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1 ESTADO E GESTÃO DAS FINANÇAS PÚBLICAS NO BRASIL DOS ANOS 2000: IDEIAS ECONÔMICAS E DECISÕES POLÍTICAS Felipe Calabrez 1 RESUMO: O tema deste artigo é o manejo de política econômica operada pelo Estado moderno e a relação que tais políticas estabelecem com as classes detentoras do capital. Dito de um modo mais preciso, buscar-se-á olhar para o manejo das finanças públicas e compreender como as políticas operadas nos aparelhos de Estado responsáveis por tais finanças beneficiam determinados grupos, internos e externos. Esta perspectiva obriga que seja olhado o seu reverso, isto é: como determinados grupos logram controlar, influenciar, ou, ainda, obrigar o Estado a tomar esta ou aquela medida de política econômica. Para tanto, questões como autonomia e capacidade estatal devem ser discutidas. O pano de fundo para tais discussões será a gestão de política econômica no Brasil nos governos Cardoso e no primeiro governo Lula, atentando para o fenômeno do rentismo. PALAVRAS-CHAVE: finanças públicas; instituições brasileiras; política econômica; governo Lula INTRODUÇÃO: UM DEBATE TEÓRICO Nos Estados modernos, a gestão da política econômica constitui a principal instância, nas relações entre governo e sociedade civil, onde são propostos e arbitrados os conflitos de interesse das classes e dos diferentes grupos sociais (TAVARES e ASSIS, 1985). 1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), possui mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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ESTADO E GESTÃO DAS FINANÇAS PÚBLICAS NO BRASIL

DOS ANOS 2000: IDEIAS ECONÔMICAS E DECISÕES

POLÍTICAS

Felipe Calabrez1

RESUMO: O tema deste artigo é o manejo de política econômica operada pelo Estado moderno e a relação que tais políticas estabelecem com as classes detentoras do capital. Dito de um modo mais preciso, buscar-se-á olhar para o manejo das finanças públicas e compreender como as políticas operadas nos aparelhos de Estado responsáveis por tais finanças beneficiam determinados grupos, internos e externos. Esta perspectiva obriga que seja olhado o seu reverso, isto é: como determinados grupos logram controlar, influenciar, ou, ainda, obrigar o Estado a tomar esta ou aquela medida de política econômica. Para tanto, questões como autonomia e capacidade estatal devem ser discutidas. O pano de fundo para tais discussões será a gestão de política econômica no Brasil nos governos Cardoso e no primeiro governo Lula, atentando para o fenômeno do rentismo.

PALAVRAS-CHAVE: finanças públicas; instituições brasileiras; política econômica; governo Lula

INTRODUÇÃO: UM DEBATE TEÓRICO

Nos Estados modernos, a gestão da política econômica constitui a principal instância, nas relações entre governo e sociedade civil, onde são propostos e arbitrados os conflitos de interesse das classes e dos diferentes grupos sociais (TAVARES e ASSIS, 1985).

1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), possui

mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente é doutorando em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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É interessante notar que um sociólogo que muito se esforçou para

rechaçar a tese materialista, segundo a qual as ações políticas devem ser

derivadas das “necessidades econômicas”, pôde admitir, sem cair em nenhuma

contradição, que “[...] o complexo de relações humanas, normas e condições

normativamente determinadas que designamos por ‘Estado’ é um fenômeno

‘econômico’ no que se refere às finanças públicas”.(WEBER, 1979, p. 80). O

que Max Weber pretende com tal afirmação não é atribuir às ações estatais

causas e motivos econômicos, mas, pelo contrário, afirmar a relevância dessas

ações para a atividade econômica (fenômenos economicamente relevantes) e,

o que é igualmente importante, afirmar que a existência material de todo o

aparato estatal depende da atividade econômica privada, o que faria do Estado

um fenômeno “economicamente condicionado”.

Se nos propusermos a pensar a situação das finanças públicas ou a

capacidade de financiamento do setor público, algumas contribuições iniciais

podem ser buscadas em Theda Skocpol (1985). Para Skocpol, a capacidade

que o Estado – ou setor público – possui de se financiar, isto é, de obter

recursos financeiros, depende tanto de arranjos institucionais internos como da

posição que determinado país ocupa frente à economia e à política

internacionais . Neste ponto, Skocpol é explícita: “Domestic institucional

arrangements and internacional situations set difficult to change limits within

state elites must maneuver to extract taxes and obtain credit” (SKOCPOL,

1985, p. 16).

A noção de capacidade estatal, que causou certa repercussão na

literatura sociológica e de ciência política2, atribui, desde sua gênese,

importância fundamental à questão das finanças públicas, já que “A state’s

means of raising and deploying financial resources tell us more than could any

2 Para um diálogo crítico com Skocpol Cf. (CAMMACK, 1989; BLOCK, 1980).

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other single factor about its existing […]capacities[…]” (SKOCPOL, 1985, p.

17).

Desse modo, enquanto ferramenta analítica, a noção de capacidade

estatal pode oferecer algum respaldo para o problema que será aqui

desenvolvido. Ao eleger como problemática central a questão dos recursos

financeiros de que o Estado dispõe e a gestão desses recursos, faz-se

necessário, entretanto, operar uma subdivisão de cunho metodológico, qual

seja: deve-se olhar tanto para indicadores econômicos (evolução do déficit

público, relação dívida pública/PIB) como para a gestão desses recursos, já

que as decisões sobre alocação de recursos públicos e sobre estratégias de

financiamento (tanto de gastos correntes como de investimento público) são

decisões de caráter político.

Assim, a questão dos recursos financeiros de que o Estado dispõe não

deve ser desprezada em análises que indaguem sobre capacidades estatais.

E, para isso, deve-se atentar para a estrutura de receitas e despesas do

Estado, a margem de manobra de que ele dispõe para alterar a estrutura de

taxações, isto é, seu sistema tributário, mas, sobretudo, sua possibilidade de

obter crédito e financiar-se. (SKOCPOL, 1985). Entretanto, embora forneça

uma interessante ferramenta analítica, essa abordagem padece de algumas

limitações frente ao objeto aqui construído, ao não dar a devida importância

aos grupos ou classes beneficiados pela política econômica operada pelo

Estado3.

Tendo esse conjunto de problemas como pano de fundo, J. Hirsch

(2010) propõe uma abordagem auto-intitulada “Teoria materialista do Estado”,

na qual este não é tomado como mero reflexo superestrutural da sociedade

civil, base onde, de acordo com o marxismo clássico, ocorrem as relações de

produção; o Estado seria, ele mesmo, parte integrante das relações de

3 A contribuição do neo-institucionalismo que procura trazer o Estado de volta para o centro do

debate tem sido bastante discutida, sobretudo pela crítica que esta abordagem dirige às teorias marxistas. Em geral a crítica diz respeito à tendência do marxismo a atribuir a determinantes puramente societais a explicação para fenômenos políticos. Em contraposição, o neoinstitucionalismo histórico, corrente da qual Skocpol é uma expoente, defende que as instituições políticas sejam explicadas por variáveis estritamente políticas, isto é, sejam tomadas como variáveis autônomas.

