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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ENTRE FERRAMENTAS E PRESENTES: UMA REFLEXÃO SOBRE AS
MASCULINIDADES NO BLOG DE DECORAÇÃO HOMENS DA CASA
Lindsay Jemima Cresto/UTFPR1
Marinês Ribeiro dos Santos/UTFPR2
Resumo No presente texto procuramos discutir a relação entre materialidades e representações de
gênero a partir das publicações do blog de decoração Homens da Casa. Criado em 2012 pelo
publicitário Eduardo Mendes, o blog compartilha dicas de decoração baseadas no conceito do it
yourself (DIY). Com uma abordagem que pretende ser bem-humorada e informal, o Homens da
Casa articula seu conteúdo com discursos sobre gênero, visando a proposição de uma forma de
decorar apresentada como masculina. Alguns aspectos referentes às representações de
masculinidades veiculadas no blog são problematizados a partir de sugestões de presentes para o dia
dos pais. Tais sugestões associam objetos como caixas de ferramentas e produtos relacionados ao
consumo de bebidas alcóolicas com as masculinidades. Sendo assim, propomos uma análise desses
artefatos como próteses de gênero, com base em Paul Beatriz Preciado. O conceito de prótese de
gênero permite discutir como as representações de masculinidades são constantemente reiteradas e
legitimadas por meio das materialidades. Essas representações estabelecem marcos de visibilidade
para certas atividades e comportamentos, funcionando como normas ou códigos de masculinidades.
Esses códigos legitimam discursos e operam na afirmação de diferenças que privilegiam hierarquias
entre atividades e práticas, resultando em visões desiguais sobre masculinidades e feminilidades na
sociedade.
Palavras-chave: Decoração. Homens da Casa. Masculinidades. Próteses de gênero. Cultura
material.
Introdução
Este artigo busca discutir como as sugestões de presentes para os pais, publicadas no blog de
decoração Homens da Casa, podem ser pensadas como próteses de gênero, baseado em conceito de
Paul Beatriz Preciado (2002). O Homens da Casa é objeto de estudo de uma tese de doutorado em
desenvolvimento que investiga a decoração masculina proposta pelo blog a partir do estudo das
articulações entre cultura material e tecnologia de gênero.
O blog de decoração Homens da Casa foi criado em 2012 pelo publicitário Eduardo
Mendes, com o objetivo de “falar de decoração de um jeito prático e sem muita firulas” (Homens da
Casa, 2015). De acordo com o proprietário, a criação do blog foi motivada pela mudança de
apartamento e o desejo de encontrar referências para a decoração do seu espaço com uma “visão
diferente” das sugestões que encontrou nos blogs de decoração na época:
1 UTFPR, Curitiba, Brasil. 2 UTFPR, Curitiba, Brasil.
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Em busca de referências pela internet, descobri o monopólio feminino nos blogs e apesar de
encontrar várias referências, senti falta de um espaço com uma visão diferente sobre
decoração. O blog tem uma visão própria sobre decoração e tento aqui, repassar o que eu
tenho aprendido e o que eu gosto através de conteúdo realizável, onde quem ler consiga
perceber sua capacidade de realizar também. Enxergo no blog um espaço pra falar
diretamente com cada leitor, numa conversa informal e divertida, sem amarras ou
linguagens técnicas. Acredito que decoração não tem sexo e sim, personalidade. Por isso, o
Homens da Casa é um espaço universal sob um visão particular (HOMENS DA CASA,
2012).
A afirmação de que a “decoração não tem sexo e sim personalidade” é um argumento que
chama atenção para a atividade da decoração a partir de uma perspectiva de gênero e foi uma das
razões para a escolha deste blog na pesquisa de doutorado. O Homens da Casa segue se destacando
como um dos raros blogs de decoração criado e mantido por um homem, que trata especificamente
da decoração, voltado para um público masculino. O blog pode ser pensado como uma “casa dos
homens”, de acordo com Daniel Welzer-Lang (2001), que define este conceito como um conjunto
de lugares e espaços nos quais os homens se reúnem e aprendem a se diferenciar do mundo das
mulheres e das crianças. O Homens da Casa é um espaço no qual os participantes (homens) podem
ficar à vontade para discutir decoração, sob um novo enfoque que permite um diálogo entre os
membros sem os julgamentos quanto à masculinidade.
