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1 HEIDEGGER E O DIÁLOGO: O PERCURSO DE UMA DISCUSSÃO ONTOLÓGICA NO ÂMBITO DE UM DIÁLOGO ACERCA A SERENIDADE Por Francisca Rutigliano O Diálogo Para a discussão da serenidade, proposto por Heidegger, inscreve-se na história do pensamento sob a forma oracular seja da poesia seja do fragmento filosófico. Não há que se esperar encontrar nele proposições demonstradas; a ele tudo o que se pode solicitar é a indicação dos problemas obnubilados no conjunto de questões que compõem o âmbito de interesse do pensamento, e os sinais de um caminho que torne possível a meditação enquanto ampliamento no seio destas questões. Propomo-nos aqui a acompanhar passo a passo, como ouvintes diligentes, o ensinamento destes problemas tanto no que concerne a seu obscurecimento no curso da história quanto à apreciação das questões que lhe são concernentes avaliando as consequências dela haver sido procedida sem qualquer inquietação por respeito a eles. O propósito deste ensaio é simplesmente seguir o percurso meditativo das personagens dos seus três interlocutores e contemplar na dramatização da consideração dos temas privilegiados o repatriamento de tais problemas e o reconhecimento de sua cidadania no seio da Filosofia. Em obediência ao seu propósito, o Diálogo acolhe enquanto tarefa a discussão da problemática em que se circunscreve a questão acerca da essência do pensamento. No âmbito desta problemática, duas questões estão já previamente imbricadas: a questão da essência ela mesma e a questão da essência do pensamento. Guia no interior deste círculo hermenêutico, enquanto indicador e sinalizador permanente, o Diálogo adota a orientação metodológica de conduzir à discussão acerca da essência estabelecendo de partida a distinção necessária entre esta e o ente do qual ela possa ser questão. E para que esta distinção se esclareça o diálogo procura discutir o problema da essência em vista do essencial dela mesma, o que não significa nada outro que discuti-lo em vista do Ser. Historicamente desenraizado de sua origem e desviado de seu curso próprio, o problema da essência tem sido desdobrado impropriamente mantendo ocultos tanto o seu desenraizamento quanto o seu desvio sob a reiterada apresentação das mais genéricas considerações acerca do ente. Nesta exaustiva reiteração de questões sobre “o quê” e “o como” do ente, nesta ciranda metafísica, em que se dá o esquecimento do Ser e ato contínuo a alienação do pensamento ao ente, vê-se precisamente o claudicação deste pensamento e a

Ensaio Sobre a Serenidade

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HEIDEGGER E O DIÁLOGO:O PERCURSO DE UMA DISCUSSÃO ONTOLÓGICA NO ÂMBITO DE UM DIÁLOGO ACERCA A SERENIDADE

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HEIDEGGER E O DIÁLOGO:

O PERCURSO DE UMA DISCUSSÃO ONTOLÓGICA NO ÂMBITO DE UM DIÁLOGO

ACERCA A SERENIDADE

Por Francisca Rutigliano

O Diálogo Para a discussão da serenidade, proposto por Heidegger, inscreve-se na

história do pensamento sob a forma oracular seja da poesia seja do fragmento filosófico. Não

há que se esperar encontrar nele proposições demonstradas; a ele tudo o que se pode solicitar

é a indicação dos problemas obnubilados no conjunto de questões que compõem o âmbito de

interesse do pensamento, e os sinais de um caminho que torne possível a meditação enquanto

ampliamento no seio destas questões.

Propomo-nos aqui a acompanhar passo a passo, como ouvintes diligentes, o

ensinamento destes problemas tanto no que concerne a seu obscurecimento no curso da

história quanto à apreciação das questões que lhe são concernentes avaliando as

consequências dela haver sido procedida sem qualquer inquietação por respeito a eles. O

propósito deste ensaio é simplesmente seguir o percurso meditativo das personagens dos seus

três interlocutores e contemplar na dramatização da consideração dos temas privilegiados o

repatriamento de tais problemas e o reconhecimento de sua cidadania no seio da Filosofia.

Em obediência ao seu propósito, o Diálogo acolhe enquanto tarefa a discussão da

problemática em que se circunscreve a questão acerca da essência do pensamento. No âmbito

desta problemática, duas questões estão já previamente imbricadas: a questão da essência ela

mesma e a questão da essência do pensamento. Guia no interior deste círculo hermenêutico,

enquanto indicador e sinalizador permanente, o Diálogo adota a orientação metodológica de

conduzir à discussão acerca da essência estabelecendo de partida a distinção necessária entre

esta e o ente do qual ela possa ser questão. E para que esta distinção se esclareça o diálogo

procura discutir o problema da essência em vista do essencial dela mesma, o que não significa

nada outro que discuti-lo em vista do Ser.

Historicamente desenraizado de sua origem e desviado de seu curso próprio, o

problema da essência tem sido desdobrado impropriamente mantendo ocultos tanto o seu

desenraizamento quanto o seu desvio sob a reiterada apresentação das mais genéricas

considerações acerca do ente. Nesta exaustiva reiteração de questões sobre “o quê” e “o

como” do ente, nesta ciranda metafísica, em que se dá o esquecimento do Ser e ato contínuo a

alienação do pensamento ao ente, vê-se precisamente o claudicação deste pensamento e a

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postergação esmorecida de sua possibilidade essencial, qual seja, o ampliamento; e justo pelo

adiamento de seu retorno ao seu curso próprio. O intuito do Diálogo é indicar este desvio do

problema da essência, que é, ao mesmo tempo, o desvio histórico do próprio pensamento, e

assinalar para o seu âmbito próprio de possibilidade.

Assim, o Diálogo inicia-se trazendo à luz não um algo a ser apreendido e

reapresentado por um pensamento espectador, mas apenas um estranhamento produzido por

sua prescrição, a primeira vista incompreensível, para tomar a questão da essência

desvinculada de seu horizonte habitual de perspectivação, o homem: “a reflexão se torna

inevitável”, faz notar a personagem do professor, “que talvez com a questão acerca da

essência” não seja possível pensar a partir do homem.1

Com esta forma de inauguração singular, o diálogo indica que a sua orientação

perspectiva é concedida pela questão do Ser ela mesma. Pois tal prescrição para tomar a

essência em si mesmo enquanto questão não poderia proceder senão do próprio Ser, que

invoca o pensamento a erguer a vista do domínio estreito do ente e a se dispor à meditação. A

prescrição para meditar a essência do homem sem mediar-se pelo homem, meditar a essência

do pensamento sem visar o pensamento, não é mais que o assinalamento de uma direção

própria para tomar-se a questão do pensamento sob uma perspectiva outra que a da tradição –

o que não significa aqui nenhuma pretensão revolucionária, nenhuma negação da história,

mas apenas o aconselhamento a um necessário recordar de um esquecimento ele próprio

esquecido de si: o recordar do esquecimento do Ser. Pois, precisamente na tradição que

oculta o esquecimento do Ser o que fundamentalmente é obnubilado é o problema da

distinção entre Ser e ente.

Na perspectiva da tradição filosófica, a essência é compreendida enquanto uma

qualidade última do ente que o distingue seja genérica seja especificamente de todo outro

ente; a essência é pressuposta, portanto, como a identidade fundamental do ente com ele

mesmo. Desde esta pressuposição, a questão sobre a essência recebe a orientação de ser

tratada sob a perspectiva do próprio ente. Entretanto, se o pensamento se dispõe a saltar para

fora do âmbito do desvio que percorre a tradição e meditar sob a perspectiva do Ser, verifica-

se que a essência só revela o essencial de si por diferenciação do que ela própria distingue (o

ente) enquanto distinção de si mesma. Amparado nesta compreensão do Ser, a personagem do

professor avalia: “Se o pensamento é o distintivo da essência do homem, com maior razão, o

1 Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken. p. 29 Verlag Günthe: Neske

Pfullingen, 1959. Sechste Auflage, 1979

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essencial desta essência, a saber, a essência do pensamento, só pode ser percebida se

desviarmos o olhar do pensamento.”2

Pensada sob a perspectiva do homem, a essência do pensamento perde a sua qualidade

de questão própria e deturpa na equívoca configuração formal de um dado geral, a partir do

qual o ente homem pode ser distinguido de todo outro ente sem, por isto mesmo, lograr ver o

caráter distintivo de sua própria essência em sua distinção de si mesmo. E na medida em que a

essência ela mesma perde o seu direito de questão ela perde ao mesmo tempo a justificação de

sua determinação a partir do seu próprio Ser. Mas, o abdicar da determinação da essência a

partir do seu próprio Ser é uma ocorrência que concerne tão-somente a um destino histórico

do Pensamento ocidental, enraizado na tradição do Pensamento grego, e aprofundado a partir

da época em que o Ser se desdobra na história projetando o advento Moderno, que visa

instituir o homem, o ente, enquanto índice de determinação, isto é, fundamento do próprio

Ser.

Tomando a essência do pensamento por identidade ao pensamento, a tradição

metafísica, isto é, a tradição que transcorre na reiterada pergunta pelo “o que é o ente”,

identifica esta essência à vontade, através da qual o pensamento é determinado por referência

à espontaneidade enquanto a qual ele próprio vem se reapresentando historicamente para si a

sua ação de representar. Tal espontaneidade demonstrativa de um ato originário de vontade,

constitui-se permanentemente enquanto um querer: pensar é querer e querer é pensar.

Emergente na instituída espontaneidade tornada característica do seu pensamento, o homem

em sua condição de fundamento do Ser é, por extensão, relevado à causa incondicionada de

todo o determinável possível.