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produção capitalistas. Entretanto, essa perspectiva não constitui nenhuma

teoria do Estado pronta; ela, antes, deve servir como ponto de partida

fundamental para teorizar sobre o Estado, superando explicações de tipo

funcionalista. Ademais, “Caso se trate de investigar as formas históricas

concretas do Estado, seus processos de transformação, as ações e os conflitos

políticos, deve-se reconhecer que na forma política, vale dizer, na

‘especificidade’ ou na ‘autonomia relativa’ do Estado, manifestam-se as

relações sociais e de classe.” (HIRSCH, 2010, p. 31).

Da abordagem de Hirsch, baseado na definição de Poulantzas de

Estado como “condensação material das relações de forças”

(POULANTZAS,1985), procuraremos enfatizar na verdade o aspecto ‘material’

do Estado, isto é, o complexo de instituições e aparelhos que compõem o

sistema estatal. Uma das vantagens em tratar o Estado como instituição é

apreender sua dinâmica interna, fugir de explicações funcionalistas e ter

sempre em conta que, antes de tudo, a “instituição Estado”, ou melhor, o

conjunto de instituições estatais, possuem uma lógica de funcionamento que

privilegia sua própria manutenção. Esse interesse em garantir sua própria

existência e a manutenção do pessoal dirigente, algo já apontado por Weber, é

o que obrigaria o Estado capitalista a garantir o processo de acumulação do

capital, de onde obtém seus recursos materiais de existência (OFFE, 1984).

A proposta de Hirsch, portanto, busca extrair elementos de diferentes

contribuições a fim de fornecer um corpo teórico coerente para abordar o

Estado em sua relação com o modo de produção capitalista. Uma das

consequências da rejeição de um modelo que opere uma dicotomia entre

sociedade e Estado (ou infraestrutura e superestrutura) é a seguinte:

Uma “política das classes dominantes”, precisamente do

bloco capitalista no poder, só se torna possível com base nos

mecanismos em operação na aparelhagem do Estado. O Estado é

então o campo sobre o qual a “política do capital” pode ser formada.

(HIRSCH, 2010, p. 55).

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Tratando do mesmo tema, Estado e economia, mas sob uma

perspectiva diferente, Peter Hall, outro expoente do que se chama de

neoinstitucionalismo histórico, propõe uma abordagem inovadora. Afirmando,

em crítica à corrente pluralista, que o Estado possui independência

considerável frente a interesses sociais, Hall demonstra, ao mesmo tempo, que

a política estatal não opera no vácuo social. Pressões externas ao aparelho do

Estado conferem legitimidade às políticas e são essenciais em momentos onde

o governo opera rupturas em “regimes” já estabelecidos. Entretanto, a principal

“forma” pelo qual se materializam as “pressões externas” seriam as ideias, isto

é, conjunto de paradigmas e proposições científicas que respaldam as ações

do implementadores de políticas.

Peter Hall (1993) demonstra que a mudança no padrão de política

econômica (no sentido amplo, o que inclui mudança nos próprios objetivos da

política estatal) operada na Inglaterra, e que significou o abandono de políticas

keynesianas e a adoção do paradigma monetarista, não teve sua origem dentro

do Estado, isto é, numa mudança nas preferencias dos implementadores de

políticas (policymakers): “Policy changed, not as a result of autonomous action

by the state, but in reponse to an envolving societal debate that soon became

bound up with electoral competition”. E acrecenta adiante: “The process of

learning associated with important third order changes in policy can be much

broader affair to powerfull influences from society and the political arena”.

(HALL, 1993, p. 288). Do ponto de vista teórico, isso nos revela que a política

econômica estatal, por mais que preserve certo poder discricionário a seus

implementadores, não pode romper radicalmente com determinado padrão, ou

“policy regime” (PRZEWORSKY, 2013), de maneira autônoma; não pode

operar no vácuo social.

Se para Hall a mudança radical e efetiva no padrão da política

econômica estatal (“third order change”) não tem origem “dentro do Estado”, de

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maneira estrita, mas é fruto de um processo no qual as antigas respostas a

certos problemas não se mostram mais efetivas, produzindo um intenso debate

público e fortes pressões societais por mudança, de modo que não se verifica

uma completa autonomia estatal, a explicação para a “não mudança” da

política econômica também deve buscar uma combinação de “fatores

exógenos”– sejam eles de caráter estritamente econômico (economic

constraints) ou do campo da hegemonia das ideias (hegemony constraints)

(BRESSER-PEREIRA, 2013) – com “fatores internos” ao próprio conjunto de

instituições estatais.

Naturalmente, o afirmado acima não implica em negligenciar que o

Estado funciona “como uma ‘instituição’ dotada de recursos organizacionais

próprios, recursos esses que lhe conferem capacidade de iniciativa e

capacidade de decisão” (CODATO e PERISSINOTO, 2010, p. 26). Antes,

implica considerar na análise a presença de pressões societais (HALL, 1993).

A pesquisa de Hall sobre a mudança no padrão de política econômica operada

pelo Estado inglês revela pelo menos três mecanismos que constrangem a

ação política, quais sejam: A força da mídia no debate público, o

comportamento do mercado financeiro, ao que Hall chama de “Market

constraints”, e o papel das ideias econômicas. No contexto analisado por Hall

as forças citadas funcionaram como catalisadores da mudança no padrão de

política, representando uma mudança de “policy paradigm”. Entretanto, a

atualidade da questão por ele estudada (mudança da política econômica

operada pelo Estado e o processo pelo qual as ideias, aquilo que Ianni chamou

de substrato técnico-científico, passam a ser adotadas no Estado), bem como

da problemática teórica que ela suscita (autonomia estatal), nos sugere a

validade de suas proposições para a análise de um momento da história

política e econômica brasileira recente, qual seja, a transição do governo

Cardoso para o governo Lula, justamente porque neste momento a troca de

governos representou não uma ruptura no regime de política econômica, mas,

ao contrário, sua manutenção. Convém, diante disso, esmiuçar os elementos

que explicariam a não-mudança.

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O que nos interessa aqui é que o Estado atua no sistema econômico,

por meio de uma aparelhagem própria (organização técnica e pessoal

administrativo) e, ao fazê-lo, inevitavelmente “incorpora o pensamento

tecnocrático e científico, para melhor desempenhar suas funções econômicas”.

