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 UNIVERSIDADE FEDERAL DA B AHIA    UFBA FACULDADE DE C OMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA CONTEMPORÂNEAS KY LDES BATISTA VICENTE OS EPISÓDIOS DA VIDA ROMÂNTICA: MARIA ADELAIDE AMARAL E EÇA DE QUEIRÓS NA MINISSÉRIE “OS MAIAS”  Salvador 2012

Episodios Davida Romantica

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA

    FACULDADE DE COMUNICAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM

    COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

    KYLDES BATISTA VICENTE

    OS EPISDIOS DA VIDA ROMNTICA: MARIA ADELAIDE

    AMARAL E EA DE QUEIRS NA MINISSRIE OS

    MAIAS

    Salvador

    2012

  • 2

    Kyldes Batista Vicente

    Os episdios da vida romntica: Maria Adelaide Amaral e Ea de

    Queirs na minissrie Os Maias

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Comunicao e Cultura Contemporneas, Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Carmem Jacob de Souza

    Salvador

    2012

  • 3

    Ficha Catalogrfica

    ______________________________________________________

    Vicente, Kyldes Batista

    Os episdios da vida romntica: Maria Adelaide Amaral e Ea de Queirs na

    minissrie Os Maias /

    Kyldes Batista Vicente. Salvador: K. Vicente, 2012.

    xxx p.

    Orientadora: Professora Dra. Maria Carmem Jacob de Souza Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

    Comunicao, 2012.

    1. xxxxx. 2. xxxxx. 3. xxxx. 4. xxxxx. I. Universidade Federal da Bahia,

    Faculdade de Comunicao. II. Souza, Maria Carmem Jacob de. III. Ttulo. CDU xxx

    _____________________________________________________________________

  • 4

    Kyldes Batista Vicente

    OS EPISDIOS DA VIDA ROMNTICA: MARIA ADELAIDE AMARAL E EA DE

    QUEIRS NA MINISSRIE OS MAIAS

    Tese apresentada como requisito para obteno do grau de Doutor em Comunicao e Cultura

    Contemporneas, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

    Maria Carmem Jacob de Souza - Orientadora - _____________________________________

    Doutora em Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, PUC/SP, Brasil. Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, Brasil.

    Carlos Antonio Alves dos Reis - _________________________________________________ Doutor em Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra, Portugal. Instituto de Lngua e Literatura Portuguesas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra,

    Portugal.

    Maria Cristina Palma Mungioli - ________________________________________________ Doutora em Cincias da Comunicao, Escola de Comunicaes e Artes ECA/USP, Brasil.

    Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, Brasil.

    Mirella Mrcia Longo Vieira Lima - _____________________________________________ Doutora em Letras, Teoria Literria e Literatura Comparada, Universidade de So Paulo,

    USP, Brasil. Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Brasil.

    Guilherme Maia de Jesus - _____________________________________________________

    Doutor em Comunicao e Cultura Contempornea, Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, Brasil.

    Universidade Federal do Recncavo da Bahia.

    Salvador, Agosto de 2012.

  • 5

    A

    Enedina Pereira Batista (in memorian), minha me, que me ensinou a acreditar nos sonhos e

    que queria tanto ver esta tese pronta!

    Joo Batista Vicente (in memorian), meu pai, para quem eu sempre fui a baiana.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Professora Maria Carmem Jacob de Souza, por sua orientao, por sua amizade,

    pela parceria, pela confiana e, sobretudo, por sua generosidade intelectual. Saliento,

    agradecida, a riqueza das suas sugestes, o rigor nas revises e ainda a disponibilidade e

    compreenso que sempre demonstrou.

    A minha gratido vai igualmente ao professor Wilson Gomes, por seu

    profissionalismo, ateno e amizade.

    Aos professores Mirella Mrcia Longo Vieira de Lima, pesquisadora da literatura

    portuguesa, e Guilherme Maia, pesquisador do audiovisual (e um Maia!), pela leitura atenta e

    direcionamento ao meu trabalho na qualificao.

    Maria Adelaide Amaral, pela simpatia e delicadeza em disponibilizar os roteiros

    para a anlise; e ao professor Carlos Reis pela gentileza em apresentar-me a ela, pela

    disponibilizao de textos e pela generosidade intelectual.

    Ao amigo Eli Pereira da Silva, companheiro apaixonado pelas Letras portuguesas; e

    Neusa Bohnen, pela cuidadosa leitura e interlocuo.

    s amigas: Cristiane, Liliane, Lula, Martha, Silvana e Silvria, por estarem comigo

    nos momentos crticos; Darlene e Paula, pelo companheirismo; Adriana, D. Ieda, Lcia, Nvia

    e Luzia pela fora da amizade.

    Dinda e Miranda, pelo incentivo; Rodrigues, Iraci e Tainara, pela compreenso e

    cuidados; Patrik, Alexandre, Joo Nunes e Rodrigo, pelo afeto; ao amigo Fbio DAbadia,

    pelas primeiras conversas e ao Joseano pelo apoio.

    Agradeo especialmente aos meus irmos, Keides e Joo Filho, pela compreenso,

    pela pacincia, pela torcida, pelo incentivo e pelo amor em tantos momentos de angstia e de

    consternao. Agradecimento que tambm devido a toda a minha famlia e aos meus amigos

    aqui no mencionados, mas lembrados em meu corao.

    Aos companheiros do Grupo A-Tev, pela leitura e contribuio nas reflexes e

    Michele, pelo bom humor de sempre.

    Por fim, agradeo Unitins e CAPES, pelo apoio para a realizao do doutorado.

  • 7

    VICENTE, Kyldes Batista. Os episdios da vida romntica: Maria Adelaide Amaral e Ea de

    Queirs na minissrie Os Maias. 287 f. il. 2012. Tese (Doutorado). Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicao, Salvador, 2012.

    RESUMO

    Nesta pesquisa examinada a hiptese de que quando os romances de Ea de Queirs Os

    Maias, A Relquia e A Capital foram adaptados para a minissrie Os Maias, a roteirista autora e o diretor geral objetivaram maior aproximao possvel ao estilo do autor portugus. Ao encontrar, na crtica minissrie, uma tendncia a consider- la pouco prxima ao estilo de

    Ea de Queirs, este trabalho procurou questionar a posio dessa crtica, analisando o modo como foi possvel equipe de realizadores a criao de estratgias para a composio de

    programas de efeitos que aproximassem a minissrie ao texto queirosiano, sem deixar de imprimir suas marcas no produto realizado.

    As bases conceituais que nortearam esta investigao esto fundamentadas na ideia da adaptao como traduo ou transposio entre sistemas semiticos, desenvolvida por Plaza;

    na ideia de dialogismo e intertextualidade em Bakhtin; e na teoria da adaptao proposta por Hutcheton. A teoria assinada por Bourdieu possibilita o entendimento e a anlise do contexto

    de produo do campo literrio e do televisivo para compreender como a perspectiva autoral de Maria Adelaide Amaral e de Luiz Fernando Carvalho colaborou em uma adaptao de Ea de Queirs para a televiso brasileira, caracterizada por uma perspectiva autoral dos

    adaptadores em que procuravam um resultado em que os traos do estilo de Ea pudessem ser reconhecidos.

    Os resultados da pesquisa demonstram que a adaptao operada por Maria Adelaide Amaral e

    Luiz Fernando Carvalho, autores da minissrie, apresentou aproximaes com o estilo de Ea de Queirs no que se refere conduo da narrativa, ao modo como a histria foi contada, ao

    cuidado com a msica, apresentao dos pressgios e indcios. Neste caso, o objetivo dos adaptadores configurou-se em um grau elevado de aproximao, em que foram resguardados os traos do escritor portugus, atitude que colocou em risco a recepo da minissrie pelo

    pblico.

    O objeto de anlise desta tese foi constitudo pelos 42 captulos da minissrie Os Maias, exibida de tera a sexta-feira, pela Rede Globo de Televiso, de 09 de janeiro de 2001 a 23 de

    maro de 2001, s 23h. A articulao entre a matriz metodolgica que orienta os trabalhos do Laboratrio de Anlise Flmica a Potica do Filme e as proposies advindas da anlise que examina as instncias de produo, fruio e consumo de telefico orientada por Bourdieu

    fomentaram a anlise que observou os efeitos sensoriais, sentimentais e cognitivos que a obra pode produzir sobre o apreciador, nesse caso, a minissrie fruto da adaptao de

    romances para a televiso brasileira.

    Palavras-chave: Televiso. Literatura. Minissrie. Adaptao.

  • 8

    VICENTE, Kyldes Batista. Episodes of a romantic existence: Maria Adelaide Amaral and Ea

    de Queirs in the miniseries Os Maias. 287 p. il. 2012. Thesis (Doctorate). Federal University of Bahia, Media School, Salvador, 2012.

    ABSTRACT

    This study investigates the hypothesis stating that when the novels Os Maias, A Relquia and A Capital, written by Ea de Queirs, were adapted to a miniseries called Os Maias, the scriptwriter and the director aimed to get as closer as possible to the style of this Portuguese

    author. As we found out, in the miniseries reviews, a trend to consider it little close to Ea de Queirs style, this work question the position of these critics by analyzing how it was possible

    for the team involved with the production of the miniseries to create strategies to set effects that brought the miniseries closer to the text written by Ea de Queirs, while leaving the production own marks.

    Conceptual basis that lead this research are stated in the idea of adaptation as a translation or a

    transposition between semiotic systems, developed by Plaza; the idea of dialogue and inter-text in Bakhtin; and the theory of adaptation proposed by Hutcheton. The theory signed by

    Bourdieu makes it possible to understand and analyze the production context in literary and television domains in order to understand how the authorship perspective from Maria Adelaide Amaral and Luis Fernando Carvalho side with an adaptation of Ea de Queiroz for

    the Brazilian television, featured by an authorship perspective in which they aim that the traits of Ea de Queiroz style should be recognized in the miniseries.

    The results of this study show that the adaptation from Maria Adelaide Amaral and Luiz

    Fernando Carvalho, authors of the miniseries, presented proximity to Ea de Queirs style, regarding narrative characteristics, the way the story was told, care with the music, presentation of omen and clues. In that case, the aim of the authors figured in a high level, in

    which the traits of the Portuguese writter were kept, conduct that endangered the audience acceptance of the miniseries.

    This work analyzed the 42 chapters of the miniseries Os Maias, which were broadcast from

    Tuesday to Friday, on Rede Globo de Televiso channel, from January 09th to March 23rd, 2001, at 11 PM. The link between methodological matrix that guides the studies performed at Laboratrio de Anlise Flmica (Laboratory of Film Analysis) Potica do Filme (Poetic of

    Films) and the propositions from the analysis which investigates television fiction shows production, enjoyment, and consumption venues according to Bourdieu indicates an

    analysis that observe sensory, sentimental and cognitive effects that the novel can provoke on the audience, building a better comprehension of elaborated audiovisual product, here, from the adaptation of a novel to Brazilian television.