A suposta estranha prescrição para tomar a questão da essência do pensamento fora

da esfera do homem é, enfim, a sinalização para se voltar sobre a questão da essência do

pensamento fora da referência da vontade e, assim, do querer. Deste modo, mais um

estranhamento se impõe a partir de um sinal no diálogo: assinala-se a necessidade de pensar a

possibilidade e sob a possibilidade de um não-querer.

Não-querer significa por um lado um querer que se pronunciando sobre o querer o

recusa, significa, assim, a recusa do querer, e, por outro lado, significa aquilo que não se dá no

interior da vontade. Com estas duas definições recíprocas acerca do não-querer, o diálogo

indica implicitamente dois problemas que concernem respectivamente à definição da própria

essência do pensamento e à condição de possibilidade de sua investigação. E aqui reside um

2 idem, ibidem.

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problema que não podia vir à luz na questão da essência do pensamento ao longo da tradição,

porquanto a determinação do pensamento através da vontade o mantinha mesmo fora de

questão: Ambas as definições, ao conduzirem o discurso sobre o pensamento para fora do

horizonte familiar da tradição, despojam o discurso de seu recurso operativo, ou seja,

despojam-no da possibilidade de representar o pensamento, através de proposições

demonstráveis. E isto, porque se a essência do pensamento deve ser visada fora do paradigma

da vontade, sob a perspectiva de um não-querer, a sua abordagem não pode mais ser

procedida através do modelo formal da investigação, fundado na representação. Uma vez que,

ao querer se impõe a necessidade de negar o não-querer seja como um nada fora de questão

seja como uma mera oposição lógica de si e, em conseqüência, de desconhecê-lo enquanto

possibilidade positiva de determinação, a espontaneidade, o querer atribuído ao pensamento

enquanto sua característica essencial se invalida como possibilidade de determinação própria

do não-querer, invalidando-se por extensão como possibilidade de determinação da própria

essência do pensamento. Precisamente porque ambas as definições do não-querer visado na

essência do pensamento o alija de partida do fundamento da vontade, o caminho investigativo

que leva à fonte, a essência, não pode seguir ele mesmo o curso espontâneo (volitivo) da

representação, o qual não é outro que a prática operativa de articular e demonstrar proposições

sob os princípios reguladores da não contradição e da identidade. Por outro lado, do ponto de

vista do fundamento do não-querer, portanto da não espontaneidade, da não vontade (caso a

espontaneidade só possa ser concebida enquanto característica originária da vontade e esta

exclusivamente enquanto atributo do sujeito) o pensamento não deverá mais se determinar

senão enquanto puro e simples ampliamento no cerne da totalidade, isto é, na clareira do Ser.

Vejamos como o diálogo nos conduz nesta direção.

Do que acabamos de considerar podemos concluir que restituir à essência o seu

estatuto de questão exige visá-la por distinção à espontaneidade de um sujeito-causa, e tal

exigência implica, necessariamente, no afundamento dos alicerces do discurso erguido

enquanto representação. A restituição intentada impõe que a meditação se oriente sobre solo

a-fundado, o que supõe uma preparação do pensamento para tanto. Ciente da dificuldade de

tal contexto investigativo, o Diálogo procura esclarecer o sentido e o motivo da relação entre

ambas às definições do não-querer. A personagem do cientista é quem sugere o sentido

próprio desta relação:

Presumo certo, quando determino a relação de um não-querer com o outro do

seguinte modo? Vós quereis um não-querer no sentido da recusa ao querer, para que

nós, avançando através da perquirida essência do pensamento, a qual não é um

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querer, possamos consentir-nos isto ou ao menos, preparar-nos para tanto. [HEIDEGGER, 1979, p. 31]

Esta preparação rumo à possibilidade de investigação da essência do pensamento num

do contexto metodológico distinto daquele da metafísica, o Diálogo a põe em cena com bela

plasticidade. Assumindo a palavra poética, instituidora como a vê Hölderlin, as personagens

indicam os movimentos do pensamento na busca por se conduzir fora dos parâmetros da

representação. O cientista atribui ao irromper da noite o favorecimento de sua interpretação

atinada acerca da relação recíproca entre ambos os sentidos do não-querer. Esta personagem

encena no diálogo um passo importante possível à própria ciência frente ao pensamento: o

cientista, embora dramatizando a vertente mais conflitada do pensamento, é aqui quem salta

primeiro sobre a Tradição, ao depor o projeto ocidental de reiterar o Mito da caverna, quando

concede à noite o seu lugar de possibilitação do pensamento3. Outro movimento deste

pensamento em busca do mesmo salto se traduz na fala da personagem do professor, que

atribui o propósito do dizer do cientista também à circunstância de estarem “à ampla distância

da morada dos homens”.4 – Um movimento que dista muito da tradição filosófica, em que se

inaugura a prática do diálogo sob o elogio de seu percurso com vista à cidade. No Banquete,

diz Glauco a Apolodoro: “perfeitamente apropriado é o caminho da cidade a que falem e

ouçam os que nele transitam”5.

Assim, sob a escolta inusitada da noite e a propícia distância da cidade, os

interlocutores anuem sobre a difícil tarefa de trazer a meditação sobre as veredas do não-

querer. Esta instigante tarefa traz à presença a questão radical preparada no Diálogo: a

serenidade. Eis a passagem discreta para um pensamento posto em aporia diante da interdição

do seu parâmetro formal de desdobramento: a serenidade se apresenta enquanto a fonte

essencial do pensamento ocultada pelo fluxo vertiginoso do querer. Introduzida sutilmente no

Diálogo, a palavra se faz presente reclamando já a sua determinação fenomenológica.

No intuito de tal determinação, os interlocutores começam por procurar desvincular o

fenômeno de qualquer figura subjetiva: a serenidade não é passível de ser causada,

despertada, ou alcançada em e por um agente; a relação da essência do pensamento com o

fenômeno deve ser antes a de consentimento – a serenidade é uma questão de permissão. Se a

serenidade “não desperta em nós a partir de nós”, se não é passível de ser conseguida, mas

3 O dizer do cientista consoa, neste momento, com o dizer do poeta. Vejamos essa consonância com Guimarães

Rosa: “O azul sugere e recorda. Mas só do nenhum verde é que saem as vivas aparições”. (Ave Palavra. In Obra

completa. Riop de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994) 4 Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken. p.31 5 Platão. O Banquete, p. 38. In Os Pensadores. S. P. Nova Cultural, 1991

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tão-só permitida, então se assinala, ainda que de modo ambíguo, a possibilidade de investigar

o fenômeno fora do âmbito da vontade – ambíguo, pois os amigos sabem que o consentimento

proporcionável à serenidade pode sempre ser apreendido na esfera da vontade. Sustentando o

esforço de manter um curso livre para a investigação, a personagem do erudito medita nestes

termos a questão da reportação ainda oculta do pensamento à serenidade: “Na verdade, eu

ainda não sei o que quer dizer a palavra serenidade; mas, mais ou menos presumo que ela

desperta quando é permitido à nossa essência consentir-se o que não é um querer.”6

A serenidade irrompe no diálogo enquanto questão no instante preciso em que se

aclara a aporia de um pensamento destituído de seu fundamento histórico, o querer, e que,

neste contexto mesmo, reclama para si o imperativo de um não-querer. Trazida no justo

momento de uma aporia, a serenidade se mantém à primeira vista enredada ela própria

enquanto conceito nesta aporia. Pois se a serenidade concerne ao consentimento daquilo que

não seja um querer, se ela mesma não corresponde ao feito de um agente, ela se mostra, tanto

quanto o não-querer ao qual se vincula, distinta do conceito mater do pensamento, a

espontaneidade, a partir da qual este é determinado enquanto um representar. Tal aporia

esclarece aqui com plena precisão em que contexto compreensivo, a personagem do professor

prescrevia, no início do Diálogo, como condição prévia para pensar a essência do

pensamento, a necessidade de desviar o olhar do pensamento. Esta aporia é assumida na fala

da personagem do cientista quando, após alguma meditação dos interlocutores sobre o sentido

fenomenológico da palavra por respeito às suas possibilidades próprias, ele pondera:

O que a palavra serenidade não deve nos nomear, é para mim nos mais diversos

aspectos claro. Mas, ao mesmo tempo, eu sei cada vez menos do que falamos.

Procuramos, pois, determinar a essência do pensamento. O que a serenidade tem a

ver com o pensamento? [HEIDEGGER, 1979, p. 34]

É a personagem do professor quem começa por corroborar este aspecto de aporia que

assume a questão da serenidade, para logo a seguir assinalar a possibilidade própria do

entretenimento do pensamento com a serenidade, quando procura responder ao impasse que

propõe o cientista, sugerindo-lhe ao mesmo tempo uma perspectiva: “Nada, se

compreendermos o pensamento pelo conceito vigente enquanto um representar. Mas, talvez a

essência do pensamento, a qual procuramos em primeiro lugar, esteja admitida na

serenidade.”7.

6 Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken, p. 32 7 idem, p. 34

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Sustentando sua plasticidade impecável no curso de sua dramatização da própria

preparação para uma investigação não metafísica da essência do pensamento, o Diálogo lança

luz sobre as dificuldades concernentes a tal propósito. E à personagem do cientista,

precisamente por sua condição histórica, é quem cabe apresentar com toda propriedade estas

dificuldades a primeira vista indicativas de verdadeiras aporias. Pondo em cena a perspectiva

da habitual representação, a personagem pondera de modo previsível: “Com a melhor boa-

vontade, eu não sou capaz de me representar esta essência do pensamento”.8 Ao que o

professor, numa perspectiva outra, replica: “Justamente porque esta sua melhor boa-vontade e

a forma do seu pensamento enquanto representação lhe opõem obstáculos a isto”9.