(IANNI, 1996, p. 19). Este substrato técnico-científico, ao ser incorporado pelo

Estado e respaldar “cientificamente” as decisões de política econômica, não

pode, entretanto, operar de forma neutra. Sua atuação sobre o sistema

econômico, que envolve invariavelmente perdas e ganhos setoriais, pode

revelar o aspecto político de questões que se apresentam como “econômicas”.

E seu aspecto é político não apenas porque o processo decisório ocorre

“dentro” do Estado mas, sobretudo, porque define prioridades e favorece certos

grupos. Assim se formam no interior do aparelho estatal “pontos de apoio de

setores das classes dominantes”. (HIRSH, 2010 p. 57).

Um interessante caminho para abordar o problema dos “mecanismos em

operação na aparelhagem do Estado é o conceito de “tecnoestrutura estatal”

(IANNI,1996). Isto porque se o Estado é o campo sobre o qual a política do

capital pode ser formada, este “campo” é composto por um conjunto de

aparelhos operados por um determinado grupo que age orientado por certos

valores, interesses e com o respaldo de determinado “substrato técnico-

científico”. (IANNI, 1996).

É sabido que Ianni desenvolve o conceito ao olhar para a relação

que se estabelece entre o Estado e a economia no Brasil a partir da década de

1930. A partir desse período a política econômica governamental envolveu a

construção de órgãos estatais responsáveis pelo planejamento econômico

decorrente do projeto de industrialização que se buscava implementar. O que

surge nesse momento é uma complexa aparelhagem governamental voltada

para funções econômicas, que eram, de maneira geral, as de um Estado

indutor e planejador do desenvolvimento4. Embora seja precisamente essa a

herança que buscou-se destruir na década de 1990, quando a missão

declarada do governo Cardoso era extirpar a “era vargas’, emprego o conceito

4 Sobre esta “forma” de Estado, no que diz respeito à sua relação com a economia, Sallum Jr.

emprega o termo “autárquico-desenvolvimentista”. Cf. (SALLUM JR., 2008).

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de tecnoestrutura estatal porque o tema geral da pesquisa aqui proposta é

essencialmente o mesmo, qual seja, uma análise das relações que se

estabelecem entre Estado e economia por meio de sua manifestação mais

forte, a política econômica operada pelo Estado. Portanto, apesar de tratar de

contextos absolutamente diferentes, defende-se a viabilidade de,

desvencilhando-se de seu caráter histórico, empregar o conceito levando em

conta seus atributos, que são os seguintes: i) a tecnoestrutura estatal apoia-se

em determinadas organizações burocráticas (porém agora órgãos de

planejamento perdem centralidade diante das políticas monetária e fiscal,

Banco Central e Ministério da Fazenda, respectivamente). ii) emprega

determinado substrato técnico-científica (predominância da chamada

orientação ortodoxa no núcleo central da área econômica) e, principalmente, iii)

opera um encadeamento recíproco das relações de dominação (política) e

apropriação (econômica), já que é “dentro” do Estado que se direciona esta

última, realizando a metamorfose do político em econômico, interferindo, por

meio de sua política monetária, na forma mais rentável de acumulação (lucro

ou juros) e, portanto, na forma como determinados grupos se apropriam do

excedente econômico ou da renda nacional.

Isto é, a gestão da política econômica permanece sendo a atividade

realizada no Estado, em determinados aparelhos, que possui o poder (direto ou

indireto) de incentivar determinado setor da economia, privilegiar determinadas

formas de investimento em detrimento de outras e, sobretudo, operar

determinadas estruturas de poder. A economia política e a sociologia

econômica já se encarregaram de demonstrar que o desenvolvimento

econômico só se realiza, dentro do capitalismo, se uma parte do excedente

econômico é investida produtivamente (IANNI, 1996, p. 18). Da mesma forma,

Celso Furtado demonstrou que “As formas de apropriação e de utilização

desse excedente estão na base dos sistemas de organização social e de

estrutura de poder”. (FURTADO, 1983, p. 113), o que o levou a constatar que é

“no controle das estruturas de poder – assim como na apropriação e utilização

do excedente – por grupos sociais cujas motivações não se relacionam de

forma principal com a atividade produtiva e na aliança desses grupos com

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elementos estrangeiros [...]” (idem) que se encontravam os obstáculos ao

desenvolvimento dos países latino-americanos.

A breve exposição feita acima procurou delimitar o tema da investigação

aqui proposta a partir da discussão com a literatura teórica, buscando pontos

de conexão entre diferentes abordagens. Agora cumpre expor a temática em

um nível menos abstrato:

A compreensão da relação entre Estado e economia se insere em um

determinado ponto no tempo: A consolidação do modelo de capitalismo que se

inaugura no Brasil na década de 1990 e, não sem algumas mudanças e muitos

conflitos, se mantém ao longo da primeira década do século XXI. Para usarmos

uma caracterização um pouco mais precisa, trata-se do que Leda Paulani

denomina de “a quinta e atual fase da história da inserção da economia

brasileira no processo mundial de acumulação” (PAULANI, 2013). Uma medida

tomada pelo Estado brasileiro (mais especificamente, por Gustavo Franco

quando à frente da diretoria da área externa do banco central) e que seria um

dos marcos iniciais dessa fase seria a abertura das contas CC5, realizada no

início da década de 1990 e que abre o mercado brasileiro de capitais e retira os

entraves que impediam a livre saída de recursos do país. Essa medida

representa a inserção do Brasil no circuito de valorização financeira. (idem).

Portanto, é fundamental ter em conta que se trata da fase conhecida

como financeirização do capitalismo, ou “regime de acumulação com

dominância financeira” (CHESNAIS, 1996, 1998), processo que, de acordo com

Luciano Coutinho “capturou os países mais promissores da periferia”,

incorporando seus mercados de ativos (ações, imóveis, títulos governamentais,

empresas estatais etc.) às finanças globalizadas. (COUTINHO,1999, p. 368-

369). Trata-se de um processo de “integração aos mecanismos internacionais

de transferência de riqueza assentados sobre os mercados de títulos”.

CHESNAIS, (1998, p. 32).

É sob esse aspecto do problema que a política econômica brasileira será

tratada a seguir. Isto é, a relação entre o Estado brasileiro e o sistema

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financeiro, ou, posto de outro modo, entre as finanças do Estado e o capital

privado, em sua forma financeirizada, será a problemática que servirá de pano

de fundo para a análise da gestão de política econômica no Brasil, e o

fenômeno que ela produz, o rentismo. A referência à literatura que trata de

“padrões de acumulação” ou termos correlatos é feita porque é indispensável

ter em conta “como” a política econômica e, por consequente, as finanças

públicas, são um fenômeno “economicamente condicionado”, como afirmou

Weber. Isto é, a capacidade de financiamento estatal só pode ser entendida se

tivermos em conta que as formas de financiamento inflacionárias, como

impressão de moeda, não são mais uma possibilidade para os Estados (exceto

para “O Estado”, aquele que imprime a moeda de reserva internacional e ainda

tem os melhores caças, os E.U.A) e que, portanto, as finanças públicas são

dependentes da forma de riqueza dominante, a financeira. Entretanto, essa

literatura tende, em geral, a delegar um papel secundário ao protagonismo

estatal e, sobretudo, aos agentes reais do processo. Por isso, em um momento

no qual parece reaparecer um intenso debate sobre desenvolvimento como

projeto nacional5, cumpre investigar um fenômeno que, envolvendo estruturas

de poder e agentes (políticos e econômicos) parece obstaculizar projetos de

desenvolvimento e redistribuição de renda que questionem essas estruturas.