    Keywords : Television. Literature. Miniseries. Adaptation.

  • 9

    SUMRIO

    Introduo . 11

    Captulo 1 A Adaptao ................................................................................ 27

    1.1 Aspectos tericos que orientam a anlise de adaptaes audiovisuais .. 27

    1.1.1 Como entendida a Traduo Intersemitica ...................................... 28

    1.1.2 A Intertextualidade na Adaptao ......................................................... 37

    1.1.3 A Transmediao e a Telefico ............................................................. 41

    1.2 Aspectos metodolgicos que orientam a anlise de adaptaes

    audiovisuais ...

    46

    Captulo 2 A Minissrie como Gnero ......................................................... 56

    2.1 Gneros literrios ........................................................................................ 56

    2.2 Minissrie ..................................................................................................... 72

    2.3 Modo Ficcional ou Modo Narrativo?........................................................ 79

    2.4 Fico Seriada.............................................................................................. 83

    2.5 As implicaes da noo de gnero para a anlise da minissrie ........... 88

    Captulo 3 O estilo e autoria em Ea de Queirs ........................................ 92

    3.1 O estilo de Ea de Queirs e a sua difuso ............................................... 96

    3.2 A Literatura e o Estilo de Ea de Queirs ................................................ 98

    3.3 Proximidade e Distanciamento: o estilo de Ea de Queirs .................... 104

    3.4 A recepo crtica do romance Os Maias ................................................. 109

    Captulo 4 Autoria e estilo na adaptao da minissrie ............................. 115

    4.1 O lugar da adaptao de Os Maias na trajetria de consagrao de Maria

    Adelaide Amaral .................................................................................................

    122

    4.1.1 As Leituras de Formao ........................................................................ 124

    4.1.2 A Produo Teatral ................................................................................. 126

    4.1.3 A Produo Televisiva ............................................................................. 126

    4.1.4 A Relao com a Crtica .......................................................................... 128

    4.1.5 Sucesso e Reconhecimento ...................................................................... 129

  • 10

    4.1.6 O Projeto Os Maias ............................................................................. 134

    4.1.7 Dramas Familiares e Afetivos ................................................................. 135

    4.2 Luiz Fernando Carvalho e o conceito esttico da adaptao .................. 141

    Captulo 5 A minissrie Os Maias: aproximaes e distanciamentos

    com a literatura de Ea de Queirs .

    156

    5.1 Implantao da trama: o primeiro captulo da minissrie ..................... 162

    5.1.1 O primeiro captulo da minissrie .......................................................... 163

    5.2 As aproximaes . 166

    5.2.1 Os Indcios, os Pressgios 172

    5.2.2 A Msica ................................................................................................... 180

    5.3 Os distanciamentos 181

    5.4 O desfecho da minissrie 194

    5.4.1 O ltimo captulo: Um efeito de concluso, de absoluto remate . 195

    5.5 O tempo e o espao na minissrie e no romance ...................................... 196

    5.6 Ainda o apanhamos: o desfecho da minissrie ..................................... 205

    Consideraes Finais ........................................................................................ 209

    Referncias ........................................................................................................ 215

    Apndices ........................................................................................................... 233

    Apndice 1: O primeiro captulo da minissrie ............................................. 234

    Apndice 2: O ltimo captulo ......................................................................... 253

    Apndice 3: Trama ........................................................................................... 259

    Apndice 4: Produo ....................................................................................... 264

    Apndice 5: As Personagens da minissrie .................................................... 268

    Anexo ................................................................................................................. 282

    Anexo 1: Quadro geral das referncias musicais ........................................... 283

  • 11

    Introduo

    Para comear

    A inteno de trabalhar com a minissrie Os Maias surgiu quando ela foi exibida em

    2001. Naquela poca, eu j morava e trabalhava em Palmas-TO, e ensinava literatura

    portuguesa na Ulbra. Os primeiros captulos foram acompanhados por mim enquanto passava

    frias na casa de meus pais em Uruta-GO e, j naquela poca, decidi gravar todos os

    captulos no videocassete, pois ainda no se falava muito em comercializao desses produtos

    pela emissora. Terminadas as frias, voltei a Palmas e minha me continuou gravando cada

    captulo at que se completaram os 42.

    O material ficou guardado. As quatro fitas contendo, cada uma, 6h de gravao

    ficaram guardadas, assim como j estavam guardadas as fitas de A Muralha, Dona Flor e

    seus dois maridos (que se juntaram s minissries exibidas posteriormente). Ainda no tinha

    claro o que iria estudar naquele material todo, j que onde fiz o Mestrado (UFG), naquela

    poca, ainda no havia quem trabalhasse, no Programa de Letras e Lingustica, com literatura

    e televiso ou literatura e cinema.

    Quando comecei a pesquisar para a seleo do Programa de Ps-Graduao em

    Comunicao e Cultura Contemporneas, finalmente consegui elaborar uma ideia que pudesse

    tornar-se um projeto, utilizando aquele material exibido na televiso. O objetivo era trabalhar

    com um corpus que estivesse alinhado com as pesquisas desenvolvidas especialmente pelo

    Grupo A-Tev, e que permitisse que eu no me afastasse de minha rea de formao (Letras)

    e que tambm permitisse que eu desenvolvesse estudos segundo minha rea de interesse no

    Mestrado: Literatura Portuguesa. Assim, cheguei ao projeto que agora se apresenta concludo:

    anlise das aproximaes ao estilo de Ea de Queirs pelos realizadores da minissrie, por

    Maria Adelaide Amaral e Luiz Fernando Carvalho.

    O processo de adaptao pelo qual os textos de Ea de Queirs passaram, at que

    foram transformados em roteiro da minissrie Os Maias, envolve algumas situaes internas

    da emissora que merecem ser comentadas antes que possamos iniciar nossa anlise. A

  • 12

    minissrie foi uma coproduo entre a Rede Globo1 e a SIC (Sociedade de Informao e

    Comunicao - Portugal), que custou, segundo a emissora, R$11 milhes. Previa-se que a

    atrao passaria simultaneamente em Portugal e no Brasil, mas, por motivos tcnicos, a

    estreia em alm-mar foi adiada. Logo depois, a minissrie foi apresentada, mais de uma vez,

    naquele pas.

    Este era um projeto que teve incio em 1997, quando a Rede Globo convidou Glria

    Perez para assinar o roteiro, e Wolf Maya, a direo. A minissrie teria dezesseis captulos,

    seria toda gravada em Portugal, teria Paulo Autran como Afonso da Maia e estava prevista

    para ser exibida a partir de janeiro de 2000. No entanto, em maro de 1999, depois de

    trabalhar no remake de Pecado Capital, Glria Perez no pde participar do projeto de Os

    Maias, circunstncia que leva a emissora a escolher Maria Adelaide Amaral para elaborar o

    roteiro, e Daniel Filho para a direo, que posteriormente foi substitudo por Luiz Fernando

    Carvalho.

    Para colaborar com Maria Adelaide Amaral na elaborao do roteiro, foram

    convidados Vincent Villari e Joo Emanuel Carneiro. Aps anlise do romance, essa equipe

    decidiu construir a minissrie a partir da transmutao de trs romances de Ea de Queirs:

    Os Maias, A Relquia e A Capital. Isso foi necessrio, segundo depoimento de Maria

    Adelaide Amaral (no DVD da minissrie) e em entrevistas, porque o romance Os Maias

    continha matria para 24 captulos e a minissrie deveria ter, no mnimo, 44 captulos 2. Nesse

    caso, a equipe buscou na obra de Ea de Queirs subsdios para ampliao dos captulos. Foi

    matria de exame e consulta pela equipe de roteiristas, alm da obra ficcional, s

    correspondncias, ensaios, artigos publicados em jornais, projetos de textos inditos

    fornecidos por Carlos Reis e at fotografias do escritor. Assim que os roteiristas chegaram

    1 Exib ida de 09 de janeiro de 2001 a 23 de maro de 2001, s 23h, teve 42 captulos de 40min cada. Em maio de

    2004, a Globo Vdeo e a Som Livre lanam a minissrie em DVD, cujo formato foi adaptado pelo prprio

    diretor, Lu iz Fernando Carvalho. Com 904min e formato FullScreen, os quatro DVDs trazem depoimentos dos

    atores (Ana Paula Arsio, Fbio Assuno, Walmor Chagas, Selton Mello, Simone Spoladore e Osmar Prado),

    comentrios da autora (Maria Adelaide Amaral) sobre a transposio dos romances para TV e a edio para o

    DVD, alm da participao de Beatriz Berrini, professora titular de literaturas da PUC, que atuou como

    consultora do projeto. De acordo com o stio , a verso exclusiva teve a

    tiragem esgotada no Dia das Mes de 2004. 2 Durante a exib io da min issrie, o captulo 28 (que iria ao ar em 23 de fevereiro de 2001, sexta -feira de

    Carnaval) no foi ao ar devido transmisso do primeiro dia do Desfile das Escolas de Samba de So Paulo. O

    captulo 33 (que iria ao ar em 7 de maro de 2001, quarta-feira) no foi ao ar devido transmisso do amistoso

    entre Brasil e Mxico. Com isso, a minissrie que teria 44 cap tulos, ficou com 42.

  • 13

    construo de cenas e dilogos que apresentassem o mesmo tom de Ea de Queirs, conforme

    pode ser observado no depoimento de Maria Adelaide:

    Se e eu e minha equipe cometemos algum pecado, foi ser extremamente reverentes com a obra de Ea. Nenhuma das alteraes relevante se comparada com a fidelidade com que seguimos a histria e seu esprito, e todas se justificam do ponto de vista da dramaturgia. Eu cortei alguns personagens, ampliei a participao de outros e at inclu na trama figuras dos livros A Relquia e A Capital, o que deixou muitos queirosianos de cabelo em p. Entre os personagens que eliminei, por exemplo, est o Conde de Steinbroken, que tem uma funo anedtica em Os Maias , mas no contribui em nada para a ao. Quanto ao ncleo de personagens que extrai de A Relquia, estou com a conscincia tranquila. Ele faz muito sucesso, diverte as pessoas. Os queirosianos me diziam: por que introduzir essa gente se a matria cmica de Os Maias j to rica? Mas seu humor refinado demais, requer conhecimentos da histria de Portugal que nem os portugueses dominam hoje em dia. Essa espcie de ironia quase inacessvel ao pblico de televiso. (AMARAL, 2001).