Enfim, após algumas considerações com vista à destituição dos aspectos metafísicos

atribuídos à serenidade, o Diálogo inaugura a forma metodológica própria da investigação da

essência por respeito ao seu caráter de distinção de si mesma por diferenciação do seu ente

concernente. Quando a personagem do cientista inquire de seus interlocutores sobre o que

devem fazer frente à aporia que irrompe na exigência de meditar a serenidade, proposta

enquanto essência do pensamento, sem o recurso de atribuir a esta essência as reconhecidas

características formais deste, a resposta que se apresenta é surpreendente. “Não devemos fazer

nada, mas esperar.”10 Mais uma estranha prescrição se impõe: no desdobramento da

problemática da serenidade assinala-se a espera. Eis aqui o ponto a partir do qual se apresenta

a passagem para uma investigação orientada pela questão do Ser. Com o recurso da espera é

possível avançar na essência do pensamento procedendo a um percurso outro que aquele da

identidade. A espera nomeia propriamente a serenidade proposta enquanto a essência de um

pensamento visado nos parâmetros de um não-querer, e, desta forma, nomeia precisamente o

caráter distintivo da essência do pensamento por referência a este mesmo.

Não-querer: serenidade: espera, isto significa a caracterização própria de um

pensamento que deve ser determinado em sua essencialidade por respeito ao seu Ser e não por

respeito a si mesmo enquanto ente. Em seu desdobramento histórico, o pensamento tem se

feito determinar enquanto a espontaneidade de uma vontade. Tal determinação, em que é

visada nada menos que uma incondicionalidade ôntica na qual se distinguiria o seu caráter

essencial, tem permitido ao pensamento atribuir para si a condição de determinante

transcendental, isto é, de condição de possibilidade não ôntica de determinação do ente em

8 idem, ibidem 9 idem, ibidem 10 idem, p. 35

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geral. Mas a determinação em questão só tem sido possível sob a pena do esquecimento do

Ser, o que significa dizer que ela se possibilita no curso de uma deriva.

Deambulando na amplidão da clareira do Ser, o pensamento, visando à identidade em

sua prática de determinação, se apresenta para si mesmo na forma do representar

transcendental-horizontal, ou seja, apresenta-se enquanto o concessor simultâneo da

possibilidade e do horizonte para a insurgência do ente, possibilidade e horizonte estes

pretendidos enquanto a fonte e o curso transcendentes para o ente. Nestes termos, o

pensamento se reconhece na proposição: o pensamento é a representação transcendental-

horizontal do ente em geral. O sentido próprio deste representar, no qual o pensamento se

representa para si, a personagem do erudito o caracteriza:

Este representar nos põe, por exemplo, a arbóreo da árvore, o teor de cântaro do

cântaro, o teor de casca da casca, o pedregoso da pedra, o vegetoso do vegetal, o

animalesco do animal, enquanto aquele panorama no qual entrevemos, quando esta

coisa em aparência de árvore, aquela coisa em aparência de cântaro, esta em

aparência de casca, tal em aparência de pedra, muita em aparência de vegetal, muita

em aparência de animal nos é contraposta. [HEIDEGGER, 1979, p. 36]

Reiterando interminavelmente a sua atividade operativa de fundar e fundamentar a

identidade na apreciação da essência do ente e projetando neste esta própria atividade

operada sobre si mesmo, o pensamento excede com o seu horizonte representado e

representante a aparência do objeto, antecedendo-a com a concessão da essência

identificadora do objeto posto, e adianta-se à percepção do objeto transcendendo-o a partir

da representação prévia dele fornecida pela presença de sua essência, isto é, da representação

prévia do dado geral de sua distinção por referência a todo outro ente.

Indicando o sentido próprio do ato representativo do pensamento enquanto

constituição de horizonte e possibilidade representados para a transcendência, indicando o

modo pelo qual os objetos são fundados enquanto tal e recobertos, assim como a sua própria

representação, pelo horizonte e pela transcendência, o que o Diálogo procura dar a

compreender mais fundamentalmente é a ocultação histórica do caráter próprio do horizonte e

da transcendência enquanto questão, e isto pelo fato de sua determinação, ser orientada por

consideração aos objetos e ao representar, o que significa dizer o mesmo que, prescrita pelo

princípio da identidade, em que se funda a representação. Sobre esta ocultação, observa a

personagem do professor: “(...) aquilo que faculta ao horizonte ser o que ele é de maneira

alguma foi ainda experimentado”.11

11 idem, 37

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Desocultar o caráter próprio do horizonte e da transcendência corresponde a desfazer

um nó boreal. O diálogo só pode fazê-lo de forma lenta e metódica. O primeiro passo é

indicar o aberto de que se constitui o horizonte enquanto a fonte da autonomia deste frente ao

que é entrevisto no seu interior, pois como o elucida a personagem do professor:

O horizonte característico é, por conseguinte, apenas o lado virado para nós de um

aberto que nos circunda cujo panorama é preenchido na aparência disto que aparece

enquanto objeto ao nosso representar. [HEIDEGGER, 1979, p. 37]

O segundo passo, portanto, é indicar o aberto ainda enquanto a fonte da autonomia da

aparência dos objetos oferecida pelo panorama do círculo, desvinculando esta aparência do

suposto ato poiético de um sujeito. Afirmar que o aberto que constitui o círculo de visão não

forma parte no que se entrevê através dele é assinalar que este aberto não é ele próprio efeito

de um ato de representação que determine as formas possíveis de um entrever. Por outro lado,

afirmar que a aparência dos objetos não se constitui de um ato de ponência cumpridor de um

panorama, ele mesmo conformado a um representar preestabelecido, é indicar que a aparência

orientadora, concedida pela presença prévia da essência do que é entrevisto, não é tampouco

originariamente o efeito de um ato intencional de representação; e é assinalar,

simultaneamente, que a possibilidade de uma aparência só pode ter procedência no próprio

aberto do qual o horizonte forma parte. Sem um aberto prévio não seria possível sequer uma

um ato intencional de representação, pois não haveria a possibilidade mesmo de configuração

de um horizonte sob qualquer forma suposta.

Aqui, mais uma vez é preciso ter em consideração que a questão do Ser ela mesma é o

leitmotiv desta problematização. Meditar o caráter essencial do horizonte exige tomar a sua

essência sob a perspectiva radical, ou seja, não dicotômica, da diferença, para que se possa

compreendê-lo por relação ao seu aberto constitutivo: “O horizonte é, por conseguinte, ainda

algo outro que o horizonte. Mas este outro, após o que foi dito, é o outro dele mesmo, e, por

isto, o mesmo que ele é”.12 Tal perspectiva do horizonte enquanto o outro de si mesmo, abre a

problemática do que seria a distinção própria entre ipseidade e identidade, ao mesmo tempo

em que aponta para a possibilidade de abordagem do aberto num contexto distinto daquele em

que a incondicionalidade se apresenta enquanto o pressuposto da liberdade expressa na

vontade. Deste modo, o aberto se revela como a questão prioritária quando o pensamento tem

que se haver com a problemática do horizonte.

12 idem, p. 38

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Neste ponto da abordagem se reitera a dificuldade de proceder à investigação sobre

solo outro que o da metafísica. Faz-se mister nomear um tal aberto que se apresenta como a

condição de possibilidade do horizonte da representação. Contudo, a nomeação já se faz

sempre enquanto uma operação metafísica, na qual um “conhecido” é oferecido como apoio à

antecipação (representação) de tudo o que se possa oferecer à compreensão. Além disto, o

aberto em questão já se apresenta encerrado numa ambigüidade: oferece-se ao mesmo tempo

enquanto a fonte para um horizonte e horizonte da representação ele próprio. É a personagem

do cientista que, agora, repetindo a perspectiva própria da Tradição encena tal dificuldade.

Sem o solo firme de um já conhecido, a personagem busca âncora na perspectiva histórica

disponível, fundada ela mesma na representação preconcebida do fato de uma

intencionalidade, e inquire: “O que é propriamente este aberto, se considerarmos que também

enquanto horizonte do nosso representar ele pode aparecer?”.13

A imediata e regular questão “o que é” aponta para a solicitação implícita de uma

proposição possível, no interior da qual um ente reclamado a vir à fala o venha

concretamente. À primeira vista, o diálogo parece não poder escapar a esta fôrma

predeterminante. Com efeito, a personagem do professor sentencia que tal aberto afigura-se

como uma região. Entretanto, o caráter específico do predicado atribuído já o denota estranho

a pretendida função de predicação: a região é enquanto este aberto isto “pela magia da qual

tudo que lhe pertence a ele retorna e nele repousa”.14 O predicado, enfim, não é nenhum

ente, que possa por sua vez redobrar sobre si a prática predicativa. Como o representar pode

recobrir esta estranha região, este estranho ente, com sua representação? A região não é, se

por Ser se exige a apresentação de algo portador de atributos predicativos. A região reconduz

e reabriga no aberto, que afigura tudo o que a ele pertence. Reconduzir ao aberto é destituir da

representação. Nestes termos, a região, conforme mesmo ao seu caráter de Ser, dá-se

enquanto o aberto, que se constitui como o regionalizante próprio a si mesmo. O essencial

desta região de todas as regiões ônticas possíveis é a regionalização, isto é, o resgate de tudo

detido de modo uniformizado e numerado nas fileiras dispostas da representação, em todas as

suas formas desdobradas na Tradição.

