposta

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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Contudo se essa oraccedilatildeo estaacute envolvida pelo contexto ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto isto eacute apenas no enunshyciado inteiro e uma resposta soacute eacute possiacutevel a esse enunciado inteiro cujo elemento significativo eacute a referida oraccedilatildeo O enunciado pode por exemshyplo ser tambeacutem assim O sol saiu Eacute hora de me levantar A compreenshysatildeo responsiva (ou a resposta em voz alta) Sim realmente estaacute na hora Entretanto o enunciado pode ser tambeacutem assim O sol saiu Mas ainshyda eacute muito cedo Preciso dormir mais um pouco Aqui o sentido do enunciado e a atitude responsiva perante ele satildeo outros Essa oraccedilatildeo pode fazer parte ateacute da composiccedilatildeo de uma obra de arre como elemento da paisagem Aqui a atitude responsiva - impressatildeo artiacutestico-ideoloacutegica e avaliaccedilatildeo - pode referir-se apenas a uma paisagem em seu conjunto No contexto de outra obra essa oraccedilatildeo pode ganhar significaccedilatildeo simboacutelica Em todos os casos semelhantes a oraccedilatildeo eacute o elemento significativo do conjunto de um enunciado e ela adquiriu o seu sentido definitivo apeshynas nesse conjunto

Se nossa oraccedilatildeo figura como enunciado acabado ela adquire o seu sentido pleno em determinadas condiccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva Assim ela pode ser uma resposta agrave pergunta do outro Seraacute que o sol jaacute saiu (E claro que em certas circunstacircncias que justifiquem essa pergunta) Aqui esse enunciado eacute a afirmaccedilatildeo de um determinado fato afirmaccedilatildeo que pode ser verdadeira ou falsa com a qual podemos concordar ou natildeo A oraccedilatildeo afirmativa em sua forma torna-se afirmashyccedilatildeo real apenas no contexto de um determinado enunciado

Quando se analisa semelhante oraccedilatildeo isolada costuma-se interpreshytaacute-la como enunciado acabado em alguma situaccedilatildeo simplificada ao exshytremo o sol realmenre saiu e o falante constata O sol saiu o falante estaacute vendo que a grama eacute verde e declara A grama eacute verde Semelhanshytes comunicaccedilotildees sem sentido costumam ser consideradas francashymente como casos claacutessicos de uma oraccedilatildeo Em realidade poreacutem toda informaccedilatildeo semelhante dirige-se a algueacutem eacute suscitada por alguma coisa tem algum objetivo ou seja eacute um elo real na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida

Como a palavra a oraccedilatildeo possui conclusibilidade de significado e conclusibilidade de forma gramatical mas essa conclusibilidade de sigshynificado eacute de iacutendole abstraiacutea e por isso mesmo tatildeo precisa eacute o acaba-

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mento do elemento mas natildeo o acabamento do todo A oraccedilatildeo como unidade da liacutengua agrave semelhanccedila da palavra natildeo tem autor Ela eacute de ningueacutem como a palavra e soacute funcionando como um enunciado pleshyno ela se torna expressatildeo da posiccedilatildeo do falante individual em uma sishytuaccedilatildeo concreta de comunicaccedilatildeo discursiva Isto nos leva a uma nova a uma terceira peculiaridade do enunciado - a relaccedilatildeo do enunciado com o proacuteprio falante (autor do enunciado) e com outros participanshytes da comunicaccedilatildeo discursiva

Todo enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva Eacute a posiccedilatildeo ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do senshytido Por isso cada enunciado se caracteriza antes de tudo por um deshyterminado conteuacutedo semacircntico-objetal A escolha dos meios linguiacutestishycos e dos geacuteneros de discurso eacute determinada antes de tudo pelas tareshyfas (pela i d e i a ) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido E o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estiliacutestico-composicionais

O segundo elemento do enunciado que lhe determina a composhysiccedilatildeo e o estilo eacute o elemento expressivo isto eacute a relaccedilatildeo subjetiva emoshycionalmente valorativa do falante com o conteuacutedo do objeto e do senshytido do seu enunciado Nos diferentes campos da comunicaccedilatildeo discurshysiva o elemento expressivo tem significado vaacuterio e grau vaacuterio de forccedila mas ele existe em toda parte um enunciadq absolutamente neutro eacute impossiacutevel A relaccedilatildeo valorativa do falante com o objeto do seu discurshyso (seja qual for esse objeto) tambeacutem determina a escolha dos recursos lexicais gramaticais e composicionais do enunciado O estilo individual do enunciado eacute determinado principalmente pelo seu aspecto expresshysivo No campo da estiliacutestica pode-se considerar essa tese universalmenshyte aceita Alguns pesquisadores chegam inclusive a reduzir francamente o estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso

Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso um fenoacutemeshyno da liacutengua como sistema Pode-se falar de aspecto expressivo das unishydades da liacutengua isto eacute das palavras e oraccedilotildees A estas perguntas faz-se necessaacuteria uma resposta categoricamente negativa A liacutengua como sisshytema possui evidentemente um rico arsenal de recursos linguiacutesticos mdash lexicais morfoloacutegicos e sintaacuteticos - para exprimir a posiccedilatildeo emocionalshymente valorativa do falante mas todos esses recursos enquanto recursos da liacutengua satildeo absolutamente neutros em relaccedilatildeo a qualquer avaliaccedilatildeo

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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real determinada A palavra benzinho - hipocoriacutestica tanto pelo sigshynificado do radical quanto pelo sufixo - em si mesma como unidade da liacutengua eacute tatildeo neutra quanto a palavra longes Ela eacute apenas um recurso linguiacutestico para uma possiacutevel expressatildeo de relaccedilatildeo emocionalmente vashylorativa com a realidade no entanto natildeo se refere a nenhuma realidashyde determinada essa referecircncia isto eacute esse real juiacutezo de valor soacute pode ser realizado pelo falante em seu enunciado concreto As palavras natildeo satildeo de ningueacutem em si mesmas nada valorizam mas podem abastecer qualquer falante e os juiacutezos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falantes