Idealizado para atender a um público presumido como masculino, o blog compartilha dicas
de decoração com ênfase no conceito do it yourself (faça você mesmo). Eduardo Mendes tem a
intenção de promover a decoração dos interiores domésticos como um hobby acessível a um
público que não possui conhecimentos sobre design de interiores, mas que se interessa pelas
práticas de personalização. Os projetos são publicados no blog com várias imagens e/ou vídeos
explicando as etapas de execução no formato passo a passo, com lista de ferramentas e materiais
necessários. O “Faça você mesmo” é proposto no Homens da Casa como sinônimo de
personalização na decoração e também como prática que permite a expressão da personalidade do/a
morador/a no espaço doméstico.
O conceito “faça você mesmo” surgiu nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, no
cenário de escassez de materiais e produtos, que motivou uma atitude de reutilização de tecidos e
peças de roupa: “autoridades americanas e europeias aconselhavam as mulheres a aproveitarem o
material disponível em casa, transformando cortinas em vestidos, lenços em bolsas” (AZZI, 2012).
No contexto do pós-guerra das décadas de 1960 e 1970, o “faça você mesmo” também é sugerido
em revistas de decoração brasileiras, como solução relacionada à praticidade e economia. Algumas
publicações mais populares ensinavam como fazer desde suportes de vasos de plantas até peças de
mobiliário. Segundo Marinês Ribeiro dos Santos (2010), nas publicações da revista Casa & Jardim
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muitas vezes o espaço doméstico era apresentado em termos de esferas separadas de atuação para
homens e mulheres. Como o lar era associado sobretudo às feminilidades, a figura masculina era
relacionada a alguns tipos específicos de trabalho doméstico:
Como sugeriam as matérias do tipo “faça você mesmo” referentes à marcenaria, de
um modo geral, eram voltadas para os homens. Por exemplo, em “Para nossa
petizada” o pai de família é convidado a presentear os filhos com um brinquedo de
madeira feito por ele mesmo. A figura paterna também é evocada em “Papai aos
domingos constrói uma estante”. Em 1957, o esquema para confeccionar uma
tábua de passar roupas é ilustrado com fotografias que mostram um homem lidando
com os equipamentos necessários para beneficiar a madeira. Enquanto ele comanda
o serviço, uma mulher, representando a esposa, o auxilia em tarefas como a pintura
e a forração da tábua com tecido (SANTOS, 2010, p.93)
Nos anos 1970 a proposta “Faça você mesmo” é adotada pelo movimento punk, com caráter
anticapitalista e anticonsumista, que defendia a responsabilidade individual pelas escolhas de
consumo, desde alimentação, música, roupas, etc.
O conceito “faça você mesmo” ganhou visibilidade no Brasil nos últimos dez anos, fazendo
parte de sugestões de programas de decoração, revistas especializadas e blogs e tem sido adotado
como estratégia ligada ao consumo e ao apelo à personalização. O “faça você mesmo” é adotado no
Homens da Casa como prática que possibilita a personalização de objetos e interiores domésticos,
pois a representação de identidades por meio da decoração é um dos principais argumentos do
proprietário do blog. O “faça você mesmo” é entendido como atividade de personalização e
expressão individual através da decoração, como afirma o proprietário do blog:
Sua casa é seu espaço e tem que ter a sua cara. O faça-você-mesmo não serve só pra
economizar, é uma terapia. Se não tem habilidade, mas tem grana, compre tudo, foda-se,
tanto faz. Mas preste muita atenção: ENVOLVA-SE! É o seu canto! Decore, enfeite, pinte,
borde. Qualquer um é capaz de coisas incríveis, INCLUSIVE VOCÊ! (HOMENS DA
CASA, 2014)
Nesta perspectiva, o blog Homens da Casa configura-se como uma tecnologia de gênero,
propondo modelos de masculinidade baseados em signos visuais, artefatos, comportamentos e
práticas. A decoração masculina é representada no blog por certos estilos decorativos, padrões
cromáticos, estampas e também nas atividades que são temas das publicações: a preferência
“natural” pelas ferramentas e a valorização das habilidades com reparos domésticos, a sociabilidade
baseada no consumo de álcool e a atividade de cozinhar como uma tarefa não cotidiana ou como
um hobby.