Por respeito à ambigüidade que encerra o sentido próprio do aberto em questão, isto é,

por respeito à circunstância de que ele também pode aparecer enquanto horizonte da

representação é na consideração feita pela personagem do professor, seguida da refutação do

cientista ao parecer do erudito, que se pode contemplar a sinalização de uma passagem para

13 idem, Ibidem 14 idem, ibidem

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fora desta ambigüidade. Replicando à apreciação do erudito, que caracteriza esta

regionalização procedida pela região nos mesmos termos que o horizonte da representação,

isto é, enquanto a fonte a partir da qual é concedido o aspecto dos objetos num panorama

demarcador, e, desta forma, caracteriza-a enquanto o que se confronta à representação, o

professor faz ver a apreciação daquele se sustenta na concepção de que a relação que o

horizonte entretém com o representar pode ser tomada como modelo exemplar para

determinar o aberto. E a personagem do professor o faz notar ainda que, ao tomar como ponto

de partida o entretenimento do horizonte com o representar, o erudito se impede de pensar o

que é antes o aberto em que se funda a possibilidade deste entretenimento. A personagem do

cientista, nesse momento, num esforço mais concentrado do que o do erudito para meditar a

questão sem recorrer ao socorro habitual do reconhecimento, refuta a precipitação deste em

reconhecer na região o caráter de confrontação concernente ao seu horizonte. Consentindo-se,

mais uma vez, como no início do Diálogo, marchar em solo desconhecido, o cientista reafirma

a questão e pergunta o que significa a palavra região.

Recordado à força do diálogo, o erudito traz auxílio fecundo: “Na forma antiga se

dizia região [Gegnet] e se pensava a livre amplidão. Algo se deixa deduzir disto para a

essência do que gostaríamos de nomear a região?”15 O auxílio da personagem é precioso

porque lança luz sobre o sentido originário da palavra alemã Gegend (região), mas, ainda

mais fundamentalmente, porque indica com este sentido originário da palavra que o caráter de

contraposição aderido a ela é fixado historicamente pela própria tradição metafísica. A

contraposição indicada na palavra Gegend se origina do mesmo modo que a indicada na

palavra latina contrate, a qual se apresenta como termo para a idéia de extensão anteposta. A

região pensada no sentido alemão do termo (Gegend), se visada sob a ótica da metafísica,

apresenta-se ainda enquanto a paisagem anteposta de um contexto demarcado de

perspectivação. Mas tal contexto demarcado que, visado desde uma perspectiva ôntica

orientada pelo paradigma da extensio apresenta a região enquanto um horizonte remete,

contudo, para o sentido mais originário, não demarcado, da região, isto é, para a paisagem,

não meramente anteposta, mas total, no âmbito da qual uma paisagem anteposta, ou seja,

demarcada, podes se apresentar. Este sentido de paisagem total repousa tácito desde sempre

na palavra Gegnet, desde a sua formação arcaica enquanto livre amplidão. Contudo,

apreendê-lo requeria apreciá-la sob a ótica do Ser e não do ente. Entretanto, foi orientado pela

perspectiva ôntica em que a região se apresenta enquanto contexto demarcado, que a

15 idem, p. 39

Page 12: Ensaio Sobre a Serenidade

12

personagem do erudito a apreciou, por referência ao horizonte, como aquilo que vindo ao

encontro se confronta à representação.

Tomando o sentido o mais originário da região enquanto a livre amplidão, que afinal

assinala para a paisagem total que abarca o horizonte do representar, o diálogo dá mais um

passo no sentido da determinação essencial da região, trazendo-a para a perspectiva do tempo.

Com efeito, se do ponto de vista imediatamente ôntico a paisagem total se apresenta enquanto

extensão, visada do ponto de vista fenomenológico, ou seja, do Ser, ela revela a sua

constituição própria enquanto movimento de tempo originário.

Ao discutir agora o caráter regionalizante essencial à região, as personagens já haviam

avaliado anteriormente que o seu regionalizar característico consistia no recolhimento pelo

aberto de todo o anteposto pelo representar, consistia, desta forma, no resgate reiterado do que

veio à presença por força da objetivação. Se considerarmos que a objetivação está fundada

sobre o paradigma formal da extensão, sob a qual o próprio fenômeno do tempo encontra a

sua possibilidade de representação, compreendemos que o regionalizar concernente ao aberto

não é nada outro que o reconduzir o representado para fora da fôrma da extensão e, assim,

liberá-lo deste limite formal de sua representação. O que significa doá-lo de novo à meditação

concedendo, ao mesmo tempo, ao pensamento a possibilidade de exercer a sua “atividade”

essencial: o ampliamento na espera.

A espera, trazida anteriormente enquanto questão aparentemente excedente à

serenidade, pode agora revelar o seu sentido destinado na plástica do Diálogo. A espera é a

compostura própria (dito em termo alemão, Gestell) sobre a qual uma forma própria pode se

dá ao pensamento em seu exercício necessário de encontro e aproximação do ente. Com a

espera, o diálogo expõe um meio e uma condução para pensar a problemática que envolve as

questões acerca da essência do pensamento, a qual implica tanto a questão da serenidade que

a articula, quanto a do não-querer que a viabiliza, sob o fundamento do tempo, o qual se

apresenta aqui com o sentido originário de duração – permanecimento de si. É mister,

portanto, tomar a livre amplidão, o âmbito radical do pensamento, sob a perspectiva do tempo

próprio para ver iluminada a questão concernente ao sentido essencial do pensamento e da

condição mesma do ente de sua reportação.

Tendo presente este contexto problemático, a personagem do professor encaminha: “A

região, como se nada se dê, reúne o que quer que seja ao que quer que seja e todos um ao

outro ao permanecer em si mesmo na quietude. Regionalizar [gegnen] é o reunidor reabrigar

Page 13: Ensaio Sobre a Serenidade

13

à ampla quietude no instante”.16 O essencial da região, o reabrigar à ampla quietude no

instante, revela que a livre amplidão, esta característica insigne da região, constitui-se

enquanto a dobra permanente de Ser e tempo, a qual envolve e desenvolve o fenômeno

próprio do pensamento. A livre amplidão, o aberto no qual o pensamento deve poder se

desdobrar enquanto ampliamento se abre apenas através da instância deste pensamento na

quietude de si mesmo. Desta forma, este aberto antes de se constituir enquanto uma extensão

intuída de modo tributário da certeza do pensamento de si mesmo, se constitui mais no

ampliamento facultado ao pensamento para o prolongamento do seu livre ensimesmar-se.

Manter-se em si mesmo, ensimesmar-se, significa bem ao contrário que qualquer idéia de

interiorização: significa ampliar-se a si mesmo, em si mesmo.

Se a livre amplidão não se determina enquanto a extensio ela não pode ser visada

enquanto campo ideado sob a forma da extensão para a representação do pensamento.

Pensada sob a perspectiva de sua constituição temporal, a livre amplidão, à distinção do seu

horizonte concebido enquanto horizonte do representar, se recolhe, não vem ao encontro e as

coisas que possam aparecer no seu âmbito de possibilidade não podem surgir sob a forma de

objeto, pois que no recolhimento próprio à livre amplidão não cabe a prática espontânea da

representação. Este recolhimento, que algo outro não é que a serenidade para livre amplidão

dista inteiramente de uma atividade poente de ob-jetos. Na livre amplidão, as coisas não se

postam mais contrapostas, apenas jazem “se com isto pensamos o repouso, que é nomeado no

discurso da quietude”.17

A perspectiva do tempo que orienta o Diálogo fornece a compreensão precisa do

sentido da região enquanto livre amplidão. O pensamento enquanto dobra de Ser e tempo,

tomado, portanto, fora dos parâmetros da representação, deve poder ser determinado,

enquanto o a-contecimento de si mesmo. Acontecer é o sustentar-se de um permanecer que

por isto mesmo pode recolher e conter neste próprio permanecer, na quietude, portanto, o

ente em repouso. Tomar o ente na perspectiva do repouso é visá-lo como algo outro que um

objeto erigido, posto. É tomá-lo tão-só por referência à instância da amplitude à qual o

pensamento concerne e deve poder ampliar. Contudo esta referência não cabe ser procedida

ao modo de uma identificação formal; o ampliamento que recolhe o ente em seu regresso à

sua autopertença não caracteriza o ente, apenas o pensamento, e é antes a autêntica condição

da possibilidade de sua ipseidade. Pois, contendo-se em seu ampliamento essencial, o

pensamento, sem representar, deixa-ser o ente no instante de sua própria amplitude

16 idem, p. 40 17 idem, ibidem

Page 14: Ensaio Sobre a Serenidade

14

(totalidade). O pensamento ao permanecer no ampliamento de si mesmo faculta ao ente

regressar (mover-se) à condição de seu repouso (permanecer) próprio enquanto tal – de seu

Ser.

O diálogo perspectiva, assim, o repouso e o movimento, o recolhimento e o

ampliamento na complementaridade de um mesmo fenômeno. O tempo que regula o

pensamento enquanto livre amplidão implica o repouso e o movimento em seu Ser: o repouso

é sempre o repouso que constitui a instância do ampliamento de si mesmo; é desta forma o

movimento deste ampliamento. E aqui se encontra o sentido originário da espera que anuncia

o tempo próprio do pensamento. A espera se constitui apenas enquanto a instância do

ampliamento, instância esta que sustentada consiste no próprio recolhimento do pensamento

enquanto serenidade. A espera subtrai o pensamento da representação ao permitir que ele

permaneça em si, isto é, que ele retorne (repita) ao seu ampliamento, sendo tal retorno o

característico do recolhimento concernente ao ampliamento essencial do pensamento. Esta é a

compostura originária de um tempo que pode se temporalizar enquanto tempo próprio. Isto é,

por referência ao seu Ser mesmo e não antes ao ente ou a um horizonte projetado por reflexão.