A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua tambeacutem eacute neutra e em si messhyma natildeo tem aspecto expressivo ela o adquire (ou melhor comunga com ele) unicamente em um enunciado concreto Aqui eacute possiacutevel a mesma aberraccedilatildeo Uma oraccedilatildeo como Ele morreu pelo visto incorpora uma determinada expressatildeo e a incorpora ainda mais uma expressatildeo como Que alegria Em realidade noacutes percebemos accedilotildees dessa natureza como enunciados plenos e ainda mais em uma situaccedilatildeo tiacutepica isto eacute numa espeacutecie de geacuteneros do discurso dotados de expressatildeo tiacutepica Enshyquanto oraccedilotildees elas satildeo desprovidas dessa expressatildeo satildeo neutras Depenshydendo do contexto do enunciado a oraccedilatildeo Ele morreu pode traduzir tambeacutem uma expressatildeo positiva de alegria e ateacute de juacutebilo E a oraccedilatildeo Que alegria no contexto de um determinado enunciado pode asshysumir tom iroacutenico ou amargamente sarcaacutestico Um dos meios de expresshysatildeo da relaccedilatildeo emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala eacute a entonaccedilatildeo expressiva que soa nitidamente na execuccedilatildeo oral A entonaccedilatildeo expressiva eacute um traccedilo constitutivo do enunciado9 No sisshytema da liacutengua isto eacute fora do enunciado ela natildeo existe Tanto a palashyvra quanto a oraccedilatildeo enquanto unidades da liacutengua satildeo desprovidas de entonaccedilatildeo expressiva Se uma palavra isolada eacute pronunciada com entoshynaccedilatildeo expressiva jaacute natildeo eacute uma palavra mas um enunciado acabado exshypresso por uma palavra (natildeo haacute nenhum fundamento para desdobraacute-la em oraccedilatildeo) Na comunicaccedilatildeo discursiva existem tipos bastante padroshynizados e muito difundidos de enunciaccedilotildees valorativas isto eacute de gecircne-

bull

Noacutes evidentemente a assimilamos como fator estiliacutestico e na leitura muda de um disshycurso escrito (N da ed russa)

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ros valorativos de discurso que traduzem elogio aprovaccedilatildeo ecircxtase esshytiacutemulo insulto Oacutetimo Bravo Maravilha Eacute uma vergonha Porcaria Uma besta etc As palavras que em determinadas conshydiccedilotildees da vida poliacutetico-social adquirem um peso especiacutefico tornam-se enunciados exclamativos expressivos Paz Liberdade etc (Trata-se de um geacutenero de discurso poliacutetico-social especiacutefico) Em certa situashyccedilatildeo a palavra pode adquirir um sentido profundamente expressivo na forma de enunciado exclamativo Mar Mar (Exclamam dez mil gregos em Xenofonte)10

Em todos esses casos natildeo estamos diante de uma palavra isolada como unidade da liacutengua nem do significado de tal palavra mas de um enunciado acabado e com um sentido concreto - do conteuacutedo de um dado enunciado aqui o significado da palavra refere uma determinashyda realidade concreta em condiccedilotildees igualmente reais de comunicaccedilatildeo discursiva Por isso aqui natildeo soacute compreendemos o significado de dada palavra enquanto palavra da liacutengua como ocupamos em relaccedilatildeo a ela uma ativa posiccedilatildeo responsiva - de simpatia acordo ou desacordo de estiacutemulo para a accedilatildeo Desse modo a entonaccedilatildeo expressiva pertence aqui ao enunciado e natildeo agrave palavra E ainda assim eacute muito difiacutecil abrir matildeo da convicccedilatildeo de que cada palavra da liacutengua tem ou pode ter por si mesma um tom emocional um colorido emocional um elemento axioloacutegico uma aureacuteola estiliacutestica etc e por conseguinte uma entoshynaccedilatildeo expressiva inerente a ela enquanto palavra Porque se pode pensar que quando escolhemos as palavras para o enunciado eacute como se nos guiaacutessemos pelo tom emocional proacuteprio de uma palavra isolada sele-cionamos aquelas que pelo tom correspondem agrave expressatildeo do nosso enunciado e rejeitamos as outras Eacute precisamente dessa maneira que os poetas representam o seu trabalho com a palavra e eacute precisamente asshysim que o estilista (por exemplo a experiecircncia estiliacutestica de Pech-kovski12) interpreta esse processo

E apesar de tudo isso natildeo eacute assim Estamos diante da jaacute conhecishyda aberraccedilatildeo Quando escolhemos as palavras partimos do conjunto projetado do enunciado e esse conjunto que projetamos e criamos eacute

T

Quando construiacutemos o nosso discurso sempre trazemos de antematildeo o todo da nossa enunciaccedilatildeo na forma tanto de um determinado esquema de geacutenero quanto de proje-

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 18: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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sempre expressivo e eacute ele que irradia a sua expressatildeo (ou melhor a nosshysa expressatildeo) a cada palavra que escolhemos por assim dizer contagia essa palavra com a expressatildeo do conjunto E escolhemos a palavra pelo significado que em si mesmo natildeo eacute expressivo mas pode ou natildeo corresshyponder aos nossos objetivos expressivos em face de outras palavras isto eacute em face do conjunto do nosso enunciado O significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinashydas condiccedilotildees reais de comunicaccedilatildeo discursiva gera a centelha da exshypressatildeo Ora eacute precisamente isto que ocorre no processo de criaccedilatildeo do enunciado Repetimos soacute o contato do significado linguumliacutestico com a realidade concreta soacute o contato da liacutengua com a realidade o qual se daacute no enunciado gera a centelha da expressatildeo esta natildeo existe nem no sisshytema da liacutengua nem na realidade objetiva existente fora de noacutes

Portanto a emoccedilatildeo o juiacutezo de valor a expressatildeo satildeo estranhos agrave palavra da liacutengua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto Em si mesmo o significado de uma palavra (sem referecircncia agrave realidade concreta) eacute extra-emocional Haacute pashylavras que significam especialmente emoccedilotildees juiacutezos de valor alegria sofrimento belo alegre triste etc Mas tambeacutem esses signifishycados satildeo igualmente neutros como todos os demais O colorido exshypressivo soacute se obteacutem no enunciado e esse colorido independe do signishyficado de tais palavras isoladamente tomado de forma abstrata por exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim - aqui a palavra alegria recebe entonaccedilatildeo expressiva por assim dizer a despeito do seu significado

Contudo o acima exposto nem de longe esgota a questatildeo Esta eacute bem mais complexa Quando escolhemos as palavras no processo de consshytruccedilatildeo de um enunciado nem de longe as tomamos sempre do sistema da liacutengua em sua forma neutra lexicograacutefica Costumamos tiraacute-las de oushytros enunciados e antes de tudo de enunciados congeacuteneres com o nosso isto eacute pelo tema pela composiccedilatildeo pelo estilo consequentemente se-

T

to individual de discurso Natildeo enfiamos as palavras natildeo vamos de uma palavra a oushytra mas eacute como se completaacutessemos com as devidas palavras a totalidade Enfiamos as palavras apenas na primeira fase do estudo de uma liacutengua estrangeira e ainda assim apenas quando usamos uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica precaacuteria (N da ed russa)

