Enfoques Sobre a Relação Ciência, Tecnologia e Sociedade - entrevista

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DataGramaZero - Revista de Cincia da Informao - v.3 n.6 dez/02 ARTIGO 02Enfoques sobre a relao Cincia, Tecnologia e Sociedade: Neutralidade e Determinismo*On Science, Technology and Society relationship: neutrality and determinismporRenato DagninoResumo: De uma forma bastante genrica e mesmo ingnua, mas adequada finalidade deste trabalho, possvel classificar as formas de abordar o campo dos Estudos Sociais da Cincia e Tecnologia ou, mais especificamente, a relao Cincia, Tecnologia e Sociedade, em duas grandes categorias. A primeira possui como foco privilegiado de anlise, ou como elemento determinante da dinmica da relao, o seu primeiro plo, a C&T; enquanto que, a segunda, a Sociedade.Palavras-chave: Estudos Sociais da Cincia, Sociologia da Cincia, Cincia e Sociedade, Tecnologia e SociedadeAbstract: Widely, or even navely, though appropriately speaking to this work concern, it is possible to classify in two main categories the form of addressing the Social Studies of Science and Technology, or more specificaly, the relationship between Science & Technology and Society. The first category has Sc & Tech as privileged focus of analysis, or as determinant element of the relationship dinamics; the other focuses Society.Keywords: Social Studies of Science, Sociology of Science, Science and Society, Technology and Society1 IntroduoDe uma forma bastante genrica e mesmo ingnua, mas adequada finalidade deste trabalho, possvel classificar as formas de abordar o campo dos Estudos Sociais da Cincia e Tecnologia ou, mais especificamente, a relao Cincia, Tecnologia e Sociedade, em duas grandes categorias. A primeira possui como foco privilegiado de anlise, ou como elemento determinante da dinmica da relao, o seu primeiro plo, a C&T; enquanto que, a segunda, a Sociedade.Esta primeira forma de abordagem, que aqui denominamos correndo o risco do simplismo com foco na C&T, caracteriza-se pela suposio de que a C&T avana contnua e inexoravelmente, seguindo um caminho prprio, podendo ou no influenciar a sociedade de alguma maneira.Para a segunda abordagem, que aqui denominamos com foco na sociedade, o carter da C&T, e no apenas o uso que dela se faz, socialmente determinado e, devido a essa funcionalidade entre a C&T e a sociedade na qual foi gerada, ela tende a reproduzir as relaes sociais prevalecentes e, at mesmo a inibir a mudana social.Levando adiante esta tentativa de classificao, poderamos dizer que cada uma dessas abordagens d origem a duas idias com elas coerentes e que so aqui consideradas variantes das mesmas.As duas variantes associadas primeira abordagem com foco na C&T - so as da Neutralidade da C&T e do Determinismo Tecnolgico. E, segunda com foco na sociedade a Tese fraca da no-neutralidade, que se poderia tambm denominar Construtivismo, e a Tese forte da no-neutralidade.O objetivo bsico deste trabalho revisar e resenhar a literatura sobre o tema buscando, por um lado, classific-la de acordo com a taxonomia acima proposta e proporcionara uma viso de conjunto que permita ao leitor formar sua opinio acerca das idias e posies apresentadas. Por outro lado, o trabalho procura, paulatinamente, seguindo a prpria ordem histrica em que se desenvolve o debate sobre o tema, mostrar as contradies e inconsistncias que este vai revelando e a insuficincia da maioria dessas idias e posies para explicar a realidade observada. A este respeito, cabe a referncia a opo de referir-nos em conjunto cincia e tecnologia; a ponto de fazer este conjunto - C&T - concordar gramaticalmente com a terceira pessoa do singular. Ela no decorre simplesmente da percepo difundida de que a interpenetrao do que antes se diferenciava como sendo pesquisa bsica e aplicada as torna, cada vez mais, uma mesma coisa. Ela est associada postura que assumimos de consider-las como determinantes do contexto social e, mais do que isto, capazes de inibir sua mudana.Para cumprir seu objetivo, o trabalho divide-se em dois captulos, alm deste de introduo e um ltimo, de consideraes finais, que tratam das duas abordagens. Cada um destes dois captulos se divide em duas sees, que discutem uma das variantes dessas abordagens. Cada seo inicia-se por uma apresentao da idia ou conceituao da variante nela explorada para, em seguida, situar o leitor frente os principais aspectos da bibliografia consultada.Sua motivao mais geral no mbito da linha de investigao que temos perseguido nos ltimos anos avaliar a implicao da adoo de cada abordagem e variante para a elaborao de poltica de C&T, tendo como referncia um cenrio social e ambientalmente sustentvel para o desenvolvimento latino-americano.Ainda a ttulo de introduo, dois aspectos deste trabalho merecem destaque. O est representado na figura abaixo, onde se procura enfatizar a existncia de, mais do que uma bipolaridade ou separao estrita, umcontinuumque se estende entre aquelas duas abordagens. Esta idia compreende desde uma posio extremada defendida por uns poucos que entendem at mesmo a tecnologia como sendo neutra passando pelos mais numerosos, que (quando indagados e na defensiva) aceitam a no neutralidade da tecnologia, mas entendem que o contexto engendrado pelas relaes sociais e econmicas e pelos imperativos de natureza poltica determina profundamente o ambiente em que gerado o conhecimento cientfico e tecnolgico. Em conseqncia, este conhecimento internalizaria as caractersticas fundamentais deste contexto e se constituiria em algo funcional para o seu desenvolvimento e permanncia. Ou mais do que isto, os que entendem que no apenas a tecnologia e nem mesmo a cincia gerada num ambiente socioeconmico marcado pela desigualdade social pode servir para alavancar um processo de reduo desta desigualdade.Uma outra maneira de interpretar a figura, que guarda estreita relao com o percurso adotado para apresentar este trabalho, a que leva em conta a evoluo histrica que tem tido o tratamento dos temas aqui levantados ou, mais precisamente, a interlocuo e debate que se estabelecem entre as abordagens e variantes. Ela aponta que a variante da neutralidade foi a que mais cedo se instaurou como forma de entendimento da natureza neutra e universal do conhecimento cientfico que, na verdade, recm se diferenciava e se opunha religio. Foi contra este entendimento que Marx teria enunciado a idia do determinismo tecnolgico, postulando que na polaridade dialtica entre as relaes de produo e as foras produtivas cabia a estas o papel dinmico e determinante. O pensamento marxista contemporneo, ao revisitar a obra de Marx e num esforo por entender as vicissitudes do socialismo real, abre caminho, via a crtica ao determinismo, aos desdobramentos que se seguem. Somando-se crtica proveniente de outras matrizes tericas e ideolgicas preocupadas com a questo do meio-ambiente, do armamentismo, da alienao, responsveis pela formulao do que denominamos tese fraca da no-neutralidade, o pensamento marxista adota crescentemente a tese forte como referncia para o entendimento das relaes entre cincia, tecnologia e sociedade.neutralidade da tecnologia e da cinciadeterminismo tecnolgicofoco na C&Ttese fraca da no-neutralidadetese forte da no-neutralidadefoco na SociedadeO segundo aspecto que nos parece necessrio destacar ainda nesta introduo diz respeito s caractersticas da literatura abordada, que condicionaram o processo de elaborao deste trabalho e o seu formato final. Na grande maioria, ela no coloca o debate aqui abordado no centro de sua preocupao, o que faz com que os autores tendam a assumir uma postura ecltica e inconclusiva em relao aos elementos de nossa taxonomia; sobretudo se eles se referem a tecnologias ou sistemas tcnicos particulares, quando sua posio costuma ser uma equilibrada soluo de compromisso. Mas mesmo a literatura que trata especificamente da construo social da cincia no costuma abordar a questo de uma perspectiva poltica, semelhante a que orientou a concepo deste trabalho. Isto , no sua preocupao indagar a respeito do papel que pode desempenhar a C&T para a mudana social. Finalmente, ainda quando esta preocupao est presente, em muitos casos seu eixo de reflexo no o analtico-conceitual, que caracteriza este trabalho, mas o histrico. Este fato obrigou a que, em dois momentos do trabalho, ele fosse adotado. O primeiro, na seo 2.1, quando se explica como, na transio do feudalismo para o capitalismo, teria ocorrido uma segmentao e hierarquizao do processo de trabalho, responsvel pelas caractersticas da C&T geradas. O segundo, na seo 2.2, quando se comenta um outro processo de transio, o do capitalismo para o socialismo, na Unio Sovitica, apontando para as distores que o emprego da C&T capitalista teria determinado, fruto de sua incompatibilidade com as relaes sociais de produo socialistas j em construo.Essas caractersticas da bibliografia fizeram com que as posies dos diferentes autores tivessem que ser garimpadas na sua obra orientada, de fato, para o tratamento de outras questes - e construdas em torno da questo central da neutralidade. Como se, num cadinho contendo metais em fuso, se inserisse um cristal de um outro metal e, em torno dele se fossem agrupando cristais que guardassem com ele alguma afinidade com o objetivo de produzir uma determinada liga metlica. Neste sentido, embora se use recorrentemente ao longo do trabalho o termo debate, h que salientar que ele raramente ocorreu de fato entre as posies aqui referidas (ou melhor, construdas). Nem mesmo quando, ao contrrio do que em geral se verificou, a questo da neutralidade assumiu uma centralidade no mbito da preocupao dos autores.Finalmente, e ainda ligado s caractersticas da literatura abordada, est o fato de que, como ocorre freqentemente, na obra de autores que se contrapem a vises, num determinado momento ou local, dominantes onde estas aparecem melhor explicadas. por esta razo, mas no s por ela, que segunda abordagem e em especial a sua segunda variante da tese forte da no-neutralidade dedicada maior ateno.O fato de que em muitos casos o que se denomina aqui uma abordagem ou uma variante realmente o resultado de um debate entre autores e linhas de pensamento faz com que, s vezes, seja quase impossvel separar a crtica que faz um determinado autor s proposies herdadas e aquilo que em certos casos s mais tarde veio a se constituir propriamente numa proposta formulada como uma alternativa.2 A primeira abordagem: com foco na C&TDe acordo com esta abordagem, a C&T entendida como infensas ao contexto sociopolitico, como possuindo um desenvolvimento linear em