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Ensaio sobre Dworkin * traduzido por Patrícia Sampaio * * Ronald Dworkin é atualmente o sucessor de Hart em sua cátedra da Universidade de Oxford e um dos principais representantes da filosofia jurídica anglo-saxônica. O livro que se apresenta aos leitores de língua castelhana ( N. do T. Derechos en Serio) está formado por um conjunto de artigos escritos na última década. Crítico implacável e rigoroso das escolas positivistas e utilitaristas, Dworkin - baseando-se na filosofia de Rawls e nos princípios do liberalismo individualista - pretende construir uma teoria geral do direito que não exclua nem o argumento moral nem o argumento filosófico. Neste sentido, Dworkin é o antiBentham, considerando que uma teoria geral do direito não deve separar a ciência descritiva do direito da política jurídica. Por outra parte - e também frente a Bentham, que considerava que a idéia dos direitos naturais era um disparate - propõe uma teoria baseada nos direitos individuais, o que significa que sem direitos individuais não existe “o Direito”. A obra de Dworkin originou uma polêmica muito importante que transcendeu os círculos acadêmicos. As teses de Dworkin têm obtido mais detratores que seguidores. Um leitor imparcial se encontrará com o paradoxo de que seus críticos lhe tenham dedicado tanta atenção e, entretanto - caso se atente ao conteúdo de suas críticas -, sustentem que não vale a pena levá-lo a sério i [i]. É muito possível que o paradoxo seja mais aparente que real porque a * * 1

Ensaio Sobre Dworkin

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Ensaio sobre Ronald Dworkin

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Page 1: Ensaio Sobre Dworkin

Ensaio sobre Dworkin*

traduzido por Patrícia Sampaio **

Ronald Dworkin é atualmente o sucessor de Hart em sua cátedra da Universidade

de Oxford e um dos principais representantes da filosofia jurídica anglo-saxônica. O livro

que se apresenta aos leitores de língua castelhana ( N. do T. Derechos en Serio) está

formado por um conjunto de artigos escritos na última década.

Crítico implacável e rigoroso das escolas positivistas e utilitaristas, Dworkin -

baseando-se na filosofia de Rawls e nos princípios do liberalismo individualista - pretende

construir uma teoria geral do direito que não exclua nem o argumento moral nem o

argumento filosófico. Neste sentido, Dworkin é o antiBentham, considerando que uma

teoria geral do direito não deve separar a ciência descritiva do direito da política jurídica.

Por outra parte - e também frente a Bentham, que considerava que a idéia dos direitos

naturais era um disparate - propõe uma teoria baseada nos direitos individuais, o que

significa que sem direitos individuais não existe “o Direito”.

A obra de Dworkin originou uma polêmica muito importante que transcendeu os

círculos acadêmicos. As teses de Dworkin têm obtido mais detratores que seguidores. Um

leitor imparcial se encontrará com o paradoxo de que seus críticos lhe tenham dedicado

tanta atenção e, entretanto - caso se atente ao conteúdo de suas críticas -, sustentem que

não vale a pena levá-lo a sérioi[i]. É muito possível que o paradoxo seja mais aparente

que real porque a filosofia de Dworkin constitui um ponto de partida interessante para a

crítica do positivismo jurídico e da filosofia utilitarista. Por outra parte, pretende

fundamentar a filosofia política liberal sobre bases mais sólidas, progressistas e

igualitárias. Tudo isto explica o impacto de sua obra no marco da filosofia jurídica atual.

Na Europa continental, a obra de Dworkin não é muito conhecida. Recentemente

foi traduzido ao italiano este mesmo livro, e alguns autores lhe têm dedicado atenção.

Uma das razões por que as teses de Dworkin não têm merecido atenção aqui se deve ao

fato de que o autor americano prescindiu do desenvolvimento da filosofia jurídica européia

continental. Genaro Carrió - um de seus críticos mais relevantes de língua castelhana - se

surpreende de que na obra de Dworkin ( que constitui um importante ataque ao

*

*1

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positivismo) não mereçam atenção os autores mais representativos das doutrinas

positivistas de nossos tempos, como Bobbio ou Rossii[ii]. Possivelmente, esta falta de

atenção quanto às escolas européias tenha reduzido o âmbito de influência das teses de

Dworkin. Muitos autores - que o citam - se limitam a etiquetá-lo como “apologista do

sistema americano” ou de “neojusnaturalista”iii[iii], para evitar um confronto mais direto

com a incomodidade que produzem suas teses. E, certamente, é um autor incômodo

porque põe em questão os pressupostos do positivismo jurídico, da filosofia política

utilitarista e, além disso, resgata a filosofia liberal do conservadorismo.

As teses sobre o positivismo

Ronald Dworkin é um autor que repele explicitamente as doutrinas positivistas e

realistas que têm dominado o mundo nos últimos tempos. E, precisamente, renega o

positivismo desde a perspectiva metodológica, única via que permitia unificar a

diversidade de escolas positivistas.iv[iv] Uma concepção do direito que negue a separação

absoluta entre o direito e a moral, e que não acuda a princípios de justiça material

preestabelecidos - como fazia o velho jusnaturalismo - é uma doutrina perigosa. E é

perigosa porque Dworkin demonstra que na prática jurídica dos tribunais a distinção entre

o direito e a moral não é tão clara como sustentam os positivistas. Acudir ao direito que se

aplica e se obedece para demonstrar que a moral intervém no direito é muito perigoso

para a doutrina positivista porque mostra de forma manifesta a debilidade de seu enfoque.

A crítica do pressuposto da distinção rígida entre o direito e a moral é o objetivo

fundamental de seu “ataque ao positivismo”. Dworkin toma como ponto de referência a

teoria de Hart porque considera que é a versão mais depurada do positivismo jurídico.

Normas, diretrizes e princípios

O “ataque ao positivismo” se baseia em uma distinção lógica entre normas,

diretrizes e princípios. Segundo Dworkin, o modelo positivista somente tem em conta as

normas que têm a peculiaridade de aplicar-se no todo ou não aplicar-se. O modelo

positivista é estritamente normativo porque só pode identificar normas e deixa fora de

análise as diretrizes e os princípios. O conceito de uma norma chave - como regra de

reconhecimento - permite identificar as normas mediante um teste que ele denomina o

teste de seu pedigree ou de sua origem.