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O conceito de tecnologia de gênero de Paul Beatriz Preciado foi baseado nos estudos de
Teresa De Lauretis (1994), pra quem a construção do gênero é tanto o produto quanto o processo da
representação e de sua auto representação. Teresa De Lauretis (1994, p. 225) define auto
representação como as possibilidades que alguém tem de se identificar com certos discursos e não
com outros, com o “investimento” em determinadas posições de sujeito que é “algo entre um
comprometimento emocional e um interesse investido no poder relativo (satisfação, recompensa,
vantagem) que tal posição promete (mas não necessariamente garante)”. Segundo a autora, esse
processo de identificação com certos discursos e posições de sujeito é o processo de construção do
gênero:
A construção do gênero ocorre hoje através das várias tecnologias do gênero (p. ex., o
cinema) e discursos institucionais (p. ex., a teoria) com poder de controlar o campo do
significado social e assim produzir, promover e “implantar” representações de gênero. Mas
os termos para uma construção diferente do gênero também existem, nas margens dos
discursos hegemônicos (DE LAURETIS, 1994, p. 228)
Por se tratar de um tipo de mídia que promove e reforça certos ideais de masculinidade, o
blog atua na mediação da construção de significados e valores quanto às relações de gênero junto ao
público leitor. Para Paul Beatriz Preciado (2008, p.83) o gênero é o “efeito de um sistema de
significação, de modos de produção e decodificação de signos visuais e textuais politicamente
regulados”. O Homens da Casa atua como uma tecnologia de gênero enquanto promove como
posições de investimento, como modelos de masculinidade, ao mesmo tempo em que dialoga com
um sistema mais amplo de representação das masculinidades em circulação na sociedade.
A masculinidade que não envelhece: o “homem da casa” com a “mão na massa”
Selecionamos para análise e discussão sobre próteses de gênero as postagens que tratam de
sugestões de presentes para o dia dos pais, publicadas nas seções Faça você mesmo e Inspiração,
entre 2014 e 2016. As publicações “Dia dos pais com a mão na massa”, “ Dicas de presentes para o
dia dos pais” e “5 Dicas de presentes DIY para o dia dos pais” colocam em evidência
representações de masculinidade associadas com determinadas atividades, preferências e objetos,
construindo, assim, discursos sobre paternidade a partir dessas representações.
Na publicação “Dia dos pais com a mão na massa”, merecem destaque nas representações
associadas ao tipo de masculinidade classificada como: o “homem da casa” ou o “faz tudo”. Essa
publicação de 2014 inicia com uma fotografia em preto e branco de um homem segurando um
martelo que parece estar montando um brinquedo de madeira, ao lado de um menino fazendo
careta para câmera (figura 1).
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Figura 1. Imagem que abre a publicação “Dia dos pais
com a mão na massa”. Fonte: Homens da Casa, 2014.
A fotografia pode ser lida como um retrato da experiência da masculinidade compartilhada
entre pai e filho, mediada pelos objetos e atividades. Na cena, o suposto pai está montando um
brinquedo (carrinho de bombeiro) para o menino, com o auxílio de ferramentas, manual do
brinquedo e cola. O proprietário do blog comenta a relação entre pai e filho em um trecho da
publicação: “acho que ao invés de focar só no presente, o melhor é investir nessa
relação. Então, que tal, nesse dia dos pais, você tirar um tempo pra curtir com seu
velho e criar algo juntos?” (Homens da Casa, 2014). A imagem dialoga com o texto do
proprietário do blog, conferindo destaque às atividades e ao tempo em que pai e filho
passam juntos. Essa cumplicidade, cabe notar, é mediada pelos objetos representados na cena e
que são semelhantes aos objetos e produtos sugeridos como presentes. O proprietário do blog
defende a participação em atividades que envolvam pais e filhos: “tudo sempre fica melhor se
você participar. Sua companhia também é um excelente presente. Bora botar a mão na
massa então?” (Homens da Casa, 2014). No discurso do proprietário do blog, os
artefatos são tratados como “facilitadores” da convivência e da cumplicidade entre
pais e filhos.
O proprietário do blog continua a associar comportamentos com objetos/presentes: “Tá
faltando ferramentas? Isso não é problema, ao invés de dar aquele conjunto de lenço e
meia horroroso, você pode dar pra ele um conjunto de ferramentas ou algum
equipamento pra ele tirar onda de faz tudo” (Homens da Casa, 2014).