PLANO REAL E FINANÇAS PÚBLICAS

Enquanto o Estado for percebido como digno de crédito, o sistema de moeda-abstrata, não conversível, funciona exatamente como o sistema com moeda-mercadoria. [...] Todo este complexo sistema está baseado, em última instancia, na credibilidade do Tesouro para saldar seus débitos. Quando há desconfiança na capacidade de transformar a promessa de pagar do Tesouro em títulos de débito com maior

5Além da “Macroeconomia do desenvolvimento”, teoria exposta em inúmeros trabalhos de

Bresser-Pereira, há discussões no seio do próprio governo, como em (BARBOSA e PEREIRA, 2010; IPEA, 2010; COUTINHO, 2010; BRASIL, 2010).

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credibilidade, há um gradual desmoronamento do sistema.

André Lara Resende, 1995

É bastante conhecido o fato de que o Brasil passou por um processo de

elevado endividamento externo e por um processo inflacionário

descontroladamente elevado ao longo de toda a década de 1980. Diversos

planos de estabilização foram elaborados, mas o conturbado período envolvia

problemas políticos e institucionais de toda ordem. A crise da dívida externa e

do modelo de desenvolvimento alicerçado no financiamento externo havia

exposto o Estado a diversos problemas (crise fiscal, crise de legitimação,

paralisia decisória etc). A abertura comercial, o ajuste fiscal e a estabilização

monetária eram apenas algumas das questões que se impunham à agenda

política. Fato é que o acesso ao financiamento externo e o controle da inflação

só ocorreram na década de 1990, com o Plano Real6.

Do ponto de vista do “debate econômico interno”, cumpre lembrar

também que o pensamento chamado “heterodoxo” já havia saído de cena após

amargar alguns fracassos, e ganhavam corpo as discussões macroeconômicas

6 Fernando Henrique Cardoso foi nomeado Ministro da Fazenda em 20 de maio de 1993 pelo

então presidente Itamar Franco, que lhe conferiu “carta branca”. Cardoso, que recebeu a notícia de sua nomeação durante viajem que fazia aos E.U.A na função de Ministro das Relações Exteriores, retornou ao Brasil imediatamente e empenhado em formar uma equipe em torno de si. Como relata Maria Clara R.M do Prado, “Ainda nos Estados Unidos, havia conversado com Pedro Malan sobre a negociação da dívida externa e pediu que ele o ajudasse” (PRADO, 1995, p. 63). Os primeiros nomes contatados pelo recém nomeado ministro foram Edmar Bacha, da PUC- Rio, e o antigo formulador da complexa proposta que desenvolvia a noção de inflação inercial e propunha a moeda indexada, plano que ficou conhecido como Larida, André Lara Resende (que no momento estava ajudando a montar um banco!). O primeiro discurso de Cardoso como ministro da Fazenda, redigido no mesmo dia de seu retorno ao Brasil, já sintetizava o que viria a ser a prioridade de sua gestão ao afirmar que “o problema central do Brasil era a inflação, que a dificuldade maior não estava no setor privado e sim no setor público, que o Estado estava uma desordem [...]” (idem, p. 63). Ainda no período de montagem da equipe, Edmar Bacha sugeriu a Cardoso o nome de Winston Fritsch, também da PUC do Rio de Janeiro, para assumir o cargo de secretário de política econômica. Este aceitou e chamou Gustavo Franco, que tornar-se-ia secretário-adjunto de política econômica da Fazenda e, posteriormente, já no primeiro mandato presidencial de Cardoso, presidente do Banco Central. Como afirma Prado, “Eram os ‘puquianos’ de volta ao poder” (PRADO, 2005, p. 65). Eis a montagem do grupo de economistas do Plano Real.

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sobre controle do déficit público, o que, junto com a tese da inflação inercial,

viria a compor os alicerces do plano que pôs fim à inflação.

Ao olharmos para o processo do Plano Real, chama atenção o fato de

que, apesar de a questão do ajuste fiscal estar na raiz de sua elaboração,

sendo considerada a sua “primeira fase” (BRESSER-PEREIRA, 1994;

BELLUZZO e ALMEIDA, 2002) e tendo permanecido como um dos principais

objetivos a serem alcançados – pelo menos de acordo com as alegações do

governo – os resultados das contas públicas tenham demonstrado um fracasso

retumbante no que diz respeito ao ajuste (interno) do setor público. Isto é, os

déficits foram, ao longo do período FHC, crescentes, como também o foi a

dívida interna. E isto mesmo considerando-se que um dos principais programas

do governo, as privatizações, buscavam, de acordo com Pedro Malan, abater a

dívida interna. Luiz Filgueiras explicita a questão em números:

[...] a dívida líquida total do setor público, que em 1994 situava-se em torno de R$ 153 bilhões – correspondendo a 29,2% do PIB – alcançou, em dezembro de 1998, mais de R$ 388 bilhões, o que representou 42,6% do PIB, apesar de a União ter arrecadado com as privatizações, nos quatro anos do governo Cardoso, mais de U$ 46

bilhões (FILGUEIRAS, 2012, p. 175).

O motivo desse desajuste é conhecido e criticado por ampla literatura. O

que importa ressaltar aqui é que a estratégia macroeconômica adotada no

primeiro governo Cardoso, que buscava a estabilização por meio da âncora

cambial e produziu uma brutal elevação do endividamento público – dadas as

altíssimas taxas de juros que visavam atrair capital externo para manter o

câmbio artificialmente sobrevalorizado – produziu, na expressão de Sallum Jr.

(2004) “verdadeiras bombas de sucção de recursos do Estado”. Como é

sabido, essa estratégia foi abandonada em 1999, tendo sido substituída pelo

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atual tripé composto por metas de inflação, superávit primário e câmbio

flutuante7.

O que chama atenção é que, apesar do governo Cardoso apresentar o

ajuste fiscal como preocupação central, a mudança cambial produzida em 1999

acarretou fortes prejuízos ao Estado, deteriorando ainda mais suas finanças.