2

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1[1] Dworkin considera que o teste de pedigree é um teste adequado caso se

afirme - com o positivismo - que o direito é um conjunto de normas. Porém, precisamente

pretende demonstrar que esta visão do direito é unilateral. Junto às normas, existem

princípios e diretrizes políticas que não podem ser identificadas por sua origem mas por

seus conteúdo e força argumentativa.

O critério da identificação dos princípios e das diretrizes não pode ser o teste de

origem. As diretrizes fazem referência a objetivos sociais que devem ser alcançados e

são considerados socialmente benéficos. Os princípios fazem referência à justiça e à

eqüidade (fairness). Enquanto as normas se aplicam ou não se aplicam, os princípios

dão razões para decidir em um sentido determinado, mas, diferindo das normas, seu

enunciado não determina as condições de sua aplicação. O conteúdo material do

princípio - seu peso específico - é o que determina quando deve ser aplicado em uma

situação determinada.

Os princípios - ademais - informam as normas jurídicas concretas, de tal forma que

a literalidade da norma pode ser desatendida pelo juiz quando viola um princípio que

neste caso específico se considera importante. Para dar força a seu argumento, Dworkin

dá uma série de exemplos de problemas difíceis resolvidos pela Corte Constitucional

americana e demonstra o papel que nestes casos desempenham os princípios.v[v]

Os positivistas - ante à crítica de Dworkin - têm reagido de modos muito diversos.

Alguns, como Carrióvi[vi], têm sustentado que o ataque de Dworkin ao positivismo é mais

aparente que real, e que se move ainda no âmbito do positivismo. Outros têm assinalado

que uma modificação da regra de reconhecimento seria suficiente para invalidar a crítica.

Há, ainda, os que, desde outra perspectiva, têm afirmado que Dworkin representa um

novo renascimento do jusnaturalismo.

A regra de reconhecimento

1[1] As doutrinas positivistas mais desenvolvidas têm utilizado como critério de identificação do sistema jurídico uma norma chave. Tal é o caso da norma fundamental de Kelsen ou da regra de reconhecimento de Hart. A regra de reconhecimento de Hart consiste em uma prática social que estabelece que as normas que satisfazem certas condições são válidas. Cada sistema normativo tem sua própria regra de reconhecimento e seu conteúdo varia e é uma questão empírica. Há sistemas normativos que reconhecem como fonte do direito um livro sagrado, ou a lei, ou os costumes, ou várias fontes ao mesmo tempo. A regra de reconhecimento é o critério que utiliza Hart para identificar um sistema jurídico e fundamenta a validez de todas as normas dela derivadas.

3

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A distinção entre normas e princípios é o instrumento de que se utiliza para

recusar a regra de reconhecimento como critério para a identificação do direito. Genaro

Carrió sustenta que esta crítica não tem fundamento porque a regra de reconhecimento

não apenas permite identificar normas mas também princípios. Carrió coloca o seguinte

exemplo: “imaginemos um país que carece de Constituição escrita. Imaginemos, além

disso, que naquela comunidade os juízes e funcionários recusam sistematicamente como

normas válidas... as que são contrárias aos preceitos do Corão. Este critério não faria

referência exclusivamente ao modo de origem ou pedigree da norma, porque teria em

conta o seu conteúdo”.vii[vii]

Outros autores - mais próximos a Dworkin - como Sartorius em Individual Conduct

and Social Norms, mantêm a tese de que “é possível encontrar um critério complexo por

meio do qual se pode determinar que certos princípios e diretrizes formam parte do direito

da mesma forma que as normas e os precedentes judiciais”.viii[viii] Este objetivo se pode

conseguir ampliando um pouco o conteúdo da regra de reconhecimento. Estes autores

tratam de integrar a distinção entre normas e princípios na tradição positivista mediante

uma modificação na regra de reconhecimento.

Uma postura distinta mantém Raz. Este autor - discípulo de Hart - tem manifestado

as debilidades das regras de reconhecimento como critério de identificação do sistema

jurídico. Entretanto, da insuficiência da regra de reconhecimento não se pode inferir -

como faz Dworkin - a impossibilidade de encontrar um critério que permita identificar o

direito.ix[ix]

O neojusnaturalismo de Dworkin

A reação positivista não tem se limitado a mera modificação da regra de

reconhecimento ( Carrió ou Sartorius), ou à busca de critérios distintos (Raz) para a

iiiiiiiv

 

vviviiviiiix

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identificação do direito. Alguns autores interpretaram a obra de Dworkin como uma nova

versão do jusnaturalismo. Richards sustenta que “ a interpretação da argumentação

judicial tem sido utilizada por Dworkin para defender uma forma de jusnaturalismo em

oposição ao positivismo de Hart. A argumentação jurídica, segundo Dworkin, invoca e

utiliza princípios que os tribunais desenvolvem lentamente mediante um largo processo de

argumentação e de criação de precedentes. Estes princípios são especificamente morais.

Em conseqüência, a argumentação jurídica depende da argumentação moral, no sentido

de que os princípios morais têm papel muito importante an argumentação jurídica,

especialmente nos casos difíceis. E, portanto, a tese central do positivismo - a separação

entre o direito e a moral - é falsa; não se pode separar a argumentação jurídica da

argumentação moral. Para Dworkin, uma interpretação teórica aceitável da argumentação

jurídica requer “a verdade do jusnaturalismo”.x[x]

Entretanto, Dworkin não é um autor jusnaturalista porque não crê na existência de

um direito natural que está constituído por um conjunto de princípios unitários, universais

e imutáveis. A teoria do autor americano não é uma caixa de torrentes transcedental que

permite solucionar todos os problemas e que fundamenta a validez e a justiça do direito.