Se a espera é a compostura de um tempo, ela não pode ser caracterizada por um ato de

vontade, o qual implica sempre em sua ação a expectativa de um ente. A espera não espera

coisa alguma; não tem objeto algum. A espera temporiza de-liberando o alcance (o aberto) do

ampliamento possível ao pensamento.

O vínculo intrínseco que o pensamento entretém com a espera, ou seja, com a

temporização originária dele mesmo, constitui o seu consentimento à serenidade, mas isto

significa o consentimento do seu retorno a ele próprio. Consentida por meio da espera, a

serenidade se dá bem enquanto o livre prolongamento do pensamento descarregado de

representação – de objeto. O que não quer dizer esvaziado de questão e de problema.

O Diálogo dramatiza o sentido da serenidade, no que tange ao repouso e ao

movimento implicados neste fenômeno, propondo uma associação inteiramente poética entre

o caminho e o percurso concreto da sua própria ocorrência. O caminho se expõe como o

repouso essencial que implica o percurso, o movimento, de pró-adução do diálogo, produção

que só é possível pela meditação própria, franqueada na condição do pensamento se dar

enquanto serenidade. Pois o próprio diálogo ampliado sobre o caminho percorrido se dá

enquanto tal meditação. Não por outro motivo, este caminho, que não é outro que o caminho

singular do pensamento, é dramatizado na figura do solitário e lento caminho do campo; no

caminho livre das edificações monumentais da representação. À pergunta do erudito sobre

Page 15: Ensaio Sobre a Serenidade

15

“Onde passa este caminho, e onde repousa o movimento que lhe é conforme?”18, o professor

deve ter que responder: “Onde senão na livre amplidão, por respeito a qual a serenidade é o

que ela é”.19

Sobre o tempo próprio da espera, sobre a instância no ampliamento, dá-se a serenidade

para livre amplidão; dá-se o curso e percurso do pensamento. Se a serenidade é o nome mais

apropriado para esta sustentação fundamental do movimento e repouso constitutivos da

meditação, isto não pode ser decidido senão fora da perspectiva metafísica da linguagem,

onde as palavras não se fazem efeito de um ato denominativo, mas mostram-se procedentes de

uma assinalação, onde luz, já desde sempre implicados, o nomeável, o nome e o nominado, na

região própria da palavra, a qual não comporta nenhum sujeito denominador. Uma

assinalação que só pode ser percebida por um pensamento instante na livre amplidão, isto é,

prolongado na serenidade, e que, tão somente nestas condições, pode receber da região da

palavra todo o denominado assinalado, enquanto um simples “ouvir a resposta devida sobre a

palavra”20, e redizê-la apenas enquanto um “repetir da resposta ouvida”.21

Esta questão acerca da adequação do fenômeno à sua denominação vem ao diálogo

com o intuito de desfazer uma das muitas falsas questões apresentadas como problema pela

metafísica. Esta questão só vem se reafirmando na história como questão legítima porque é

inquirido, sob a ótica da metafísica, quem tem lugar lógico privilegiado na formalidade da

prática denominativa, o sujeito ou a linguagem. O sujeito põe incondicionalmente a palavra

ou a põe já sob o pressuposto da palavra? A uma perspectiva que não abriga sujeito e objeto,

esta questão se revela sem propósito. A única questão concebível é a de considerar o que seja

em seu ser próprio o que se apresenta sempre já denominado.

Assim, o Diálogo reconduz sua marcha e se aplica a considerar mais amplamente o

Ser da serenidade denominada nele. Se o Ser da serenidade, do recolhimento, se manifestou

enquanto espera, instância, se esta instância sustenta o prolongamento reiterado do

ampliamento possível ao pensamento, isto significa que a espera é o reportamento essencial

do pensamento à a livre amplidão, isto é, ao aberto que o possibilita enquanto ampliamento. A

espera, sustentando o ampliamento, se consente a livre amplidão e consentindo-a permite ao

aberto reinar enquanto o aberto que é.

O Diálogo marca aqui a distinção de sua orientação fundamental das possíveis

orientações postas à disposição pela Metafísica. Não é uma identidade formal o que rege o

18 Idem, p. 45 19 Idem, Ibidem 20 idem, p. 47

Page 16: Ensaio Sobre a Serenidade

16

entretenimento do pensamento e do aberto que é contextura. É antes um entretenimento de

apropriação, um a-contecimento originário necessariamente a-contecente enquanto reiteração,

que dá provas que o próprio é sempre o caso de uma remissão parental. O pensamento reitera

o seu aberto de possibilidade ao ampliar-se e este aberto vigorando enquanto livre amplidão

reitera o pensamento enquanto ampliamento possibilitado. Mas, tal reiteração é, enquanto

serenidade, sempre o consentimento da espera para livre amplidão. Esta remissão complexa

que entretém o pensamento e a livre amplidão sob o fundamento da espera e da serenidade dá

a ver o sentido fenomenológico fundamental dos fenômenos entretidos: a serenidade só pode

ser compreendida enquanto a recolhimento de um mesmo, o qual só pode se dar enquanto

reiteração de um ampliamento; a espera só se deixa fixar em seu sentido essencial enquanto

instância em tal reiteração; o pensamento enquanto ampliamento reiterado só se faz

compreender enquanto serenidade e nestes termos enquanto consentimento da livre amplidão

de seu irrompimento possível.

Aqui é ratificada a recusa a um suposto caráter de espontaneidade do pensamento. Se a

serenidade deve ser consentida, a possibilidade de tal consentimento repousa apenas na livre

amplidão ela mesma. Assim, ao consentir a serenidade, o pensamento já estava admitido na

livre amplidão. Entrar na livre amplidão é proceder a um desdobramento de ampliamento que

leva o pensamento a manifestar-se em concernência à sua condição de possibilidade, isto é, ao

seu aberto. Ainda que o pensamento se detenha no horizonte da transcendência representando-

se para si mesmo enquanto essência pensante, no sentido do representante transcendental, ele

não deixa de estar dentro da sua condição de possibilidade, apenas mantém-se como que fora

na medida em que não se possibilita enquanto meditação e fica restrito a representação

concedida pelo círculo parcial do aberto voltado para o seu re-presentar. A personagem do

professor ensina sobre a permanência do pensamento na livre amplidão:

Não estamos jamais fora da livre amplidão, conquanto nos mantenhamos no

horizonte da transcendência enquanto essência pensante, o que significa ao mesmo

tempo enquanto representante transcendental. Mas o horizonte é o lado da livre

amplidão voltado ao nosso re-presentar. A livre amplidão nos circunda e se mostra a

nós enquanto horizonte.” [HEIDEGGER, 1997, p. 48]

Nesta última frase do professor está bem indicado o problema do vínculo que o

pensamento entretém com o aberto de sua possibilidade e, simultaneamente, com a coisa. A

livre amplidão é a forma do Ser da clareira, o aberto, que se oculta na medida mesmo em que

faculta tanto o horizonte quanto a descerramento do ente. A livre amplidão “que se mostra a

21 idem, Ibidem

Page 17: Ensaio Sobre a Serenidade

17

nós enquanto horizonte” é o propriamente oculto na ocultação da clareira. Não é, portanto, a

clareira o que se oculta, mas antes ela oculta o que lhe é o mais próprio, seja mostrando-se

enquanto horizonte seja descerrando a coisa no seu interior.

É, com efeito, no interior desse jogo de cerração e descerramento que o pensamento se

atém, ou melhor, pode se ater no entre constituído no jogo. Assumindo-se enquanto

representante transcendental, isto é, enquanto o próprio horizonte da representação e

abismando-se no ente anteposto desencoberto, o pensamento está “fora” da livre amplidão

pelo simples fato de não se consentir a ela. Todavia, enquanto representante transcendental, o

qual é o ponto de partida inevitável, já que, como ensina Hölderlin, “no princípio o espírito

não está na fonte”, ascendendo para fora do horizonte da representação, o pensamento está na

livre amplidão. E o está precisamente enquanto espera. Porque a espera constitui o próprio

desprendimento da ligação transcendental ao horizonte.

Aqui o diálogo realiza mais um movimento na determinação da serenidade enquanto

reiteração da espera, da instância na livre amplidão. O primeiro momento fenomenológico da

serenidade se constitui desse desprendimento da ligação transcendental do pensamento ao

horizonte. Mas a serenidade não se determina a partir deste desprendimento, determina-se

antes a partir da própria livre amplidão e é dela que recebe o seu movimento e orientação para

esta. Isto quer dizer que a serenidade não se determina por negação ao horizonte. Mais uma

vez a personagem do professor ensina:

“A serenidade vem a partir da livre amplidão, porquanto subsiste nesta, para que o

homem permaneça sereno e, na verdade, para que o permaneça através desta aqui

mesma. Uma vez que pertence originariamente à livre amplidão ele está em sua

essência sereno para ela. Ele a pertence, uma vez que é de início a-propriado e, na

verdade, por ela mesma.” [HEIDEGGER, 1997, 49]

Retoma-se aqui agora, de modo propriamente relacionado, o que foi observado

anteriormente em vista da análise estrutural dos conceitos: a serenidade na qual o homem

pode desdobrar o seu Ser próprio é sempre um modo próprio do acontecimento, isto é, ela é a

apropriação originária que a-contece enquanto reiteração de uma remissão parental. As

personagens do cientista e do professor concluem com rigor o esclarecimento do sentido

próprio da permanência do pensamento na livre amplidão em seu como e em seu porque. O

cientista explicita com precisão a observação do erudito de que a denominação da espera

sobre o fundamento da livre amplidão é uma denominação recíproca:

Mas, somente quando a serenidade, sobre o fundamento da pertença à livre

amplidão, desprende-se do representar transcendental-horizontal, o qual é a essência

do pensamento até aqui reinante, o pensamento a partir um tal representar

Page 18: Ensaio Sobre a Serenidade

18

transforma-se em serenidade na espera sobre a livre amplidão. [HEIDEGGER,

1997, p. 50]

A tal explicitação o professor concede o acabamento:

A essência desta espera, contudo, é a serenidade para livre amplidão. Mas, porque a

livre amplidão é isto, a serenidade se pertencer mais e mais, porquanto se deixe

repousar em si, a essência do pensamento repousa nisto que a livre amplidão, se eu

posso falar nesses termos, amplia em si a serenidade. [HEIDEGGER, 1997, 50]

O diálogo retoma neste ponto a tarefa de proceder à determinação da essência do

pensamento sob o imperativo da radicalização da diferença. Como observa a personagem do

professor, a espera determinada enquanto forma genuína do pensamento não é o fundamento

da determinação de sua essência, o pensamento só pode receber a sua determinação a partir da

livre amplidão a qual se dá enquanto o outro dele mesmo. O que significa dizer primeiramente

que o pensamento só é enquanto espera por diferenciação de sua essência. E em segundo

lugar, que esta diferenciação não pode ser concebida enquanto uma oposição formal, mas

antes como um caso de retorno contínuo da fonte propiciadora sobre o seu próprio curso; deve

ser concebida pura e simplesmente enquanto acontecimento: a dobra permanente sobre a qual

se renovam ininterruptos o domínio e o alcance do dá-se de Ser e tempo.

Esta diferenciação da essência é o princípio formal da determinação recíproca entre o

pensamento e a livre amplidão, diferenciação que só pode ser procedida pela pertença da

essência ao seu âmbito de possibilidade, o qual sendo o outro do seu mesmo é também o

mesmo dela mesmo, sem, contudo, subsumir-se nela nem anular sua diferença própria. A

essência do pensamento é a espera para livre amplidão, esta espera só tem lugar sobre o

ampliamento da livre amplidão e somente nestes termos pode ser denominada enquanto

serenidade. Por outro lado a livre amplidão só pode se manter aberta, isto é, só pode-ser, na

medida em que o pensamento se amplia no seu âmbito de ampliação. Assim, nem cabe tomar

os momentos estruturais do pensamento enquanto termos isolados e subsistentes por si, nem

cabe tomar o seu princípio de possibilidade enquanto condição meramente formal de

determinação.

Retorna a dificuldade observa desde o início da apresentação do diálogo: não existe

recurso através da representação para pensar o sentido próprio da serenidade, da livre

amplidão e do ampliamento concernente a ambos. E muito menos é possível pensar por meio

da representação a relação entretida entre a região da livre amplidão e a coisa desencoberta

nela.

Page 19: Ensaio Sobre a Serenidade

19

A serenidade se configurou, enquanto a essência do pensamento, o ampliamento para

livre amplidão. E, apenas enquanto ampliamento da serenidade, o pensamento é serenidade

para livre amplidão, o que significa dizer que a serenidade não subsiste por si num

pensamento ele mesmo subsistente. Se o ampliamento concerne ao vínculo que a livre

amplidão entretém com a serenidade, ele não pode configurar o vínculo que a região da livre

amplidão entretém com a coisa, pois o ampliamento da livre amplidão é uma possibilidade

própria do pensamento enquanto ampliamento da serenidade. O vínculo entretido entre a

região da livre amplidão com a coisa deve, contudo, ser observado enquanto serenidade, nisto

que esta, a partir do seu ampliamento, enquanto estadia na espera, pode se configurar

enquanto permanência e nestes termos condiciona a coisa a coisa, já que esta aqui, por não

pensar, não pode ser pensada por ela mesma enquanto coisa. Condicionar, isto é, propiciar a

condição, contudo, não é produzir nem fazer, não é causar, enfim; também não é um

possibilitar no sentido que a representação se dá de um possibilitar transcendental. É deixar-

ser a coisa enquanto tal. Mas, deixar-ser a coisa enquanto tal é necessariamente não torná-la

objeto como condição restritiva para que ela permaneça enquanto coisa. A personagem do

professor orienta a questão:

As coisas são, manifestamente, coisas através da região da livre amplidão, como se

mostrou em nosso diálogo anterior, na permanência do cântaro no vasto da livre

amplidão. Entretanto, a região da livre amplidão não causa nem produz a coisa,

menos ainda a livre amplidão produz a serenidade. Ela também, no ampliar, não é

horizonte para a serenidade, como também não o é para as coisas, quer possamos

experimentá-las apenas como objetos quer as pensemos como “coisas em si”

ajustadas aos objetos. [HEIDEGGER, 1997, 52]

Quando a personagem do professor ressalta que a região da livre amplidão, ao facultar

a permanência necessária para que a coisa seja não o faz ao modo da produção seja da coisa

seja da serenidade que fundamenta tal permanência, quando faz notar que o ampliamento da

região da livre amplidão não é horizonte para a serenidade nem para as coisas, quer estas

últimas sejam experimentadas enquanto objeto quer enquanto coisas em si ajustadas aos

objetos, ele esta procurando distinguir o vínculo que a região da livre amplidão entretém com

a serenidade de uma relação causal de efeito no que concerne ao ampliamento da serenidade,

portanto ao fundamento de uma permanência, e, no que concerne ao condicionar da coisa pela

serenidade, distinguir tal vínculo de uma relação horizontal-transcendental. Assim, o vínculo

pensado aqui nem pode ser visado como uma relação ôntica nem ontológica (no sentido

metafísico deste termo), as quais uma e outra são sempre representações de uma mera relação

representada em ambas as perspectivas pela própria representação.

Page 20: Ensaio Sobre a Serenidade

20

Se o vínculo que a região da livre amplidão entretém com a serenidade não permite se

configurar enquanto relação causal de efeito nem enquanto relação horizontal-transcendental,

a fortiori o vínculo que a região da livre amplidão entretém com a coisa não pode ser pensado

nem enquanto ôntico nem enquanto ontológico. A livre amplidão não produz a coisa nem se

dá enquanto horizonte transcendental para a sua representação. O vínculo que a região da livre

amplidão entretém com a serenidade que se amplia sobre ela ampliando-a simultaneamente

compreende-se apenas enquanto ampliamento e com a coisa esta relação compreende-se

enquanto serenidade. E isto significa, do ponto de vista de um tempo próprio: esta relação é,

enquanto acontecimento, a sustentação de uma duração, o recolhimento e a contenção na

quietude da coisa no repouso de seu poder-ser próprio. Repita-se o que foi dito acima:

“contendo-se em seu ampliamento essencial, o pensamento, sem representar, deixa-ser o ente

no instante de sua própria amplitude. O pensamento ao permanecer no ampliamento de si

mesmo faculta ao ente regressar (mover-se) à condição de seu repouso (permanecer) próprio”.

E aqui se revela o Ser próprio da condição. As personagens do Diálogo indicam o âmbito da

questão: O cientista avalia: “O que o condicionar é, devemos, por conseguinte, primeiro

aprender a pensá-lo”22; ao que o professor acrescenta: “ao aprendermos a experimentar a

essência do pensamento...”23; e o erudito conclui: “portanto, esperar com base na condição e

no ampliamento”.24

Aqui o Diálogo fixa o ponto de partida desde o qual é possível pensar o fundamento

do pressuposto estabelecido pela tradição acerca do vínculo que o homem entretém com a

coisa. Este vínculo que ganhou a cunhagem de uma relação exemplar entre um Eu e o seu

objeto fundou-se na reportação positiva do pensamento Físico à natureza, reportação esta

sustentada na clássica cunhagem da essência do homem enquanto animal racional. O

pressuposto vigente do vínculo do homem com a coisa em termos de relação entre o Eu e o

objeto corresponde, portanto, à possibilidade metodológica concernente à análise da

matemática Ciência da Natureza que pôs como parâmetro para o conhecimento a exatidão

matemática e o experimento. Fundado numa tal possibilidade, o pressuposto em questão

constitui-se em uma apreciação histórica.

Aqui o Diálogo procede a uma digressão, como procedimento metodológico em vista

de um melhor esclarecimento do fato do pressuposto sujeito-objeto ter se constituído numa

apreciação história. O sentido do que seja histórico é fixado no Diálogo tendo em vista apenas

22 idem, p. 54 23 idem, ibidem. 24 idem, ibidem

Page 21: Ensaio Sobre a Serenidade

21

um modo possível do conhecimento e do seu ampliamento. O histórico não é abordado aí por

respeito às ocorrências e fatos do mundo, e, muito menos às produções culturais do homem. O

Diálogo encontra nesta altura ocasião de esclarecer que histórico em seu sentido

fenomenológico se diz tão-somente das aberturas de épocas que constituem as próprias

doações da clareira do Ser, enquanto as perspectivas, destinadas, da compreensividade. Se a

história diz respeito apenas às aberturas perspectivas da compreensividade, se não concerne

originariamente aos fatos e feitos do homem, ela só pode repousar com todos os seus modos

de conhecimento concernentes na livre amplidão. A personagem do professor o resume com

precisão: “A história repousa na livre amplidão e nisto que se dá enquanto a livre amplidão,

que se destinando ao homem o amplia em sua essência”.25 A livre amplidão, a clareira do Ser,

concerne, assim, a doação própria do Ser destinada ao homem em vista do ampliamento de

sua essência, isto é, do pensamento (aqui concebido por respeito à sua própria essência, a

serenidade). E a história, por sua vez, só pode ter o seu fundamento fenomenológico na livre

amplidão enquanto curso do seu destinamento, e isto significa ao mesmo tempo enquanto

discurso de suas épocas (aberturas).