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lecionamos as palavras segundo a sua especificaccedilatildeo de geacutenero O geacuteneshyro do discurso natildeo eacute uma forma da liacutengua mas uma forma tiacutepica do enunciado como tal forma o geacutenero inclui certa expressatildeo tiacutepica a ele inerente No geacutenero a palavra ganha certa expressatildeo tiacutepica Os geacuteneros correspondem a situaccedilotildees tiacutepicas da comunicaccedilatildeo discursiva a temas tiacutepicos por conseguinte a alguns contatos tiacutepicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstacircncias tiacutepicas Daiacute a posshysibilidade das expressotildees tiacutepicas que parecem sobrepor-se agraves palavras Essa expressividade tiacutepica do geacutenero natildeo pertence evidentemente agrave palavra enquanto unidade da liacutengua natildeo faz parte do seu significado mas reflete apenas a relaccedilatildeo da palavra e do seu significado com o geacuteneshyro isto eacute enunciados tiacutepicos Essa expressatildeo tiacutepica e a entonaccedilatildeo tiacutepica que lhe corresponde natildeo possuem aquela forccedila de coerccedilatildeo que tecircm as formas da liacutengua Eacute uma normatividade do geacutenero mais livre No nosso exemplo Neste momento qualquer alegria eacute apenas amargura para mim o tom expressivo da palavra alegria determinado pelo contexshyto evidentemente natildeo eacute tiacutepico dessa palavra Os geacuteneros do discurso no geral se prestam de modo bastante faacutecil a uma reacentuaccedilatildeo o trisshyte pode ser transformado em jocoso-alegre mas daiacute resulta alguma coisa nova (por exemplo o geacutenero de um epitaacutefio jocoso)

Essa expressividade tiacutepica (de geacutenero) pode ser vista como a aureacuteoshyla estiliacutestica da palavra mas essa aureacuteola natildeo pertence agrave palavra da liacutenshygua como tal mas ao geacutenero em que dada palavra costuma funcionar eacute o eco da totalidade do geacutenero que ecoa na palavra

A expressatildeo de geacutenero da palavra - e a expressatildeo de geacutenero da entoshynaccedilatildeo mdash eacute impessoal como impessoais satildeo os proacuteprios geacuteneros do discurshyso (porque estes satildeo uma forma tiacutepica das enunciaccedilotildees individuais mas natildeo satildeo as proacuteprias enunciaccedilotildees) Todavia as palavras podem entrar no nosso discurso a partir de enunciaccedilotildees individuais alheias mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos dessas enunciaccedilotildees individuais

As palavras da liacutengua natildeo satildeo de ningueacutem mas ao mesmo tempo noacutes as ouvimos apenas em determinadas enunciaccedilotildees individuais noacutes as lemos em determinadas obras individuais e aiacute as palavras jaacute natildeo tecircm expressatildeo apenas tiacutepica poreacutem expressatildeo individual externada com maior ou menor nitidez (em funccedilatildeo do geacutenero) determinada pelo contexto singularmente individual do enunciado

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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Os significados lexicograacuteficos neutros das palavras da liacutengua asseshyguram para ela a identidade e a compreensatildeo muacutetua de todos os seus falantes contudo o emprego das palavras na comunicaccedilatildeo discursiva viva sempre eacute de iacutendole individual-contextual Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em trecircs aspectos como palavra da liacutengua neutra e natildeo pertencente a ningueacutem como palavra alheia dos outros cheia de ecos de outros enunciados e por uacuteltimo como a mishynha palavra porque uma vez que eu opero com ela em uma situaccedilatildeo determinada com uma intenccedilatildeo discursiva determinada ela jaacute estaacute comshypenetrada da minha expressatildeo Nos dois aspectos finais a palavra eacute exshypressiva mas essa expressatildeo reiteramos natildeo pertence agrave proacutepria palavra ela nasce no ponto do contato da palavra com a realidade concreta e nas condiccedilotildees de uma situaccedilatildeo real contato esse que eacute realizado pelo enunciado individual Neste caso a palavra atua como expressatildeo de certa posiccedilatildeo valorativa do homem individual (de algueacutem dotado de aushytoridade do escritor cientista pai matildee amigo mestre etc) como abreviatura do enunciado

Em cada eacutepoca em cada ciacuterculo social em cada micromundo fashymiliar de amigos e conhecidos de colegas em que o homem cresce e vive sempre existem enunciados investidos de autoridade que datildeo o tom como as obras de arte ciecircncia jornalismo poliacutetico nas quais as pessoas se baseiam as quais elas citam imitam seguem Em cada eacutepoca e em todos os campos da vida e da atividade existem determinadas tradiccedilotildees expressas e conservadas em vestes verbalizadas em obras enunciados sentenccedilas etc Sempre existem essas ou aquelas ideias determinantes dos senhores do pensamento de uma eacutepoca verbalmente expressas algushymas tarefas fundamentais lemas etc Jaacute nem falo dos modelos de anshytologias escolares nos quais as crianccedilas aprendem a liacutengua materna e evidentemente satildeo sempre expressivos

Eis por que a experiecircncia discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interaccedilatildeo constante e contiacutenua com os enunciados individuais dos outros Em certo sentido essa experiecircnshycia pode ser caracterizada como processo de assimilaccedilatildeo mdash mais ou meshynos criador - das palavras do outro (e natildeo das palavras da liacutengua) Nosshyso discurso isto eacute todos os nossos enunciados (inclusive as obras criashydas) eacute pleno de palavras dos outros de um grau vaacuterio de alteridade ou

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de assimilabilidade de um grau vaacuterio de aperceptibilidade e de releshyvacircncia Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressatildeo o seu tom valorativo que assimilamos reelaboramos e reacentuamos

Desse modo a expressividade de determinadas palavras natildeo eacute uma propriedade da proacutepria palavra como unidade da liacutengua e natildeo decorre imediatamente do significado dessas palavras essa expressatildeo ou eacute uma expressatildeo tiacutepica de geacutenero ou um eco de uma expressatildeo individual alheia que toma a palavra uma espeacutecie de representante da plenitude do enunshyciado do outro como posiccedilatildeo valorativa determinada