O interesse por ferramentas é tratado como “natural” e “passado de pai para filho” no
Homens da Casa. É neste contexto de discursos sobre comportamentos e atividades que a
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experiência e as práticas significantes da masculinidade são construídas, reforçadas e
compartilhadas. A construção da masculinidade é um projeto “tanto individual quanto coletivo”
(Connel, 1995, p. 191) que envolve instituições, família, sociedade, no qual cada cultura possui
definições de condutas e sentimentos classificados como apropriados aos homens, em favor de uma
conformidade. As masculinidades podem ser entendidas como “configurações de práticas que são
realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero
em um cenário social particular”(Connel; Messerschmidt, 2013, p.250). Para Raewyn Connel, o
conceito de masculinidade é mais amplo do que a ideia de papel masculino, pois abrange múltiplas
formas de masculinidades:
a masculinidade é uma configuração de prática em torno da posição dos homens na
estrutura das relações de gênero. Existe, normalmente, mais de uma configuração
desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade. Em reconhecimento
desse fato, tem-se tornado comum falar de “masculinidades”(CONNEL, 1995,
p.188).
Atividades que envolvem conhecimentos técnicos, uso de ferramentas e equipamentos
tecnológicos costumam ser atribuídas aos homens, ainda hoje, criando uma narrativa convencional
que “adota uma das formas de masculinidade para definir a masculinidade em geral”(CONNEL,
(1995, p. 190). Essa narrativa convencional ganha força como uma masculinidade hegemônica, que
se diferencia de outras masculinidades porque se assume como normativa:
A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido estatístico; apenas uma
minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma
mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em
relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens.
(CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245)
O caráter normativo da masculinidade tida como hegemônica possibilita compreender como
a associação entre as masculinidades e ferramentas/instrumentos técnicos e tecnológicos é
empregada nas mídias e constantemente atualizada como preferência ou comportamentos esperados
dos homens. As masculinidades do “homem da casa” e do “faz tudo” são posições de sujeito
normativas, pois mesmo que muitos homens não se reconheçam nessas representações, elas servem
como prática discursiva muito eficaz. Tais representações de gênero influenciam e reafirmam
valores, comportamentos e posturas que, embora também sejam criticados e rejeitados, constituem
uma forma de reconhecimento e identificação de gênero.
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Figura 2. Os presentes sugeridos na publicação “Dia dos pais
com a mão na massa”. Fonte: Homens da Casa, 2014.
O “homem da casa” e o “faz tudo” se constituem na e pela relação com as ferramentas e
instrumentos técnicos que utilizam e essas ferramentas são produzidas pensando-se nos usos e
aplicações por esses sujeitos, estabelecendo uma interação entre técnica, tecnologia, corpos e
atividades/saberes. Preciado (2001, p.158) afirma que seu interesse é “precisamente essa relação
promíscua entre a tecnologia e os corpos. Trata-se, então, de estudar de que modos específicos a
tecnologia “incorporada” ou, dito de outra forma, “se faz corpo”. Desta maneira, as masculinidades
não são naturais como supostamente se apresentam; são construídas e moldadas pelas
materialidades. Preciado faz uma crítica às abordagens baseadas na oposição entre natureza e
tecnologia, mostrando que a defesa de um conceito de natureza como oposta à tecnologia possui
sérias e implicações e contribui para a manutenção das desigualdades e hierarquias relacionadas ao
gênero:
O problema dessa abordagem é que ela considera a tecnologia como aquilo que modifica
uma natureza dada, ao invés de pensar a tecnologia como a produção mesma dessa
natureza. Talvez o maior esforço das tecnologias do gênero não tenha sido a transformação
das mulheres, e sim a fixação orgânica de certas diferenças. Chamei esse processo de
fixação de “produção prostética do gênero”(PRECIADO, 2008, p.154)
A produção prostética de gênero é um processo complexo de fixação de diferenças, que
permite compreender como diferenças servem como justificativas para dar forma aos artefatos e
classifica-los de acordo com divisões binárias, assim como atividades, comportamentos e usos.
Neste sentido, é importante questionar quais seriam as diferenças em disputa quando se trata do
espaço doméstico. Quais seriam as habilidades “naturais” femininas? Enquanto o “homem da casa”
monta, conserta e realiza reparos, a “dona de casa”, a feminilidade equivalente, se ocupa das tarefas
domésticas em geral e do cuidado com as crianças e os idosos.
Ao comparar as atribuições e atividades listadas nas sugestões de presentes para os pais,
percebemos que o espaço doméstico é um local de participação limitada para os homens. Esse
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espaço é tratado como o lugar do descanso e do hobby, não do trabalho. As masculinidades do
“homem da casa” e do ”faz tudo” parecem antiquadas e “datadas”, embora sejam tratadas como
“naturais” e constantemente atualizadas.