    As escolhas dos romances do escritor portugus, as inseres de textos no narrativos

    e no verbais, bem como de outras fontes, para que a minissrie fosse elaborada, culminaram

    num complexo processo de construo da minissrie, como revela o depoimento a seguir:

    Tudo que eu acrescentava eram, absolutamente, falas com o mesmo esprito, como o veculo televiso, para esclarecer melhor, para facilitar, para (agir) como agente facilitador, ento, se recorria a certos expedientes de teledramaturgia para que esse universo ficasse mais explcito, ficasse mais acessvel, digamos assim. Ento, foi uma viagem extraordinria e em profundidade a essa obra prima que se chama Os Maias . [...] Eu fui buscar em outros livros subsdios que pudessem ajudar evidentemente cada situao e cada personagem. Ento, nesse sentido eu fui para outros livros buscar falas do Ea que caram perfeitamente como uma luva no Ega. Outro personagem tambm que eu fiz isso e fiz isso de maneira bem evidente foi com Palma Cavalo. Eu recorri a um retrato do Ea onde tem um editor de jornal to srdido como o Palma e me apropriei de uma srie de cosias. Ento, a referncia dos Maias o prprio Ea de Queirs. No s em relao a esses personagens, mas como a outros personagens. Foi um trabalho extremamente enriquecedor. Outra coisa tambm a correspondncia do Ea, as opinies polticas do Ea. Toda essa parte de ensastica do Ea. O que ele pensava, como ele pensava em relao ao seu tempo. As consideraes que ele fazia sobre a histria de Portugal, que no esto, necessariamente, na sua obra ficcional, esto nas correspondncias, nos ensaios que ele publicou em jornais. Ento eu lia isso e retirava da, pinava da aquilo que eu achava que iria se enquadrar, se encaixar nas situaes vividas pelos personagens de Os Maias (AMARAL, 2001).

  • 14

    A autora chama a ateno, nas entrevistas e depoimentos, para os cuidados com a

    realizao deste trabalho, o respeito ao texto do escritor portugus e as estratgias utilizadas

    para atender aos anseios da teledramaturgia. O embate entre o fazer dramaturgia e a

    preocupao com a aproximao ao texto literrio, alm da preocupao em imprimir suas

    marcas no texto, causaram reao diversa na crtica, que antevia a reao de queirosianos

    acerca da insero de outros textos do autor e dos recursos melodramticos utilizados na

    verso para a TV.

    Para as gravaes da minissrie Os Maias, a equipe passou cerca de seis semanas em

    Portugal, a primeira equipe de produo a ficar tanto tempo fora do pas 3. Alm disso, foram

    mais de 70 pessoas na equipe tcnica e 26 atores, num elenco de 50 pessoas em Portugal4. O

    diretor Luiz Fernando Carvalho enfatizou que as cenas em Lisboa e arredores eram para

    encontrar e reproduzir bem a obra de Ea de Queirs. O ator Osmar Prado, que interpretou o

    poeta Alencar, em depoimento no DVD, demonstra a mesma opinio, afirmando que a

    minissrie tinha uma funo social: despertar o interesse das pessoas pela literatura.

    A minissrie obteve em mdia 16,3 pontos percentuais em So Paulo e 17,7 no Rio de

    Janeiro, diante de uma expectativa de, pelo menos, 30 pontos de audincia em mdia (ndice

    mdio do horrio), naquela poca. Todavia, apesar da baixa audincia da minissrie, o livro

    Os Maias, no mesmo perodo, tornou-se um best-seller nas livrarias5. Durante o ano de 2001,

    a minissrie recebeu os prmios de melhor cenografia, fotografia e direo de arte do II

    Festival Latino-Americano de Cine Vdeo de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e marcou

    o retorno de Luiz Fernando Carvalho equipe de diretores da Rede Globo, da q ual esteve

    afastado, por trs anos, para as gravaes do filme Lavoura Arcaica (2001). Em 2004, o

    DVD Os Maias (verso do diretor) foi lanado pela Globo Vdeo. A minissrie recebeu a

    3 Informaes obtidas no stio , acesso em 7 de abril de 2010.

    4 Informaes obtidas nos stios: e

    , acesso em 7 de abril de 2010. 5 De acordo com o jornal Vale Paraibano, houve aumento de 80% nas vendas do livro na poca da exib io da

    minissrie. Informao disponvel em . No

    Brasil, o romance j fo i publicado por Martin Claret, Ateli Ed itorial, L&PM Editores (formato pocket), Landy,

    Juru Editora, Rideel (verso infanto-juvenil), Villa Rica, IBEP Nacional (verso infanto-juvenil), Livros do

    Brasil, Ediouro, S Editora, tica, Verbo (Brasil), alm das edies portuguesas comercializadas aqui. Na poca

    da exibio da minissrie, trs editoras relanaram o romance. O leitor pode encontrar nas livrarias trs edies

    do texto, a da Ediouro, a da Nova Alexandria e a da L&PM. Informaes disponveis no artigo Trs Edies do

    romance Os Maias nas livrarias , disponvel em , acesso em 22 de julho de 2010.

  • 15

    edio de Luiz Fernando Carvalho, que fez alteraes considerveis em seu formato: suprimiu

    os trechos da narrativa que se referem aos romances A Relquia e A Capital e enxugou

    algumas cenas mais longas da verso televisiva.

    O lanamento do DVD tambm propiciou a abertura de espaos para a discusso de

    outras obras dos realizadores de Os Maias e comparaes entre os seus trabalhos. Tambm h

    fs que ainda discutem, nas redes sociais, a afinidade entre o texto literrio e o texto

    televisivo. As ltimas discusses referem-se ao material do DVD. Por isso, os que gravaram a

    minissrie em 2001 tm um material a mais que , de alguma forma, privilegiado nas

    discusses, j que alguns no a acompanharam na TV. De maro a maio deste ano, o Canal

    Viva reapresentou a minissrie na ntegra.

    A recepo crtica da minissrie Os Maias

    Alm da recepo pela academia (como se ver mais adiante), a minissrie Os Maias

    teve recepo da crtica jornalstica, que foi, muitas vezes, severa. A maioria das abordagens

    foi relativa aos ndices de audincia, aos custos demandados para a produo e,

    especialmente, fidelidade entre os livros e a minissrie.

    A propsito das comemoraes do centenrio de Ea de Queirs, a professora Beatriz

    Berrini publicou na Folha de So Paulo o texto As comemoraes brasileiras de um

    centenrio portugus6 em que anuncia o projeto da Rede Globo de levar telinha o texto do

    escritor portugus sob a responsabilidade de Maria Adelaide Amaral. No mesmo veculo, foi

    publicada uma entrevista da escritora sobre o projeto. O texto teve o ttulo Ea na TV: Maria

    Adelaide adapta Os Maias para minissrie da Globo7.

    Antes da estreia da minissrie, Snia Apolinrio publicou o texto Os Maias marca[m]

    volta de Carvalho no Estado de So Paulo, em 09/07/2000, em que anuncia a volta de Luiz

    Fernando Carvalho televiso, j que ele estava envolvido com a produo de Lavoura

    6 Disponvel em < http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/literatura/eca_entrevista_berrini.shtml> acesso

    em 22/2/2012. 7 Disponvel em

    acesso em 22/2/2012.

  • 16

    Arcaica. O ator Jos Lewgoy, em entrevista ao Estado, em 14/10/2000, tambm falou sobre

    as gravaes da minissrie. Pouco tempo depois, O Globo publica, em 29/10/2000, um texto

    de Marcelo Marthe intitulado Comeam as gravaes da nova minissrie em Portugal. Em

    Os Maias com cenas em Portugal, matria no assinada de Dpnet.com, publicada em

    31/10/2000, o espectador tambm preparado para o que ir ver na televiso, em janeiro

    prximo, como anuncia a referida matria. At ento, os textos trazem as primeiras

    movimentaes acerca da produo da minissrie.

    Para atiar a curiosidade do espectador, No h minissrie como Ea, publicado por

    O Globo, em 31/10/2000, apresenta, no ttulo, um jogo de palavras que enaltece a literatura do

    autor portugus e prepara o espectador brasileiro para o que se ver na TV. Tambm foram

    anunciados os efeitos deste projeto na sociedade brasileira: O Estado, no dia 5/1/2001 trouxe

    a informao de Trs edies do romance Os Maias nas livrarias8, reflexo da curiosidade

    do espectador brasileiro que se configuraria, mais tarde, em um aumento expressivo da venda

    de livros9.

    No domingo que antecedeu a estreia da minissrie, a Revista da TV, fascculo

    vinculado a Globo, publicou informaes sobre a minissrie, sinopse, perfil das personagens,

    a estreia de Simone Spoladore na televiso, a atriz mirim Isabelle Drummond, a produo da

    minissrie em Portugal, as cenas em Sintra e em Lisboa e o cuidado da equipe de produo.

    No dia 8/1/2001, a Isto Gente tambm trouxe algumas informaes sobre a minissrie em

    Os Maias: adaptao de Ea de Queiroz retrata o sculo 19 em Portugal. Essa matria

    apresentou, ainda, uma pequena entrevista da roteirista-autora10.

    No dia da estreia, 9/1/2001, Cristian Klein, da Agncia Folha, apresentou suas

    impresses em Os Maias o biscoito fino da Globo 11, no qual apontou que a linguagem da

    minissrie teria mais proximidade ao cinema do que televiso, falou do oramento da

    minissrie, do elenco e da experincia do diretor. Tambm assinada por Cristian Klein na

    Folha de So Paulo, a matria Os Maias quer dar a Ea ares de cinema 12, expe a

    8 Disponvel em acesso em

    22/2/2012. 9 cf. nota 5.

    10 Disponvel em acesso em 22/2/2012.

    11 Disponvel em acesso em 22/2/2012.

    12 Disponvel em acesso em 22/2/2012.

  • 17

    preocupao da produo da minissrie com o apuro das cenas. No mesmo dia, JC Online

    (Jornal do Comrcio), de Recife, em matria no assinada, comentou a transformao sofrida

    pelos atores para a interpretao das personagens da minissrie em Histria exige mudanas

    na aparncia dos atores.

    Aps a exibio do primeiro captulo, a Revista Veja publicou o texto Luxo fora de

    srie, em 10/01/200113. O texto teve o objetivo de mostrar a primorosa estreia da minissrie

    na Rede Globo. No decorrer do ms de janeiro de 2001, a Revista da TV trouxe informaes

    sobre a trama, sobre algumas personagens, a explicao da criao de alguns ncleos

    narrativos e o ponto de vista de alguns atores sobre o trabalho. Tudo isso com o objetivo de

    atualizar o espectador e atiar a curiosidade sobre a trama, j que ainda no havia o hbito de

    consultar o stio da emissora para conhecer seus produtos.

    No entanto, a recepo do primeiro captulo da minissrie no foi o que se esperava.