Isto porque, diante das incertezas dos investidores (detentores de títulos do

governo), os gestores da política monetária ofereceram-lhes, naquele

momento, garantias contra prejuízos advindos de uma desvalorização

(oferecendo papeis pós-fixados, cujo indexador era a taxa de câmbio), o que

corresponde na prática a uma “estatização” da dívida externa e do risco

cambial (BELLUZZO e ALMEIDA, 2002; BATISTA JR., 2000).

Medidas desse tipo, isto é, emissão de títulos públicos atrelados ao

câmbio, em um momento no qual muitos já apontavam para a

insustentabilidade do câmbio sobrevalorizado, sugerem que a garantia de

ganhos financeiros aparece para os gestores de política econômica como uma

espécie de “obrigação primeira” da política estatal, que se dá às custas das

finanças públicas. Essa questão possui uma dimensão que vai além de

convicções científicas; Abriga a dimensão do poder. Entretanto, para evidenciá-

lo cumpre expor brevemente as estratégias de política econômica adotadas e

suas justificativas internas.

De acordo com o programa de estabilização proposto pelo Plano Real8,

os crescentes déficits externos seriam cobertos pela livre entrada de capitais, e

a crença de que esses capitais entrariam em abundância (e ad infinitum)

parecia estar na raiz do plano. Aqui convém ressaltar a inversão produzida em

7 O saber hegemônico prega ainda que, para a manutenção do primeiro elemento do tripé, as

taxas de juros sejam mantidas em patamares elevados. Esse pressuposto não é consensual na literatura econômica, pois alguns autores afirmam que a variável “juros altos” se aplicaria em condições de inflação de demanda mas não se aplicaria em casos de inflação de custos. A questão dos interesses econômicos aos quais a manutenção de juros altos atende fica mais evidente no início do primeiro ano de mandato do governo Lula, quando muitos analistas afirmavam que o passageiro aumento do índice inflacionário que ocorreu ao longo de 2003 era devido à uma inflação de custos, mas, mesmo assim, o Banco Central respondeu a ele com elevação das já altíssimas taxas de juros. Para uma discussão sobre o período cf. (SALLUM JR., 2004b); (COUTO e COUTO, 2010); (PAULANI, 2008) entre outros. 8 Um excelente documento síntese do Plano Real é a “Exposição de motivos nº395”, publicada

em (CARDOSO, 1994).

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relação à década de 1980, quando se defendia a necessidade de superávits a

fim de honrar o serviço da dívida externa, o que fazia do Brasil um exportador

líquido de capitais. No entanto, na década de 1990, após o fim da moratória e

um longo processo de renegociação com os credores, o Brasil volta a ter

acesso ao sistema financeiro internacional e, mais que isso, ancora seu plano

de estabilização na dependência desses financiamentos, de modo que, nos

discursos econômicos, os déficits externos deixam de ser vistos como um

problema. Essa vulnerabilidade do modelo de estabilização veio à tona ao

longo de todo o primeiro mandato do governo Cardoso, persistindo mesmo

após o abandono do modelo de âncora cambial.9 Mas o que importa ressaltar,

para os fins do argumento aqui proposto, é que parecia necessário que o

Estado brasileiro, dada essa situação de dependência do financiamento

externo e total incapacidade de gerar poupança interna, garantisse um

ambiente favorável à valorização dos capitais financeiros desregulados e

ávidos por ganhos em curto prazo. Eis a oportunidade que surgia para esses

capitais; os “mercados emergentes” (CHESNAIS, 1998;COUTINHO, 1999;

FIORI, 1998).

Política Fiscal como peça auxiliar

O Brasil se insere nessa nova etapa da economia internacional na

condição de dependente de financiamento externo, de tal modo que seus

regimes cambiais ficam à mercê da confiança e percepção dos detentores de

ativos financeiros mundializados. Elemento indissociável dessa estratégia

passou a ser a elevadíssima taxa de juros, que visava evitar uma abrupta fuga

de capitais, mas traz consigo a expressiva deterioração das contas públicas –

pois incide sobre o serviço da dívida – culminando numa total incapacidade do

Estado em custear qualquer política pública que não vise o corte de gastos.

Nesse contexto, define-se um arranjo de política econômica cujo objetivo é

declaradamente reestabelecer a “confiança dos investidores”, de um modo que

9 A mencionada vulnerabilidade da moeda pôde ser notada ao longo de todo o governo. Assim,

em 1997, com a crise na Ásia e a consequente elaboração do “Pacote 51”, em 1998 com a moratória na Rússia e a elaboração do “Plano de Ação 1999-2001”, e novamente em 2002 com o “risco Brasil” advindo da “ameaça” representada pela vitória de um governo de origem sindicalista.

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não apenas a política monetária mas também a política fiscal passa a eleger

como prioridade a conquista de “credibilidade”. Assim, no contexto de

liberalização financeira, a política fiscal assume uma importância central –

embora passiva – já que passa a cumprir a tarefa de sinalizar aos “mercados” o

comprometimento do governo em honrar o serviço da dívida pública, afastando

o risco de default.

De acordo com o novo consenso hegemônico, a estabilidade

macroeconômica passa a depender da adoção de um “regime de política

econômica” que seja adotado inter-temporalmente de modo a conquistar

credibilidade e criar um quadro estável que sirva de guia aos investidores

(agentes econômicos racionais) na tomada de suas decisões. Assim,

contrariamente às teses keynesianas que haviam sido hegemônicas em

décadas passadas, a importância da política fiscal10 não estaria mais em seu

potencial papel anti-cíclico – onde gastos com investimento teriam o papel de

expandir a demanda agregada em momentos de recessão da atividade

econômica – mas sim em seu papel de indicadora da “sustentabilidade da

dívida”. (LOPREATO, 2006).

Portanto, sob esse aspecto, não é conspiratório afirmar que o

“comprometimento do governo em garantir os ganhos esperados dos

investidores privados” (LOPREATO, 2006, p. 26) se tornou o objetivo primeiro

da política macroeconômica, pois esse “comprometimento” está presente nos

fundamentos da própria teoria econômica hegemônica, que entende que a

função que compete ao Estado é a de garantidor de “previsibilidade” e

“rentabilidade” na alocação de recursos privados. Diante disso, a dimensão do

poder seria dissociável da dimensão do “discurso científico”?

10

De acordo com a literatura econômica há um “novo consenso teórico” (ARESTIS e SAWYER, 2003 apud LOPREATO, 2006) que rompe com a concepção keynesiana de política fiscal, passando a atribuir a esta o papel de “balizadora das expectativas dos agentes”. É derivada dessa concepção, mais microeconômica do que macroeconômica, que se constrói a defesa de um “regime de política econômica”, que cristalize regras e ações implementadas inter-temporalmente, portanto, independentes da troca de governos. Não é à toa que na iminência da vitória eleitoral de Lula os “mercados” tenham feito tanta pressão, exigindo desde logo o nome dos futuros dirigentes da economia.