Dworkin recusa o modelo de argumentação típico do naturalismo - que se baseia na

existência de uma moral objetiva que o homem pode e deve descobrir. O autor americano

tenta construir uma terceira via - entre o jusnaturalismo e o positivismo - fundamentada no

modelo reconstrutivo de Rawls.xi[xi] Parte-se do pressuposto de que a argumentação

moral se caracteriza pela construção de um conjunto consistente de princípios que

justificam e dão sentido a nossas intuições. As intuições de nossos juízos são os dados

básicos, mas estes dados e estes juízos devem acomodar-se ao conjunto de princípios.

Esta tarefa reconstrutivo - racional do pensamento moral não é exclusiva deste, já que

Dworkin a estende ao pensamento jurídico. Por isto se pode afirmar com Neil

MacCormickxii[xii] que o propósito de Dworkin é reinstaurar a relação íntima entre a

argumentação moral e a jurídica, que desde Bentham e Austin se haviam separado

radicalmente e desde então constituíram o autêntico fio condutor das doutrinas

positivistas.

Porém, a relevância de suas teses não se encontra neste nível de restauração da

relação entre o direito e a moral. Com seu aparato analítico, recusa o jusnaturalismo

xxixii

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prebenthamiano e questiona muitas das teses que têm sido sustentadas pelos

positivistas. Dworkin descreveu o sistema e o funcionamento Constitucional dos Estados

Unidos (sua teoria não é conceitual mas descritiva, como observa Soperxiii[xiii]) e pôs

claramente a fusão entre princípios morais e jurídicos. Com esta descrição tem pretendido

demonstrar que o modelo positivista é incapaz de descrever corretamente o direito. Sobre

este ponto, Carrió assinalou que “ a descrição de Dworkin das atitudes dos juízes

americanos é correta mas não pode ser invocada como contra-exemplo do positivismo... a

Constituição americana tem incorporado alguns standards como critérios últimos de

validade. Por causa desta circunstância, a conexão existente entre o direito e a moral,

ainda que seja importante, não é uma conexão necessária ou conceitual, mas fática.xiv[xiv]

Em resumo, a crítica ao pressuposto da separação absoluta entre o direito e a

moral o conduz à construção de uma teoria do direito na qual a moral e a política ocupam

lugar relevante. Dworkin se preocupou em analisar as relações entre o direito e a moral.

Não separou ambas as parcelas como haviam feito os metodólogos da pureza.

Entretanto, não faz isso em nome do irracionalismo o de um novo jusnaturalismo

ontológico prebenthamiano. A terceira via - frente ao jusnaturalismo e ao positivismo - que

pretende abrir o autor americano, tem seu próprio aparato analítico: o modelo da

reconstrução racional aplicado ao conhecimento - e à crítica - do direito.

A Função Judicial.

Segundo Dworkin, o modelo positivista hartiano é incapaz de dar conta da

complexidade do direito. Para colocar à prova as teses positivistas propõe o problema da

função judicial. Na tradição positivista mais desenvolvida (o caso de Hart em sua obra The

Concept of Law) se mantém a tese da discricionariedade judicial. Em caso de não haver

uma norma exatamente aplicável, o juiz deve decidir discricionariamente. O direito não

pode oferecer resposta a todos os casos que se propõem. O positivismo hartiano

sustenta que nos casos difíceis não existe resposta correta prévia à decisão do juiz, que

tem um marcado caráter discricionário. Dworkin atacará a teoria da função discricionária

dos juízes enunciando a tese da resposta correta.

Os casos difíceis.

xiiixiv

6

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A análise dos casos difíceis e a incerteza do direito que supõe é a estratégia eleita

pelo autor americano para criticar o modelo da função judicial positivista. Um caso é difícil

se existe incerteza, seja porque existem várias normas que determinam sentenças

distintas - porque as normas são contraditórias - seja porque não existe norma

exatamente aplicável.

Dworkin sustenta que os casos difíceis têm resposta correta. Os casos insolúveis

são extraordinários em direitos minimamente evoluídos. É evidente que pode haver

situações às quais não se possa aplicar nenhuma norma concreta, mas isto não significa

que não sejam aplicáveis os princípios. Dworkin assinala que o material jurídico composto

por normas, diretrizes e princípios é suficiente para dar uma resposta correta ao problema

proposto. Somente uma visão do direito que o identifique com as normas pode manter a

tese da discricionariedade judicial.

O autor americano reconstrói casos resolvidos pela jurisprudência e mostra que

sua teoria justifica e explica melhor os casos difíceis que a teoria da discricionariedade

judicial. Quando nos encontramos frente a um caso difícil não é uma boa solução deixar

liberdade ao juiz. E não é uma boa solução porque o juiz não está legitimado nem para

ditar normas, e muito menos para ditá-las de forma retroativa se levamos a democracia -

e seu sistema de legitimação - a sério. Ao juiz, deve-se exigir a busca de critérios e a

construção de teorias que justifiquem a decisão. E esta deve ser consistente com a teoria.

Os juízes, nos casos difíceis, devem acudir aos princípios. Porém, como não há

uma hierarquia preestabelecida de princípios, é possível que estes possam fundamentar

decisões distintas. Dworkin sustenta que os princípios são dinâmicos, modificam-se com

grande rapidez, e que toda tentativa de canonizá-los está condenada ao fracasso. Por

esta razão, a aplicação dos princípios não é automática, mas exige a argumentação

judicial e a integração da argumentação em uma teoria. O juiz ante um caso difícil deve

balancear os princípios e decidir-se pelo que tem mais peso. O reconstrutivismo conduz a

busca incessante de critérios objetivos.

Dworkin propõe um modelo de juiz onisciente - o célebre Hércules - que é capaz de

solucionar os casos difíceis e encontrar respostas corretas para todos os problemas. Para

isso, recorre à construção de uma teoria coerente. Porém, é possível que se construam

teorias que justifiquem respostas distintas. Neste caso, Dworkin recomenda acolher a

teoria que justifique e explique melhor o direito histórico e o direito vigente.

7

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Entretanto, aqui se encontram novas dificuldades. Como se vai saber as a teoria A

é melhor que a teoria B? Acaso não se necessita de um critério de avaliação de teorias

que permitisse decidir entre elas? Não se terá a tentação de absolutizar a própria teoria e

considerá-la como a “melhor”? Sobre este ponto de vista, Dworkin não oferece resposta.