busca da verdade, endogenamente determinado, universal e inexorvel, ao longo do qual apenas existe a diferena entre uma tecnologia mais avanada (de ponta, mais eficiente, mais recente) e menos avanada (obsoleta, ineficiente, ultrapassada). uma concepo evolucionista, uma espcie de darwinismo tecnolgico, uma vez que a histria reduzida a um processo em que sobrevivem as tecnologias mais aptas, mais eficientes, mais produtivas.C&T seriam um assunto tcnico e no poltico; haveria uma barreira virtual que protegeria o ambiente de produo cientificotecnologico do contexto social, poltico e econmico. Barreira esta que impediria que os interesses dos atores sociais envolvidos no desenvolvimento da C&T possam determinar a trajetria de inovao.Esta viso linear do desenvolvimento da C&T, como indicado, pode ser entendida como possuindo duas variantes. A primeira, da neutralidade, entenderia esta barreira como sendo, de fato, uma barreira impermevel nos dois sentidos. Isto , nem a C&T influenciada pelo contexto social nem possui um poder de determinar a sua evoluo, sendo ento desprovidas de valor e dele independente. Nem implicaes de tipo incremental na sua trajetria, como as sugeridas pela tese fraca, seriam plausveis.A segunda, do determinismo, entenderia esta barreira como sendo uma espcie de membrana impermevel no sentido da sociedade para a C&T, mas no no sentido contrrio. Isto , o desenvolvimento da C&T considerado como uma varivel independente e universal que determinaria o comportamento de todas as outras variveis do sistema produtivo e social; como se ela dependesse inteiramente das mudanas e da organizao tecnolgicas. O desenvolvimento econmico determinado pelo avano da C&T e a tecnologia a fora condutora da sociedade e um determinante da estrutura social.A variante do determinismo pode ser entendida ento como uma reao da neutralidade que nega, ainda que parcialmente, a idia de que existiria uma barreira separando a C&T da sociedade. J a abordagem com foco na sociedade questiona a impermeabilidade da barreira no sentido da sociedade para a C&T. Isto , entende que esta determinada por aquela e, implicitamente aceita a impermeabilidade no sentido contrrio. A variante da tese forte acrescenta um elemento adicional a este questionamento na medida em que sugere que a intensidade desta determinao seria to forte a ponto de inibir a mudana social.Interpretaes sobre a C&T de grau de sofisticao consideravelmente diferentes e derivadas de viso de mundo ideologicamente to distintas quanto o liberalismo e o marxismo, a ponto de ser questionvel seu agrupamento e tratamento conjunto, convivem ao longo do espectro neutralidade-determinismo. Neste sentido, a proposio implcita no desenvolvimento que damos a este captulo, de que a variante do determinismo seria uma radicalizao daquela da neutralidade, no deve ser entendida como se estivssemos apontando para a existncia de um processo de derivao da segunda a partir da primeira.2.1. A Neutralidade da C&TA idia da neutralidade do conhecimento cientfico tem sua origem nas prprias condies de seu surgimento como tal, a partir do sculo XV, como uma oposio ao conhecimento (ou pensamento) religioso. Este sim, era considerado como claramente no-neutro, uma vez que tinha por objetivo intervir na realidade social atravs dos fiis a ponto de pretender a tranformao e a converter ou dar combate aos adeptos de outras crenas.O Iluminismo foi o primeiro movimento importante que, ao mesmo tempo e no por acaso, questionou o pensamento religioso e potencializou a idia da neutralidade. O positivismo, a partir do final sculo XVIII, e tendo como base o pensamento de Bacon e Descartes, contribuiu para refor-la. O primado positivista de que a subjetividade devia ser contida dentro dos limites da objetividade e sua tentativa de reproduzir a realidade assim como ela d fora crena de que a cincia a expresso de uma verdade absoluta. Um conceito de progresso que se contrape radicalmente ao do pensamento religioso dominante, e o reconhecimento exclusivo dos fatos positivos, dos fenmenos observveis, como sua manifestao, aliado percepo de que os processos de natureza tcnico-cientfica principais portadores do progresso cresceriam em importncia em comparao com os polticos, aumenta a confiana na cincia como fonte, seno nica, privilegiada, do saber verdadeiro e universal.A idia da neutralidade parte de um juzo fundacional difuso, ao mesmo tempo descritivo e normativo, mas abarcante e potente, de que a C&T no se relaciona com o contexto no qual gerada. Mais do que isto, que permanecer dele sempre isolada um objetivo e uma regra da boa cincia. E, finalmente, que ela pode de fato ser isolada. Ao entender o ambiente de produo cientfico-tecnolgica como separado do contexto social, poltico e econmico esta idia torna impossvel a percepo de que os interesses dos atores sociais de alguma forma envolvidos com o desenvolvimento da C&T possam determinar a sua trajetria.Essa idia leva impossibilidade de desenvolvimentos alternativos da C&T que coabitem em um mesmo ambiente. Ou seja, s existe uma nica C&T verdadeira. As diferenas contextuais geogrficas, culturais, ticas, entre outras, ficariam em um plano secundrio, subsumidas numa preocupao marginal com a "adaptao". Quando isto no ocorresse, surgiriam "anomalias" que poderiam se acumular com o passar do tempo e quebrar o paradigma vigente (KUHN, 1989). Assim, as contradies se resolveriam naturalmente, atravs caminhos iluminados pela prpria cincia, com novos conhecimentos e tcnicas que superariam racionalmente os antigos, sem que se coloquem em questo a ao e os interesses dos atores sociais no processo inovativo.Ela coerente com a noo de progresso como uma sucesso de fases ao longo de um tempo linear e homogneo dando origem a resultados melhorados sucessiva, contnua e cumulativamente. Esta percepo de senso comum, de que o presente melhor que o passado e que conduzir a um futuro ainda melhor, em busca de uma finalidade imanente a ser alcanada, est em evidente consonncia com a idia da neutralidade. O desenvolvimento da C&T seria, no plano do conhecimento, uma manifestao de uma realidade assim percebida. Seria um resultado do seu progressivo desvelamento, da contnua descoberta da verdade e por isso, nico, universal e coerente com o progresso.Ela entende, igualmente, que conhecimentos criados e utilizados por diferentes civilizaes poderiam ser apropriados para finalidades quaisquer, e por atores sociais diferentes, a qualquer tempo. Mais do que isto, supe que a acumulao pura e simples de conhecimentos cientfico-tecnolgicos seria suficiente para garantir o progresso econmico e social a todos. A C&T teria uma apropriao universal, seria um patrimnio da Humanidade. Em conseqncia, uma trajetria de qualidade e "excelncia acadmica" imposta produo cientfica e a eficincia e produtividade da tecnologia, avaliadas geralmente por critrios quantitativos, levariam ao desenvolvimento social.Mas a cincia no permitiria apenas o progresso econmico e social pondo fim pobreza, o que se supunha traria felicidade e paz. Ela tambm ensinaria as pessoas a pensar racionalmente, o que levaria ao comportamento racional em todas as esferas de atividade. Graas cincia, a humanidade, ao livrar-se da poltica, implantaria o domnio da lgica e da razo, em substituio ao da emoo e da paixo, o que faria com que as prprias questes sociais e polticas pudessem ser tratadas de maneira cientfica, eliminando as disputas irracionais animadas por interesses polticos e produziria uma sociedade cada vez melhor.Esta idealizao, baseada no entendimento da C&T como sendo neutra passa por cima do fato de que a prpria racionalidade contm valores. Os juzos de valor no s so vistos como no-cientficos, mas, tambm contrrios cincia. A prpria poltica passa a ser tratada como uma questo tcnica, e a razo de uma linha de ao poltica passa a ser entendida como passvel de ser demonstrada ou provada por meios ou critrios cientficos. O cientificismo compartilha com o positivismo a convico de que todos os processos sociais ou fsicos podem ser analisados, entendidos, coisificados, mediante uma colocao cientfica para encontrar uma soluo objetiva e politicamente neutra.A contribuio da corrente de pensamento acerca das relaes entre a cincia e a sociedade liderada por Robert Merton, que teve um papel fundacional da sociologia da cincia norte-americana, uma referncia importante para entender o contexto normativo em que se desenrola o primado da racionalidade tcnica.Para esta corrente, a cincia tende a sofrer os impactos do que ocorre na sociedade, mas cabe ao cientista, atravs da adoo dos instrumentos, regras e mtodos cientficos evitar tais impactos. Esta viso, que permeava e ainda dominante no meio acadmico foi sistematizada por MERTON (1979), que constituiu um conjunto de normas e valores, morais e ticos a respeito: os imperativos institucionais da Cincia. Merton trata a Cincia idealmente, como se ela estivesse disposio da humanidade (comunalismo). Para que este ideal se cumprisse, seria necessrio o distanciamento de influncias externas ao meio cientfico e que expressassem interesses - religiosos, polticos, econmicos ou de grupos sociais - (universalismo). Aceita-se, portanto, um suposto desprendimento do cientista de sua concepo de mundo (desinteresse) e um rigor acadmico que garantiria a iseno do pesquisador. Seus interesses, crenas e valores estariam subordinados a critrios empricos, racionais e lgicos.O mtodo e a disposio do cientista em despir-se de juzos de valor seriam a garantia de que a cincia se mantivesse infensa s influncias polticas e sociais, que seus resultados fossem universais, que pudessem ser apropriados por qualquer sociedade, que fossem cumulativos; que a cincia estivesse em permanente evoluo.Os imperativos institucionais da Cincia podem ser, portanto, entendidos como normas de conduta da comunidade cientfica socialmente construdas. Eles no so necessariamente conservadores em relao manuteno das relaes de poder e de produo /reproduo do conhecimento contemporneo. Mas a suposta neutralidade defendida por Merton, e uma confuso entre o normativo (o que deveria ser) e o descritivo (o que ) termina dificultando aos cientistas a percepo de que as influncias "externas" so inevitveis. E isto, ao reforar o determinismo cientificotecnologico e a inviabilidade de construo de alternativas, favorece a instrumentalizao da C&T no capitalismo enquanto um mero mecanismo de acumulao do capital.Estes imperativos, formulados no plano normativo enquanto uma "tica" do cientista, ainda se mantm dominantes, embora como se ver adiante essa viso tenha sido questionada