    Daniel Castro, da Folha de So Paulo, em 12/1/2001, publicou Globo abafa crise na

    minissrie Os Maias, em que falou do acidentado captulo de estreia que, segundo ele, o

    diretor no conseguiu finalizar a tempo, teria 20min a mais, alm de problemas na

    sonorizao. Alm disso, falou tambm da exigncia de Carvalho em gravar apenas trs ou

    quatro cenas por dia e refazer muitas delas at dezesseis vezes. Esse rigor todo, segundo

    Daniel Castro, afugentou o espectador brasileiro. Alessandro Giannini, de Isto Gente,

    tambm culpou o primeiro captulo finalizado s pressas pela baixa audincia em Os Maias:

    por que a adaptao da obra de Ea de Queirs tem baixa audincia 14.

    Quando os ndices de audincia da minissrie apresentaram-se aqum do esperado pela

    emissora, os crticos iniciaram as discusses sobre os possveis motivos para tal. No dia

    4/2/2001 foram publicadas duas crticas importantes sobre a minissrie: uma, em O Estado de

    So Paulo, Os Maias: apuro cinematogrfico pode afastar telespectador15, assinada por

    Luiz Zanin Oricchio, em que atribui s caractersticas do texto portugus (a ironia, a

    decadncia da aristocracia portuguesa do sculo 19 e o clima pesado e angustiante, segundo o

    crtico) o distanciamento do pblico brasileiro.

    13

    Disponvel em acesso em 22/2/2012. 14

    Disponvel em acesso em 22/2/2012. 15

    Disponvel em acesso em

    22/2/2012.

  • 18

    A outra crtica viria de Cludia Croitor, da Revista da TV. Nesta, a jornalista fala

    sobre o fato de a qualidade esmerada da minissrie no ser exatamente o que conquista a

    audincia no Brasil. A matria, intitulada Qualidade derruba ibope de Os Maias16, vem

    acompanhada de uma pequena coluna Srie agrada a imortais, na qual Cristian Klein

    informa ao leitor acerca da recepo da minissrie pela Academia Brasileira de Letras. A

    pequena coluna traz depoimentos de Arnaldo Niskier, que fala do estranhamento do pblico

    pelo ritmo da minissrie; de Carlos Nejar que atribui a baixa audincia a uma dificuldade

    cultural; e de Antonio Olinto, para quem a minissrie poderia ser ainda mais lenta, pois o

    mundo de Ea est ali.

    Diante de tais crticas, Maria Adelaide Amaral, na entrevista Frustrada e Feliz17,

    concedida Revista Veja em 21/3/2001, lamentou a baixa audincia e ponderou No se pode

    apontar culpados. Todos fizeram o melhor, todos queriam atingir um vasto pblico. A

    emissora investiu alto na produo como nunca se viu na TV brasileira. Eu me frustrei com a

    baixa audincia, mas no com aquilo que eu vi na tela, que uma beleza rara. Na mesma

    linha de raciocnio, Luiz Fernando Carvalho diz que prefere acreditar na contradio entre o

    rigor de criao e a audincia na televiso 18. E que continuar trabalhando para a produo de

    programas de diversos formatos, tendo como objetivo a tica artstica verdadeira para a TV.

    Minha esttica apenas consequncia disso, j que salienta que sua misso reeducar o

    olhar do espectador.

    Em abril do mesmo ano, O Click publicou o texto de Cristina Brando, na seo

    Televiso e Cultura: Incluo Os Maias na nossa quality television19. No texto, Brando

    aponta, pesarosa, os possveis motivos da baixa audincia para um programa to bem

    elaborado.

    Em 2004, a Globo Marcas lanou o DVD da minissrie, a que se seguiram: Minissrie

    Os Maias lanada em DVD20, no stio Terra, em 10/5/2004, Luiz Fernando Carvalho

    16

    Tambm disponvel em acesso em 22/2/2012. 17

    Disponvel em acesso em 22/2/2012. 18

    Entrev ista publicada pela Revista poca, na poca do lanamento do DVD Os Maias: Prolas para muitos .

    Disponvel em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR64221-6011,00.html> acesso em 22/2/2012. 19

    Disponvel em http://www.oclick.com.br/colunas/brandao4.html> acesso em 22/2/2012. 20

    Disponvel em acesso em 22/2/2012.

  • 19

    explica que o processo de edio foi acompanhado pela professora Beatriz Berrini, da PUC-

    SP. O diretor tambm afirma que, com o DVD, somente com o que se referia ao romance Os

    Maias, ele fecha um ciclo, buscando respeitar, em igual grandeza, tanto os admiradores da

    srie, quanto os leitores de Ea.

    Muitos estudiosos das Letras e das Cincias Sociais j se dedicaram anlise deste

    produto. Geralmente, quando um texto considerado clssico adaptado para o audiovisual,

    recebe uma ateno especial da crtica (jornalstica e acadmica). Um exemplo a minissrie

    Grande serto: veredas, que j mereceu teses, dissertaes e livros sobre o processo de

    traduo realizado. Destacamos a tese de doutorado de Maria Cristina Palma Mungioli,

    Minissrie Grande Serto: veredas: gneros e temas construindo um sentido identitrio

    de nao, em que a pesquisadora discute a minissrie, a partir da compreenso de um sentido

    identitrio de nao, construdo pela referida minissrie, por meio de gneros e temas.

    A pesquisa de Osvando Morais, intitulada Grande Serto: veredas, o romance

    transformado, realizou uma anlise das fases do processo de elaborao do roteiro por

    Walter George Durst, resultando em uma investigao que coloca a anlise na perspectiva da

    traduo intersemitica realizada na passagem do romance srie televisiva. Na investigao

    A televiso como tradutora: veredas de um grande serto na Rede Globo , Paulo

    Sampaio Xavier Oliveira parte da hiptese de que o formato escolhido e sua funo de

    prestgio na grade de programao da emissora foram os principais parmetros utilizados na

    transformao do romance em fico televisiva. Esta pesquisa foi conduzida pela pretenso de

    "fidelidade ao livro" divulgada pela emissora e amplamente repercutida na mdia. Os

    elementos arrolados na pesquisa permitem a concluso de que a "fidelidade" diz antes respeito

    a determinadas tradies crticas e, sobretudo, aos prprios desgnios da televiso. De todo

    modo, o contato do enorme pblico televisivo com o Grande serto: veredas representa uma

    significativa "sobrevida" do romance, no em outra lngua ou cultura, mas em outro sistema

    textual, de crescente interesse para os estudos da traduo.

    O trabalho de Anna Maria Balogh, Conjunes, Disjunes, Transmutaes: da

    Literatura ao Cinema e TV se apresenta tambm de modo muito significativo. A partir de

    trabalhos consagrados como Vidas Secas, filme de Nelson Pereira (1963), e Grande Serto:

    Veredas, minissrie de Walter George Durst (1985), a autora levanta as caractersticas do

  • 20

    processo de transmutao para cada meio e, na comparao com um conjunto de outras obras,

    constri paralelamente uma reflexo sobre a produo cultural brasileira nos ltimos vinte

    anos. A edio de 2005 acrescenta reflexes sobre as mudanas nos modos de conceber e

    realizar adaptaes ocorridas em anos recentes, principalmente na televiso.

    Com a minissrie Os Maias no foi diferente. O livro Uma leitura do trgico na

    minissrie Os Maias, de Suely Fadul Villibor Flory e Lcia C. M. de Miranda Moreira, o

    trabalho que mais se detm sobre a minissrie. H outros pesquisadores que se dedicaram a

    ela, no entanto, a pesquisa parece ser mais aprofundada no livro em questo. A pesquisa de

    Flory e Moreira (2006) sobre a minissrie apresenta-se como uma das mais cuidadosas a

    respeito deste corpus, mas a ateno das autoras voltada para a anlise da importncia e

    funcionalidade dos objetos como indicadores do trgico no romance e na minissrie. Muitas

    outras pesquisas apresentam um olhar de censura para a minissrie por causa da insero de

    outros textos queirosianos ou a adaptao de algumas situaes (um exemplo a volta de

    Maria Monforte para trazer a verdade sobre os irmos).

    Na poca da produo e exibio da minissrie, Carlos Reis, professor da

    Universidade de Coimbra e pesquisador da obra de Ea de Queirs, tambm publicou um

    texto no Jornal de Letras, Artes e Ideias , em Outubro de 2000, Os Maias na TV: misso

    impossvel 2, que discute que a primeira misso impossvel ensinar Os Maias na escola e a

    segunda transform-los em minissrie. A professora Beatriz Berrini (PUC-SP) foi tambm

    convidada a participar do projeto e ministrou palestras ao elenco e produo, durante a

    preparao da minissrie, e depois apresentou uma anlise da minissrie no DVD lanado em

    2004. Hlio Guimares (USP) divulgou sua anlise O romance do sculo XX na televiso:

    observaes sobre a adaptao de Os Maias no livro Literatura, cinema e televiso, de

    Tnia Pellegrini (2003).

    Mesmo com a riqueza e diversidade da crtica jornalstica e acadmica, a maioria das

    abordagens sobre a minissrie foram, conforme pode ser visto nos textos jornalsticos e

    acadmicos da poca da exibio21, relativas aos ndices de audincia, aos custos demandados

    21 APOLINRIO, Snia. Os Maias marca vol ta de Carvalho In: O Estado de So Paulo, 09/07/2000;

    Comeam as gravaes da nova minissrie em Portugal In : O Globo, 29/10/2000; MARTHE, Marcelo.

    Luxo fora de srie In: Veja, 10/01/2001; MEMRIA GLOBO. Dicionrio da TV Globo, v.1: programas de

  • 21

    para a produo e, especialmente, fidelidade entre os livros e a minissrie. Em algumas

    anlises, a insero de outros textos de Ea de Queirs na traduo para o audiovisual foi

    vista, por muitos crticos, como um desrespeito ao autor.

    Um dos fatores que suscitou maior interesse na investigao estava associado forma

    como a literatura de Ea de Queirs foi adaptada para a televiso brasileira, objetivando uma

    maior aproximao possvel ao estilo do autor portugus.

    Este caminho foi escolhido devido ao fato de encontrar, nas crticas minissrie, uma

    tendncia a consider- la distante do estilo do escritor portugus. Dessa forma, decidimos

    testar a intuio de que os crticos pouco mencionavam que o trabalho da televiso, apesar da

    pequena audincia, dos atrasos na gravao, de ser considerado inalcanvel ao pblico

    espectador brasileiro, apresentava caractersticas que o aproximam ao estilo de Ea de

    Queirs. Estilo este que, para ser identificado, foi construdo a partir de uma equipe, cujo

    objetivo era ser reconhecida por maior aproximao ao texto literrio. Alm disso, tambm

    nosso interesse estava voltado para o modo como foi possvel equipe de realizadores

    (roteirista e direo) a criao de estratgias para a composio de programas de efeitos para

    que a minissrie fosse apreciada.