Por outra parte, como tem assinalado MacCormick, o modelo construtivo da

argumentação se transforma no modelo natural.xv[xv] Este Hércules, acaso não exerce um

papel semelhante a Deus ou à Razão na reflexão jusnaturalista? É possível que a tese da

resposta correta exija um critério absoluto de avaliação das teorias, e ao absolutizar um

critério, a tese da resposta correta não surge da utilização do modelo de reconstrução,

mas de uma hipotética ordenação valorativa absoluta. Por isso, muitos autores têm

considerado a filosofia de Dworkin como uma inteligente restauração do velho

jusnaturalismo.

O núcleo mais importante da crítica ao modelo da função judicial positivista está

centrado no tema dos casos difíceis. Dworkin sustenta que quando existem contradições

ou lacunas, o juiz não tem discricionariedade porque está determinado pelos princípios.

Esta tese está fundamentada em dois argumentos: A) qualquer norma se fundamenta em

um princípio; B) os juízes não podem criar normas retroativas. Têm a obrigação de aplicar

os princípios porque formam parte essencial do direito. Os princípios não são

pseudorregras. Na análise dos princípios aparece com claridade meridiana a relação

entre a argumentação moral e a argumentação jurídica.xvi[xvi]

Todavia, a recusa da discricionariedade do juiz tem também motivos políticos.

Caso se admita a discricionariedade judicial, então os direitos dos indivíduos estão à

mercê dos juízes. A tese da discricionariedade supõe retroatividade. Os direitos

individuais só são direitos se triunfam frente ao governo ou à maioria. Deixar à

discricionariedade do juiz a questão dos direitos significa não se tomar a sério os direitos.

Frente ao poder jurídico do juiz - poder criador de direito discricionário - Dworkin propugna

a função garantidora - não criadora - do juiz.

A crítica ao positivismo e ao realismo tem o mérito de haver aberto uma via de

análise e crítica, mas corre o risco próprio de todo aquele que enfrenta doutrinas bem

estabelecidas. A distinção lógica entre normas e princípios, o modelo de reconstrução

xvxvi

8

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(herdado de Rawls), a fusão entre moral e direito (herdada de Fuller) e a tese da resposta

correta são as principais ferramentas de crítica ao positivismo.

A incerteza e a função da teoria

Uma das chaves para o êxito da obra do autor americano se encontra em sua

preocupação pelo tema da certeza do direito. Sua teoria tem a originalidade de enfocar a

análise do direito desde a perspectiva dos casos difíceis e das incertezas que produzem.

Os casos difíceis propõem problemas que a teoria deve resolver. Esta proposição lhe

proporciona uma dimensão prática e funcional muito importante. A teoria serve -

efetivamente - para a redução da incerteza.

O expediente positivista ante o caso difícil é abandonar o problema à

irracionalidade e ao sentimento subjetivo do juiz. Dworkin mantém a tese da “busca da

racionalidade”. Por muito criticável que seja a tese da resposta correta, e por muito que

consideremos que a incerteza é “particularmente difícil de destruir em qualquer teoria

jurídica”xvii[xvii], deve-se reconhecer o mérito a autores como Dworkin ou Sartorius de

haver buscado a redução da irracionalidade. Estes autores têm manifestado o alto preço

que se paga caso se conceda ao juiz a discricionariedade. Os positivistas pagam este

preço sem se darem conta de que estão aceitando leis retroativas.xviii[xviii]

Profundamente relacionado com o problema da certeza se encontra a idéia de

Dworkin acerca da função da teoria. Segundo o autor americano, a teoria do direito tem a

função de reduzir a incerteza do direito. A melhor teoria de Hércules não apenas têm

funções descritivas mas serve também para solucionar casos difíceis. Dworkin considera

que toda teoria jurídica deve ter um aspecto descritivo e outro prescritivo. A teoria não só

serve para conhecer o direito vigente mas é também um auxiliar indispensável ao juiz.

Dworkin destrói o pressuposto metodológico positivista da separação absoluta entre a

descrição e a prescrição. Em um caso difícil, a teoria serve para que o juiz decida com

fundamento racional. A teoria é o fundamento da validez da tese da resposta correta. Sem

uma teoria do direito não é possível solucionar os casos difíceis. O juiz ao utilizar uma

teoria como critério para a resolução dos conflitos sociais aplica o direito. A teoria não

apenas descreve, mas também toma parte do direito.

xviixviii

9

Page 10: Ensaio Sobre Dworkin

É possível que os juristas educados na tradição positivista rasguem suas

vestimentas ante tamanha blasfêmia mas, tal como evoca Dworkin, suas teses exigem

respostas. Não é possível demonstrar que as teorias jurídicas são utilizadas para resolver

os casos difíceis?

A Tese dos Direitos

A filosofia jurídica de Dworkin está baseada nos direitos individuais. Isto significa

que os direitos individuais - e muito especialmente o direito à igual consideração e

respeito - são triunfos frente à maioria. Nenhuma diretriz política nem objetivo social

coletivo pode triunfar frente a um autêntico direito.

A filosofia política de Dworkin é antiutilitarista e individualista. Na base das teorias

utilitaristas se encontram fins coletivos aos quais devem ser subordinados os direitos

individuais. Bentham - desde sua específica perspectiva utilitarista - afirmou que a idéia

de uns direitos naturais individuais era um disparate. Dworkin recusa o utilitarismo porque

não toma a sério os direitos e se alinha a esta direção de pensamento que opõe ao

utilitarismo uma autêntica teoria dos direitos. A proposta de Dworkin se acerca ao

pensamento de Stuart Hampshire. Este autor em um livro recentexix[xix] sustentou que

durante décadas o utilitarismo tem sido uma doutrina progressiva que tem facilitado e

promovido a sociedade do bem estar mas, nos últimos tempos, se converteu em um sério

obstáculo ao progresso moral. Dworkin sustenta que os objetivos sociais apenas são

legítimos se respeitam os direitos dos indivíduos. Uma verdadeira teoria do direito deve

dar prioridade aos direitos frente aos objetivos sociais.