Retornamos aqui ao encaminhamento inicial do Diálogo. Se a história não radica no

homem, uma vez que este não realiza sua essência na racionalidade do animal (natureza) e

não pode se oferecer, deste modo, como índice da história; se a essência do homem se

assinala enquanto a serenidade para livre amplidão; se esta serenidade evocada constitui-se no

desprender-se do representar transcendental, certo é que a fonte da história, a livre amplidão,

exclui em absoluto de sua caracterização necessária todo e qualquer indício de vontade. A

personagem do erudito conclui: “Já isto do ampliamento da livre amplidão, bem como da

condição se excluírem essencialmente de todo positivar e de todo causar, anuncia quão

decididamente é estrangeira a cada qual toda e qualquer forma de vontade”.26

Ao proceder à completa desvinculação da essência do pensamento, a serenidade para

livre amplidão, de todo e qualquer ato de vontade, o Diálogo granjeia a possibilidade de

fundamentar a distinção da essência do pensamento do ente em geral. A vontade só pode ser

suposta na essência do pensamento porquanto este seja visado enquanto operador da

positividade. Querer é querer o positivo e a positividade como um elemento seu. Daí que o

horizonte transcendental, ao qual o querer concerne, seja sempre o horizonte de possibilidade

do ente.

25 idem, p 57 26 idem, p. 58

Page 22: Ensaio Sobre a Serenidade

22

Mas, qual seria o cunho próprio desta essência do pensamento que deve e pode ser

diferenciada da vontade? O Diálogo o responde com as mesmas palavras proferidas desde Ser

e tempo. O cunho da essência do pensamento distinto da representação é a deliberação. A

palavra filosófica quer significar acerca desta questão: a sustentação enquanto de-liberação de

um abrimento de-liberado para o aberto. A personagem do erudito orienta o diálogo neste

ponto: “Dever-se-ia então pensar a palavra ‘deliberação’, como ela é pensada, por exemplo,

em Ser e tempo: enquanto o assumido abrir-se próprio do Dasein para o aberto...”27; e a

personagem do professor conclui reiterando o sentido deste aberto: “enquanto o qual nós

pensamos a livre amplidão”.28

Deliberação e aberto, sustentação e clareira: no cunho próprio do pensamento distinto

de todo querer e na sua possibilidade destinada repousam o sentido mais temprano da verdade

enquanto descerramento e desocultamento. Mas descerramento e desocultamento, os quais

implicam, todavia, o ente, só se esclarecem pela procedência de um ampliamento de-liberado

e sustentado. O que significa que repousa na livre amplidão, isto é, na deliberação de um tal

ampliamento e da serenidade ela própria, a essência oculta da verdade enquanto

descerramento e desocultamento. A verdade só pode ser enquanto tal porque tem a sua

essência sustentada, assumida pelo Da-sein enquanto serenidade para livre amplidão. O que

implica dizer que a verdade essencial concerne apenas ao Ser e desta forma dista inteiramente

de uma vontade que é sempre vontade para o ente, para o positivo. E isto, precisamente,

porque o Da-sein, que deve e pode sustentar tal verdade, não é nenhum índice cognitivo pré-

constituído, mas é antes o ser-no-aberto que constitui o Dasein, o Ser-existente, enquanto

permanente ampliamento neste próprio aberto. De modo que, se numa perspectiva horizontal-

transcendental, o descerramento e o desocultamento do ente podem se configurar enquanto

uma despreservação sua no seio da livre amplidão, numa perspectiva fenomenológica radical,

este descerramento e desocultamento seus deverão se afirmar antes enquanto preservação e

concernência do ente na livre amplidão de sua condição facultada.

Se retomarmos o que se expôs acima quando se caracterizava o sentido próprio da

serenidade enquanto o recolhimento e repouso do pensamento em si mesmo, se considerarmos

o que acabamos de observar acerca da deliberação e do aberto que constituem conjuntamente

a possibilidade do pensamento enquanto pertença da serenidade à livre amplidão (ao seu

aberto destinado) e condição do ente, compreendemos amplamente a meditação que encerra

as falas das três personagens. O cientista discorre: “Então, a essência do pensamento, a saber,

27 idem, p. 59 28 idem, ibidem

Page 23: Ensaio Sobre a Serenidade

23

a serenidade para a livre amplidão, seria a deliberação para a verdade essencial”.29 O

professor acrescenta à problematização: “Na serenidade poderia se ocultar uma perseverança,

que repousa verdadeiramente nisto que a serenidade está sempre interior à sua pura essência e,

perseverando, se atém a ela”.30 O erudito mais uma vez conclui: “Isto seria uma conduta que

não se pavonearia em uma atitude, mas se recolheria no recato, que continuamente

permaneceria o recato da serenidade”.31

A este caráter próprio da serenidade de recato e sustentação em vista do ampliamento

da livre amplidão, este sentido o mais essencial do pensamento que o distingue inteiramente

da vontade, a ele a personagem do erudito sugere um verso com o nome de instância. E a

personagem do professor acolhe este nome enquanto a denominação própria para a “genuína

essência da espontaneidade do pensamento.”32 Vale a pena trazer o verso à presença [Cf. p.

60]:

Instância

Sempre para uma verdade solitária

Acolher a salvo

A verdade essencial,

Por ampla permanência,

Amanhe o pensante coração

Na simples paciência

Da generosidade única

De o nobre recordar.

Contemplando a palavra poética que o verso resguarda acerca da instância, o erudito

conclui: “O pensamento seria, segundo as linhas mencionadas, o recordar afim com o

nobre”.33 Aqui, abre-se o momento mais poético do Diálogo, quando a instância do

pensamento, o seu exercício sublime de sustentação, de de-liberação, se revela enquanto o

recordar de uma nobreza. Recordar este que constitui a “simples paciência” da espera. O

pensamento é nobre enquanto “instância da serenidade para livre amplidão” e esta instância é

o reiterado recordar de sua espera essencial.

29 idem, ibidem 30 idem, ibidem 31 idem, ibidem 32 Idem, p. 60 33 idem, ibidem

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Recordar é reiterar o movimento de retorno, não a uma fonte apartada, mas o de uma

fonte permanente. Recordar é repetir o acontecer da deliberação e sustentar, mantendo-se no

acontecer, este a-contecimento. Nesta sustentação da deliberação pelo recordar da espera

essencial, a serenidade revela a sua afinidade com o nobre, o qual é sempre a afinidade com a

própria deliberação de sua essência. As personagens do erudito e do professor orientam a

questão: o erudito: “Nobre é o que tem procedência”.34 Professor: “Não só a tem, mas

encontra-se na procedência de sua essência”.35 E esta procedência, na medida em que o

homem em sua essência é pertença da livre amplidão, é precursora, isto é, está doada de

antemão ao recordar. Está doada, não num índice representado, mas no imemorial, desde

onde a essência do pensamento é facultada à livre amplidão por esta própria; desde o lugar

impensável onde o pensamento propriamente começa. Este a-contecer do homem pela livre

amplidão, a apropriação de sua essência à sua região própria é o dá-se da serenidade ele

mesmo.

Neste ponto do diálogo, mais uma questão se impõe para o esclarecimento. Observou-

se acima que apenas sob o imperativo da diferença seria possível esclarecer o sentido próprio

da copertença que determina previamente a conexão necessária entre o pensamento e a sua

essência. Pela diferenciação do outro de seu mesmo, isto é, pela diferenciação de sua essência,

o pensamento se dá, enquanto ampliamento, como sustentação da serenidade para livre

amplidão. Tal sustentação da serenidade para livre amplidão, configurando-se enquanto

deliberação para a verdade essencial, funda e fundamenta a copertença da essência do

pensamento e da verdade, a qual enquanto descerramento e desocultamento revela ser um

modo mesmo do Ser da livre amplidão. Foi observado também que esta diferença em que se

funda a possibilidade de uma copertença só pode ser contemplada como um caso de retorno

contínuo da fonte propiciadora sobre o seu próprio curso. Assim, a verdade, o modo do Ser da

livre amplidão enquanto descerramento e desocultamento, e o pensamento, o ampliamento da

serenidade para a livre amplidão, implicam-se e sustentam-se mutuamente para serem

enquanto tal o mesmo do outro, a diferenciação permanente do mesmo. Contudo, a tradição

ensinou que o caráter distintivo da verdade é a sua independência frente ao homem. Pois seja,

frente ao homem, mas jamais frente à essência do homem. A personagem do professor ensina

com todo o rigor:

(...) a essência do homem é facultada unicamente na livre amplidão e, portanto,

empregada por ela, porque o homem por si mesmo nada pode sobre a verdade e

34 idem, p. 61. 35 idem, ibidem.

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porque esta permanece independente dele. A verdade só pode manter-se aberta

independente do homem, porque a essência do homem enquanto serenidade para

livre amplidão é empregada por esta no ampliamento e em prol da condição. A

independência da verdade frente ao homem é, portanto, notoriamente, uma ligação

com a essência do homem, ligação que repousa no ampliamento da essência do

homem na livre amplidão. [HEIDEGGER, 1979, p. 63-4]

Nesta independência da verdade frente ao homem repousa também o sentido essencial

da liberdade deste. A instância na sua procedência, isto é, a espera é sempre a possibilidade

insigne do homem, Na qual ele pode assumir a si mesmo ou se furtar de si mesmo.