O mesmo cabe dizer tambeacutem da oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutenshygua ela tambeacutem carece de expressividade Isso noacutes jaacute afirmamos no iniacutecio desta seccedilatildeo Resta apenas completar brevemente o que foi dito Acontece que os tipos existentes de oraccedilotildees costumam funcionar como enunciados plenos de determinados tipos de geacutenero Assim satildeo as orashyccedilotildees exclamativas interrogativas e exortativas Existe um nuacutemero muito grande de geacuteneros centrados no cotidiano e especiais (por exemplo geacuteshyneros de ordens militares e de produccedilatildeo) que em regra satildeo expressos por uma oraccedilatildeo de tipo correspondente Por outro lado as oraccedilotildees desshyse tipo se encontram de modo relativamente raro no contexto de suborshydinaccedilatildeo dos enunciados desenvolvidos Quando expressotildees desse tipo [entram] no contexto desenvolvido de subordinaccedilatildeo destacam-se com certa nitidez de sua composiccedilatildeo e em regra procurando ser ou a prishymeira ou a uacuteltima oraccedilatildeo do enunciado (ou da parte relativamente aushytoacutenoma do enunciado) Esses tipos de oraccedilotildees adquirem um interesshyse especial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas Aqui nos importa apenas observar que as oraccedilotildees desse tipo se fundem muito solidamente com sua expressatildeo de geacutenero assim como absorvem com especial facilidade a expressatildeo individual Essas oraccedilotildees em muito contrishybuiacuteram para consolidar a ilusatildeo sobre a natureza expressiva da oraccedilatildeo

T

Vez por outra o autor usa colchetes para destacar alguma palavra mas natildeo explica os motivos do uso (N do T)

A primeira e a uacuteltima oraccedilatildeo de um enunciado tecircm em geral uma natureza original certa qualidade complementar Porque se trata por assim dizer de oraccedilotildees da linha de frente que se encontram imediatamente em plena linha de alternacircncia dos sujeitos do discurso (N da ed russa)

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 20: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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Mais uma observaccedilatildeo A oraccedilatildeo enquanto unidade da liacutengua possui uma entonaccedilatildeo gramatical especiacutefica e natildeo uma entonaccedilatildeo expressiva Si-tuam-se entre as entonaccedilotildees gramaticais especiacuteficas a entonaccedilatildeo de acashybamento a explicativa a disjuntiva a enumerativa etc Cabe um papel especial agrave entonaccedilatildeo narrativa agrave interrogativa agrave exclamativa e agrave exorta-tiva aqui se cruza de certo modo a entonaccedilatildeo gramatical com a entonashyccedilatildeo de geacutenero (mas natildeo com a expressiva no sentido preciso do termo) A oraccedilatildeo soacute adquire entonaccedilatildeo expressiva no conjunto do enunciado Ao apresentar um exemplo de uma oraccedilatildeo com o fito de analisaacute-la cosshytumamos abastececirc-la de certa entonaccedilatildeo tiacutepica transformando-a em enunciado acabado (se tiramos a oraccedilatildeo de um texto determinado noacutes a entonamos evidentemente segundo a expressatildeo de dado texto)

Portanto o elemento expressivo eacute uma peculiaridade constitutiva do enunciado O sistema da liacutengua eacute dotado das formas necessaacuterias (isto eacute dos meios linguiacutesticos) para emitir a expressatildeo mas a proacutepria liacutengua e as suas unidades significativas - as palavras e oraccedilotildees - carecem de expressatildeo pela proacutepria natureza satildeo neutras Por isso servem igualmenshyte bem a quaisquer juiacutezos de valor os mais diversos e contraditoacuterios a quaisquer posiccedilotildees valorativas

Portanto o enunciado seu estilo e sua composiccedilatildeo satildeo determinados pelo elemento semacircntico-objetal e por seu elemento expressivo isto eacute pela relaccedilatildeo valorativa do falante com o elemento semacircntico-objetal do enunciado A estiliacutestica desconhece qualquer terceiro elemento Ela soacute considera os seguintes fatores que determinam o estilo do enunciado o sistema da liacutengua o objeto do discurso e do proacuteprio falante e a sua reshylaccedilatildeo valorativa com esse objeto A escolha dos meios linguiacutesticos seshygundo a concepccedilatildeo linguiacutestica corrente eacute determinada apenas por consideraccedilotildees semacircntico-objetais e expressivas Com isto se determinam tambeacutem os estilos da liacutengua tanto os de uma corrente quanto os indishyviduais O falante com sua visatildeo do mundo os seus juiacutezos de valor e emoccedilotildees por um lado e o objeto de seu discurso e o sistema da liacutengua (dos recursos linguiacutesticos) por outro - eis tudo o que determina o enunshyciado o seu estilo e sua composiccedilatildeo Eacute esta a concepccedilatildeo dominante

Em realidade a questatildeo eacute bem mais complexa Todo enunciado conshycreto eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva de um determinashydo campo Os proacuteprios limites do enunciado satildeo determinados pela

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alternacircncia dos sujeitos do discurso Os enunciados natildeo satildeo indiferenshytes entre si nem se bastam cada um a si mesmos uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros Esses reflexos muacutetuos lhes determinam o caraacuteter Cada enunciado eacute pleno de ecos e ressonacircncias de outros enunciados com os quais estaacute ligado pela identidade da esfera de comunicaccedilatildeo discursiva Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra resposta no sentido mais amplo) ela os rejeita confirma completa baseia-se neles subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta Porque o enunciado ocupa uma posiccedilatildeo definida em uma dada esfera da comunicaccedilatildeo em uma dada questatildeo em um dado assunto etc Eacute impossiacutevel algueacutem definir sua posiccedilatildeo sem correlacionaacute-la com outras posiccedilotildees Por isso cada enunshyciado eacute pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicaccedilatildeo discursiva Essas reaccedilotildees tecircm difetentes forshymas os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado podem ser introduzidas somente palavras isoshyladas ou oraccedilotildees que neste caso figurem como representantes de enunshyciados plenos e aleacutem disso enunciados plenos e palavras isoladas poshydem conservar a sua expressatildeo alheia mas natildeo podem ser reacentuados (em termos de ironia de indignaccedilatildeo reverecircncia etc) os enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilaccedilatildeo podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido podemos pressupocirc-los em silecircncio a atitude responsiva pode refletir-se somente na expressatildeo do proacuteprio discurso - na seleccedilatildeo de reshycursos linguiacutesticos e entonaccedilotildees determinada natildeo pelo objeto do proacuteshyprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre o mesmo objeto Este caso eacute tiacutepico e importante muito amiuacutede a expressatildeo do nosso enunciado eacute determinada natildeo soacute - e vez por outra natildeo tanto - pelo conshyteuacutedo semacircntico-objetal desse enunciado mas tambeacutem pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema aos quais respondemos com os quais polemizamos atraveacutes deles se determina tambeacutem o destaque dado a deshyterminados elementos as repeticcedilotildees e a escolha de expressotildees mais duras (ou ao contraacuterio mais brandas) determina-se tambeacutem o tom A expresshysatildeo do enunciado nunca pode ser entendida e explicada ateacute o fim levan-do-se em conta apenas o seu conteuacutedo centrado no objeto e no sentido