A masculinidade “gourmet”: entre receitas e drinks
Em outra postagem, intitulada “Dicas de presentes para o dia dos pais”, publicada em agosto
de 2016, o proprietário do blog fornece dicas de presentes para os pais como se estivesse em um
programa de culinária preparando uma receita: “hoje vou te ensinar uma receita pra fazer
aquela média com o velho no almoço ou jantar. Vamo fazer assim então: você finge
que tá na minha copa e, enquanto eu cozinho, a gente bate um papo e ainda te dou
umas dicas de presentes para o Dia dos Pais. Fechado?” (Homens da Casa, 2016).
Figura 3. Os utensílios sugeridos: moedor de tempero “para temperar” e saca -
rolhas “abre -te vinho”.
A publicação com a receita do espaguete à carbonara, “moleza pra fazer”, segundo o
proprietário do blog, segue o formato passo a passo, com imagens do preparo do prato, dos
ingredientes e o texto. Em meio à receita, o proprietário do blog lista suas dicas de presentes de
modo semelhante ao feito por anunciantes de produtos em programas de culinária. As sugestões -
um saca rolhas automático, um decanter para vinho e um moedor de temperos automático (figura 3)
- são itens patrocinados por uma marca de utensílios citada na publicação, configuradas em uma
linguagem de design contemporânea. Os produtos são na cor preta e sem detalhes decorativos,
embora possuam nomes bem humorados que exploram a ideia de “praticidade na cozinha”, tais
como o moedor “para temperar” e o saca rolhas “abre-te vinho”.
Nesta publicação, tanto o espaguete à carbonara como o vinho que o acompanha
são pretextos publicitários para apresentar os produtos/utensílios sugeridos como
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presentes. A forma escolhida para serem apresentados chama a atenção, pois propõe
uma ligação com o formato dos programas de culinária veiculados pela televisão
aberta e por assinatura. Os utensílios aparecem destacados demais e parecem
necessários para a elaboração da receita, de acordo com o texto do proprietário do
blog. Os utensílios listados funcionam como complement os que melhoram a
experiência de cozinhar.
A noção de masculinidade técnica/racional está presente nas publicações do
blog. As experiências de cozinhar, preparar o prato, servir o vinho têm como base uma
narrativa sobre eficiência, praticidade e tecnologia nos objetos sugeridos: o saca
rolhas automático que “é só apertar o botão e ele faz o serviço todo”(Homens da Casa,
2016), do decanter que “faz a maior presença e seu pai vai tirar onda com as
visitas”(Homens da Casa, 2016) e do moedor de temperos. Cozinhar é uma atividade
racional, ao mesmo tempo em que se mostra um hobby divertido para compartilhar
com o pai, de acordo com a publicação. A cozinha é o espaço da racionalidade e da
tecnologia, porém não do trabalho.
Outra sugestão de presente nesta publicação é o kit de shot vira garrafa (figura
4) um conjunto de pequenos copos usados para doses de tequila, cachaça e outras
bebidas destiladas. Na publicação, os copos são usados para armazenar os ingredientes
da receita de espaguete à carbonara , mas o proprietário do blog afirma que é uma boa
sugestão de presente “praquele pai que adora uma rodada de biritas com os amigos”
(Homens da Casa, 2016)
Figura 4. Imagem que abre a publicação Espaguete à carbonara.
Fonte: Homens da Casa, 2016.
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Na publicação “5 Dicas de presentes DIY para o dia dos pais” (2016), as
sugestões que envolvem a socialização e o consumo de álcool se repetem: projeto no
estilo “faça você mesmo” de uma adega feita de PVC e de porta copos de cortiça com
formato geométrico (figura 5). A “adega descolada” é sugerida pelo proprietário do
blog para os pais que não são muito habilidosos na cozinha, mas gostam de vinhos. Já
o porta copos de cortiça é uma dica para o “paizão que gosta de praticidade na hora de
receber os brothers em casa” (Homens da Casa, 2016). A socialização com o consumo
de álcool é naturalizada mais uma vez nesta publicação, reforçando associações entre
o consumo de bebidas e as masculinidades, assim como o caráter de encontro que o
consumo do produto proporciona.
Figura 5. Sugestões de presentes: adega de PVC e porta
copos de cortiça. Fonte: Homens da Casa, 2016.