    Nesse aspecto, ao ampliar um debate sobre a adaptao de obras literrias para a mdia

    televisiva, busca-se colaborar para exame de minissries adaptadas que usaram largamente o

    recurso da aproximao, com vistas a transpor o estilo do autor da literatura e a sua

    consagrao para a televiso. Consagrao tanto do romancista quanto dos criadores da

    minissrie roteirista e diretor, como se pode constatar em nossa pesquisa.

    Para examinar essa aproximao, foi necessria a anlise textual da potica da

    minissrie Os Maias, como tecido audiovisual organizado para produzir uma experincia de

    apreciao, sobre os recursos audiovisuais: cnicos, narrativos e comunicativos que lhes

    deram forma.

    dramaturg ia & entretenimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003; Os Maias em DVD: tal como deveria

    ter sido In: O Estado de So Paulo, 01/05/2004; Os Maias quer dar a Ea ares de cinema In : Folha de So

    Paulo, 09/01/2001; RUBIN, Nani. No h minissrie como Ea In: O Globo,

    31/10/2000; . Dados colhidos no stio: .

  • 22

    Em termos gerais, o problema desta pesquisa investigar o funcionamento da

    minissrie como produto audiovisual e narrativo, atentando-se para o modo como composta

    e quais so os efeitos que procura imprimir nos espectadores. Deseja-se, assim, compreender

    os papis dos mecanismos narrativos e audiovisuais de uma fico televisiva.

    As questes referentes maior aproximao ao estilo da literatura de Ea de Queirs e

    o modo como a equipe de realizadores comps os programas de efeitos para a fruio da

    minissrie ainda no foram devidamente contempladas, conforme pesquisas realizadas em

    publicaes sobre as minissries brasileiras: teses, dissertaes e artigos cientficos. Esta

    averiguao foi realizada em bancos de publicao, livros, revistas cientficas, nas reas de

    Letras e Comunicao.

    Em todo caso, pensamos que a preocupao com a anlise da fidelidade, muito

    discutida, deve ceder lugar a outras questes, uma vez que tambm importante observar a

    minissrie no cenrio da produo brasileira para a TV. Nesse cenrio, o critrio fidelidade

    revisto e remodelado, sofrendo refraes advindas de questes de carter ideolgico ou

    econmico. Isso procede das relaes entre o autor, a obra literria, a crtica e o pblico,

    dando origem ao valor simblico das produes culturais (BOURDIEU, 1996). A fidelidade,

    ento, deve ser considerada como processo de reconhecimento do texto matriz, mas no dever

    ser o nico critrio de anlise de textos adaptados.

    O que esta pesquisa prope analisar aproximaes e distanciamentos entre o estilo de

    Ea de Queirs e a minissrie Os Maias, o que a torna diferente das anlises realizadas sobre

    esta minissrie, j que tem sido muito recorrente, na anlise de produtos audiovisuais, a nfase

    dada pelas vertentes semioticistas que priorizam a anlise dos efeitos de sentido em

    decorrncia dos efeitos sensoriais e emocionais.

    Pressupostos e Hiptese

    No decorrer de nossa pesquisa, algumas hipteses foram levantadas:

    1. A teoria dos campos sociais em Bourdieu nos levou a entender a relao entre a

    posio de Ea de Queirs (no campo literrio brasileiro) e a dos roteiristas autores e do

  • 23

    diretor geral da minissrie, no campo da teledramaturgia, para elaborar hipteses de trabalho

    que relacionem estas posies reconhecidamente autorais com as estratgias de construo

    dos programas de efeitos observados na minissrie. Observaremos, pois, a vinculao entre a

    histria da prtica dos agentes com suas disposies e trajetrias nos campos particulares de

    suas prticas (Ea de Queirs na literatura, Maria Adelaide do Amaral na transposio de

    romances para a televiso e Luiz Fernando Carvalho na direo de produtos flmicos e

    teledramatrgicos advindos de obras literrias).

    2. A anlise da potica da minissrie implica a compreenso dos materiais estruturais

    expressivos do meio televisivo (parmetros cnicos, visuais, sonoros e narrativos) e a anlise

    do modo de eles organizarem as estratgias de produo de efeitos no apreciador. Tendemos a

    presumir que o modo de construo da minissrie pelos autores procurou maior aproximao

    ao estilo de Ea de Queirs, devido importncia do romance e do escritor no campo

    literrio, no imaginrio da audincia presumida, principalmente o mercado portugus e

    brasileiro (em que Ea j vinha sendo adaptado). Essa importncia parece criar uma presso

    para o uso de uma adaptao aproximada. Tanto para atender expectativas da audincia

    televisiva (no mercado brasileiro e de outros pases) quanto de futuros leitores de reedies do

    romance (em grau menor) e na venda de DVDs.

    3. A hiptese a de que a anlise interna que examina o modo de construo dos

    programas de efeitos - que objetivam o reconhecimento de marcas da potica22 do romance e

    do estilo queirosiano na minissrie - precisa levar em conta a experincia de criao da

    potica da minissrie, formulada pelos autores dessa obra a roteirista titular e o diretor geral.

    Assim sendo, foram examinadas as posies sucessivas, ou trajetrias destes

    condutores no campo de produo da minissrie, para criar indicadores das aproximaes e

    distanciamentos entre a potica de Ea de Queirs e a potica observada na minissrie Os

    Maias. Esta aproximao foi negociada pela roteirista autora com a Rede Globo, a partir da

    consagrao obtida com a minissrie A Muralha, sucesso de pblico e de crtica. A deciso

    22

    Neste contexto, potica ser entendido como o fazer potico caracterstico de determinado autor, poca ou

    gnero literrio, que observvel nas obras por meio de anlise.

  • 24

    de adaptar Os Maias vem junto com a deciso de trazer Ea de Queirs para o pblico

    brasileiro23.

    4. Neste tipo de fico, o lugar do recurso narrativo e do enredo central: todos os

    outros recursos dependem dele. Logo, so examinadas com mais detalhe as escolhas e

    estratgias que envolvem o lugar do roteirista autor e o lugar do diretor. A centralidade do

    roteiro associado ao poder do roteirista no campo da teledramaturgia no Brasil.

    Mtodos

    A tentativa de responder s perguntas elaboradas nas hipteses levou-nos a criar

    estratgias para que as respostas fossem encontradas. Para a anlise do produto, nossa ateno

    voltou-se aos mecanismos e sistemas audiovisuais e narrativos oferec idos pelo processo de

    transposio de textos literrios para a fico televisiva, em especial a seriada. Percebeu-se

    que possvel um entendimento mais completo, se comparado s anlises que exploram mais

    as representaes do ponto de vista temtico e dos efeitos comunicacionais, efeitos de sentido.

    A minissrie foi analisada numa perspectiva potica: foram examinadas as funes

    internas da obra, seus princpios regentes e o modo como so apresentados aos espectadores,

    o que diz respeito aos modos de funcionamento e organizao, os temas tratados, os tipos de

    personagens construdos, o tratamento do espao e do tempo, os programas de efeitos

    particulares (SOUZA, 2004a). Para isso, foi necessria a compreenso dos modos de

    elaborao da minissrie e dos modos de funcionamento das estratgias discursivas: a lgica

    de organizao e produo da narrativa seriada, o funcionamento e os efeitos gerados pelos

    gneros de representao da ao e a composio das estratgias utilizadas por narrativas

    ficcionais seriadas para televiso.

    Esse processo foi realizado a partir de levantamento dos dados biogrficos de cada um

    dos realizadores e tambm de Ea de Queirs. A partir da, foram tambm estudados os

    depoimentos em entrevistas e relacionados com os momentos da atuao profissional de cada

    23

    Houve um movimento bastante diferente quando Maria Adelaide Amaral decide adaptar A Casa das Sete

    Mulheres , em 2003. Neste trabalho, o objetivo era recontar a histria da escritora gacha Letcia Wierzchowski

    e a roteirista tomou liberdades consideradas excessivas quanto aos distanciamentos do romance, seja no enredo,

    seja na histria e na cultura gachas, seja no estilo de narrar a Revoluo Farroupilha.

  • 25

    um, situando-os na histria dos produtos realizados por eles e na histria das minissries.

    Tudo isso para que fossem observadas as relaes entre as suas prticas e suas representaes

    em seu campo de atuao; o modo como se posicionavam no campo literrio e televisivo, o

    que defendiam e as estratgias necessrias para se adaptar as obras de Ea de Queirs para

    uma minissrie.

    O primeiro passo para a anlise interna do corpus foi a releitura dos romances que

    deram origem minissrie: Os Maias, A Relquia e A Capital. A releitura dos textos serviu

    para que pudssemos localizar o enredo, as personagens, a ambincia, o espao.

    Posteriormente, a apreciao dos captulos da minissrie. Nossa opo por examinar a verso

    exibida pela televiso deve-se necessidade do entendimento das estratgias de implantao

    da trama, serializao, o desenvolvimento da trama, entrelaamento entre as narrativas

    literrias na minissrie, o modo como as histrias so contadas, a composio das

    personagens.

    O mtodo de anlise foi desenvolvido observando-se a relao entre a narrativa

    televisiva e as narrativas literrias e estabelecendo um recorte que levou em considerao os

    elementos em que pudessem ser identificadas as aproximaes entre o estilo de Maria

    Adelaide Amaral e o estilo de Ea de Queirs. Com isso, procurou-se levar em considerao:

    i) a apresentao da minissrie segundo o conceito esttico da adaptao realizada:

    personagens, ambincia e espao; ii) a estrutura seriada da minissrie na diviso em atos; iii) a

    representao da ao construda em dilogo com o tom e o ritmo da minissrie; iv) a

    implantao da trama com o estudo do primeiro; v) a construo da narrativa televisiva a

    partir da narrativa literria com os indcios e os pressgios; vi) a insero da msica nos

    momentos de tenso e comicidade; vii) a construo dos distanciamentos entre o texto

    literrio e a minissrie; viii) a construo da mulher como distanciamento na minissrie; ix) a

    finalizao da minissrie com o estudo do ltimo captulo da minissrie.

    A definio deste recorte se fez a partir da diviso em semanas dos 42 captulos,

    observando-se o desenvolvimento da narrativa, a construo das expectativas, a adaptao dos

    atos cmicos aos momentos trgicos da histria, a caracterizao e movimentao das

    personagens. Enfim: os elementos visuais, narrativos e sonoros.

  • 26

    Como este texto se apresenta

    No decorrer da exposio dos dados advindos desta pesquisa, optou-se por apresentar,

    no Captulo 1 os aspectos tericos e os metodolgicos que orientam a anlise de adaptaes

    audiovisuais. O objetivo foi trazer discusses incididas sobre a adaptao entre textos, por

    isso foram levantados os pressupostos sobre a adaptao literria do conceito de traduo

    intersemitica dialogismo e intertextualidade, transmediao e finalmente adaptao.