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O “regime de política econômica” adotado no Brasil após 1999 não foge

à lógica exposta por Lopreato, pois “a condução da política fiscal é vista como

responsável por influenciar a expectativa de rentabilidade dos títulos

públicos”(idem), sinalizando o baixo risco das aplicações. Trata-se de um

regime no qual a política fiscal perde seu poder de política discricionária e

passa a exercer o preponderante papel de sinalizadora de confiança aos

agentes econômicos do mercado financeiro. Não é por acaso que o

cumprimento das metas de superávit primário11 (medida fiscal) ganha

centralidade no Brasil a partir de 1999. Expliquemos: O controle da relação

dívida pública/PIB passa a ser um indicador de primeira importância, já que é

para essa variável que os mercados “olham” para avaliar o risco de seus

investimentos. A geração de superávits primários passa a ser a política “meio”

para controlar aquela relação, já que sua diminuição, isto é, diminuição da

dívida pública em relação ao PIB, deve indicar ao “mercado” (detentores ou

potenciais compradores de títulos públicos) a garantia de “solvência do setor

público”, o que em tese reduziria a taxa de juros.

Entretanto, se olharmos para a condução dessa política ao longo do

segundo governo Cardoso e do primeiro governo Lula, podemos perceber que

aquele problema apontado por Sallum Jr. – e central para esta pesquisa –

permanece, isto é, a “bomba de sucção de recursos do Estado” não foi

desligada; apenas houve algumas modificações em seu mecanismo. Isso pode

ser constatado pela elevação da dívida pública, algo que se agravou ainda

mais ao longo dos governos Lula, quando houve uma elevação sistemática da

dívida líquida interna do setor público, passando de 43,5% do PIB em 2003

para 48,7% em 2010.

De acordo com a literatura crítica (BRESSER-PEREIRA, 2007; COUTO

e COUTO, 2010; GONÇALVES e POMAR, 2002, entre outros) a explicação

para o aumento do endividamento público está nas altíssimas taxas de juros

adotadas pelo Banco Central, isto é, a taxa Selic é o que tem produzido o

11

O Superávit Primário é a diferença entre as receitas e as despesas do Governo Central, Estados, Municípios e empresas estatais, excluindo-se as despesas de juros, e sua manutenção em patamares elevados visa justamente a reduzir a relação dívida pública/PIB.

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aumento da dívida pública.12 De fato, uma primeira análise da dinâmica de

arrecadação e gastos estatais nos revela que, já que o resultado primário

(aquele que não inclui os encargos dos juros da dívida) é sempre superavitário,

e o resultado nominal (resultado alcançado depois de deduzidos os gastos com

juros) é sempre deficitário, os dispêndios com os juros da dívida pública podem

ser considerados a causa do constante desequilíbrio fiscal do Estado

brasileiro.13

Assim, se estiver correta a avaliação de que o que tem onerado as

finanças públicas é a componente financeira dos gastos do Estado (gastos com

juros e rolagem da dívida) e, portanto, a alta taxa de juros é a variável síntese

do processo de endividamento estatal, o que explicaria a adoção e manutenção

de taxas de juros tão elevadas quando se tem por objetivo de política

econômica a redução do endividamento estatal e, ademais, não se observa um

descontrole inflacionário? Ou, ainda, o que explicaria o sistemático aumento

da dívida pública quando todo o receituário ortodoxo tem sido implementado,

isto é, as metas de superávit primário têm sido atingidas, o câmbio permanece

flutuando ao sabor do mercado e o Banco Central tem tido assegurada sua

‘independência’? A resposta a essas questões pode ser encontrada – e esse é

o caminho sugerido aqui – mediante a análise do funcionamento da gestão da

dívida pública e do fenômeno que lhe é correlato: a enorme transferência de

recursos públicos – extraído por meio de tributos, portanto, da renda real

produzida pela sociedade – para a esfera financeira, aquela onde o capital se

valoriza fora da esfera produtiva e cuja forma de remuneração é o juro e, no

12

Privilegiarei aqui o conceito de dívida pública mobiliária federal interna (DPMFi), já que esta é o principal componente do endividamento do governo federal e, sendo formada pelos títulos públicos emitidos pelo Tesouro Federal e Banco Central, possui estreita relação com a taxa Selic, que remunera tais títulos. A Selic é a taxa básica de juros definida pelo COPOM, no Banco Central. Um de seus principais objetivos é funcionar como instrumento de controle da inflação, na media em que é se baseando nela que se formam todas as outras taxas de juros do país. Portanto, influindo sobre o “custo do dinheiro”, tem o poder de encarecer os empréstimos e desestimular o investimento produtivo, retraindo a demanda agregada e evitando, sobretudo, uma inflação de demanda. No entanto, a taxa Selic terá importância na discussão aqui proposta privilegiando-se um outro aspecto: Sendo a taxa que remunera os títulos públicos, tem o poder de transferir fatia significativa da arrecadação do governo para os detentores desses títulos, contribuindo no processo de valorização do “capital fictício” e, portanto, beneficiando a classe que vive de juros , os rentistas, e todo o conjunto de gerentes, gestores e investidores institucionais que trabalham para esta classe. 13

Cf. fonte de dados primários em Ipeadata (2007) e Bacen (2007).

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caso aqui tratado, o juro advindo dos títulos da dívida pública. Eis o que tem

sido caracterizado como Rentismo.

Rentismo

Bresser-Pereira, talvez um dos primeiros a apontar para este aspecto do

problema, atenta para a mudança que o processo de acumulação começa a

sofrer ainda ao final de década de 1970, quando, nos países centrais, entram

em cena políticas monetaristas que, visando ao controle da quantidade de

moeda, elevam artificialmente as taxas de juros de modo a reduzir as taxas de

crescimento de setores produtivos da economia. Em sua abordagem

econômica, Bresser-Pereira procura demonstrar que, nessa situação, o setor

financeiro deixa de exercer sua funcionalidade para o setor produtivo. O papel

positivo do sistema financeiro no processo de acumulação dependeria de uma

situação na qual houvesse uma razoável distancia entre a taxa de lucro

prevista no investimento e a taxa de juros do mercado. Entretanto, em casos

onde a taxa de juros exceder a taxa de lucro prevista, o incentivo ao capitalista

será emprestar dinheiro a juros em vez de aplicá-lo na produção. (BRESSER-

PEREIRA, 1985). Nesse caso, desaparece a funcionalidade do sistema

financeiro para a produção e ganha força o caráter rentista do capitalismo. O

que importa salientar aqui é que tal situação é resultado da intervenção do

Estado, das políticas monetaristas operadas em seus aparelhos e justificadas

por uma base teórica que preza pela não-intervenção econômica (eis aqui um

paradoxo). E os beneficiados dessa política são os rentistas, que vivem de

juros. (idem, p. 175).