no plano acadmico no ambiente do debate da Sociologia da Cincia contempornea. A cienciometria, os diversos instrumentos de avaliao quantitativa da pesquisa, assim como a falta de ferramentas de anlise qualitativa da produo acadmica, so fruto deste tipo de compreenso neutra, instrumental, da C&T e esto disseminados enquanto "senso comum acadmico", apesar da existncia de debates, divergncias e controvrsias.Esta corrente de pensamento importante porque aquilo que era visto por muitos como uma tendncia natural do desenvolvimento da cincia, como uma caracterstica intrnseca sua neutralidade passa a ser entendido como algo a ser buscado. Contudo, mais do que um fortalecimento, pela via da assimilao, de uma observao descritiva a uma recomendao normativa, isto passou a ser entendido como uma norma da instituio cincia, como algo cuja aceitao e observncia passa a ser entendido como uma condio de entrada dos candidatos a cientistas ao mundo da cincia.2.2. O Determinismo TecnolgicoTambm neste caso consideramos que, embora correndo risco de simplificar e generalizar indevidamente, necessrio agrupar, sob esta variante, vises sobre a C&T formuladas em mbitos tericos e ideolgicos consideravelmente distintos.No seu primeiro ensaio publicado -A misria da filosofia -em que questiona a Proudhon, escrito entre 1846-47, Marx perpetra o que viria ser interpretado pelos seus seguidores, que focaram sua anlise sobre o tema da C&T, um dos seus maiores deslizes:O Sr. Proudhon, economista, compreende muito bem que os homens faam tecidos, materiais de linho e seda em determinadas relaes de produo. Mas o que ele no entendeu que essas relaes sociais determinadas so igualmente produzidas pelos homens, do mesmo modo que os tecidos de algodo, linho etc. As relaes sociais esto intimamente ligadas s foras produtivas. Adquirindo novas foras produtivas, os homens mudam o seu modo de produo, e mudando o modo de produo, a maneira geral de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relaes sociais. O moinho de mo dar-vos- a sociedade com o suserano; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial"Como fica evidente da leitura de sua obra e como tm apontado muitos dos seus analistas, a compreenso da C&T desenvolvida por Marx contraditria em relao sua construo social. Nela podem-se encontrar momentos em que a tecnologia apresentada como um elemento neutro, meramente instrumental, e que o decisivo ou importante a sua apropriao pela classe operria. Em outros, encontram-se afirmaes em que ela vista como trazendo em si, intrinsecamente, um elemento de subordinao e maior explorao do trabalhador. Finalmente, como na passagem acima citada, a C&T aparece como determinante das mudanas que ao longo da histria seriam responsveis pela sucesso dos modos de produo e pelo progresso social rumo ao comunismo.Para entender porque essa ambigidade no foi removida pelo desenvolvimento ulterior do marxismo e porque a questo da tecnologia foi por ele colocada em um plano secundrio, conveniente retomar alguns dos seus conceitos que guardam com ela relao direta.Segundo o marxismo, as relaes sociais de produo - na sociedade - podem ser entendidas a partir das relaes tcnicas de produo que se estabelecem no local de trabalho, decorrentes, estas, das tecnologias ou foras produtivas - utilizadas. Este argumento, explicado por Marx comparando o modo de produo feudal ao modo de produo capitalista. Segundo ele, no feudalismo, a relao entre servo e senhor era marcada por fatores extraeconmicos, responsveis pela manuteno das relaes sociais de produo e as mudanas tcnicas no eram o elemento principal para a extrao do trabalho excedente. No capitalismo, o trabalhador livre contratado pelo patro, proprietrio dos meios de produo, realiza o trabalho necessrio (que lhe pago sob a forma de salrio em remunerao pela sua fora de trabalho) e o trabalho excedente (em geral obscurecido, por no ser claramente distinguido do trabalho necessrio, e apropriado pelo patro sob a forma de lucro, a ttulo de remunerao pela sua capacidade empreendedora), que leva acumulao do capital e o desenvolvimento tecnolgico necessrio para a sua expanso. A partir desta comparao, chega concluso que uma das principais diferenas entre os dois modos de produo reside nas mudanas tcnicas que se verificam no sistema capitalista, que possibilitam a acumulao do capital, ao contrrio do que ocorre num modo de produo esttico, como o feudal.As relaes tcnicas so observadas no gerenciamento do trabalho, nos mtodos e tcnicas incorporadas, alm das mquinas e equipamentos que constituem a estrutura voltada para a produo no local de trabalho. So as relaes tcnicas de produo que determinam o carter das relaes sociais de produo e que em conjunto conduzem ao conceito de classe social. Este conceito, embora estreitamente ligado posio que ocupa um dado grupo social em relao aos meios de produo, mais precisamente, no capitalismo, da propriedade ou no dos mesmos, est referido tambm superestrutura ideolgica conformada pela infra-estrutura econmica que resulta da interao das relaes sociais de produo com as foras produtivas. Como aponta BURAWOY (1978:275): "Classe social torna-se o efeito combinado de um sistema de estruturas polticas, econmicas e ideolgicas encontrada em todas as arenas da atividade social"A dinmica da histria, segundo o marxismo, est baseada na idia de existncia de uma contradio dialtica entre relaes sociais de produo e foras produtivas. O desenvolvimento das foras produtivas era entendido como contnuo e determinado pelo avano "natural" e neutro do conhecimento cientfico que permitia o domnio da natureza pelo homem, coerentemente com a crena de que o desenvolvimento da humanidade seria linear, progressivo e contnuo tal como postulava o determinismo histrico tpico de muitas correntes filosficas nascidas no sculo XIX, entre elas a marxista. Este desenvolvimento das foras produtivas teria sido, no incio do capitalismo, a origem de sua superioridade frente ao feudalismo e a razo da paulatina desapario deste. Pouco a pouco, entretanto, as perturbaes que ele determinaria para o funcionamento do sistema capitalista, fruto do nvel de contradio crescente com as relaes de produo, terminaria pela substituio deste pelo socialismo. O capitalismo encontraria as condies objetivas de sua superao quando o carter cada vez mais socializado das relaes tcnicas de produo, imposto pela continua evoluo das foras produtivas se chocasse inevitavelmente com a apropriao privada do excedente econmico.Esse entendimento da C&T como um agente no apenas independente mas determinante do ambiente histrico-social, o desenvolvimento das foras produtivas seria responsvel, tanto pelas mudanas radicais na forma de organizao da sociedade observadas na histria, como pelas transformaes incrementais que ao longo de um mesmo modo de produo fossem ocorrendo na base econmica e na sociedade em geral. Ele seria ao mesmo tempo a causa do surgimento do capitalismo, quando as arcaicas relaes sociais de produo feudais com elas entrassem em contradio; pela sua expanso, quando as progressistas relaes sociais de produo que engendrava fossem capazes de aproveitar o estgio alcanado pelas foras produtivas; e, finalmente, pelo seu desaparecimento, quando um estgio superior destas levasse de novo a uma ruptura nas relaes sociais de produo. Momentos como este, caracterizados como sendo uma situao em que a contradio entre foras produtivas e relaes sociais de produo adquiriria uma importncia central na dinmica do modo de produo vigente, levariam ao surgimento das condies objetivas para a sua superao.A partir desse rpido resumo de alguns dos conceitos do marxismo que guardam relao direta com a C&T, possvel entender porque vrios autores seminais - como Engels, Plejanov, Bukharim e Stalin e outros de seus seguidores contemporneos - COHEM (1978) e MILLER (1984) mantendo o entendimento de que o desenvolvimento das foras produtivas era o motor da economia e que atravs dele era possvel explicar a histria, ajudaram a consolidar a postura do determinismo tecnolgico. E tambm entender porque foroso reconhecer, concordando com LLOBERA (19..), que esta postura continua sendo a mais comum entre os marxistas e entre a esquerda latino-americana em geral.Uma tentativa de sntese baseada nas inmeras contribuies de uma outra corrente marxista, contrria a do determinismo poderia ser assim enunciada: O desenvolvimento da C&T se d de modo inelutvel, automtico e endogenamente determinado sendo o agente causal necessrio da evoluo econmica e social, que dele depende, por ele conformado. Conseqentemente, o desenvolvimento da C&T deve ser entendido como um processo similar, tambm inelutvel, nico e linear. Assim, e retomando as palavras de Marx na sua crtica a Proudhon, poder-se-ia dizer que as diversas formaes sociais se derivariam das diversas formas do trabalho produtivo e que a histria da humanidade seria a histria do desenvolvimento das foras produtivas; o que desde o sculo XVII outra maneira de referir histria do desenvolvimento da C&T (PEREDA, 1982).Mas por que uma concepo to frgil teria sido to amplamente aceita? Por que a discusso sobre a C&T entre os marxistas teria sido colocada em um plano secundrio? Ao que parece, a causa teria sido, no plano terico, o j mencionado determinismo histrico e sua variante, o determinismo tecnolgico. No plano prtico, a priorizao da questo da transio ao socialismo e, em funo dela, a necessria busca da apropriao - pura e simples - da tecnologia. No plano da militncia, a idia de que o capitalismo teria naturalmente o seu fim determinado pelo contnuo desenvolvimento das foras produtivas e que o socialismo seria inevitvel, era extremamente atraente. O fato que essa concepo parece ter sido uma das razes que afastou a C&T do debate e reforou uma viso to instrumental a ponto de no poder ser desconsiderada na anlise da experincia do socialismo real.Embora a idia de compromisso simtrica a esta idia, de que a mudana tecnolgica no obedea somente a uma racionalidade tcnico-econmica e que possa estar condicionada pelas relaes sociais, tenha posteriormente ganho muitos adeptos, foi negada por vrios autores de filiao marxista.No nossa inteno avanar neste sentido, mas fcil imaginar as implicaes que essa interpretao teve para o marxismo, enquanto doutrina balizadora para a superao do modo de produo capitalista. Aceitar que nenhuma sociedade poderia adotar opes tecnolgicas distintas s dominantes nas sociedades mais avanadas, que seriam as que ensejam uma maior produtividade do trabalho, levou no apenas ao no questionamento da forma como se processava no capitalismo o desenvolvimento