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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A expressatildeo do enunciado em maior ou menor grau responde isto eacute exprime a relaccedilatildeo do falante com os enunciados do outro e natildeo soacute a reshylaccedilatildeo com os objetos do seu enunciado As formas das atitudes responshysivas que preenchem o enunciado satildeo sumamente diversas e ateacute hoje natildeo foram objeto de nenhum estudo especial Essas formas evidenteshymente diferenciam-se acentuadamente em funccedilatildeo da distinccedilatildeo entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a coshymunicaccedilatildeo discursiva Por mais monoloacutegico que seja o enunciado (por exemplo uma obra cientiacutefica ou filosoacutefica) por mais concentrado que esteja no seu objeto natildeo pode deixar de ser em certa medida tambeacutem uma resposta agravequilo que jaacute foi dito sobre dado objeto sobre dada questatildeo ainda que essa responsividade natildeo tenha adquirido uma niacutetida expressatildeo externa ela iraacute manifestar-se na tonalidade do sentido na tonalidade da expressatildeo na tonalidade do estilo nos matizes mais sutis da composiccedilatildeo O enunciado eacute pleno de tonalidades dialoacutegicas e sem levaacute-las em conta eacute impossiacutevel entender ateacute o fim o estilo de um enunshyciado Porque a nossa proacutepria i d e i a mdash seja filosoacutefica cientiacutefica artiacutestica - nasce e se forma no processo de interaccedilatildeo e luta com os pensamentos dos outros e isso natildeo pode deixar de encontrar o seu reflexo tambeacutem nas formas de expressatildeo verbalizada do nosso pensamento

Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro conscien-tizadas e destacadas como do outro introduzidas no enunciado inseshyrem nele algo que eacute por assim dizer irracional do ponto de vista da liacutengua como sistema particularmente do ponto de vista da sintaxe As relaccedilotildees reciacuteprocas entre o discurso introduzido do outro e o restante -o meu discurso - natildeo tecircm nenhuma analogia com nenhuma relaccedilatildeo sintaacutetica no acircmbito de um todo sintaacutetico simples e complexo nem com as relaccedilotildees centradas no objeto e no sentido entre totalidades sin-taacuteticas gramaticalmente desconexas e isoladas no acircmbito de um dado enunciado Em compensaccedilatildeo essas relaccedilotildees satildeo anaacutelogas (mas evidenshytemente natildeo idecircnticas) agraves relaccedilotildees das reacuteplicas do diaacutelogo A entonashyccedilatildeo que isola o discurso do outro (marcado por aspas no discurso escrito) eacute um fenoacutemeno de tipo especial eacute uma espeacutecie de alternacircncia dos sujeitos

bull

A entonaccedilatildeo eacute particularmente sensiacutevel e sempre indica o contexto (N da ed russa)

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do discurso transferida para o interior do enunciado Os limites criados por essa alternacircncia satildeo aiacute enfraquecidos e especiacuteficos a expressatildeo do falante penetra atraveacutes desses limites e se dissemina no discurso do oushytro que podemos transmitir em tons iroacutenicos indignados simpaacuteticos reverentes (essa expressatildeo eacute transmitida com o auxiacutelio de uma entonashyccedilatildeo expressiva mdash no discurso escrito eacute como se a adivinhaacutessemos e a sentiacutessemos graccedilas ao contexto que emoldura o discurso do outro - ou pela situaccedilatildeo extraverbal - ela sugere a expressatildeo correspondente) O disshycurso do outro desse modo tem uma dupla expressatildeo a sua isto eacute a alheia e a expressatildeo do enunciado que acolheu esse discurso Tudo isso se verifica antes de tudo onde o discurso do outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha forccedila de um enunciado pleno) eacute citado textualshymente e destacado com nitidez (entre aspas) os ecos da alternacircncia dos sujeitos do discurso e das suas muacutetuas relaccedilotildees dialoacutegicas aqui se ouvem nitidamente Contudo em qualquer enunciado quando estushydado com mais profundidade em situaccedilotildees concretas de comunicaccedilatildeo discursiva descobrimos toda uma seacuterie de palavras do outro semila-tentes e latentes de diferentes graus de alteridade Por isso o enunciashydo eacute representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternacircncias dos sujeitos do discurso e pelas tonalidades dialoacutegicas enshyfraquecidas ao extremo pelos limites dos enunciados totalmente pershymeaacuteveis agrave expressatildeo do autor O enunciado se verifica um fenoacutemeno muito complexo e multiplanar se natildeo o examinamos isoladamente e soacute na relaccedilatildeo com o seu autor (o falante) mas como um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e da relaccedilatildeo com outros enunciados a ele vinshyculados (essas relaccedilotildees costumavam ser descobertas natildeo no plano vershybalizado - estiliacutestico-composicional - mas tatildeo-somente no plano seshymacircntico-objetal)

Cada enunciado isolado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo disshycursiva Ele tem limites precisos determinados pela alternacircncia dos sushyjeitos do discurso (dos falantes) mas no acircmbito desses limites o enunshyciado como a mocircnada de Leibniz reflete o processo do discurso os enunciados do outro e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (agraves vezes os mais imediatos e vez por outra ateacute os muito distantes mdash os campos da comunicaccedilatildeo cultural)

O objeto do discurso do falante seja esse objeto qual for natildeo se torshyna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado e um