    O Captulo 2 desta tese apresenta elementos de reflexo acerca da minissrie como

    gnero, com o objetivo de apontar as implicaes da noo de gnero para a anlise da

    minissrie. No terceiro captulo, so apresentadas as caractersticas do estilo e da autoria de

    Ea de Queirs para a compreenso da literatura deste autor a partir dos estudos do contexto

    de produo de sua literatura, bem como da recepo crtica de seus romances.

    No captulo 4, o ponto tratado refere-se autoria e ao estilo na adaptao da

    minissrie, o projeto criador de Maria Adelaide Amaral, sua trajetria e consagrao; e a de

    Luiz Fernando Carvalho. O Captulo 5 traz as aproximaes e os distanciamentos entre a

    minissrie Os Maias e o estilo da literatura de Ea de Queirs. A minissrie foi apresentada

    segundo o conceito esttico da adaptao realizada, evidncias da aproximao ao estilo de

    Ea: personagens, ambincia, espao, a diviso em atos, a msica, o tom e o ritmo. Na anlise

    da composio das estratgias televisivas, mostrou-se a implantao da trama e finalizao da

    minissrie no captulo 1 e no captulo 42. E quanto ao modo de construo da aproximao

    entre o romance e a minissrie analisamos os indcios, os pressgios, a mulher e a famlia.

    Para diminuir eventuais prejuzos entre o modo como o material descrito e como ele

    se apresenta, a equipe responsvel, a equipe tcnica, o elenco, a descrio ampliada do enredo

    e os trechos analisados esto disponveis no blog , criado

    especificamente para apresentao desta pesquisa. Tambm esto dispostas, no apndice, a

    descrio do primeiro e do ltimo captulos e a descrio das personagens.

    Nas consideraes finais, retornamos s discusses realizadas nos captulos

    precedentes com a finalidade de concluir nossa anlise.

  • 27

    Captulo 1 A Adaptao

    Desde o final do sculo XIX, a discusso entre literatura e cinema se faz presente, seja

    para confront- los, seja para identificar proximidades entre eles, independentemente da

    complexidade da teia de suas relaes (pacficas, conflituosas ou colaborativas).

    Hoje, a criao para o cinema ou para a televiso ainda mais influenciada por

    processos de produo e reproduo da linguagem. Isso se d porque o momento histrico -

    cultural, poltico, tecnolgico - propicia modos de produo cultural, transmutados pelos

    meios eletrnicos e digitais. Essas transmutaes do origem a formas de recriao, gerao,

    transmisso, conservao e percepo das obras audiovisuais que determinam modos de

    aproximao com o pblico. Esses modos de aproximao so produzidos a partir de

    processos de traduo de linguagens. Plaza (2008) chamar de ps-mdia, in-mdia ou

    intermdia a esses processos de alocao de informaes, uma vez que esses procedimentos

    de traduo da linguagem influenciam as formas de produo, elaborao e recepo dos

    elementos estticos e artsticos. Para ele, No contexto multimdia da produo cultural, as

    artes artesanais (do nico), as artes industriais (do reprodutvel) e as artes eletrnicas (do

    disponvel) se interpenetram (intermdia), se justapem (multimdia) e se traduzem (traduo

    intersemitica) (2008, p. 207).

    1.1 Aspectos tericos que orientam a anlise de adaptaes audiovisuais

    As formas artsticas hoje disponveis nos levam a pensar de forma mais atenta as

    relaes e inter-relaes entre as mdias. Portanto, propomos aqui uma reflexo sobre esse

    processo, especialmente no que se refere Traduo Intersemitica e ao modo de elaborar

    textos audiovisuais a partir de textos literrios. Ao iniciar um debate acerca da traduo,

    torna-se necessrio considerar que tal processo remonta ao que chamado, comumente, de

    adaptao. Em um primeiro momento, optei pelo termo traduo ou transmutao, j que

    retomei a proposta de Roman Jakobson (1970), que definiu o termo. O fato de Julio Plaza

    (2008) ter desenvolvido o conceito de Traduo Intersemitica, criado pelo linguista russo,

    tambm estar em foco nesta oportunidade. No segundo momento, buscamos a ideia de

  • 28

    dialogismo e intertextualidade em Mikhail Bakhtin (2002), com o objetivo de compreender a

    traduo, na perspectiva do dilogo entre textos.

    A discusso sobre adaptao ser finalizada, a partir da noo de transmediao

    proposta por Henry Jenkins (2009) e com a reflexo desenvolvida por Linda Hutcheon (2011)

    sobre a adaptao, entendida como transposio de uma obra, envolvendo mudana de foco,

    de contexto e de mdia; como um processo de recriao, de reinterpretao de um texto; e

    como forma de intertextualidade, um dilogo com a obra adaptada. A noo de transmdia

    ser contemplada para que se possa entender como um texto (em nosso caso uma narrativa) se

    desdobra a partir de mltiplas plataformas miditicas e elabora, em cada desdobramento, um

    novo discurso.

    Como traduo, intertextualidade e transmediao, o conceito de adaptao foi sendo

    desenvolvido para compreender como textos literrios romanescos foram traduzidos ou

    adaptados para minissries televisivas. O centro da ateno esteve nas minissries produzidas

    pela Rede Globo de Televiso, classificadas de produto adaptado de texto- fonte do gnero

    romance.

    1.1.1 Como entendida a Traduo Intersemitica

    Para iniciar nossa discusso, cabe retomar o conceito de traduo intersemitica, j

    que o conceito de adaptao perpassa esse conceito. No incio do sculo XX, poetas,

    pesquisadores, artistas e pensadores debruaram-se sobre o estudo da traduo, especialmente

    sobre a traduo criativa. Walter Benjamin, Paul Valry, Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luiz

    Borges e Haroldo de Campos entenderam que esse tipo de traduo envolveria o uso de

    algumas estratgias bsicas, entre as quais a omisso de detalhes e o uso de um termo para

    significar um equivalente aproximado ou provisrio. A preocupao era com a traduo

    interlingual de textos poticos, mas suas contribuies possibilitaram maior interesse acerca

    dos aspectos da traduo.

    O termo Traduo Intersemitica foi citado, primeiramente, por Roman Jakobson, no

    texto Aspectos Lingusticos da Traduo, publicado originalmente em 1959. Nesse texto,

    Jakobson discute as implicaes do processo de traduo, seja intralingual (interpretao de

  • 29

    signos verbais a partir de signos da mesma lngua), interlingual (interpretao de signos

    verbais por meio de outra lngua) e intersemitica (interpretao de signos verbais por meio

    de sistemas de signos no verbais). O linguista, entretanto, detm-se no desenvolvimento dos

    conceitos de traduo intralingual e interlingual.

    Em 1987, Julio Plaza traz a sistematizao das reflexes sobre a Traduo

    Intersemitica, que at ento no tinham tido lugar. Em seu estudo, Plaza discute, entre

    outros, o processamento da linguagem literria para o sistema cinematogrfico. Essa

    adequao do texto literrio para outro sistema semitico vista como uma espcie de

    intermediao entre o texto literrio e o espectador: ao transpor o texto, o tradutor assume, em

    relao ao espectador, o papel de decodificador. Essa intermediao o resultado da leitura de

    quem traduz o romance (ou conto, ou novela, ou crnica, ou poema...) para o audiovisual. ,

    assim, uma reescrita, uma interpretao, que permite outras leituras. Isso leva preferncia do

    termo traduo (ou transmutao), que passa a figurar no lugar de adaptao.

    Ao desenvolver a ideia da Traduo Intersemitica, Julio Plaza (2008) retoma a

    semitica de Charles Sanders Peirce, cujos princpios esto relacionados ao signo e sua

    transmutao para diferentes linguagens. Para Peirce (apud PLAZA, 2008), o processo de

    ao do signo condio essencial da linguagem. A prpria ao de pensar se d pela

    mediao dos signos, pois pensamos por intermdio deles. A partir da, observa-se que a

    traduo um processo de transmutao de signos em signos. assim que at o pensamento

    constitui uma traduo, uma vez que h um processo constante de transmutao entre os

    signos: ao pensar, traduzimos o que est presente em nossa conscincia (imagens,

    sentimentos, ideias). Consequentemente, um pensamento a traduo de outro pensamento. E

    este, por sua vez, um interpretante. A partir da reflexo de Peirce, Plaza define a traduo

    intersemitica como sendo a traduo entre diferentes sistemas de signos. Isso leva a

    considerar importantes as relaes entre os sentidos, meios e cdigos:

    [...] concebemos a Traduo Intersemitica como prtica crtico-criativa, como metacriao, como ao sobre estruturas e eventos, como dilogos de signos, como um outro nas diferenas, como sntese e re-escritura da histria. Quer dizer: como pensamento em signos, como trnsitos de sentidos, como transcriao de formas na historicidade. [...] desmistifica os meios, evidenciando a relatividade dos suportes e linguagens da histria e os contemporneos. Isto porque esses meios e linguagens inscrevem seus caracteres nos objetos imediatos dos signos, intensificando a historicidade,

  • 30

    tornando proeminente o trnsito intersensorial, a sensibilidade contempornea, a transculturao (PLAZA, 2008, p. 209).

    Na histria do cinema, a literatura foi frequentemente solicitada pela produo flmica.

    Romancistas, dramaturgos, contistas, enfim, diversos nomes da literatura universal, desde o

    princpio da arte flmica, estiveram presentes em seus enredos. Urban Gad (apud AUMONT,

    2008, p. 44) diz que o filme no seu ser ntimo est mais prximo [do romance ou do conto]

    do que do drama. Como seria de esperar, percorreu-se toda a literatura romanesca em busca

    de temas de filmes, e tudo que era apropriado, mesmo minimamente, foi utilizado. O cinema

    encontrou suas referncias na literatura, e a fico para televiso seguiu seus passos.

    As minissries e as telenovelas, desde o incio de sua produo, buscaram seus temas

    na literatura. Sandra Reimo (2004) desenvolve um estudo em que apresenta a recorrncia da

    produo da fico televisiva, a partir de textos literrios: e vemos, nesta pesquisa, que as

    primeiras telenovelas eram produzias a partir de textos de escritores consagrados da literatura

    brasileira e universal. De acordo com Reimo, Entre 1951 e 1963, enfocando as telenovelas

    no dirias veiculadas em So Paulo, tm-se 164 produes, sendo que cerca de 95 delas eram

    adaptaes literrias e, destas, dezesseis eram adaptaes de autores brasileiros (2004, p. 18).

    Os romances que se tornaram matriz para a produo teleficcional no Brasil pertencem a

    autores consagrados da literatura brasileira: Machado de Assis (Helena, Iai Garcia, A Mo

    e a Luva), Jos de Alencar (Diva, O Guarani, Senhora, O Tronco do Ip), Alusio de

    Azevedo (Casa de Penso), Dinah Silveira de Queiroz (A Muralha), Maria Jos Dupr

    (ramos Seis), Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela), rico Verssimo (Clarissa, Olhai

    os Lrios do Campo).