Agora, como entende os direitos? Os positivistas consideram que os únicos direitos

existentes são os reconhecidos pelo sistema jurídico. Frente ao positivismo, Dworkin

sustenta que junto aos direitos legais existem direitos morais. Os direitos jurídicos e os

direitos morais não pertencem a ordenamentos conceituais distintos. Em caso de conflito

entre direitos morais e jurídicos estes não triunfam necessariamente sobre aqueles. Se o

juiz decide que as razões derivadas dos direitos morais são tão fortes que lhe impõem a

obrigação moral de fazer todo o possível que possa apoiar estes direitos, então é possível

que deva mentir. Segundo Dworkin, o problema dos direitos não se resolve mediante o

mero reconhecimento legal porque o umbral entre direitos morais e jurídicos é difuso.

xix10

Page 11: Ensaio Sobre Dworkin

A garantia dos direitos individuais é a função mais importante do sistema jurídico.

O direito não é mais que um dispositivo que tem como finalidade garantir os direitos dos

indivíduos frente às agressões da maioria e do governo.

Um exemplo servirá para explicar a concepção dos direitos como triunfos frente à

maioria. Imaginemos que quatro pessoas decidem se associar para praticar esporte.

Criam uma sociedade e em seus estatutos estipulam que as decisões serão tomadas por

acordo da maioria. Uma vez constituída a sociedade, decide-se por unanimidade pela

construção de uma quadra de tênis. Uma vez construída a quadra, os sócios decidem por

maioria que uma das pessoas associadas - que é da raça negra - não pode jogar porque

não querem negros na quadra. Acaso a lei da maioria é uma lei justa? Se isto pode ser

feito, que sentido tem o direito a igual consideração e respeito?

Uma teoria que tome os direitos a sério não considerará válido este acordo porque

a pessoa discriminada tem um direito individual que pode triunfar frente à maioria. O

direito a não ser discriminado adquire relevância frente aos bens coletivos e apenas é um

autêntico direito se pode vencer a maioria.

O esquema utilizado por Dworkin para explicar a tese dos direitos está centrado an

análise das controvérsias judiciais. Poderia ser sintetizada do seguinte modo: A) Em todo

processo judicial existe um juiz que tem a função de decidir o conflito; B) Existe um direito

a vencer no conflito e o juiz deve indagar a quem cabe vencer; C) Este direito a vencer

existe sempre, ainda que não exista norma exatamente aplicável; D) Nos casos difíceis o

juiz deve conceder vitória a uma parte baseando-se em princípios que lhe garantem o

direito; E) Os objetivos sociais estão subordinados aos direitos e aos princípios que o

fundamentam; F) O juiz - ao fundamentar sua decisão em um princípio preexistente - não

inventa um direito nem aplica legislação retroativa: se limita a garanti-lo.

Este esquema tem sido objeto de numerosas críticas. Em primeiro lugar, para que

o esquema funcione é preciso especificar quais são os princípios aplicáveis, e esta não é

uma tarefa fácil, pois como já afirmou Dickinson “os mais amplos e fundamentais

princípios do direito quase nunca se podem aplicar diretamente como critérios de decisão

nas controvérsias. Por uma parte, o princípio é demasiado genérico - por exemplo, o

respeito ao direito de propriedade... e pode ser sustentado pelas duas partes no conflito...

Por outra parte, se o princípio é mais restrito, poderá expressar e defender o interesse de

11

Page 12: Ensaio Sobre Dworkin

uma parte e, então, pode colidir com outro princípio igualmente válido que defende o

interesse da outra parte”.xx[xx]

Em segundo lugar, deve ter-se em conta que - como afirma Hart - “a decisão

judicial, especialmente em temas de importância constitucional, implica a eleição entre

valores morais e não meramente a aplicação de um único princípio moral: portanto, é uma

loucura pensar que onde o sentido do direito é duvidoso a moralidade sempre pode dar

resposta”.xxi[xxi]

Em terceiro lugar, a maioria das constituições dos países desenvolvidos - como,

por exemplo, Alemanha, França, Itália - são sociedades pluralistas. Suas constituições

são fruto de compromissos entre ideologias políticas distintas e, portanto, um conflito

entre princípios é possível e muito freqüente em razão de seu pluralismo.

Estas objeções são sérias. Dworkin reconhece que os conflitos entre princípios

podem acontecer. Entretanto, Dworkin sustenta que quando existe um conflito não se

pode deixar o tema nas mãos da discricionariedade do juiz. Este deve dar vitória ao

princípio que tenha maior força de convicção. A tarefa do juiz será a justificação racional

do princípio eleito. Sartorius - na linha de Dworkin - sugere um critério não substantivo

mas meramente formal. A decisão correta será aquela que satisfaça o máximo de

adesão.xxii[xxii] E esta adesão teria a teoria do juiz onisciente Hércules.

Deixar as coisas como as deixa Hart - dando liberdade discricional ao juiz -

significa não apurar o campo das decisões racionais. Dworkin - apesar das dificuldades -

sustenta que a melhor teoria do direito será capaz de reduzir a incerteza e a insegurança

mediante a justificação de critérios objetivos.

A tese dos direitos tem recebido numerosas críticas. Por exemplo, MacCornick

assinalou que a resolução de um conflito entre princípios não supõe a criação de um novo

direito nem a aplicação de uma norma retroativa. Simplesmente se trata da eleição entre

direitos.xxiii[xxiii] Seria impossível aqui citar as críticas que tem suscitado a tese dos

direitos. É indubitável que Dworkin propõe temas de fundamental importância para todo

aquele que esteja interessado no estudo dos direitos. Não se há de esquecer que os

temas tratados por Dworkin estão baseados em conflitos que têm sido apresentados ante

xxxxixxiixxiii

12

Page 13: Ensaio Sobre Dworkin

a Corte Constitucional e que suas análises podem ser de grande utilidade an hora de

analisar as decisões do Tribunal Constitucional.xxiv[xxiv] Em muitas ocasiões tem-se

afirmado que o Tribunal está subordinado à Constituição. Os positivistas e realistas - pelo

menos alguns dentre eles - têm considerado que esta afirmação não era mais que uma

mentira piedosa, que servia para ocultar o poder político do juiz. Possivelmente as teses

de Dworkin podem contribuir para compreender o que o homem da rua já sabe: que os

juízes não têm um grande poder político. Os juízes e tribunais não têm liberdade para

inventar direitos e interpretações. A doutrina dos tribunais lhes exige coerência e adesão

e, na realidade, a função criadora de direito dos juízes é bastante limitada.