da C&T entendida na realidade como nica mas a sua mera utilizao para a construo do socialismo.3 A segunda abordagem: foco na SociedadeA abordagem com foco na sociedade subdividida nas que denominamos tese fraca da no-neutralidade e tese forte da no-neutralidade. A primeira postula que o contexto engendrado pelas relaes sociais e econmicas e pelos imperativos de natureza poltica conforma o ambiente em que gerado o conhecimento cientfico e tecnolgico. E que, em conseqncia, este conhecimento internaliza as caractersticas fundamentais deste contexto e constitui-se em algo funcional para o seu desenvolvimento e permanncia.A tese forte da no-neutralidade incorpora a proposta da tese fraca e vai mais alm. A C&T gerada sob a gide de determinada sociedade, e portanto construda de modo a ela funcional, est de tal maneira comprometida com a manuteno desta sociedade que no passvel de ser utilizada por outra sociedade. Suas caractersticas, por estarem intrinsecamente determinadas por uma dada sociedade, a tornam disfuncional para um contexto social, poltico, econmico e cultural que dela difere de modo significativo. Assim, a sua apropriao por uma outra sociedade orientada por objetivos socialmente distintos ou, mais importante, sua utilizao para a construo de uma nova sociedade ou para alavancar o processo de mudana de um contexto pr-existente numa outra direo que no aquela que presidiu seu desenvolvimento no adequada.Neste captulo, apresentamos inicialmente a primeira tese procurando identificar a contribuio das duas principais correntes de pensamento a construtivista e a marxista ao tema. O fato de que nem sempre a filiao dos autores tratados se encontra claramente definida no permite, entretanto, uma adequada identificao. Adicionalmente, o fato de que muitos dos autores que avanam para alm da Tese Fraca, endossando a Tese Forte, apresentam o que consideramos os argumentos que levam a sua aceitao de forma especialmente convincente, faz com que eles sejam tratados na primeira seo do captulo.3.1. A Tese Fraca da no-neutralidadeEsta seo apresenta as duas correntes de pensamento que mais contriburam para a formulao do que denominamos a Tese Fraca da no-neutralidade: o Construtivismo e o Marxismo. O marxismo, preocupado em questionar o determinismo tecnolgico apresentado aqui como a segunda variante da abordagem com foco na C&T, e que parecia responsvel pela degenerescncia do socialismo real, tinha como interlocutor o pensamento marxista. Sua inteno era embasar a hiptese de que teria sido a adoo de tecnologias e de formas de produo de conhecimento cientifico e tecnolgico tipicamente capitalistas, numa situao de transio em que relaes de produo j socialistas estavam em processo de consolidao, cujo fundamento (ou libi) era o determinismo, eram a causa desta degenerescncia. Embora conscientes de que esta inteno apontava para a construo da tese forte, esta primeira parte do argumento, relativo no transio do capitalismo ao socialismo, mas a do feudalismo ao capitalismo, apresentada no segundo item desta seo. A primeira corrente de pensamento, dialogando com a variante da neutralidade, procura mostrar como em determinadas situaes evidente a influncia das relaes sociais e econmicas no desenvolvimento da C&T.3.1.1. Os avanos e os limites do ConstrutivismoAs colocaes de Merton tm sido crescentemente questionadas por pesquisadores que concebem a C&T como uma construo social, desde meados da primeira metade do sculo XX. Ao considerarem-nas como no-neutras, no-nicas ou determinadas, eles iniciam o debate entre as diversas vises que do origem aos estudos sobre a construo social da C&T e que tm por base as disciplinas da sociologia, economia, filosofia e poltica.Os Estudos Sociais da C&T, ao tratarem nos ltimos anos da influncia da poltica, da cultura e da economia no desenvolvimento cientfico-tecnolgico, possibilitaram a apreenso da construo social da C&T como algo intrnseco sua dinmica. Contudo, isto ainda pouco percebido pela maioria dos atores sociais envolvidos com a tomada de deciso sobre o tema. A compreenso da C&T enquanto instrumento neutro, verdadeiro, universal e indiferente aos interesses polticos ainda predominante.A Nova Sociologia da Cincia e a Sociologia da Inovao argumentam que as relaes sociais envolvendo instituies e atores sociais revelam a existncia de controvrsias e contradies que demonstram a multiplicidade de alternativas e trajetrias de desenvolvimento da C&T. Idias e valores subjetivos permeiam a produo e a reproduo da C&T. A relao dos atores sociais com a C&T pode inclusive lev-los a uma compreenso crtica, na medida em que percebem que interesses objetivos e subjetivos so inseparveis da trajetria inovativa.Uma importante corrente de pesquisadores que conformaram o que hoje se conhece como Construtivismo constitui-se num ambiente poltico balizado pela crtica, tanto ingenuidade conservadora dos imperativos mertonianos quanto ao mecanicismo aparentemente progressista do determinismo marxista. Tanto a neutralidade da C&T em que desenvolvimento tcnico-cientfico entendido como uma varivel independente e universal, como a viso determinista, em que se supe que ele capaz de transformar as sociedades e culturas de forma inexorvel so questionadas, seja como modelo descritivo seja como normativo. De fato, nem uma nem outra deixava espao para a abertura da caixa preta do processo decisrio da C&T, para a formulao de propostas democrticas e participativas que introduzisse qualquer tipo de controle, regulao ou participao, tidos at ento como tendentes a produzir efeitos negativos sobre o desenvolvimento da C&T.Um dos mais importantes pesquisadores desta corrente Langdon Winner. No segundo capitulo de sua principal obra The Whale and the Reactor intitulado Do Artifacts Have Politics?, Winner argumenta que mquinas, estruturas e sistemas devem ser julgados, no apenas por suas contribuies eficincia e produtividade e por seus efeitos ambientais positivos ou negativos, mas tambm pela forma em que podem incorporar formas especificas de poder e autoridade. Sistemas tcnicos passaram a estar imbricados com as determinaes da poltica fazendo com que a organizao fsica da produo industrial, a indstria da guerra, as comunicaes e outros sistemas viessem a influenciar profundamente a forma como se d o exerccio do poder e a experincia da cidadania.Sua colocao de que nas controvrsias sobre tecnologia e sociedade no h idia mais provocativa do que aquela que coloca as coisas tcnicas como possuindo qualidades polticas o eixo e sua reflexo. Por isso, a linha de argumentao por ele seguida aqui exposta com algum detalhe.Seguindo essa idia, descreve duas situaes em que artefatos tecnolgicos podem conter propriedades polticas. A primeira ocorre quando as caractersticas especficas dodesignou do arranjo de um dispositivo ou sistema podem prover meios convenientes para o estabelecimento de padres de poder e autoridade num dado contexto, favorecendo os interesses de uma determinada comunidade ou grupo social, em detrimento de outros. A segunda, quando propriedades "intratveis" de certos tipos de tecnologia podem estar fortemente, seno inevitavelmente e ex-ante, ligadas a padres institucionalizados particulares de poder e autoridade. Nesse caso, a escolha inicial de se adotar ou no certo artefato decisiva em termos de suas conseqncias. No caso extremo em que no existamdesignsou arranjos fsicos alternativos que possam apresentar implicaes significativamente diferentes, no h possibilidade de interveno criativa no mbito de um dado sistema social (capitalista ou socialista) que possa alterar a "intratabilidade" da tecnologia; isto , ou alterar significativamente a qualidade de seus efeitos polticos.Pare precisar melhor essas duas situaes, Winner parte da colocao de que afirmar que certas tecnologias possuem propriedades polticas, pode parecer primeira vista um grande engano. Procurar o bem ou o mal contidos em agregados de ao, plstico, transistores, circuitos integrados, produtos qumicos etc., pode parecer uma mistificao (dos artefatos), que evita revelar as verdadeiras fontes humanas de liberdade e opresso, justia e injustia.Assimilando esta percepo, que o autor considera um tanto ingnua, ao que denomina de teoria dadeterminao socialda tecnologia, ele argumenta que ela falha pelo fato de no conseguir olhar por detrs dos artefatos tcnicos para enxergar as circunstncias sociais de seu desenvolvimento, aprovao e uso. Afirmando que a importncia no da tecnologia em si, mas sim do sistema econmico e social no qual ela est imersa e que a tecnologia no importa de todo, seria uma idia reducionista, confortvel aos cientistas sociais. Ela valida sua suspeita de que no h nada de distintivo,a priori, no estudo da tecnologia, porm, insuficiente para tratar a realidade onde aquelas duas situaes se manifestam.Segundo o autor, h boas razes para se acreditar que a tecnologia, em si, possui algum contedo poltico. Por esse motivo, e baseado em contribuies de vrios autores, prope o que denomina a teoria poltica da tecnologia. Esta estaria preocupada com omomentumdos sistemas scio-tcnicos de larga escala, para a resposta das sociedades modernas a certos imperativos tecnolgicos e para as maneiras em que os fins humanos so poderosamente transformados conforme so adaptados aos meios tcnicos. Esta teoria, ao invs de reduzir tudo ao jogo das foras sociais, leva os artefatos tecnolgicos a srio, insistindo que se preste ateno s caractersticas dos objetos tcnicos e s implicaes de tais caractersticas. Esta teoria, ao identificar certas tecnologias como portadores de fenmenos polticos coloca-se como um complemento necessrio teoria dadeterminao socialda tecnologia.Atentar para essa teoria permite identificar distintos tipos de situao; incluindo aquelas duas inicialmente indicadas.Segundo Winner, a histria da arquitetura, do planejamento urbano e das obras pblicas proporciona exemplos de arranjos fsicos ou tcnicos que, por possurem propsitos polticos implcitos ou explcitos, determinaram efeitos significativos sobre a e ordem social. Um deles so as pontes de Long Island (Nova York), baixas demais para que nibus passem por baixo delas. Essas pontes, idealizadas por um grande mestre das obras pblicas americanas, foram edificadas com o claro propsito de evitar que nibus chegassem at os parques e lugares de lazer de Long lsland. Impedindo a passagem de nibus, impedia-se o acesso de negros e pessoas pobres a essas reas consideradas nobres, assegurando-se assim a presena exclusiva das classes mdias e altas.Nesse exemplo, pode-se constatar a importncia de arranjos tcnicos (o projeto das