Ao apontar para o problema descrito acima, Bresser-Pereira referia-se

aos países centrais que, ao longo da década de 1980, eram os grandes

credores dos endividados países da América- Latina. Portanto, ao falar em

rentismo, Bresser-Pereira tinha em conta, naquele momento, que boa parte do

fluxo da renda se dava dos países devedores para as instituições financeiras

privadas e organismos multilaterais (como FMI). Nesse período era então a

“exportação de capitais” que a periferia fazia a fim de honrar o serviço de sua

dívida externa o que alimentava o caráter rentista dos países centrais credores.

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No entanto, do ponto de vista analítico, o problema é o mesmo que a pesquisa

aqui proposta procura levantar, isto é, o endividamento (interno) do Estado

brasileiro, que se acentua a partir da década de 1990, e os beneficiados pela

política econômica operada por esse Estado. O ponto em comum é que a alta

taxa de juros, variável chave da política macroeconômica, tem o poder de

favorecer a acumulação do capital fictício14, que se valoriza mediante juros de

títulos públicos, incentivando a aplicação nesses papeis em detrimento do

investimento produtivo e favorecendo instituições financeiras e seus analistas e

consultores.

Olhando para a relação que se estabelece entre o sistema financeiro e

os Estados latino-americanos na década de 1990, Pierre Salama15 também

identifica a prevalência de uma situação rentista, cujas características

principais permanecem as mesmas, quais sejam: As altas taxas de juros

praticadas pelos governos, ao elevarem o “custo do dinheiro”, incentivam os

bancos e instituições financeiras em geral a aplicarem nos atrativos títulos da

dívida pública, o que se dá em detrimento do financiamento do setor produtivo

(empréstimo às empresas). Aqui, como na análise do rentismo feita por

Bresser-Pereira (1985), o setor financeiro deixa de exercer o que seria sua

função virtuosa (SALAMA, 2004) e passa a exercer uma função parasitária e

“perversa”. (SALAMA, 2004, p. 3), já que, além de não servir para o

financiamento do “desenvolvimento”, agrava a situação das finanças públicas.

Para Salama, a insuficiente formação bruta de capital, essencial ao

desenvolvimento econômico, seria devida ao comportamento rentista das

empresas, o que, por sua vez, é decorrente das ótimas oportunidades

disponíveis em investimento em carteira, remuneradas pelas altas taxas de

14

O conceito de “capital fictício” será utilizado pelos autores que falam em rentismo. Conceito cunhado por Marx em (O Capital, livro I cap XXIV e desenvolvido no livro III), capital fictício diferencia-se do capital produtivo e trata-se de uma forma particular de capital portador de juros. Caracteriza-se pela capitalização de direitos sobre a produção futura e aplica-se no caso da dívida pública. É isto que faz com que, na prática, o detentor de títulos da dívida pública possua o direito de participar da receita pública. Cf. (GARAGORRY, 2007). 15

Utilizo aqui o texto “Amérique latine, dettes et dépendance financière de l’Etat”, que não possui referência de publicação. Encontra-se disponível em http://www.elcorreo.eu.org/Amerique-latine-dettes-et?lang=fr e também em http://pierre.salama.pagesperso-orange.fr/art/amerique_latine,[email protected].

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juros dos bônus do tesouro oferecidas pelos governos. Assim, as instituições

financeiras têm suas atividades crescentemente orientadas para tal função, o

que se deve ao regime de crescimento com dominância financeira16 e à política

econômica governamental. A característica desse regime de crescimento, nos

temos de Salama, é a extrema “dependência financeira”, de modo que o

instrumento macroeconômico disponível para frear um possível movimento de

fuga de capitais é o aumento da taxa de juros, o que aumenta o serviço da

dívida interna do Estado.

A abordagem mais próxima do específico problema aqui tratado é a de

Leda Paulani (2008). Também para Paulani o Brasil enfrenta uma situação de

dependência financeira, cujo sentido deriva da consolidação do regime de

acumulação sob dominância financeira e tem levado o país, como a periferia

latino-americana em geral, à posição de “plataforma de valorização financeira

internacional”. (PAULANI, 2008, p. 92). Esse raciocínio, que permeará a

argumentação de todo seu livro, é o que dá embasamento à questão mais

específica: A internacionalização do mercado financeiro aumentou

significativamente a importância do “mercado de bônus” (títulos da dívida

pública brasileira cotados nos mercados internacionais), o que tem elevado

sobremaneira as despesas decorrentes de investimentos em carteira. Esta

situação é o que transformou o Estado Brasileiro em um “produtor de ativos

financeiros de alta rentabilidade” (idem, p. 101), já que é ao Estado que aquele

capital fictício reclama seus direitos. Uma vez que o Estado não é um “capital

real”, tal como uma ação, mas sim um “não-capital”, o atendimento daqueles

‘direitos’ (do investidor) implica em “extração de renda real da sociedade como

um todo”(idem, p.102).

A contribuição de Paulani é central para o raciocínio que se busca

desenvolver aqui não apenas por definir precisamente o que será tratado como

rentismo, mas também por situá-lo historicamente num ponto preciso do tempo:

Os primeiros anos do governo Lula no Brasil. A estupefação que acometeu os

analistas ao perceberem que o governo de um partido surgido nas lutas

16

Traduzo do termo original: “régime de croissance à dominante financière” (SALAMA, p. 12), cujo sentido é o mesmo do “regime de acumulação financeirizado” desenvolvido por Chesnais.

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sindicais, e que fez ferrenha oposição à política econômica de seu antecessor,

não apenas manteve os alicerces daquela política quando chegou ao poder

mas aprofundou as medidas que vinham sendo tomadas, gerou, naquele

momento, uma enorme descrença na possibilidade de mudança e, em geral,

nas possibilidades da política. Inúmeras foram as interpretações17 sobre os

motivos que teriam levado o novo governo a manter as linhas da política

herdada, nomeando para presidir o Banco Central ninguém menos que um ex-

diretor do Bank Boston e atingindo metas de superávit-primário maiores do que

as exigidas pelo FMI.

Em que pesem as condicionalidades impostas pelo FMI em virtude da

liberação de parcelas de empréstimo contraído pelo governo anterior (ou seja,

opções políticas passadas) e em que pese o agravante do “padrão de

acumulação com dominância financeira” (e a dependência financeira que daí

decorre), ou mesmo a “atrofia dos mecanismos de comando dos sistemas

econômicos nacionais e a prevalência de estruturas de decisão

transnacionais”, fenômeno identificado por Celso Furtado duas décadas antes

(FURTADO, 1992), a política econômica implementada pelo primeiro governo

Lula é um problema político por definição. Isto é, não se trata por simples

“determinantes estruturais” as medidas tomadas por governos; antes, deve-se

olhar para a tecnoestrutura estatal, seus operadores, o “substrato técnico-

científico” que os orienta e as coalizações de interesses que o sustentam.