Modelos da Função Judicial

Dworkin propõe um novo modelo da função judicial que contrasta com os modelos

tradicionais. Na história do pensamento jurídico se encontram várias concepções. Entre

elas, as mais importantes são as seguintes:

A) O modelo silogístico defendido pelo formalismo jurídico. Segundo esta

concepção, a tarefa do juiz é lógico-mecânica. O problema do juiz é a

subsunção do caso a uma norma preestabelecida. Se não existe norma

aplicável, então o juiz deve recusar a demanda. No direito não existem casos

difíceis porque tudo o que não está proibido está permitido. O direito sempre

oferece resposta aos problemas que são propostos. A função do juiz está

subordinada à lei.

B) O modelo realista defendido por muitas correntes antiformalistas. Segundo estes

modelos, as decisões dos juízes são fruto de suas preferências pessoais e de

sua consciência subjetiva. O juiz primeiro decide, e logo justifica sua decisão

mediante normas. Por isso Llevellyn afirmava que as normas não são mais que

brinquedos vistosos. Nesse modelo, carece de sentido colocar o tema dos casos

difíceis porque não se dão na realidade. O juiz sempre soluciona os casos que

lhe são propostos. O juiz tem, portanto, poder político, e na realidade não está

subordinado à lei. Este modelo justifica o afastamento do juiz da lei. Concede ao

poder judiciário um autêntico poder político que não é congruente com o sistema

de legitimação do estado democrático nem com o postulado da separação de

poderes.

xxiv13

Page 14: Ensaio Sobre Dworkin

C) O modelo positivista da discricionariedade judicial. Este modelo reconhece a

existência de casos difíceis nos quais não existe norma aplicável. Em páginas

anteriores se analisou este modelo defendido por autores como Hart e Bobbio.

Nos casos difíceis, o juiz tem discricionariedade no sentido forte do termo. Este

modelo defende o poder político do juiz e lhe permite a aplicação de normas

retroativas. O direito não oferece respostas corretas mas uma variedade de

possíveis respostas. O juiz decide discricionariamente entre elas.

D) O modelo de Dworkin da resposta correta. Segundo esse modelo, o juiz sempre

encontra resposta correta no direito preestabelecido. O juiz carece de

discricionariedade e, portanto, de poder político. A verdadeira resposta

corresponde à teoria que é capaz de justificar do melhor modo os materiais

jurídicos vigentes.

O modelo de Dworkin evita vários problemas importantes: o primeiro, que o juiz

não se constitua em legislador, o que significa que o poder judiciário tem como função

garantir direitos preestabelecidos.

Em segundo lugar, a tese de Dworkin é compatível com o postulado da separação

de poderes, posto que o juiz está subordinado à lei e ao direito. O poder judiciário é “nulo”

- como afirmava Montesquieu - porque sua função é garantir direitos.

Em terceiro lugar: o modelo da resposta correta recusa a teoria do silogismo, mas

aceita seu princípio político básico: o juiz não tem nem pode ter poder político. A função

do juiz é garantir os direitos individuais e não assinalar objetivos sociais. A função judicial

é distinta da legislativa ou da executiva.

Em quarto lugar: nos casos difíceis, os juízes não baseiam suas decisões em

objetivos sociais ou diretrizes políticas. Os casos difíceis são resolvidos com base em

princípios que fundamentam direitos.

Sem dúvidas, todas estas teorias da função judicial podem ser criticadas.

Entretanto, pode ser que a teoria de Dworkin da função judicial deva ser levada a sério

porque não incorre nos exageros das teorias silogística e realista ( que negavam os casos

difíceis). Tampouco incorre nas contradições da teoria da discricionariedade judicial ( pois

de um modo ou outro conceder poder político ao juiz supõe trair o sistema de legitimação

do estado democrático e também supõe a aceitação de leis retroativas).

14

Page 15: Ensaio Sobre Dworkin

A linha de análise de Dworkin sugere a negação do poder político do juiz sem

reduzir sua atividade a uma mera operação mecânica. Em seu modelo o juiz é garantidor

de direito e não criador deles, e, neste sentido, é um fiel seguidor de Montesquieu, para

quem o poder judiciário era nulo. Por outra parte, a análise de Dworkin não supõe uma

quebra de legitimação do estado democrático nem a criação de normas retroativas. Por

último, o modelo de Dworkin concorda com a idéia de que o poder judiciário não tem o

poder político supremo nos casos difíceis. O homem da rua sabe que o poder supremo

não se encontra nos juízes e sustentar “em estado bruto” a teoria da discricionariedade

judicial supõe reconhecer - em última instância - que os juízes podem desvirtuar

mediante interpretação não apenas as leis mas também a Constituição. Para todos

aqueles que creiam que o poder judiciário está subordinado a princípios superiores (sejam

legais, constitucionais ou morais) o modelo de Dworkin da função judicial será atrativo.

O Novo Liberalismo

Uma das chaves do êxito da obra de Dworkin se encontra em sua pretensão de

fundamentar o liberalismo progressista. Pretende construir e justificar uma teoria política

liberal superadora do liberalismo “conservador”. A crítica ao positivismo jurídico - que é a

manifestação por excelência da teoria jurídica liberal tradicional - e a crítica ao utilitarismo

- que até hoje tem sido uma das manifestações da filosofia política liberal - ocupa um

lugar muito importante como prolegômeno do “novo liberalismo progressista”.

Dworkin pretende resgatar o liberalismo das garras do positivismo jurídico e da

filosofia utilitarista. Seu “ataque ao positivismo” é reforçado pelo seu ataque à filosofia

utilitarista. A tese dos direitos é um dos instrumentos mais eficientes que usa para

demonstrar a debilidade dos argumentos utilitaristas quando se propõe o tema de direitos

individuais.