referidas pontes) que precedem o uso das pontes em si como forma de aumentar o poder, a autoridade e o privilgio de alguns grupos sociais sobre outros.Um outro tipo de situao ocorre quando a deciso se limita a escolher se determinadas tecnologias j existentes sero ou no utilizadas (escolhas do tipo sim ou no). Neste caso, como as escolhas feitas se materializam em construes, equipamentos, investimentos econmicos e hbitos sociais, to logo a deciso seja tomada e os primeiros comprometimentos tenham sido feitos, a flexibilidade inicial associada quela opo tecnolgica fique obscurecida. O fato de que, no processo pelo qual as decises "estruturantes" so tomadas, influem pessoas diferentes, de condio social diferente, com graus de poder diferentes e com nveis de conscincia distintos, passa despercebido, como se a opo tivesse sido to somente tcnica.Tecnologias que, por sua prpria natureza, so consideradas pelo autor especificamente polticas configurariam uma outra situao. Sua adoo, ou mais propriamente do sistema tcnico que as envolve traria consigo, inevitavelmente, conseqncias de tipo poltico para as relaes humanas. Elas podem ser centralizadoras ou descentralizadoras, igualitrias ou no, repressivas ou libertadoras, dando origem a uma situao em que a flexibilidade permitida e menor do que na maioria dos casos mencionados. A aceitao de que h certas tecnologias cuja adoo requer uma opo por uma forma especial de vida poltica decorreria ento da necessidade da criao e manuteno de um particular conjunto de relaes sociais como seu ambiente operacional. Os casos mais flagrantes de sistemas tcnicos desta natureza seriam os relacionados energia nuclear, necessariamente centralizadores e demandantes de uma organizao autoritria. Ao aceitar plantas nucleares, se estaria tambm aceitando a existncia de uma elite tecnocientifica industrial militar. A bomba atmica seria talvez o exemplo mais significativo de um artefato inerentemente poltico, enquanto que sistemas baseados na energia solar seriam descentralizadores e no demandante de formas rgidas de organizao podendo mais facilmente conviver com formas de gesto democrticas.A concluso de Winner, a exemplo do que ocorre com muitos outros autores, ainda mais do que aquilo que at aqui se comentou, claramente inconclusiva a respeito do que denominamos tese fraca. Depois de propor uma taxonomia em que as situaes que caracteriza podem ser explicadas, ou pelo menos conviver, com vrias das posturas, incluindo claro o construtivismo, ele termina dizendo que no interior de um mesmo complexo de tecnologia - um sistema de comunicao ou transporte, por exemplo podem existir alguns aspectos flexveis em suas possibilidades para a sociedade ao lado de outros completamente "intratveis". E que, coerentemente com sua preocupao com o technological assessment, para entender quais tecnologias e em que contextos devem ser adotadas, necessrio estudar os sistemas tcnicos especficos, sua histria, alm das possveis implicaes tcnicas e sociopoliticas de sua adoo, implementao e difuso.Como vemos, Winner no aceita a idia da neutralidade. Para ele a C&T no so neutras, j que podem ter implicaes sociais e polticas, nem no so endogenamente determinadas, j que sua concepo pode estar afetada pelo contexto socioeconmico. Mas ele aceita uma forma branda de determinismo, uma vez que reconhece que a C&T, embora no sendo nem neutras nem endogenamente determinadas, influenciam a sociedade.Entre outras propostas que buscam uma soluo de compromisso entre o determinismo e o que chamamos de Tese Fraca cabe destacar a formulada por David e Ruth Elliott.Eles iniciam chamando a ateno para o fato de que a tecnologia no deve ser tratada como uma varivel isolada e independente da sociedade, e invocam o conceito de "sociedade tecnolgica" para afirmar que todo o nosso sistema socioeconmico, cultural e poltico est impregnado de tecnologia. A partir da propem que preciso analisar no apenas como a tecnologia afeta a sociedade, mas como a sociedade influi na tecnologia em umarelao recproca, envolvendo todos os outros componentes sociais, como a economia, o sistema produtivo, a cultura etc.Embora reconheam que, no limite, a adoo dessa postura ambivalente terminaria por aceitar que seria irrelevante a discusso sobre a idia de que a tecnologia determina a natureza do sistema socioeconmico ou se ele que estimula um tipo particular de desenvolvimento de C&T, os autores procuram construir um "modelo das interaes" que explique a "sociedade industrial". Com este objetivo, criticam algumas "explicaes deterministas" de tipo tecnolgico e de tipo econmico -, mostrando como elas no se sustentam luz de seu modelo e dos exemplos que buscam com ele explicar.Como contraponto postura do determinismo tecnolgico dizem os autores:"ainda que seja bvio que a tecnologia desempenha um papel importante nas mudanas sociais, pouco provvel que em cada caso tenha sido o nico fator ou causa inicial. Tambm h presses do tipo poltico, econmico e social. A tecnologia pode fazer que em certas circunstncias haja mudanas sociais, mas no as origina ou determina como se desenvolvero."(ELLIOTT, p.24).Assim, a tentativa de explicar a urbanizao como um resultado da produo fabril em larga escala e dos avanos tecnolgicos que demandavam uma grande concentrao de fora-de-trabalho, entendendo o crescimento das cidades como uma resposta direta s necessidades tecnolgicas, seria um exemplo de anlise determinista quanto aos aspectos tecnolgicos.Mas os autores criticam igualmente o determinismo econmico que implica aceitar os fatores econmicos como a principal fora que modela a tecnologia e a sociedade; conceito semelhante ao que aqui chamamos de Tese Fraca. Ao faz-lo chamam a ateno para o fato de que se bem verdade que o desenvolvimento da tecnologia est em grande medida associado s necessidades econmicas, tambm verdade que o desenvolvimento tecnolgico tem uma dinmica prpria e que muitas vezes pode ir contra as necessidades da economia.O exemplo de anlise determinista quanto aos aspectos econmicos que citam a que explica a nfase colocada pelos Estados Unidos no desenvolvimento da tecnologia militar como uma simples necessidade de estabilizar a economia.Ao lado desses dois tipos de determinismo, os autores citam ainda uma terceira opo que considera os avanos tecnolgicos e econmicos como sendo no "autnomos", mas sim governados e controlados por interesses de uma elite dirigente que utilizaria as foras econmicas e tecnolgicas para alcanar seus objetivos e manter o poder. Neste sentido, argumentam que mesmo que a elite consiga em geral alcanar seu objetivo, existe a possibilidade de mudanas no equilbrio do poder e a ascenso de uma nova classe interessada em implementar um modelo distinto do vigente.Por fim, citam uma outra opo que enfatiza a importncia dos valores culturais e religiosos como determinantes. Neste caso, as inovaes econmicas e tecnolgicas seriam derivadas de mudanas nos valores culturais ou de "idias e "conceitos" que surgiriam de maneira mais ou menos autnoma na sociedade. O Renascimento (principalmente no campo das idias cientficas) seria uma dessas transformaes na viso de mundo da sociedade que teria gerado uma poca de mudanas ao mesmo tempo tcnicas e sociais.O exemplo de anlise determinista que oferecem neste caso seria o argumento de Max Weber (em "A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo") que entende a tica protestante, por aceitar a usura como coerente com o cristianismo, como fator determinante do desenvolvimento do capitalismo e o avano tecnolgico que provocou. Mas o fato de que, como colocou o prprio Weber, a relao de determinao no seria de tipo unilateral, interpretado como um ponto a favor da adoo da viso ecltica que propem os autores. Dado que nas etapas iniciais do capitalismo, estes valores foram gradualmente modificados, em funo inclusive de fatores tecnolgicos que permitiram um significativo aumento no consumo das famlias, o que entrava em conflito com antigos valores religiosos de austeridade e ascetismo, entendido como um fator explicativo coerente com sua viso.Esta viso, baseada na existncia de uma complexa e dinmica rede de interaes e multicausalidades, seria, ao contrrio das que propem apenas um fator determinante, mais adequada para analisar os processos sociais de mudana tecnolgica.Tal posio compartilhada por muitos outros autores que vem a C&T como partes e indicadores do grande desenvolvimento das foras produtivas, do sistema de relaes sociais, da cultura, das estruturas polticas e institucionais e propem que entre os nveis da cincia e da tecnologia e outros nveis da sociedade existe uma interdependncia estrutural e funcional, que forma uma complexa rede de interao."Tudo isto intuitivamente compreensvel se se pensa que, com o avano da cincia e das tcnicas produtivas, as relaes com a "natureza" se tornam remotas. Em tal situao o homem mesmo se converte no nico ou no principal regulador do seu posterior desenvolvimento, e assim nasce a organizao economicosocial que disciplina o esforo produtivo. Esta maior liberdade provm do retrocesso dos vnculos com a "natureza" e se expressa na escolha entre as distintas alternativas abertas pela cincia a cada passo. Evidentemente, as relaes sociais de produo impem a "tarefa seletiva". Ao dirigir as energias sociais em um determinado sentido, entre os muitos "tecnicamente" possveis, a seleo efetuada, "(...pelas relaes sociais de produo...)" por sua vez, condiciona o desenvolvimento posterior das foras produtivas: esta a forma mais imediata e evidente de "no neutralidade" da cincia e da tcnica" (SALVATI, Michele e BECCALLI, Bianca. A diviso do trabalho - capitalismo, socialismo, utopia. In:A diviso capitalista do trabalho. Crdoba, Argentina: Cuadernos Pasado e Presente, n. 32, 1972).3.1.2. A contribuio do MarxismoComo dito anteriormente, a contribuio do Marxismo para a formulao do que denominamos Tese Fraca se d num contexto temtico e num esforo argumentativo mais amplos que visam fundamentar a Tese Forte. No obstante, incluiremos neste item apenas o referente primeira delas.Iniciaremos com os argumentos elaborados por alguns dos principais autores que criticam o determinismo, sejam eles explicitamente identificados com o Marxismo ou no. A seguir, apresentaremos as contribuies que procuram fundamentar a Tese Fraca atravs do estudo da conformao das condies para o surgimento da C&T capitalista, no perodo da transio do feudalismo.Uma passagem da obra de um dos mais agudos crticos desta viso David Dickson parece apropriada para caracterizar o contedo da crtica formulada:"A partir da Revoluo Industrial, e