Considerações
Compreender como discursos são atualizados por meio das materialidades contribui para
uma reflexão crítica sobre as representações de masculinidade e os efeitos que essas estratégias de
representação têm sobre a naturalização de atividades, conhecimentos e visões de mundo. As
paternidades idealizadas pelo Homens da Casa reforçam a associação considerada “natural” entre as
masculinidades e as ferramentas e utensílios técnicos, assim como a associação entre socialização
masculina e o consumo de álcool. As representações de paternidade nas publicações analisadas
convidam a questionar tipos de masculinidades que parecem antiquados para o contexto
contemporâneo, como o “faz tudo” e o “homem da casa”, porém são atualizados e apresentados
como “naturais”. Deste modo, o conceito de prótese de gênero permite questionar a construção do
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gênero a partir de discursos que buscam fixar e naturalizar as diferenças. Para Paul Beatriz Preciado
(2002, p. 29) o “mecanismo de produção sexo-prostético que confere aos gêneros feminino e
masculino seu caráter sexual-real-natural”, aquilo que é invocado como “natural e real”, não existe;
é também produto de tecnologias sociais. Os presentes sugeridos para os pais destacam a importante
relação entre as masculinidades e as materialidades, reforçando o papel da tecnologia de gênero na
crítica às normas e códigos apresentados como “naturais” e que atualizam diferenças e
desigualdades.
Referências
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Disponível em: <http://modamodamoda.com.br/diy-a-origem-cultural-do-faca-voce-mesmo/>
Acesso em: 08 setembro de 2014.
CONNEL, Raewyn Políticas da masculinidade. In: Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, n.
2, jul./dez. 1995, p. 185-206.
CONNELL, Raewyn; MESSERSCHMIDT, James W.. Masculinidade hegemônica: repensando o
conceito. Estudos Feministas, vol. 21, n.1, 2013, p. 241-282.
HOMENS DA CASA. Faça você mesmo. Inspiração. Dia dos pais com a mão na massa.
28/07/2014. Disponível em: < http://homensdacasa.net/dia-dos-pais-com-mao-na-massa/> Acesso
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04/08/2016.Disponível em:< http://homensdacasa.net/dicas-de-presentes-para-o-dia-dos-pais-2/>
Acesso em: 12 novembro de 2016.
HOMENS DA CASA. Faça você mesmo. Inspiração. Dicas de presentes para o dia dos pais.
25/07/2016. Disponível em: < http://homensdacasa.net/dicas-de-presentes-para-o-dia-dos-pais/>
Acesso em: 12 novembro de 2016.
LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In: HOLLANDA,
Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
1994. p. 206-242.
PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Yonqui. Espanha, Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2008.
12
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
. Pornotopía: arquitectura y sexualidad em “Playboy” durante la guerra
fría. Barcelona: Editorial Anagrama, 2010, p. 87-104.
. Manifiesto contrassexual: prácticas subversivas de identidad sexual.
Madrid: Editorial Opera Prima, 2002.
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O Design Pop no Brasil dos anos 1970: Domesticidades e
Relações de Gênero na Revista Casa & Jardim. 2010. 312 f. Tese (Doutorado Interdisciplinar em
Ciências Humanas) – DICH/Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.
WELZER-LANG, Daniel. A construção do Masculino: dominação das mulheres e homofobia. In:
Revista Estudos Feministas. N. 2, vol. 9. Florianópolis: UFSC, 2001, p. 460-482.
Between tools and gifts: a reflection/ponderation about masculinities in decoration blog Men
of the house In these text we search to discuss the relation between materialities and gender representations from
the publications of decoration blog Men of the house. Created in 2012 by adman Eduardo Mendes,
the blog shares hints about interior design based on do it yourself (DIY) concept. With an approach
that intends to be good-tempered and informal, the Men of the house articulates its subject with
discourses about gender, looking for a proposal of a style decoration presented as masculine. Some
aspects relatives to representations of masculinities that are propagated in blog are problematized
from gifts’ suggestions for father’s day. These suggestions associate objects like toolboxes and
products related to alcohol consumption with masculinities. In such case, we propose a
investigation of these artifacts as gender prosthesis, based in the work of Paul Beatriz Preciado.
The concept of gender prosthesis allow us to discuss how the representations of masculinities are
constantly repeated and justified by means of materialities. These representations set up boundaries
of visibilities for certain activities and behaviors, functioning as regimes or codes of masculinties.
These codes authorize discourses and operate on claim by diferences that privilege hierarchies
between activities and practices, resulting in unequal views on masculinities and femininities in
society.
Keywords: interior decoration; Men of the house; masculinities; gender prosthesis; material culture.