Dworkin restaura o liberalismo individualista radical. Fundamentado em um

poderoso aparato analítico - herdado de Rawls -, o novo liberalismo é progressista por

suas opiniões favoráveis à desobediência civil ou à discriminação inversa.

Dworkin se preocupa em manter distância da filosofia utilitarista liberal. Seu

liberalismo não é utilitarista, mas igualitário. Dworkin afirma que “é popular a opinião de

que uma forma de utilitarismo, que considera que o desenvolvimento é um valor em si, é

constituinte do liberalismo... mas esta opinião é errônea. O desenvolvimento econômico

foi um elemento derivado do liberalismo do New Deal. Parecia que desempenhava papel 15

Page 16: Ensaio Sobre Dworkin

útil para obter a complexa distribuição igualitária dos recursos exigida pelo liberalismo. Se

agora parece que o desenvolvimento econômico prejudica mais do que ajuda a

concepção liberal de igualdade, então o liberal é livre para recusar ou cortar o

crescimento como estratégia”.xxv[xxv] A oportunidade da obra de Dworkin - em um

momento em que o liberalismo havia deixado de ser tutor eficaz do equilíbrio entre os

direitos individuais e o bem estar social - explica a transcendência desta obra.xxvi[xxvi]

Como bom liberal, Dworkin considera que um dos objetos principais do sistema

jurídico é controlar e limitar a ação do governo. Todavia, a defesa dos direitos individuais -

e muito especialmente a defesa do direito à igual consideração e respeito - não o leva a

posições conservadoras, mas progressistas.

Às vezes, essa filosofia individualista coerentemente aplicada deveria conduzi-lo a

posições conservadoras como nos casos estudados de Affirmative Action2[2] e

discriminação inversa. Como assinalou Sandel, “Dworkin defende a Affirmative Action...

seu argumento básico é um argumento de utilidade social. A Affirmative Action está

justificada porque é um meio efetivo para atacar um problema nacional...Entretanto

Dworkin, como Rawls, crê que nenhum objetivo social se pode justificar - ainda que sirva

ao bem estar geral - se viola os direitos individuais”.xxvii[xxvii] Os “saltos” nos quais incorre

Dworkin têm dado lugar a críticas contraditórias. Por uma parte, Raz tem sustentado que

sua teoria é conservadora, enquanto Mackie a tem considerado radical. O próprio Dworkin

afirma, referindo-se a Raz, que sua acusação de conservador “ me encanta porque

representa um antídoto à opinião generalizada de que minha teoria é radical”.

Apesar das possíveis incoerências que existem na proposição e desenvolvimento

da teoria liberal de Dworkin, é preciso reconhecer seu esforço realizado com o objetivo de

resgatar o núcleo da moral liberal dos excessos utilitaristas e conseqüencialistas. A

reabilitação do direito a igual consideração e respeito - como o primeiro e autêntico direito

individual da moral liberal - permite-lhe um novo desenho da filosofia liberal que se afasta

do liberalismo tradicional conservador. Dworkin ( em seu trabalho Liberalismo) considera

que os princípios do liberalismo utilitarista estão em crise e que há que se abandonar a

estratégia utilitarista. Porém, isso não significa que o liberalismo esteja definitivamente

2xxvxxvixxvii

16

Page 17: Ensaio Sobre Dworkin

morto. Para Dworkin, a fundamentação do liberalismo igualitário é necessária para a

reabilitação do liberalismo progressista.

O radicalismo igualitarista de Dworkin o conduz a teses exageradas que têm sido

objeto de numerosas críticas. Por exemplo, sustenta que “não existe um direito à

liberdade”. E não existe tal direito à liberdade - no sentido forte do direito - porque o

Estado não pode limitar a liberdade dos cidadãos baseando-se em políticas de bem estar

geral. Se os direitos se definem como triunfos frente aos interesses gerais, então o direito

à liberdade não é um autêntico direito que compita com o direito à igualdade.

Evidentemente, esta tese provocou numerosas críticas dos liberais conservadores que

privilegiaram o direito à liberdade sobre o direito à igualdade. Precisamente Dworkin

sustenta - frente à teoria dominante - que esses direitos não estão em tensão porque o

verdadeiro liberal respeita o princípio da igualdade como o primeiro e superior direito e

como o autêntico direito. Neil MacCormick, por exemplo, criticando Dworkin assinala que

“em certas matérias a gente tem direito à liberdade e que em outras matérias tem direito à

igualdade”.xxviii[xxviii] Husak, em “ Ronald Dworkin and the Right of Liberty”,xxix[xxix]

pretende demonstrar que o direito à liberdade existe e que as razões dadas por Dworkin

para sua recusa são insatisfatórias. E são insatisfatórias porque “qualquer argumento que

se use contra o direito à liberdade se pode usar também contra o direito à igualdade”. E

coloca o exemplo dos impostos progressivos que violam o direito à igualdade mas que se

justificam pelos benefícios sociais que supõem. Para Husak as “considerações utilitaristas

podem justificar a negação dos direitos em alguns casos e em outros não”. Husak não

apenas se limita a mostrar esta “tese da variedade”xxx[xxx] mas também assinala que o

próprio Dworkin a aceita implicitamente e, se é assim, então Dworkin tampouco leva os

direitos tão a sério quanto aparenta (p.127). “Se os direitos devem ser tomados

seriamente não devemos permitir que a simpatia pelo liberalismo nos leve a crer que o

direito à liberdade não existe” (p.130).