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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dado falante natildeo eacute o primeiro a falar sobre ele O objeto por assim dizer jaacute estaacute ressalvado contestado elucidado e avaliado de diferentes moshydos nele se cruzam convergem e divergem diferentes pontos de vista visotildees de mundo correntes O falante natildeo eacute um Adatildeo biacuteblico soacute relashycionado com objetos virgens ainda natildeo nomeados aos quais daacute nome pela primeira vez As concepccedilotildees simplificadas sobre comunicaccedilatildeo como fundamento loacutegico-psicoloacutegico da oraccedilatildeo nos lembram obrigatoriashymente esse Adatildeo miacutetico Na alma do falante ocorre a combinaccedilatildeo de duas concepccedilotildees (ou ao contraacuterio o desmembramento de uma conshycepccedilatildeo complexa em duas simples) e ele profere oraccedilotildees como as seshyguintes O sol brilha A grama eacute verde Eu estou sentado etc Seshymelhantes oraccedilotildees eacute claro satildeo perfeitamente possiacuteveis contudo ou satildeo justificadas e assimiladas pelo contexto de um enunciado pleno que as incorpora agrave comunicaccedilatildeo discursiva (na qualidade de reacuteplica do diaacutelogo de um artigo de divulgaccedilatildeo cientiacutefica de palestra de um proshyfessor na sala de aula etc) ou se satildeo enunciados acabados a situaccedilatildeo do discurso de certo modo os justifica e os inclui na cadeia da comunishycaccedilatildeo discursiva Em realidade repetimos todo enunciado aleacutem do seu objeto sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam O falante natildeo eacute um Adatildeo e por isso o proacuteprio objeto do seu discurso se torna inevishytavelmente um palco de encontro com opiniotildees de interlocutores imeshydiatos (na conversa ou na discussatildeo sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista visotildees de mundo correntes teorias etc (no campo da comunicaccedilatildeo cultural) Uma visatildeo de mundo uma corshyrente um ponto de vista uma opiniatildeo sempre tecircm uma expressatildeo vershybalizada Tudo isso eacute discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este natildeo pode deixar de refletir-se no enunciado O enunciado estaacute voltado natildeo soacute para o seu objeto mas tambeacutem para os discursos do outro sobre ele No entanto ateacute a mais leve alusatildeo ao enunciado do outro imshyprime no discurso uma reviravolta dialoacutegica que nenhum tema censhytrado meramente no objeto pode imprimir A relaccedilatildeo com a palavra do outro difere essencialmente da relaccedilatildeo com o objeto mas ela semshypre acompanha esse objeto Reiteremos o enunciado eacute um elo na cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva e natildeo pode ser separado dos elos precedenshytes que o determinam tanto de fora quanto de dentro gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonacircnoias dialoacutegicas

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Entretanto o enunciado natildeo estaacute ligado apenas aos elos precedentes bull U l tambeacutem aos subsequentes da comunicaccedilatildeo discursiva Quando o anunciado eacute criado por um falante tais elos ainda natildeo existem Desde f Iniacutecio poreacutem o enunciado se constroacutei levando em conta as atitudes IMponsivas em prol das quais ele em essecircncia eacute criado O papel dos ou-HW para quem se constroacutei o enunciado eacute excepcionalmente grande COmo jaacute sabemos Jaacute dissemos que esses outros para os quais o meu pensamento pela primeira vez se torna um pensamento real (e deste modo tambeacutem para mim mesmo) natildeo satildeo ouvintes passivos mas parshyticipantes ativos da comunicaccedilatildeo discursiva Desde o iniacutecio o falante Aguarda a resposta deles espera uma ativa compreensatildeo responsiva Eacute Como se todo o enunciado se construiacutesse ao encontro dessa resposta

Um traccedilo essencial (constitutivo) do enunciado eacute o seu direciona-mento a algueacutem o seu endereccedilamento Agrave diferenccedila das unidades signifishycativas da liacutengua - palavras e oraccedilotildees - que satildeo impessoais de ninshygueacutem e a ningueacutem estatildeo endereccediladas o enunciado tem autor (e respecshytivamente expressatildeo do que jaacute falamos) e destinataacuterio Esse destinataacuterio pode ser um participante-interlocutor direto do diaacutelogo cotidiano pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo esshypecial da comunicaccedilatildeo cultural pode ser um puacuteblico mais ou menos diferenciado um povo os contemporacircneos os correligionaacuterios os adshyversaacuterios e inimigos o subordinado o chefe um inferior um superior uma pessoa iacutentima um estranho etc ele tambeacutem pode ser um outro totalmente indefinido natildeo concretizado (em toda sorte de enunciados monoloacutegicos de tipo emocional) Todas essas modalidades e concepshyccedilotildees do destinataacuterio satildeo determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere A quem se destina o enunciashydo como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinataacuterios qual eacute a forccedila e a influecircncia deles no enunciado - disshyto dependem tanto a composiccedilatildeo quanto particularmente o estilo do enunciado Cada geacutenero do discurso em cada campo da comunicaccedilatildeo discursiva tem a sua concepccedilatildeo tiacutepica de destinataacuterio que o determina como geacutenero

O destinataacuterio do enunciado pode por assim dizer coincidir pesshysoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado No diaacutelogo cotidiano ou na correspondecircncia essa coincidecircncia pessoal eacute co-

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

Page 23: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva

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mum aquele a quem eu respondo eacute o meu destinataacuterio de quem por sua vez aguardo resposta (ou em todo caso uma ativa compreensatildeo resshyponsiva) Mas nos casos de tal coincidecircncia pessoal uma pessoa desemshypenha dois diferentes papeacuteis e essa diferenccedila de papeacuteis eacute justamente o que importa Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo ao qual faccedilo objeccedilatildeo o qual executo levo em conta etc) jaacute estaacute presente a sua resposta (ou compreensatildeo responsiva) ainda estaacute por vir Ao construir o meu enunciado procuro defini-lo de mashyneira ativa por outro lado procuro antecipaacute-lo e essa resposta anteci-paacutevel exerce por sua vez uma ativa influecircncia sobre o meu enunciado (dou resposta pronta agraves objeccedilotildees que prevejo apelo para toda sorte de subterfuacutegios etc) Ao falar sempre levo em conta o fundo aperceptiacutevel da percepccedilatildeo do meu discurso pelo destinataacuterio ateacute que ponto ele estaacute a par da situaccedilatildeo dispotildee de conhecimentos especiais de um dado camshypo cultural da comunicaccedilatildeo levo em conta as suas concepccedilotildees e conshyvicccedilotildees os seus preconceitos (do meu ponto de vista) as suas simpatias e antipatias - tudo isso iraacute determinar a ativa compreensatildeo responsiva do meu enunciado por ele Essa consideraccedilatildeo iraacute determinar tambeacutem a escolha do geacutenero do enunciado e a escolha dos procedimentos comshyposicionais e por uacuteltimo dos meios linguumliacutesticos isto eacute o estilo do enunshyciado Por exemplo os geacuteneros da literatura popular cientiacutefica satildeo enshydereccedilados a um determinado ciacuterculo de leitores dotados de um detershyminado fundo aperceptiacutevel de compreensatildeo responsiva a outro leitor estaacute endereccedilada uma literatura didaacutetica especial e a outro inteiramente diferente trabalhos especiais de pesquisa Em todos esses casos a conshysideraccedilatildeo do destinataacuterio (e do seu fundo aperceptiacutevel) e a sua influecircnshycia sobre a construccedilatildeo do enunciado satildeo muito simples Tudo se resushyme ao volume dos seus conhecimentos especiais

Em outros casos a questatildeo pode ser bem mais complexa A consishyderaccedilatildeo do destinataacuterio e a antecipaccedilatildeo da sua atitude responsiva satildeo frequentemente amplas e inserem uma original dramaticidade inteshyrior no enunciado (em algumas modalidades de diaacutelogo cotidiano em cartas em geacuteneros autobiograacuteficos e confessionais) Esses fenoacutemenos satildeo de uma iacutendole aguda poreacutem mais exterior nos geacuteneros retoacutericos A poshysiccedilatildeo social o tiacutetulo e o peso do destinataacuterio refletidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais satildeo de iacutendole especial Nas condiccedilotildees de um regime de classes e particularmente de castas observa-se uma