Por isso, o fato de Paulani sustentar a tese da dependência financeira

não a impede de iniciar seu livro com um objetivo muito claro: desmistificar a

ideia de que “não há alternativas”. E esse ponto nos remete à acusação de

Arantes de que o PT teria renunciado a disputar a hegemonia nessa área: De

fato, a disputa desse aspecto da hegemonia liberal – refiro-me a um aspecto

bem específico da hegemonia, o aspecto da política macroeconômica – não foi

17

Para Brasílio Sallum Jr. o aprofundamento ortodoxo da política macroeconômica operado pelo governo Lula tratou-se de uma “opção política”. (SALLUM JR, 2004, p. 267). Em linha semelhante, porém com carregada dose de pessimismo, Paulo Arantes lembra que “a gestão do capitalismo não precisa ser bisonhamente a favor da propriedade” e que, no que tange à discussão entre um comando ortodoxo ou heterodoxo da economia capitalista, o PT, “com medo da própria sombra, renunciou a disputar a hegemonia nessa arena” (ARANTES, 2007, p. 215).

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enfrentado18 de frente pelo governo, nem em seus alicerces teóricos, nem

quanto a seus poderosos beneficiados, as instituições financeiras. Assim, o

perverso mecanismo de transferência de renda aqui descrito permanece em

operação. Desde que se operou a liberalização financeira, quando títulos

públicos aparecem para o capital financeiro tal como qualquer outro ativo

(ações, moedas, derivativos) e que devem satisfazer sua busca de

rentabilidade, as finanças públicas deterioraram-se de maneira inversamente

proporcional ao espetacular aumento dos ativos financeiros privados. E a

condução desse processo, isto é, a operação da “bomba de sucção de

recursos do Estado” ocorre dentro do próprio Estado, em mecanismos em

operação na sua aparelhagem (HIRSCH, 2010), por meio de sua política

econômica que, sempre em busca de credibilidade, tem gerido a dívida pública

da maneira mais rentável possível para o setor financeiro privado.

Assim, urge demonstrar que o rentismo, esse mecanismo de

transferência de renda operado no Estado, ao influenciar na alocação do

excedente, favorecendo certos grupos sociais, configura-se em uma estrutura

de poder, sendo um problema político, passível de ser enunciado como

problema sociológico.

POSSÍVEIS CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO

A gestão da moeda parece estar em fase avançada de descolamento

da política, pois até seu lócus institucional, defende-se, deve ser autônomo em

relação aos governos e “habitado” por técnicos (supostamente neutros,

18

Há um amplo debate sobre uma inflexão na política macroeconômica do segundo governo Lula, o que tem levado muitos autores a afirmar que estaria em curso um novo-desenvolvimentismo. (sobre inflexão na política fiscal Cf. BARBOSA e PEREIRA, 2010; IPEA, 2010). São conhecidas também as recentes ofensivas (embora tímidas) do governo Dilma (2012) contra o sistema bancário, exigindo redução dos spreads e do Banco Central operando baixa na taxa Selic (que no meio do ano de 2013 já voltaram a subir). O que se procura demonstrar aqui não é que essas mudanças não ocorreram mas sim que, por tímidas que tenham sido, provocaram o descontentamento dos setores rentistas e não têm se mostrado, por enquanto, a título de hipótese, sustentáveis no longo prazo ao ponto de romper com o modelo rentista de política macroeconômica, viabilizando um projeto alternativo de desenvolvimento.

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“responsáveis” e defensores da política correta). Ocorre, entretanto, que ao

operar sua política de não interferência e de busca de um eterno “ajuste”, essa

política macroeconômica arbitra o capitalismo nacional, definindo quais são os

projetos políticos “viáveis” e favorecendo as grandes instituições financeiras,

detentoras de títulos públicos. Como o faz: definindo as políticas fiscal e

monetária, já que essas são as duas variáveis que incidem diretamente na

rentabilidade daqueles títulos, de modo que a gestão macroeconômica tem se

tornado, a título de hipótese, a própria gestão da dívida pública. Ressalte-se o

agravante de que esses “técnicos” geralmente atuam nas duas pontas do

sistema, pois trabalham, antes ou depois de suas passagens pelo governo, no

próprio mercado financeiro.

Assim, um estudo sobre a gestão da dívida pública brasileira, suas

formas usuais de financiamento, os tipos de papeis oferecidos pelo tesouro e a

composição de seus investidores parece ser um passo empírico importante

para a compreensão do problema. De início, sabe-se que a taxa média de

rentabilidade anual dos títulos públicos no período 1995-2000 foi de 17,4%, o

que explica a preferência dos bancos por esse tipo de investimento,

responsável por 31,8% de suas receitas no ano de 1999. Esses dados

reforçam a hipótese de que há uma estrita relação entre deterioração das

contas públicas e lucros do sistema financeiro. (Dados extraídos de ANDIMA,

2001 apud GONÇALVES e POMAR, 2002). A identificação dos grupos

detentores desses títulos, e, do ponto de vista inverso, a composição dos

portfólios das instituições financeiras, é ponto de partida para a compreensão

de como se dá a relação de poder entre as estruturas estatais e financeiras.

Entretanto, demonstrar como funciona essa relação não basta. Deve-se

demonstrar como foi politicamente montada, de modo que o segundo passo é

reconstruir esse processo, privilegiando as tensões e conflitos internos aos

aparelhos de Estado, o que envolve brigas por interesses nem sempre

(apenas) materiais, mas por “legitimidade” no discurso econômico e por

posições de poder.

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Por fim, a demonstração da construção desse processo servirá como

chave explicativa do “como” e “porque” o primeiro governo Lula manteve (e

mesmo aprofundou) o mesmo regime de política econômica herdado do

governo Cardoso, do qual era ferrenho opositor. Sabe-se que os

constrangimentos de ordem econômica eram fortes na conjuntura de 2002-

2003, quando o Estado brasileiro possuía um altíssimo nível de endividamento

(dívida pública/PIB) e encontrava dificuldades de se financiar e rolar suas

dívidas (títulos públicos) no mercado financeiro. Entretanto, cumpre esmiuçar

melhor esse conjunto de fatores, privilegiando seu caráter político, o que exige

a adoção de novas categorias de análise, capazes de clarificar, por exemplo,

como alguns elementos que “aparecem” como econômicos, a exemplo da

dívida contraída pelo governo Cardoso com o FMI, são na verdade

constrangimentos de natureza política, já que são fruto de decisões políticas

passadas (uma espécie de path dependence) e tomadas dentro das

engrenagens estatais e suas rotinas burocráticas.

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