Assumindo esta espera, instando na serenidade, o homem amanha

o seu pensante coração

na simples paciência

da generosidade única

de o nobre recordar.

O homem, então, pode presumir a nobreza de sua essência e presumir mesmo a

amplitude do instante, porque instante ele próprio na espera poderia esperar o mais

longamente. Nesta reiteração da espera, neste recordar que o mantém na nobreza de sua

procedência, o homem teria então o seu Dasein projetado e lançado para e sobre o seu Ser o

mais próprio. E aqui o seu Dasein se abriria e se ampliaria sobre a liberdade a mais plena – do

ponto de vista do caráter positivo desta liberdade, dando começo ao que quer que seja

concernente ao seu princípio projetivo a partir de si (de sua essência) e do ponto de vista do

seu caráter negativo, livre dos constrangimentos da vontade e, assim, livre da representação e

do seu horizonte parcial. Sustentado, instante, em sua essência, livre da vontade impositiva,

afim com o nobre, o homem instaria na própria gratidão agraciadora que, enquanto caráter

essencial da livre amplidão, é ao mesmo tempo atribuição e retribuição de Ser e tempo

próprios, isto é, livres.

Sobre a gratidão que o homem sereno experimentaria, é necessário que se diga ainda

que ela é o agradecimento espontâneo da própria concernência deste homem à livre amplidão

a partir da qual se amplia o seu Ser. Tal gratidão não agradece nunca por um algo, agradece

apenas por poder agradecer, ou seja, por instar concernente e, assim, gozar da serenidade

facultada pelo ampliamento do homem no aberto de sua essencialidade. Mas, o

agradecimento espontâneo no qual o homem poderia instar tem sua raiz unicamente na livre

amplidão ela mesma; ela concerne inteiramente à gratuidade da permanente atribuição e

retribuição de Ser e tempo pelo acontecimento, o próprio da livre amplidão. É nestes termos

que o sentido fundamental da gratidão é precisamente o sentido da essência do pensamento, a

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serenidade na espera, e é neste sentido que a sua espontaneidade se distingue em absoluto da

vontade, se é que esta deva se manter, ela própria, reduzida à função de uma faculdade prática

imanente a uma consciência constituída na forma de um Sujeito da representação. Vale

observar neste contexto que a vontade, vista desde tal perspectiva, só pôde ser suposta pela

Metafísica como o caráter essencial do pensamento à custa do fato deste aqui haver sido

contemplado ele mesmo enquanto representação; mas para que este arranjo fosse possível a

espontaneidade, característica da livre amplidão, teve que ser primeiramente ela atribuída à

forma do Ser deste pensamento representativo, o que manteve obscurecido, por todas as

épocas da Representação, o seu fundamento próprio. Ainda por respeito à Metafísica, é

preciso dizer, portanto, que gratidão é algo inteiramente distinto de vontade e vice-versa. E

supor que isto, uma vez compreendido, teria evitado que tivesse lugar tanta controvérsia por

respeito à vontade; a idéia de uma consciência infeliz (Hegel) e de uma vontade revoltada

(Camus) teria, talvez, encontrado uma abordagem muito mais favorável às necessidades da

existência e do pensamento se a espontaneidade tivesse se apresentado como um problema de

análise antes que como uma mera evidência disponível para dar forma à vontade.

Retomando o percurso meditativo do Diálogo, vemos que tão logo este encontra na

gratidão o sentido último da essência do pensamento enquanto serenidade, a personagem do

cientista encontra a ocasião para levantar a última questão, a qual retorna sobre a problemática

inaugurada no Diálogo. Tão próximos estão os interlocutores da essência da livre amplidão e,

contudo, tão distantes se sentem dela própria. O que se dá então entre a essência e o Ser? O

que se dá com a essência da livre amplidão, que se diferencia do ente diferenciando-se em si

mesma? O próprio cientista assinala: “Mas a livre amplidão e sua essência podem não ser

coisas diferentes, caso possa haver-se falado aqui de coisas”.36 E a personagem do erudito

arremata: “O mesmo da livre amplidão é presumivelmente sua essência e o mesmo dela

mesma”.37 Considerando de partida que a livre amplidão não é nenhum ente, é possível

compreender que a relação entre ela e sua essência se dá enquanto jogo de proximidade e

distância, que é bem o modo de dá-se de Ser e de tempo, que por sua vez é bem o modo do

dar-se diferenciado do Mesmo fundado no acontecimento.

Tal proximidade e tal distância não concernindo a ente algum tampouco podem ser

pensadas enquanto termos isolados por relação à livre amplidão. Proximidade e distância é o

modo do Ser da livre amplidão se dá enquanto Ser regionalizante. A personagem do professor

esclarece com propriedade: “a livre amplidão tudo regionalizando, tudo conjuga e faculta a si

36 idem, p. 65. 37 idem, ibidem

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27

mesma retornar à quietude própria no Mesmo”.38 Este Ser regionalizante, que revela a livre

amplidão enquanto “a proximidade do distante e o distante da proximidade”, mostra o caráter

próprio do acontecimento no interior do qual Ser e tempo acontecem enquanto alcance e

expansão. O homem, concernido à livre amplidão, postado enquanto Da-sein na clareira do

Ser, dramatiza, com o seu existir compreensivo em vista do seu poder-ser factício, a

proximidade do distante (da essência) da livre amplidão ao projetar-se deliberado para o Ser

transcendendo o ente, e dramatiza o distante (o Ser) desta proximidade concedida enquanto

distância ao retornar necessariamente lançado ao ente para, a partir dele, reiterar o

movimento transcendente do pensamento, movimento no interior do qual a livre amplidão

procede à regionalização onde Ser e ente se conjugam em sua diferença e através da qual ela

pode retornar a quietude do seu Mesmo. Isto dito de modo mais esclarecedor, esse projetar-se

deliberado para o Ser, no qual a livre amplidão revela o seu caráter de proximidade da

essência, o pensamento o procede se ampliando na espera da serenidade, ou seja, instando no

retorno a si mesmo; a distância do Ser de sua essência, (seu mesmo), o pensamento a sofre na

sua permanência já prévia no lançamento, condição única desde a qual ele pode retornar

continuamente a si. Em Ser e tempo se reiterava o sentido desta proximidade e desta distância

quando se reafirmava instante: “O Dasein é um ente que em seu Ser marcha para este próprio

Ser”. A marcha do Ser para o Ser, para o seu Mesmo diferenciado é o fato ontológico peculiar

da proximidade do distante e do distante da proximidade, que concernirá sempre à ocorrência

do Um diferenciando-se em si mesmo – ocorrência que somente a um ente é dada acordar-se:

ao Dasein, precisamente por seu Ser enquanto Da-sein.

Procedida à destruição ontológica da argamassa que sustentava a representação

histórica do pensamento enquanto vontade e operatividade lógica, as personagens do Diálogo

podem agora se inquirir acerca de uma denominação última da essência do pensamento e do

seu correspondente conhecimento. E aqui se encena sob uma luz bem delineadora o passo de

volta tantas vezes invocado pela Filosofia que orienta o curso destas personagens. O dizer

grego, Heráclito o mostra, manifesta esta denominação da essência do pensamento solicitada

no Diálogo com a palavra Ἀγχιβασίη, o dizer alemão a manifesta com a palavra Herangehen.

As palavras grega e alemã se traduzem em português com a palavra aproximação. Nos três

idiomas as palavras trazem a indicação da ambigüidade manifesta no próprio dizer do

fenômeno nomeado. Aproximação, visada na perspectiva metafísica que instituiu o

pensamento e o conhecimento sobre o fundamento da vontade e da lógica, é manifestada

38 idem, p. 66

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enquanto a investida que o pensamento procede sobre o ente no intuito de contra pô-lo

previamente organizado, investida esta que pretende ser legitimada enquanto conhecimento

verdadeiro. Visada na perspectiva fenomenológica que orienta este Diálogo, a palavra

aproximação é manifesta por seu dizer precisamente enquanto o “ir-à-vizinhança”, o que

caracteriza propriamente o fenômeno da proximidade e da distância constitutivas do

desdobramento próprio à livre amplidão. Ir-à-vizinhança longe de ser uma investida é antes

um admitir-se e sustentar-se no entre possível facultado ao pensamento e ao conhecimento

pela serenidade enquanto ampliamento de seu movimento de espera onde repousa a condição

de retorno do ente ao repouso de seu Mesmo.

Aproximação enquanto instância no entre, enquanto sustentação de proximidade e

distância é a compostura que constitui a forma originária que põe o pensamento livre e em

concernência ao ente, do mesmo modo que põe o ente livre e em concernência ao

pensamento, por possibilitar a este aqui a sua marcha precursora para o Ser. No entre de Ser e

ente, o pensamento prolonga seu ampliamento possível e sustenta o Ser do ente, sustentando

assim a própria condição deste enquanto coisa.

A imagem que o Diálogo oferece desta aproximação só poderia ser de feitio poético. É

a noite que tudo amalgama, que tudo amplia, que tudo condiciona avizinhando todas as

distâncias sem destituí-las; é a noite que insta oculta no interior do próprio dia engendrando

em silêncio perpétuo toda a transformação, todas as possibilidades do dizer de manifestar; é a

noite que enquanto puro Ser, puro tempo desdobra para olhos discípulos, para olhos de sábios

e poetas, para olhos capazes da admiração, o espetáculo eternamente inaugural da

aproximação: A noite que guarda o sentido último da espera e da serenidade, da gratidão e da

nobreza que nos doando procedência nos reclama o permanente recordar.

Agosto de 2014.

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BIBLIOGRAFIA:

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Estrelas, 2113

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