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excepcional diferenciaccedilatildeo dos geacuteneros do discurso e dos respectivos esshytilos em funccedilatildeo do tiacutetulo da categoria da patente do peso da fortuna bull do peso social da idade do destinataacuterio e da respectiva posiccedilatildeo do proacuteprio falante (ou de quem escreve) Apesar da riqueza da diferencia-Ccedillo tanto das formas basilares quanto das nuanccedilas esses fenoacutemenos l i o de iacutendole padronizada e externa natildeo satildeo capazes de inserir uma dramaticidade interior minimamente profunda no enunciado Satildeo inshyteressantes apenas como exemplos da expressatildeo ainda que bastante tosca mas assim mesmo evidente da influecircncia do destinataacuterio sobre a construccedilatildeo e o estilo do enunciado

Matizes mais sutis do estilo satildeo determinados pela iacutendole e pelo grau de proximidade pessoal do destinataacuterio em relaccedilatildeo ao falanre nos diversos geacuteneros familiares de discurso por um lado e iacutentimos por oushytro A despeito de toda a imensa diferenccedila entre os geacuteneros familiares e iacutentimos (e respectivamente os estilos) eles percebem igualmente o seu destinataacuterio em maior ou menor grau fora do acircmbito da hierarquia soshycial e das convenccedilotildees sociais por assim dizer sem classes Isto geta uma franqueza especial do discurso (que nos estilos familiares chega agraves vezes ao cinismo) Nos estilos iacutentimos isto se traduz no empenho voltado como que para a plena fusatildeo do falante com o destinataacuterio do discurso No discurso familiar graccedilas agrave supressatildeo dos vetos ao discurso e das conshyvenccedilotildees eacute possiacutevel o enfoque especial natildeo oficial e livre da realidade Por isso na eacutepoca do Renascimento os geacuteneros e estilos familiares pushyderam desempenhar um papel grande e positivo na causa da destruiccedilatildeo do quadro oficial medieval do mundo tambeacutem em outros periacuteodos em que se colocava a tarefa de destruir os estilos e concepccedilotildees de mun-

bull

Lembremos uma observaccedilatildeo de Goacutegol a respeito desse tempo Eacute impossiacutevel contar todos os matizes e sutilezas do nosso apelo Entre noacutes existem uns sabichotildees que falam com fazendeiros donos de duzentos camponeses de um modo inteiramente diferenshyte daquele com que falam com fazendeiros donos de trezentos camponeses e com estes donos de trezentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com aqueles que possuem quinhentos e com estes possuidores de quinhentos natildeo iratildeo falar do mesmo jeito com que falam com os que possuem oitocentos em suma mesmo que apareccedilam donos de um milhatildeo de camponeses vatildeo encontrar matizes para estes Almas mortas cap 3) (N da ed russa)

A franqueza da praccedila puacuteblica pronunciada em viva voz e o ato de chamar os objetos pelos seus proacuteprios nomes caracterizam esse estilo (N da ed russa)

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

bull

Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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do oficiais que se haviam petrificado e tornado convencionais os estilos familiares ganham uma grande importacircncia na literatura Aleacutem disso a familiarizaccedilatildeo dos estilos abre acessos para a literatura a carnadas da liacutengua que ateacute entatildeo estavam sob proibiccedilatildeo do discurso A importacircncia dos geacuteneros e estilos na historia da literatura natildeo foi suficientemente valorizada ateacute hoje Os geacuteneros e estilos iacutentimos se baseiam na maacutexima proximidade interior do falante com o destinataacuterio do discurso (no l i shymite como que na fusatildeo dos dois) O discurso iacutentimo eacute impregnado de urna profunda confianccedila no destinataacuterio em sua simpada - na senshysibilidade e na boa vontade da sua compreensatildeo responsiva Nesse clishyma de profunda confianccedila o falante abre as suas profundezas interioshyres Isso determina a expressividade especiacutefica e a franqueza interior desses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do disshycurso familiar) Os geacuteneros e estilos familiares e iacutentimos (ateacute hoje muito mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente clara a depenshydecircncia do estilo em face de uma determinada sensaccedilatildeo e compreensatildeo do destinataacuterio pelo falante (em face do seu enunciado e da antecipashyccedilatildeo da sua ativa compreensatildeo responsiva pelo falante Nesses estilos re-velam-se com especial clareza a estreiteza e o equiacutevoco da estiliacutestica trashydicional que procura compreender e definir o estilo apenas do ponto de vista do conteuacutedo do objeto do sentido do discurso e da relaccedilatildeo exshypressiva do falante com esse conteuacutedo Sem levar em conta a relaccedilatildeo do falante com o outro e seus enunciados (presentes e antecipaacuteveis) eacute imshypossiacutevel compreender o geacutenero ou estilo do discurso Contudo tambeacutem os chamados estilos neutros ou objetivos de exposiccedilatildeo concentrados ao maacuteximo em seu objeto e pareceria estranhos a qualquer olhada repetishyda para o outro envolvem apesar de tudo uma determinada concepshyccedilatildeo do seu destinataacuterio Tais estilos objetivo-neutros produzem uma seleccedilatildeo de meios linguumliacutesticos natildeo soacute do ponto de vista da sua adequashyccedilatildeo ao objeto do discurso mas tambeacutem do ponto de vista do proposto fundo aperceptiacutevel do destinataacuterio do discurso mas esse fundo eacute levashydo em conta de modo extremamente geneacuterico e abstraiacutedo do seu asshypecto expressivo (tambeacutem eacute miacutenima a expressatildeo do proacuteprio falante no estilo objetivo) Os estilos neutro-objetivos pressupotildeem uma espeacutecie de triunfo do destinataacuterio sobre o falante uma unidade dos seus pontos de vista mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recushysa agrave expressatildeo Cabe observar que o caraacuteter dos estilos neutro-objetivos

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(e consequentemente da concepccedilatildeo que lhes serve de base) eacute bastante diverso em funccedilatildeo da diferenccedila de campos da comunicaccedilatildeo discursiva