particularmente durante os ltimos cinqenta anos, parece haver-se convertido em algo geralmente aceito o fato de que uma tecnologia em contnuo desenvolvimento o nico que oferece possibilidades realistas de progresso humano. O desenvolvimento tecnolgico, que inicialmente consistiu na melhora das tcnicas artesanais tradicionais, e que posteriormente se entendeu aplicao do conhecimento abstrato aos problemas sociais, prometeu conduzir sociedade pelo caminho que leva a um prspero e brilhante futuro. O desenvolvimento da tecnologia tem servido inclusive como indicador do progresso geral do desenvolvimento social, fazendo com que se tenda a julgar as sociedades como avanadas ou atrasadas segundo seu nvel de sofisticao tecnolgica (DICKSON, 1980). ainda Dickson que ressalta a idia de linearidade, de evoluo social e de determinismo tecnolgico, que coloca a mudana social como determinada pela mudana tcnica, mostrando como ela se relaciona a uma equivocada assimilao entre a histria da civilizao e a histria da tecnologia....a histria da civilizao, com sua viso unidimensional de progresso, implica que as sociedades podem ser consideradas como primitivas ou avanadas segundo seu nvel de desenvolvimento tecnolgico. Essa interpretao encontra-se na base de quase todas as investigaes culturais e antropolgicas levadas a cabo at os primeiros anos de nosso sculo, e ainda a mais utilizada para indicar nveis de desenvolvimento" (tambm a descrio mais popular nos livros de textos escolares, assegurando deste modo que essa interpretao seja mantida pelo sistema educacional). O modelo implcito de evoluo social baseado freqentemente no conceito de determinismo tecnolgico, isto , a idia de que o desenvolvimento social se encontra determinado quase inteiramente pelo tipo de tecnologia que uma sociedade inventa, desenvolve, ou que nela introduzido".Do ponto de vista histrico, a pesquisa acerca da tese fraca concentra-se no processo de transio do feudalismo ao capitalismo para mostrar que j na incepo do novo modo de produo estavam presentes caractersticas no mbito das foras produtivas e das relaes de produo, que mostravam-se coerentes com seu objetivo maior de maximizao do excedente apropriado privadamente pelos proprietrios dos meios de produo.Os historiadores caracterizam a longa etapa de transio do feudalismo ao capitalismo como um momento em que o trabalhador passou a perder a propriedade dos meios de produo e conseqentemente o controle que detinha sobre o processo de trabalho. A reunio de vrios trabalhadores operando seus instrumentos tradicionais de trabalho no mesmo local, a sua sujeio ao controle do primitivo capitalista, foi seguida da segmentao do processo produtivo e da especializao de tarefas.Isto no quer dizer, entretanto, que a diviso do trabalho e a sua hierarquizao tenham nascido com o capitalismo. A diviso social do trabalho, a especializao das tarefas, uma caracterstica de todas a sociedades complexas e no um trao particular das sociedades industrializadas. A diviso (social) do trabalho por castas, e a hierarquia que o acompanha, na sociedade hindu tradicional um dos inmeros exemplos disso. Mas tampouco a diviso tcnica do trabalho especfica do capitalismo ou da indstria moderna. A produo de tecidos, por exemplo, no sistema corporativo precapitalista, j estava dividida em tarefas separadas, cada uma das quais era controlada por especialistas: o arteso membro de uma corporao controlava o produto e o processo de produo.De fato, a diviso do trabalho na indstria capitalista pouco tem a ver com a distribuio de tarefas, ofcios ou especialidades da produo nas sociedades precapitalistas. Embora todas as sociedades conhecidas tenham dividido seu trabalho em especialidades produtivas, nenhuma sociedade antes do capitalismo subdividiu sistematicamente o trabalho de cada especialidade produtiva em operaes limitadas. Esta forma de diviso do trabalho torna-se generalizada apenas com o capitalismo (BRAVERMAN, 1977:70).A questo a explicar por que a diviso do trabalho de tipo corporativo do feudalismo deu lugar diviso do trabalho de tipo capitalista com o advento do processo de acumulao primitiva. Por que a partir de uma situao em que o produtor direto detinha o controle do processo produtivo chega-se de forma relativamente rpida, a uma outra, em que a tarefa do trabalhador se tornou to especializada e parcelar que ele j no tinha praticamente qualquer produto para vender. E, em conseqncia, era forado a vender sua fora de trabalho ao capitalista para que este, combinando-a com a de outros operrios e com os meios de produo, desse origem a um produto mercantil.Esta transformao no parece ter sido a conseqncia seno a causa que viabilizou posteriormente a introduo da maquinaria no processo produtivo, na medida em que s atravs da segmentao das tarefas especializadas antes atribudas a cada produtor direto em vias de transformar-se em operrio que o capitalista pde assegurar o controle da produo.Stephen Marglin com o objetivo de reforar esse argumento, e expressando sua viso de que as mudanas tecnolgicas ocorridas desde o sculo XVIII, pelo menos, foram determinadas pela necessidade de adequar a base tcnica s novas formas de organizao da produo faz uma irreverente, mas aguda pardia da clebre frase de Marx:no foi a fbrica a vapor que nos deu o capitalismo; foi o capitalismo que produziu a fbrica a vapor (MARGLIN,1974:17).Na primeira etapa dessa transformao da diviso do trabalho, o capitalista desagrega o ofcio, reduzindo cada uma de suas partes a sua mnima expresso. Em seguida ele restitui o ofcio, parcelado, aos trabalhadores diretos de modo que o processo como um todo j no seja mais da competncia de somente um trabalhador individual. E que este, cada vez menos, esteja em condies de reproduzi-lo sem o concurso do dono dos meios de produo (tangveis) e agora proprietrio do saber organizativo operrio e nico capaz de mobilizar as foras produtivas capitalistas em seu benefcio. De fato, a partir da anlise que o capitalista empreende de cada uma das tarefas anteriormente distribudas entre os trabalhadores, com vistas a controlar as operaes individuais, que se chega depois, inclusive atravs da crescente sofisticao tecnolgica ao completo controle do processo de produo.Nessa transformao do processo de trabalho, a antiga relao individual do trabalhador com sua ferramenta de trabalho desapareceu e os trabalhadores inseridos nas relaes de produo capitalistas e dominados por elas passaram a intervir coletivamente frente s mquinas estando divididos hierarquicamente e organizados em unidades de produo separadas. Este "trabalhador coletivo", que deve distinguir-se do "trabalhador associado", conceito que Marx utiliza para designar os trabalhadores "livremente associados", participando de relaes fundamentalmente diferentes daquelas que os submetem ao capital.Como ressalta BRAVERMAN (1977:76-77) de forma pungente:Estudamos muito e aperfeioamos, ultimamente, a grande inveno civilizada da diviso de trabalho; s lhe damos um falso nome. No , a rigor, o trabalho que dividido; mas os homens: divididos em meros segmentos de homens - quebrados em pequenos fragmentos e migalhas de vida; de tal modo que toda partcula de inteligncia deixada no homem no bastante para fazer um alfinete, um prego, mas se exaure ao fazer a ponta de um alfinete ou a cabea de um prego".O trabalhador livre pode parcelar voluntariamente o processo de trabalho, mas ele jamais se converte num trabalhador parcelado pela vida afora. Esta a obra do capitalista, que depois de ganhar com a primeira etapa - anlise - e tambm com a segunda - parcelamento do processo entre distintos trabalhadores condena o operrio a transformar-se num ser parcelado. Este processo de parcelizao tem sido vendido apologeticamente pelos especialistas interessados na sua manuteno e aprofundamento como um eficaz motor do aumento da produtividade do trabalho social. Insistindo em negar o formato de curva em s que caracteriza qualquer processo de aprendizagem, eles tm legitimado a explorao do trabalhador repetindo a falcia de que quanto mais ele repetir uma mesma tarefa simples de um processo complexo segmentado mais rapidamente e melhor ele a executar. pois com a segmentao e a hierarquizao do processo de trabalho, e a parcelizao e especializao forada do trabalhador que se abre caminho para a introduo crescente da maquinaria no processo de trabalho. Isso vem aprofundar e acelerar o fenmeno da perda de controle, uma vez que o trabalhador passa a ser cada vez mais um apndice das mquinas e equipamentos crescentemente sofisticados, com ritmo de trabalho determinado por eles.Como nos lembra BRAVERMAN (1977:151), a reduo do trabalhador ao nvel de um instrumento no processo produtivo no est associada exclusivamente introduo da maquinaria. Ainda na ausncia de maquinaria ou em conjunto com mquinas operadas individualmente, j se manifestava a tendncia de reduzir os prprios trabalhadores condio de mquinas. Tendncia esta que se acentua mais tarde com a gerncia cientfica de Taylor. Como aponta SANTANNA (1974:75-76), aquelas duas etapas de transformao do processo de trabalho dependeram, antes da escala de produo do que da possibilidade da introduo da maquinaria.A marginalizao do trabalhador direto das etapas de concepo e desenvolvimento dos produtos e processos que antes operava se afirma desde o incio do capitalismo como uma de suas tendncias mais marcantes. Entre os autores que a discutem, BRAVERMAN, como mostra a passagem abaixo, novamente um dos mais custicos:Assim, aps milhes de anos de trabalho, durante os quais os seres humanos criaram no apenas uma cultura social complexa mas, num sentido muito real tambm criaram-se a si mesmos, o prprio trao cultural-biolgico sobre o qual se funda toda essa evoluo entrou em crise, nos ltimos duzentos anos, uma crise que Marcuse corretamente chama de ameaa de "catstrofe da essncia humana". A unidade de pensamento e ao, concepo e execuo, mo e mente, que o capitalismo ameaou desde os seus incios, agora atacada por uma dissoluo sistemtica que emprega todos os recursos da cincia e das diversas disciplinas da engenharia nela baseadas" (BRAVERMAN, 1977:149-150).Embora o marxismo permita tratar a questo da neutralidade da C&T de uma forma mais adequada ao objetivo que anima este captulo, importante mencionar a existncia de outras abordagens que no colocam os determinantes econmicos no centro da anlise, mas que igualmente advogam a possibilidade de uma outra cincia.Entre elas, esto de alguns estudiosos sobre a cultura cientfica dos pases avanados que ressaltam o fato dela ser uma cultura que concebe a cincia como