O radicalismo igualitário de Dworkin é coerente com sua tese dos direitos e o

caráter axiomático do direito à igualdade. Entretanto, Dworkin não apenas interveio em

debates técnico-jurídicos mas também interveio nos debates políticos desde a palestra

liberal New York Review of Books. Uma aplicação coerente do princípio de igualdade

entendida como direito individual à igualdade deveria recusar qualquer “política de

xxviiixxixxxx

17

Page 18: Ensaio Sobre Dworkin

igualdade” levada a cabo pelo governo que favorece a igualdade mas que viola o direito à

igual consideração e respeito individual. Porém, este não é o caminho seguido por

Dworkin, porque forçando os argumentos justifica com razões utilitaristas as políticas de

igualdade que violam o direito à igualdade. As simpatias pelo liberalismo progressista

pesam mais que sua declaração primigênia de considerar o direito como um mecanismo

que serve para proteger o indivíduo frente ao poder do governo e das maiorias. No próprio

Dworkin, às vezes as considerações utilitaristas servem para negar os direitos individuais

e às vezes não. Essa é uma boa prova de que também Dworkin aceita implicitamente a

tese da variedade. Entretanto, é evidente que neste caso a incoerência do pensamento

de Dworkin é manifesta, posto que nenhum direito pode ser violado ( se é um direito no

sentido forte) por considerações utilitaristas, segundo sua própria definição dos direitos

como triunfos frente às maiorias e aos objetivos sociais. A tese da variedade e a definição

de direitos dada por Dworkin são incompatíveis, e - entretanto - o autor americano

mantém as duas a uma só vez. A inconsistência do argumento neste ponto é clara.

Conclusões

Os trabalhos de Dworkin reunidos neste livro constituem um elemento

imprescindível para a reflexão filosófica, política e jurídica atual. O leitor encontrará

importantes argumentos para a superação do positivismo jurídico metodológico que

domina em nossas latitudes. Encontrará uma teoria dos casos difíceis e da incerteza do

direito que irá colocar em questão as teses tradicionais da função judicial. É indubitável

que a novidade das teses dworkianas e seu radicalismo podem produzir certas

surpresas, mas não se há esquecer que se esta obra produziu tão importante literatura é

porque a merecia.

Em segundo lugar: nestes trabalhos se mostram as necessárias conexões

existentes entre o direito, a moral e a política. As escolas analíticas se esmeraram em

mostrar as diferenças e as autonomias absolutas entre elas. Dworkin pretende construir

as pontes que as escolas analíticas destruíram.

Em terceiro lugar: Dworkin constrói uma teoria dos direitos baseada no direito à

igualdade que difere das teorias puramente positivistas e leva a discussão à “construção”

do argumento moral e dos direitos morais. As linhas de demarcação entre direitos morais

e jurídicos permanecem difuminadas.

18

Page 19: Ensaio Sobre Dworkin

Em quarto lugar: Dworkin reabilita o liberalismo radical igualitário como uma

filosofia política determinada e coerente, distinta na estratégia do liberalismo tradicional

mas com um núcleo moral e político justificador do novo liberalismo progressista.

Em quinto lugar: creio que para os juristas continentais pode ser de grande

utilidade o contato com a filosofia jurídica norte-americana. A teoria e a filosofia jurídica

européia têm se caracterizado pelo seu academicismo e por seu método da abstração

generalizante. O formalismo tem sido considerado como um dos baluartes frente a teorias

e filosofias irracionalistas e aliberais. Dworkin, seguindo uma antiga tradição americana,

parte de problemas muito concretos e não aceita o postulado formalista da separação

absoluta entre o aspecto descritivo de uma teoria e seu aspecto normativo. A teoria

jurídica de Dworkin não apenas tem funções cognoscitivas, mas também funções práticas

de adequação do direito à mudança social. A utilização das capacidades humanas para

resolver problemas justifica a existência da teoria jurídica. O enfoque de problemas

concretos e a análise de suas conseqüências são necessários em um âmbito cultural

como o nosso em que o saber jurídico mais desenvolvido - a dogmática - se refugiou em

um esplendoroso isolamento para evitar a debilidade de suas proposições.

Por último: o aparato analítico utilizado por Dworkin permite propor e resolver

problemas de forma nova. Porém, como qualquer método, tem suas limitações das quais

o próprio Dworkin é muito consciente. Com o aparato analítico de Dworkin apenas se

pode observar um setor da realidade jurídica. Quem quer que creia que com esse aparato

analítico é possível resolver qualquer problema confunde um método com uma concepção

de mundo.

Todas estas são razões que corroboram a publicação desta importante obra aqui

na Espanha; precisamente em um momento de especial efervescência - política, social e

jurídica - pode ser de especial utilidade a leitura de uma obra na qual os temas candentes

da política jurídica estão presentes com toda a radicalidade - e em alguns casos

incoerência - que supõem.

O próprio Dworkin - em uma carta de 28 de dezembro de 1983 que será publicada

na revista Doxa da Universidade de Alicante - resumiu com especial clarividência e em

muito poucas palavras sua posição filosófica jurídica: “De modo geral posso dizer que fui

me conscientizando progressivamente da importância de considerar a filosofia jurídica

como parte importante da filosofia moral e política e, portanto, da filosofia. Creio que

19

Page 20: Ensaio Sobre Dworkin

nossa matéria sofreu isolamento, no sentido de que os conceitos legais podem ser

explorados por si mesmos de um modo útil, o qual dá como resultado um trabalho

analítico estéril. Tentei pôr especial ênfase no fato de que os conceitos jurídicos

fundamentais, incluindo a idéia mesma de direito, são conceitos contestados ou

interpretativos, de tal modo que não podem ser explicados utilizando-se as formas

convencionais de análise conceitual ou lingüistica que são usadas para explicar, por

exemplo, o conceito de justiça. Portanto, qualquer teoria do direito competente deve ser

ela mesma um exercício de teoria moral e política normativa. Este ponto de vista me levou

recentemente a estudar a idéia de interpretação como algo mais importante para a teoria

jurídica do que se havia considerado, e também a estudar a filosofia política quando

minha maior preocupação tem sido a idéia de igualdade. Tentei desenvolver uma teoria

da conpetência judicial que una esses campos com o estudo do processo legal.”

Sem margem de dúvida, para os juristas formados no marco positivista, para os

filósofos formados no âmbito do utilitarismo, para os liberais e os marxistas, Dworkin é um

autor incômodo porque questiona os pressupostos fundamentais comumente aceitos. Por

isso as teses de Dworkin exigem também resposta em nosso âmbito cultural.

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