O problema da concepccedilatildeo do destinataacuterio do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem escreve) eacute de enorme importacircncia na histoacuteria da literatura Cada eacutepoca para cada corrente literaacuteria e esshytilo artiacutestico-literaacuterio cada geacutenero literaacuterio no acircmbito de uma eacutepoca e cada corrente tecircm como caracteriacutesticas suas concepccedilotildees especiacuteficas de destinataacuterio da obra literaacuteria a sensaccedilatildeo especial e a compreensatildeo do seu leitor ouvinte puacuteblico povo O estudo histoacuterico das mudanccedilas desshysas concepccedilotildees eacute uma tarefa interessante e importante Mas para sua elaboraccedilatildeo eficaz faz-se necessaacuteria uma clareza teoacuterica na proacutepria coloshycaccedilatildeo do problema

Cabe observar que paralelamente agravequelas sensaccedilotildees e concepccedilotildees reais do seu destinataacuterio que realmente determinam o estilo dos enunshyciados (obras) na histoacuteria da literatura existem ainda formas convencioshynais ou semiconvencionais de apelo aos leitores ouvintes descendenshytes etc assim como paralelamente ao autor real existem imagens conshyvencionais e semiconvencionais de autores testas-de-ferro editores narradores de toda espeacutecie A imensa maioria dos geacuteneros literaacuterios eacute consshytituiacuteda de geacuteneros secundaacuterios complexos formados por diferentes geacuteneros primaacuterios transformados (reacuteplicas do diaacutelogo relatos cotidiashynos cartas diaacuterios protocolos etc) Tais geacuteneros secundaacuterios da comshyplexa comunicaccedilatildeo cultural em regra representam formas diversas de comunicaccedilatildeo discursiva primaacuteria Daiacute nascem todas essas personagens literaacuterias convencionais de autores narradores e destinataacuterios Entretanto a obra mais complexa e pluricomposicional do geacutenero secundaacuterio no seu todo (enquanto todo) eacute o enunciado uacutenico e real que tem autor real e destinataacuterios realmente percebidos e representados por esse autor

Portanto o direcionamento o endereccedilamento do enunciado eacute sua peculiaridade constitutiva sem a qual natildeo haacute nem pode haver enunciashydo As vaacuterias formas tiacutepicas de tal direcionamento e as diferentes conshycepccedilotildees tiacutepicas de destinataacuterios satildeo peculiaridades constitutivas e deshyterminantes dos diferentes geacuteneros do discurso

Agrave diferenccedila dos enunciados (e dos geacuteneros do discurso) as unidashydes significativas da liacutengua - a palavra e a oraccedilatildeo por sua proacutepria natushyreza satildeo desprovidas de direcionamento de endereccedilamento mdash natildeo satildeo

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

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Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-

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de ningueacutem e a ningueacutem se referem Ademais em si mesmas carecem de qualquer relaccedilatildeo com o enunciado do outro com a palavra do oushytro Se uma palavra isolada ou uma oraccedilatildeo estaacute endereccedilada direciona-da temos diante de noacutes um enunciado acabado constituiacutedo de uma palavra ou de uma oraccedilatildeo e o direcionamento pertence natildeo a elas como unidades da liacutengua mas ao enunciado Envolvida pelo contexto a orashyccedilatildeo soacute se incorpora ao direcionamento atraveacutes de um enunciado pleno como sua parte constituinte (elemento)

A liacutengua como sistema possui uma imensa reserva de recursos pushyramente linguumliacutesticos para exprimir o direcionamento formal recursos lexicais morfoloacutegicos (os respectivos casos pronomes formas pessoais dos verbos) sintaacuteticos (diversos padrotildees e modificaccedilotildees das oraccedilotildees) Entretanto eles soacute atingem direcionamento real no todo de um enunshyciado concreto A expressatildeo desse direcionamento real nunca se esgota evidentemente nesses recursos linguumliacutesticos especiais (gramaticais) Eles podem nem existir mas neste caso o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a influecircncia do destinataacuterio e sua atitude responsiva antecipada A escolha de todos os recursos linguumliacutesticos eacute feita pelo fashylante sob maior ou menor influecircncia do destinataacuterio e da sua resposta antecipada

Quando se analisa uma oraccedilatildeo isolada destacada do contexto os vestiacutegios do direcionamento e da influecircncia da resposta antecipaacutevel as ressonacircncias dialoacutegicas sobre os enunciados antecedentes dos outros os vestiacutegios enfraquecidos da alternacircncia dos sujeitos do discurso que sulcaram de dentro o enunciado perdem-se obliteram-se porque tudo isso eacute estranho agrave natureza da oraccedilatildeo como unidade da liacutengua Todos esses fenoacutemenos estatildeo ligados ao todo do enunciado e onde esse todo desaparece do campo de visatildeo do analisador deixam de existir para ele Nisto reside uma das causas da jaacute referida estreiteza da estiliacutestica tradishycional A anaacutelise estiliacutestica que abrange todos os aspectos do estilo soacute eacute possiacutevel como anaacutelise de um enunciado pleno e soacute naquela cadeia da comunicaccedilatildeo discursiva da qual esse enunciado eacute um elo inseparaacutevel

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Observemos que os tipos exclamatorios e indutivos de oraccedilotildees costumam figurar como enunciados acabados (nos respectivos geacuteneros do discurso) (N da ed russa)

O P R O B L E M A D O T E X T O NA L I N G Uuml Iacute S T I C A NA F I L O L O G I A E E M O U T R A S C I Ecirc N C I A S H U M A N A S

UMA EXPERIEcircNCIA DE ANAacuteLISE FILOSOacuteFICA

Cabe denominar filosoacutefica a nossa anaacutelise antes de tudo por consishyderaccedilotildees de iacutendole negativa natildeo eacute uma anaacutelise linguumliacutestica nem filoloacuteshygica nem criacutetico-literaacuteria ou qualquer outra anaacutelise (investigaccedilatildeo) esshypecial As consideraccedilotildees positivas satildeo estas nossa pesquisa transcorre em campos limiacutetrofes isto eacute nas fronteiras de todas as referidas disciplishynas em seus cruzamentos e junccedilatildeo

O texto (escrito ou oral) enquanto dado primaacuterio de todas essas disciplinas do pensamento filoloacutegico-humanista no geral (inclusive do pensamento teoloacutegico e filosoacutefico em sua fonte) O texto eacute a realidashyde imediata (realidade do pensamento e das vivecircncias) a uacutenica da qual podem provir essas disciplinas e esse pensamento Onde natildeo haacute texto natildeo haacute objeto de pesquisa e pensamento

O texto subentendido Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos a ciecircncia das artes (a mushysicologia a teoria e a histoacuteria das artes plaacutesticas) opera com textos (obras de arte) Satildeo pensamentos sobre pensamentos vivecircncias das vivecircncias palavras sobre palavras textos sobre textos Nisto reside a diferenccedila esshysencial entre as nossas disciplinas (humanas) e naturais (sobre a natureza) embora aqui natildeo haja fronteiras absolutas impenetraacuteveis O pensa-