um "instrumento do Homem" para explorar a natureza. Frente a uma natureza entendida como tendo sido criada por um Deus judico-cristo para servir (condio muito distinta daquela dos povos orientais) ao seu "filho" concebido Sua imagem e semelhana, este Homem teria um comportamento inerentemente predatrio, revelado no carter dos instrumentos que fabrica. A cultura cientfica que engendra seria, por isto, incapaz de fazer com que o Homem pudesse conviver harmoniosamente com a natureza.Outros pesquisadores consideram que por ser uma cultura hegemonizada por homens, nossa cultura judico-crist desperdiaria atributos que caso fossem conferidos pelas cientistas-mulheres poderiam levar a uma percepo mais harmnica e holstica da relao Homem-natureza; a um conhecimento menos segmentado, mais multidisciplinar e, por fim, mais humano.Outros entendem a cultura cientfica e tecnolgica existente como uma espcie de acidente histrico. Levantam a hiptese de que uma matriz de conhecimento cientfico e tecnolgico distinta da que hoje conhecemos poderia ter-se consolidado caso no houvesse ocorrido o processo de expanso da civilizao ocidental, isto , caso os povos que habitavam a parte do mundo hoje perifrica no tivesse tido sua cultura - to ou mais sofisticada do que a dos conquistadores - propositadamente por eles destruda. No caso da conquista da Amrica Latina, estes pesquisadores tm recolhido evidncias que mostram a superioridade do conhecimento cientfico e tecnolgico dos incas, maias e astecas. Talvez, se no tivessem sido derrotados, estes povos poderiam ter gerado uma matriz de conhecimento cientfico e tecnolgico mais social e ambientalmente sensata.O saber que hoje chamaramos de cientfico e tecnolgico era produzido e reproduzido de maneira diversa nos perodos anteriores ascenso do capitalismo como sistema poltico, econmico e social dominante. No feudalismo europeu, por exemplo, a cincia tinha o espao reduzido frente religio, que manteve a sua dominao sobre os rumos da sociedade por vrios sculos. O incio do processo de consolidao do capitalismo marcado pela disputa de hegemonia entre a igreja catlica e a classe ascendente - a burguesia - nas universidades e em outros espaos, com a perda sistemtica de poder da primeira para a segunda (HESSEN, 1985; PONCE: 1979).GRAMSCI (1991a: 71) nos ajuda a entender este ponto:Na realidade, tambm a Cincia uma superestrutura, uma ideologia. possvel dizer, contudo, que no estudo das superestruturas a Cincia ocupa um lugar privilegiado, pelo fato de que a sua reao sobre a estrutura tem um carter particular, de maior extenso e continuidade de desenvolvimento, notadamente aps o sculo XVIII, quando a Cincia torna-se uma superestrutura, o que demonstrado tambm pelo fato de que ela tenha tido perodos inteiros de eclipse, obscurecida que foi por uma outra ideologia dominante, a religio, que afirmava ter absorvido a prpria Cincia; assim, a Cincia e a tcnica dos rabes eram tidas pelos cristos como pura bruxaria."No capitalismo, a cincia afirmou-se enquanto uma superestrutura especial. A ligao da cincia com os Estado capitalistas, atravs da elaborao de novas idias, conhecimentos e valores importantes para sua consolidao interna, e na disputa entre, e com capital, atravs de seu potencial de gerar mais valia relativa, levaram-na a ser um dos principais motores da expanso do sistema capitalista. A partir de meados do sculo XIX, as novas formas de explorao do trabalhador, a complexificao da extrao do excedente no processo de trabalho e da subordinao ganham caractersticas que marcam profundamente o modo de funcionamento do capitalismo contemporneo.O trabalho de Boris HESSEN (1985), apresentado no 2' Congresso Internacional de Histria da C&T em 1931, com o ttulo "As Razes Scio-econmicas da Mecnica de Newton", foi um dos primeiros que buscou relacionar a construo social da cincia a uma viso de classe. Nele, Hessen descreve o contexto que envolveu a elaborao dos Princpios Matemticos da Filosofia Natural, relacionando os estudos de Newton s necessidades dos grupos econmicos, como o aperfeioamento da navegao (hidrosttica, hidrodinmica) e s inovaes militares relacionadas ao lanamento de projteis (balstica - gravidade).GRAMSCI (1991a, 1991b), de forma menos sistemtica e academicamente elaborada, tratou da construo social da C&T durante as dcadas de 20 e 30. O tratamento da cincia enquanto uma superestrutura especial e a caracterizao do americanismo e do fordismo como modelos de organizao social baseados na tcnica, possibilitaram que ele abordasse o papel dos intelectuais na disputa de hegemonia na sociedade capitalista, uma de suas contribuies importantes para o pensamento marxista.Mas os trabalhos sobre a construo social da C&T s comearam a ganhar relevo no mundo acadmico a partir dos anos 60. Diversos autores trataram da construo social da tecnologia sob uma viso de classe. BRAVERMAN (1981) ataca a organizao cientfica do trabalho de Taylor. GORZ (1974) e MARGLIN (1974) discutem a relao entre o processo de segmentao tcnica, a diviso social do trabalho e o capitalismo. BURAWOY (1978 e 1979) trata das polticas da produo e FEENBERG (1991) ataca as vises instrumental, neutra e determinista da tecnologia, relacionando o desenvolvimento tecnolgico expanso do sistema capitalista.Eles caracterizam a relao entre a cincia e o sistema capitalista como uma forma especfica de produo e de reproduo de conhecimentos que garantiu, mediante mudanas significativas nas relaes tcnicas na produo, a partir da 2a. Revoluo Industrial, o processo de expanso do capital. O surgimento de indstrias baseadas nos novos conhecimentos cientficos, como a eletricidade, a qumica, a termodinmica e a metalurgia, possibilitaram a emergncia de novas potncias econmicas internacionais e de um novo padro de acumulao do capital escala mundial.A C&T, como coloca HOBSBAWN (1986), ganha contornos especficos:"Os principais progressos tcnicos da segunda metade do sc. XIX foram essencialmente cientficos; ou seja, exigiam como mnimo indispensvel para invenes originais algum conhecimento das novas evolues no campo da Cincia pura, um processo muito mais organizado de experimentao cientfica e de comprovao prtica () e uma ligao cada vez mais estreita e contnua entre industriais, tecnologistas e cientistas profissionais e instituies cientficas."HOBSBAWN caracteriza esta transformao nas relaes na produo do conhecimento produo em massa mecanizada, ao fordismo-taylorismo e ao aparecimento de trustes, oligoplios e monoplios. Essas mudanas, que garantiram um novo ciclo de desenvolvimento econmico e social no mundo do sculo XX, no poderiam ocorrer sem que o padro de produo cientfica, que se tornou dominante nas novas indstrias baseadas na cincia, se afirmasse como um dos sustentculos do capitalismo mundial.A viso dominante no capitalismo, talvez devido influncia que sofreu o processo de construo social da cincia do iluminismo e do positivismo, no admite que existam alternativas para o desenvolvimento da C&T. Ao contrrio, coloca este desenvolvimento e seu resultado - conhecimento - como neutro, verdadeiro e nico, colaborando assim no nvel do discurso para a legitimar o carter capitalista da cincia. Isto dificultou a construo de inovaes atravs de atores sociais que no estavam contemplados nesta produo cientfica e que no dispunham de meios para entend-las, apropri-las ou redesenh-las.Como afirma ADORNO (1996:18,19):"Na escravizao da criatura aos senhores do mundo, o saber que poder no conhece limites. Esse saber serve aos empreendimentos de qualquer um, sem distino de origem, assim como, na fbrica e no campo de batalha, esto ao servio de todos os fins da economia burguesa. A tcnica a essncia desse saber. Seu objetivo no so os conceitos ou imagens nem a felicidade da contemplao, mas o mtodo, a explorao do trabalho dos outros, o capital."Segundo este autor, a cincia colabora para a dominao capitalista enquanto tcnica e os seus objetivos fortalecem a hierarquia, a coero e a diviso do trabalho (principalmente entre o trabalho intelectual e manual). Ela participa enquanto instrumento de consentimento quando apropriada e desenhada pelas classes dominantes, sem negociao ou concertao que possibilite a proposio de outros grupos sociais, tendo como mecanismo a linguagem e a argumentao da verdade, da neutralidade e da unicidade do conhecimento produzido.Ainda, segundo ADORNO (1996: 39):"A prpria linguagem conferiu s relaes de dominao a universalidade que ela prpria assumiu enquanto meio de comunicao de uma sociedade burguesa () Quanto mais crescia o poder social da linguagem, mais suprfluas tornavam-se as idias para fortalec-lo, e a linguagem da Cincia lhes deu o golpe de misericrdia"Como se v, para Adorno, a cincia est muito longe de apresentar uma organizao baseada nos imperativos institucionais sugeridos por Merton. Ela no apenas viabiliza uma injustificvel do ponto de vista da justia social e do humanismo a extrao do trabalho excedente. Ela colabora para o obscurecimento desta situao de explorao atravs de um contedo ideolgico ainda mais sutil e subliminar do que outros elementos legitimadores da coero do capital que integram a superestrutura do capitalismo.A cincia enquanto linguagem destacada por ADORNO (1996:40) em outro trecho:"Na imparcialidade da linguagem cientfica o desprovido de poder perdeu completamente a fora de expresso e s o subsistente encontra seu signo neutro. Tal neutralidade mais metafsica do que a prpria metafsica."A linguagem cientfica, enquanto tcnica de dominao, pode quebrar a possibilidade de contestao e da proposio de alternativas cientficas. A voz de um cientista em seu campo de trabalho equivale a um fato, uma verdade e uma contraposio superior s crenas, s religies e prpria poltica. Por isso, o domnio do conhecimento cientfico transforma as relaes sociais e subordina aqueles que no o possuem ou o produzem.3.1.3. A produo de C&T e a reproduo do capitalUma derivao da reflexo sobre essa tendncia, importante mais para o compreender as caractersticas que assume o capitalismo contemporneo do que para entender a sua gnese e a forma como desde o incio engendra as foras produtivas que lhe so funcionais, o surgimento dos especialistas em C&T. Este item trata deste tema e, de forma mais geral, das condies que a reproduo ampliada do capital impe atividade de pesquisa. Ele adiciona novos elementos para fundamentar a tese fraca da no-neutralidade ao mostrar como as necessidades da produo conformam um modo especifico de fazer cincia crescentemente funcional acumulao capitalista.Ao mesmo tempo em que a nova forma de dominao, que visava ao aumento do lucro apropriado pelo