    Nas minissries produzidas pela Rede Globo de 1982 at 2012, percebe-se uma

    regularidade: a maioria delas resultado de transposio de textos literrios (das sessenta e

    cinco minissries produzidas desde 1982 at 2012, trinta e cinco so de textos literrios,

    superando as trinta e duas de roteiro original). Alm disso, h outro aspecto a considerar: das

  • 31

    obras fonte, vinte e sete so romances24. A maioria de escritores brasileiros consagrados.

    Desses romancistas, Jorge Amado foi o mais recorrente, cujas obras encenadas so: Tenda

    dos Milagres (1985); Tereza Batista (1990) e Dona Flor e seus dois maridos (1998).

    Nelson Rodrigues e rico Verssimo seguem com dois trabalhos: Meu destino pecar (1984)

    e Engraadinha (1995); e O Tempo e o Vento (1985) e Incidente em Antares (1994),

    respectivamente. Um exemplo que no pode ser deixado de citar o de Rubem Fonseca: suas

    obras foram escolhidas por emissoras diferentes, que resultaram tambm em trabalhos

    diferentes: Nau Catarineta (1978) na TV Cultura; Mandrake (1983), Agosto (1993)25,

    Lcia McCartney (1994) e A coleira do co (2001) na TV Globo, sendo que Mandrake,

    Lcia McCartney e A coleira do co tornaram-se episdios nicos e no minissrie26.

    Tambm no podemos deixar de apontar a participao de Maria Adelaide Amaral que

    adaptou dois textos seus para minissries: Queridos Amigos (2008), de seu livro Aos meus

    amigos; e Dercy de Verdade (2012), da biografia de Dercy Gonalves, Dercy de cabo a

    rabo.

    24 importante considerar que dessas obras literrias, somente uma delas era um livro de memrias:

    Anarquistas, graas a Deus (Zlia Gattai); uma fico reportagem: A mfia no Brasil (Edson Magalhes);

    duas peas teatrais: O pagador de promessas (Dias Gomes) e O Auto da Compadecida (Ariano Suassuna);

    uma b iografia Dercy de cabo a rabo (Maria Adelaide Amaral) e trinta vieram de romances. 25

    importante citar a contribuio da professora Mnica Korniz para os estudos de minissrie: no artigo Agosto

    e agostos: a h istria na mdia , publicado em 1994, em que ela examina como a minissrie Agosto foi capaz de

    recriar determinada conjuntura histrica do pas e transmit ir, a partir da perspectiva presente, o conhecimento

    sobre o passado. Em Uma histria do Brasil recente nas minissries da Rede Globo (2001), ela examina

    como o perodo de redemocratizao a partir de 1985 foi importante na seleo de temas da produo televisiva

    da poca (destaque para as sries profundamente inspiradas no fim do governo Vargas e na chamada era JK). Neste trabalho, a professora analisa as minissries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992). Em 2003,

    publicou o liv ro Mdia e poltica no Brasil: jornalis mo e fico, destacando a preocupao que a TV Globo tem,

    desde o incio dos anos 70, com a verossimilhana e o resgate histrico. Em 2006, a estudiosa lanou A Rede

    Globo e a construo da histria poltica brasileira, captulo do livro A democratizao no Brasil sobre a

    minissrie Decadncia (1995). O papel da programao telev isiva na realidade brasileira estudado em Fico

    televisiva e identidade nacional: o caso da Rede Globo (2007), que integra o livro Histria e cinema:

    dimenses histricas do audiovisual. No artigo, a pesquisadora aponta a importncia da teledramaturgia como

    elemento de integrao no Brasil. Informao disponvel em , acesso em 30 de abril

    de 2010. 26

    Sobre os contos de Rubem Fonseca traduzidos para a televiso, Rafaela Carrijo Rosendo Pinto apresenta uma

    dissertao de Mestrado, defendida no Programa de Ps -Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas

    da Universidade Federal da Bahia, em 2007, intitulada Contos na tela: uma anlise das adaptaes dos contos

    de Rubem Fonseca para a teledramaturgia. A dissertao trata da relao literatura-teledramaturgia a partir do

    aspecto criativo da adaptao, observando as conjunes e disjunes do processo de traduo, t endo como

    corpus de anlise os contos Mandrake, Lcia McCartney e A coleira do co.

  • 32

    A procura por autores estrangeiros menor. O escritor portugus Ea de Queirs

    constitui o destaque, duas vezes revisitado: O Primo Baslio (1988) e Os Maias (2001).

    Outro convocado foi o argentino Mempo Giardinelli, que teve a obra Luna Caliente

    resgatada e transformada em minissrie, em dezembro de 1999.

    A consagrao e o reconhecimento de uma obra pelo pblico e pela crtica

    oportunizam ao cinema e televiso a escolha dessas obras para que sejam levadas a outro

    meio pela adaptao. Grande parte dos textos transmutados pertence a autores consagrados e a

    perodos da literatura cujo reconhecimento inegvel. importante considerar que os mundos

    fantsticos criados pelo texto no caem do cu e nem so inspirados por anjos ou musas: o

    mundo criado pela literatura, por maior que seja seu simbolismo, nasce da experincia que o

    escritor tem de sua realidade histrica e social. A aproximao do texto com a realidade

    (poltico-econmico-social, cultural enfim) analisada no texto Dramatizaes da poltica

    na telenovela brasileira em que, ao apresentar um estudo sobre a poltica nas telenovelas

    brasileiras, Maria Helena Weber e Maria Carmem Jacob de Souza apontam que, no caso da

    poltica, a representao se faz a partir de trs modalidades:

    A primeira modalidade [...] considera a trama ficcional (tramas centrais e secundrias). A segunda modalidade explora as citaes estratgicas ou trechos que surgem pela via do silncio, agendamento, interveno e posicionamento, geralmente nas tramas secundrias. A terceira modalidade marca a repercusso que permite apontar as interfaces entre a encenao da poltica no texto audiovisual televisivo e as implicaes sociais, culturais , polticas e econmicas extratextuais (2009, p. 152-3).

    Essa reflexo das autoras sobre a poltica nas telenovelas nos leva a pensar na

    representao da realidade na fico, seja literria ou televisiva: a experincia imaginativa

    expressa na fico apresentar, em maior ou menor grau, aproximao do texto ficcional com

    a realidade (ou o histrico ou o poltico). Assim ocorre na literatura (de acordo com as

    escolhas estticas, com o perodo). O autor e o leitor, ao partir da criao do primeiro (autor) e

    da recriao do segundo (leitor), compartilham um universo correspondente a uma sntese -

    intuitiva ou racional, simblica ou realista - do aqui e agora da leitura. Mesmo que o aqui e

    agora do leitor no seja o mesmo que o aqui e agora do escritor.

  • 33

    A recorrncia literatura remete ao fato de que o mundo literrio o mundo do

    possvel na diegese do texto. O que realmente acontece matria da histria. O compromisso

    da literatura, portanto, com o mundo do possvel e no com o mundo do real. Mesmo assim,

    a criao literria nasce de uma imaginao que tem a realidade como referncia: aquilo de

    que ela trata tem sempre um fundo de verdade, pois o compromisso da literatura com um

    mundo possvel no abandona o projeto de fazer do presente seu ponto de partida ou de

    chegada (LAJOLO, 2001, p. 48).

    Embora haja uma predisposio de pesquisadores e espectadores anlise desse tipo

    de produto, apenas a partir do critrio de fidelidade ou de equivalncia, a adaptao (tambm

    chamada transmutao ou traduo) de obras literrias para o cinema ou para a televiso,

    constitui um processo criativo, potico e cultural complexo. Carlos Reis e Ana Cristina M.

    Lopes (2002, p. 405), quando apresentam uma reflexo acerca da traduo da literatura para a

    telenovela, defendem que

    Trata-se de relaes de transcodificaes entre a linguagem da telenovela e da narrativa literria. [...] no caso de adaptaes de romances para telenovela elas so muito mais notrias, implicando solues de recodificao sobretudo no que toca aos componentes do discurso; romances como Gabriela, cravo e canela de Jorge Amado ou Olhai os lrios do campo de Erico Verssimo so submetidos a profundas alteraes, solicitando uma verdadeira re-escrita. Nela o autor do guio, mantendo em princpio intocveis os vectores temtico-ideolgicos do romance e os fundamentais componentes da histria (personagens, espaos, tempo histrico), no pode deixar de ponderar e respeitar condicionamento que interferem na enunciao do relato: as exigncias e potencialidades da realizao televisiva, a dinmica de apresentao folhetinesca da telenovela, a interligao de vrias intrigas, etc. Reelaborado em funo desses condicionamentos, o romance feito telenovela adquire ento, no plano receptivo, uma imagem nova, por vezes consideravelmente distinta da imagem literria que o leitor construir [sic].

    Alm da imagem nova dada ao novo texto que surge a partir de um texto literrio,

    importante considerar que: a adaptao de um meio/texto para outro meio/texto tende a

    respeitar a linguagem ou gramtica ou sistema de signos no verbais prprios do texto/meio

    para o qual foi adaptado. E isso aplicado telenovela e tambm s minissries. O que o

    analista deve se perguntar para fazer a anlise da adaptao realizada qual a

    linguagem/gramtica do texto/meio minissrie que orientou essa adaptao? Em que medida o

  • 34

    texto matriz pode ser reconhecido em seu novo meio? O reconhecimento dado pelas

    personagens ou pelo enredo?

    Anglica Coutinho (2001) acredita na hiptese operatria da adaptologia: o mnimo

    vital inerente adaptao est na histria e no nos personagens, que podem ser mudados

    assim como suas funes. Para ela, o importante a analogia entre as obras e a existncia de

    uma funcionalidade dramtica da histria construda no novo formato. Esse ponto de vista de

    Coutinho importante no sentido de que, com o abrandamento da necessidade de se

    estabelecer fidelidade com o texto-fonte, o texto traduzido pode ser analisado como um texto

    que faz aluses a outro texto, que dialoga com o outro texto e o seu representante. Esses

    elementos j nos remetem ideia de intertextualidade, em que se procura entender como o

    texto audiovisual se relaciona com o texto literrio, dialogando-se entre si.

    A transposio de um signo esttico de um determinado meio para outro meio

    tecnolgico deve adaptar-se aos novos recursos normativos do suporte. Este novo suporte, por

    sua vez, declara e impe suas leis e acondiciona a mensagem, exigindo do tradutor uma viso

    crtica (PLAZA, 2008, p. 109). Recorro explicao de Anna Maria Balogh e Maria Cristina

    Palma Mungioli (2009) acerca da relao entre a obra matriz e a obra traduzida:

    [...] a traduo intersemitica ou transmutao pode se processar em diferentes graus, que vo desde a adaptao fiel, mais servil ao texto original, s mais distantes que trazem a rubrica baseadas em ou inspiradas em. Porm, em todos esses casos, a explicitao da relao entre texto original e obra adaptada constitui uma das formas de orientar a compreenso e a interpretao das obras transmutadas mediadas pela intertextualidade e/ou interdiscursividade que marcam de maneira indelvel os gneros televisuais (BALOGH; MUNGIOLI, p. 318).

    Diferenas na forma como se encaram as tradues levam a uma discusso tambm

    importante para os pesquisadores desse fenmeno: a relao existente entre o momento

    histrico e o processo de traduo. Ao adaptar um texto literrio, o tradutor utiliza

    tecnologias, suportes e linguagens para levar o que se imagina na escrita para o que se v no

    cinema ou na televiso. Proposio que indica ser necessrio associar a anlise da

    gramtica/linguagem especficas de cada meio/texto com a anlise dos procedimentos

    efetuados por profissionais especficos, que atuam em contextos especficos, no ato da

  • 35

    traduo. No caso do audiovisual, temos trs agentes fundamentais o roteirista, o diretor e o

    produtor.

    A interferncia sofrida pela traduo uma evidncia de que o contexto e o

    momento histrico no podem ser ignorados: importante considerar o momento em que o

    texto, objeto da traduo, foi elaborado, as implicaes e identificaes desse texto com o

    momento em que ser exibido pela televiso, quem o roteirista autor que ir transformar o

    texto literrio e qual diretor conduzir a realizao. Um depoimento de como a experincia do

    diretor orienta a sua prtica feito por Luiz Fernando Carvalho27, diretor responsvel pela

    minissrie Os Maias. Ele apresenta a perspectiva do diretor na experincia da traduo do

    romance quando dirigia o filme Lavoura Arcaica:

    Minha motivao no cinema a passagem de um estado a outro estado. A cada instante, preparar o espectador como um pintor escolhe e mistura suas cores, ou como um paj rene suas folhas para depois extrair delas um conjunto de sensaes. S passamos de um estado a outro se este conjunto de sensaes existir. S ultrapassamos a mera construo tcnica de um filme se formos capazes de pegar uma fabulao, um sonho, com tamanha fora de contaminar o escuro do cinema como uma peste. necessrio criar um estado de vidncia, de transformao, de imaginao. Filmar imaginar ao ponto de efetuar transformaes sem frmulas, sem modelos, sem clichs principalmente! Imaginar ao ponto de encontrar uma imagem tal que j no seja possvel distinguir-se criador da criao, o ator da personagem, o cinema da vida.

    Esses elementos, aparentemente normais ou simples, carregam todo um envolvimento

    contextual que no deve escapar ao analista. A traduo intersemitica no , portanto,

    somente a transferncia de personagens, de tramas ou espaos para outro meio, mas a

    construo de uma significao para o novo meio. No trabalho de Luiz Fernando Carvalho, as

    equivalncias entre as obras esto relacionadas fotografia da atmosfera reproduzida,

    fisionomia representada pelo carter das personagens, aos movimentos de cmera fazendo

    referncia ao ritmo narrativo advindo dos romances, msica que dialoga com as situaes do

    enredo.

    27

    Resposta de Luiz Fernando Carvalho enquete realizada pela revista Filme Cultura (ed.54) , disponvel em

    acesso em 22 de janeiro de 2012.

  • 36

    Para o diretor, adaptao seria conferida a ideia de transposio ou traduo como

    aconteceu nas suas minissries e no filme Lavoura Arcaica, no qual parte significativa da

    crtica identificou os trabalhos como uma traduo e considerou a busca de equivalncias bem

    sucedidas (XAVIER, 2003, p. 63). Todo esse cuidado diz respeito ao modo a provocar

    sentidos no espectador para lev- lo a interagir com a obra. A imagem, a msica e a palavra

    fazem parte do todo que o processo narrativo, graas a esses recursos que so empregados

    para expressar e recriar os romances do autor escolhido, possvel escapar da mera ilustrao

    do texto literrio (SALAZAR, 2008, p. 82). E quando falamos em minissries para TV, essa

    construo se d a partir de modos peculiares ao meio em questo: um deles a serializao,

    que busca modos de contar histrias vinculadas aos modos de cativar o espectador.

    A estratgia da serializao organiza e compe a forma de apresentao do enredo, a

    forma de entrelaamento dos conflitos, a construo das personagens, a constituio do

    espao e a definio do tempo, os mecanismos de suspenso de sentido para que possa

    enredar cada captulo, a composio da trilha sonora, enfim, so alguns artifcios com que o

    roteirista - em parceria com o diretor e inmeros outros especialistas - deve se preocupar.

    Alm disso, o ncleo central necessitar de sustentao suficiente para receber as tramas

    secundrias, sem perder a capacidade de enredar, de articular fragmentos de histrias

    distribudos pelos captulos: o preenchimento de cada minuto visto pelo telespectador dever

    ter a fora e a energia para despertar- lhe o interesse de continuar a perseguir as estrias.

    A adaptao ou a traduo intersemitica pode levar, ainda, ao que se chama salto

    qualitativo, do ponto de vista do mercado, ao incidir no aumento das vendas e pode

    constituir-se numa produo com atributos de valor maiores que a obra matriz. Entre as

    minissries brasileiras, h o exemplo de A Casa das Sete Mulheres (2003): produzida pela

    Rede Globo, a partir do romance homnimo de Letcia Wierzchowski, teve o roteiro de Maria

    Adelaide Amaral e Walther Negro e direo de Jayme Monjardim. O livro foi lanado em

    abril de 2002, tinham sido vendidos, at a estreia da minissrie, treze mil exemplares. Aps

    chegar TV, ultrapassaram os trinta mil em trs semanas. Alm do sucesso de vendas do livro

    e de outros livros sobre o assunto, a minissrie, que obedeceu classificao de livremente

    adaptada do romance da escritora gacha, recebeu o prmio da Associao Paulista de

    Crticos de Arte com o Grande Prmio da Crtica, tendo sido considerada, pela crtica, como

    uma obra que conseguiu salto qualitativo, em relao ao texto matriz: foram utilizados na

  • 37

    elaborao do roteiro da minissrie o texto de Letcia Wierzchowski, o conto A Salamanca

    do Jarau, de Simes Lopes Neto e fatos histricos.

    1.1.2 A Intertextualidade na Adaptao

    A noo de intertextualidade tem origem na obra de Julia Kristeva, na dcada de 1960,

    que retoma a noo de dialogismo, presente em M. Bakhtin, para falar da confluncia de

    textos (de diversas origens: sociais, artsticas, culturais, polticas, histricas, etc.) que se

    organizam no interior de cada texto em particular. Buscando discutir as diversas relaes

    entre um texto e os outros que o compem, Grard Genette desenvolve a ideia de palimpsesto.

    Bakhtin identifica duas concepes diferentes do principio dialgico: a do dilogo

    entre interlocutores e a do dilogo entre discursos. Esse terico compreende que, nas cincias

    humanas, tanto o objeto quanto o mtodo so dialgicos. Na condio de objeto, o texto

    artefato de significao (o texto significa), produto de uma enunciao feita em um

    determinado contexto scio-histrico e dialgico, uma vez que se define pelo dilogo entre os

    interlocutores e, tambm, pelo dilogo entre outros textos.

    Em face disso, o discurso no individual. Ele se constri entre, pelo menos, dois

    interlocutores, por sua vez, seres sociais. No individual tambm por causa de suas relaes

    com outros discursos. Enfim, a linguagem , por constituio, dialgica. Embora s vezes

    empregados como vocbulos sinnimos, dialogismo e polifonia no representam o mesmo

    fenmeno: dialogismo o princpio constitutivo da linguagem e do discurso; polifonia refere-

    se aos textos nos quais o dialogismo se deixa ver. Nos textos polifnicos, so percebidas

    muitas vozes, o que faz oposio aos textos monofnicos, que dissimulam os dilogos que os

    constituem. O dilogo condio da linguagem e do discurso. No entanto, h textos

    monofnicos e polifnicos, em harmonia com as estratgias discursivas empregadas.

    Os textos polifnicos so, enfim, aqueles nos quais os dilogos entre discursos ficam

    patentes. Nos textos monofnicos, ao contrrio, esses dilogos no se deixam perceber: esto

    ocultos sob a configurao de discurso nico, de uma voz que ecoa isoladamente. Logo, no

    difcil perceber que monofonia e polifonia so efeitos de sentido, resultantes de

    procedimentos discursivos.

  • 38

    Robert Stam (2008) pontuar elementos que ligam os processos de transposio

    (chamada de adaptao por ele) ao dialogismo e intertextualidade:

    A teoria da adaptao dispe de um rico universo de termos e tropos traduo, realizao, leitura, crtica, dialogizao, canibalizao, transmutao, transfigurao, encarnao, transmogrificao, transcodificao, desempenho, significao, reescrita, detournement que trazem luz uma diferente dimenso de adaptao. O tropo da adaptao como uma leitura do romance-fonte, inevitavelmente parcial, pessoal, conjuntural, por exemplo, sugere que, da mesma forma que qualquer texto literrio pode gerar uma infinidade de leituras, assim tambm qualquer romance pode gerar uma srie de adaptaes. Dessa forma, uma adaptao no tanto a ressuscitao de uma palavra original, mas uma volta num processo dialgico em andamento. O dialogismo intertextual, portanto, auxilia-nos a transcender as aporias da fidelidade (STAM, 2008, p. 21).

    A traduo de um texto em outro texto, de um meio para outro meio, constitui-se na

    elaborao de um novo texto para um novo propsito. Assim, a passagem do texto literrio

    para o audiovisual tende a determinar novos sentidos ao texto, novas interpretaes. Ao

    considerar que o processo na traduo intersemitica uma leitura dos criadores do cinema

    ou do texto televisivo sobre o texto fonte, considera-se tambm que a aproximao e o

    distanciamento entre os textos podero ocorrer em gradaes diferentes e estabelecendo

    dilogos. quando a obra recebe a classificao de adaptada de... ou inspirada em... ou

    baseadas em....

    Ao analisar a recorrncia literatura de Camilo Castelo Branco e Agustina Bessa Luiz

    pelo cineasta portugus Manuel de Oliveira, Maria do Rosrio Luppi Bello (2001) aponta

    elementos importantes para o entendimento da leitura de textos literrios para o cinema e que

    podem ser aplicados televiso:

    De facto, atravs da heterogeneidade da matria de expresso cinematogrfica (constituda pela imagem em movimento, pelo som, pela msica e pela palavra, ordenados segundo os princpios da montagem), representada, nos filmes, uma particular viso do mundo operada pela assimilao e reinterpretao da gramtica e da matria de expresso do texto verbal. Tal processo evidencia-se atravs de um conjunto de operaes (sintetizadas por Sara Cortellazzo e Dario Tomasi