capitalista ou patro, sujeitava o trabalhador a executar uma s tarefa, "especializando-o" nela e condenando-o ao papel de executor inconsciente e parcialmente suprfluo, originava tambm uma nova "classe": os especialistas em C&T.Da mesma forma que, no nvel da produo propriamente dita, a modificao do processo de trabalho descrita criava as condies para a introduo da maquinaria e para a aplicao da cincia produo, a mecanizao completou o processo e colocou os fundamentos da indstria baseada na cincia. A incorporao da cincia ao processo produtivo consolidou sua apropriao pelos detentores dos bens de produo, uma vez que ela prpria passou a ser um cada vez mais importante - destes bens.Nas palavras de VANYA SANTANA (1974:67-68):Se o feudalismo ops clero, camada "culta", ao resto da populao, massa "inculta", temos agora, no capitalismo, o empresrio como real proprietrio do conhecimento cientfico transformado em bem de capital, que se ope grande massa dos simples manipuladores dos instrumentos de produo; por outro lado, temos os produtores de conhecimento cientfico e tcnico contrapostos aos simples consumidores deste conhecimento escassamente distribudo pelo sistema educacional.A modificao essencial que introduz o capitalismo que nele se concentram nas mesmas mos, instrumentos de produo e controle do saber (da produo cientfica), cujo avano s provocado na medida em que venha a incorporar-se produo e a permitir aumento da mais valia e do lucro.A grande transformao que ocorreu no sculo dezenove - a descoberta de um mtodo de inveno fez com que a cincia passasse a seguir regras de funcionamento prprias, permitindo com isso agilizar os processos de mudana, tornando-os mais conscientes e previsveis. O conhecimento passou a ser buscado em caminhos planejados, desejados previamente, e no de forma aleatria. A busca do conhecimento tcnico-cientfico deixou de estar apoiada no passado, no conhecimento adquirido e acumulado, para estar orientada pela anteviso de onde se quer chegar, assumindo um carter funcional. Assim, a tecnologia deixou de ser vista, simplesmente, como algo que permitia a transformao de conhecimentos tericos em mquinas.Essa transformao levou a uma percepo, seno generalizada vigorosamente difundida pelos adeptos do capitalismo, de que a C&T havia colocado nas mos do homem a possibilidade de transformar o mundo; que o homem passaria a fazer a histria caso materializasse as oportunidades que oferecia depositando nela a esperana de novas transformaes.Essa esperana era associada, pelos que de alguma forma questionavam e mesmo se opunham s formas de explorao capitalista, possibilidade que as mudanas introduzidas pela C&T nas relaes sociais, principalmente de trabalho, viessem a ameniz-las. Se a C&T era responsvel pela mquina que materializava a explorao e a opresso do capital sobre o trabalho, no futuro ela poderia automatizar a maioria das tarefas e deixar o homem livre para sua realizao e para o lazer. O trabalho deixaria de ser um fardo, a diviso entre trabalho e lazer seria extinta e a humanizao das relaes entre o homem e seu mundo permitiria que indagaes sobre a sua origem e seus valores levassem a uma nova etapa civilizacional ou a uma diluio das diferenas ideolgicas.Ainda que parea hoje totalmente absurda a idia de que um operrio que trabalha numa linha de montagem de computadores possa entender o funcionamento de um microchip a ponto de nele sugerir modificaes, importante entender o processo histrico de mudana de nossa sociedade que deu origem a essa situao. tambm importante refletir sobre o efeito de uma modificao num parmetro condicionante desta situao e presente em todo seu desenvolvimento - a busca incessante por aumentar o lucro apropriado pelos possuidores dos meios de produo - sobre as caractersticas da C&T e, em geral, de toda a produo cultural.Neste sentido, parece plausvel afirmar que a monopolizao da C&T e sua colocao a servio da reproduo do capital, nela introduziu uma srie de caractersticas tpicas do modo como a produo realizada e do tipo de relaes que os homens assumem dentro da sociedade ao organizarem-se para a produo.De fato, a cincia a ltima - e depois da fora de trabalho a mais importante - propriedade social a converter-se em propriedade privada a servio do capital. A histria de sua converso do mbito dos trabalhadores diretos de um lado, e dos "filsofos" e mecenas de outro, para seu estado atual organizado e financiado confunde-se com a histria de sua incorporao lgica do capital.Esta histria comea quando se interrompe uma trajetria na qual a cincia, reduzida a um patrimnio superestrutural de elites filosficas ou sacerdotais, e ligada aos interesses e necessidades das classes dominantes, tanto em sua vertente mgico-religiosa quanto na sua forma especulativa, permanecia desconectada da produo cotidiana. Transformaes sociais significativas, como as introduzidas pelo Islamismo e o Renascimento, representaram importantes pontos de inflexo dessa trajetria.O nascente capitalismo comercial, em sua luta contra o poder feudal, recorre s primeiras cincias e as aplica para assegurar sua expanso econmica e poltica. Assim, emprega a astronomia e cincias afins na navegao, a matemtica numrica na contabilidade, e os estudos sobre a presso e o vcuo para desenvolver uma mquina de vapor eficiente.Ao longo desta histria passa-se de uma situao, em que o conhecimento utilizado na produo preexistente gratuito: o capital simplesmente explora o conhecimento gerado pelas cincias fsicas embrionrias e o acumulado empiricamente no processo de trabalho pelo trabalhador direto durante sculos, para uma outra situao muito diferente. O fruto do desenvolvimento cientfico, inclusive o produzido na universidade vai sendo utilizado tecnicamente. Consciente do peso crescente da investigao eltrica e qumica, aparecem as primeiras fbricas de cincia, os laboratrios-escola dos Liebig, Pasteur, Siemens, Edison. Surge a figura do cientista, direta ou indiretamente assalariado, que junto com o politcnico, produzido pela reformada universidade burguesa-napolenica, passa a ligar o mundo cientfico ao da necessidade tcnica cotidiana. Com isto se generaliza o trabalhador cientfico, que compreende aquelas duas categorias profissionais, caracterizadas por uma formao prvia a sua insero na problemtica produtiva.Os estados capitalistas avanados, incitados inovao pela concorrncia imperialista que se acirra desde o incio do sculo vinte e que chega ao enfrentamento blico, passam a utilizar a cincia como fora diretamente produtiva.Na atualidade o capital organiza sistematicamente a cincia e a educao cientfica, os laboratrios de P&D pblicos e privados atravs de alocao de parte do excedente social seja ele o centralizado no estado, seja o privadamente apropriado.Como resultado desta evoluo, o que hoje se observa um franco predomnio das atividades de pesquisa direta ou indiretamente ligada ao processo de produo em relao quela denominada pura ou fundamental e financiada de forma independente. A pesquisa universitria, depois de ter passado por um processo de militarizao, encontra-se hoje submetida a uma crescente industrializao" e "tecnocratizao", correndo o risco de converter-se to somente numa atividade complementar ou anexa da pesquisa levada a cabo na empresa privada.A industrializao da pesquisa realizada nas universidades e institutos pblicos de acordo com a organizao e diviso do trabalho prprias do ambiente industrial taylorista e com mtodos de avaliao que a orientam no sentido da gerao de resultados diretamente utilizveis na produo, capazes de aumentar a produtividade e assegurar s grandes empresas privadas um monoplio de origem tecnolgica, converteu-se numa tendncia mundial.A pesquisa fundamental, cujo objetivo ainda por muitos percebido como ligado aquisio de conhecimento, crescentemente influenciada pelas prioridades da produo e financiada, ainda que com recursos pblicos, em funo das possibilidades de aplicao rentvel dos seus resultados. O avano das cincias tende a ser cada vez mais desigual, desenvolvendo-se muito mais rapidamente as cincias susceptveis de serem "capitalizadas" e "valorizadas" no processo de produo, do que as relacionadas, por exemplo, sade e saneamento pblicos, transmisso de conhecimentos, melhoria das condies de trabalho, conservao ambiental e qualidade de vida. (GORZ, 1974, p. 173 a 175).No momento em que aceitamos que a existncia de demandas especficas por tecnologias, originadas pela permanncia das relaes de produo capitalistas, leva necessidade de que elas sejam satisfeitas atravs de solues desenvolvidas de modo estritamente compatvel com estas relaes de produo, fica evidente a determinao que sobre a C&T exercem as caractersticas da sociedade na qual elas foram geradas.As pesquisas cientficas - assim como as tecnolgicas por serem atividades que se do no interior de uma sociedade regida por parmetros de maximizao do lucro estariam ento orientadas numa direo coerente com estes. Parece ento se fechar uma cadeia: as necessidades do processo produtivo, determinadas em funo desses parmetros, so satisfeitas atravs da gerao de tecnologias com eles compatveis; o que, por sua vez, exige a produo de conhecimentos cientficos com particularidades bem definidas.A produo da C&T, crescentemente associada concepo dos procedimentos de produo material, num todo inserto em relaes capitalistas de produo, passa a estar sujeita, de uma parte, s condies de valorizao do capital e, de outra, (o que no seno outro aspecto do mesmo problema) necessidade de reproduzir a base material, tcnica, requerida pela reproduo das relaes de produo.Neste contexto, a atividade dos cientistas e tcnicos passa a estar delimitada pelo capital, pelas exigncias colocadas pelo seu processo de valorizao e de reproduo das relaes de produo, que atuam sobre o processo de produo concreto. Assim, o processo de produo da C&T coerente com a produo e expanso de mais-valia tal como a tcnica que lhe serve de suporte tambm no neutra mas depende, e reproduz no interior mesmo desta atividade, das relaes capitalistas de produo. Porm, o fato de que boa parte da pesquisa que origina a inovao realizada por tcnicos altamente qualificados, especializados, que no participam na produo direta seno que permanecem em oficinas a razovel distncia dos operrios industriais que devero trabalhar com as inovaes originadas dos departamentos de P&D obscurece esta realidade.O setor de C&T da investigao, base fundamental da moderna inovao, apresenta-se como um setor de alguma forma "separado" dos outros setores da economia social, dotado de sua prpria autonomia. O fato de que funciona "para" estes setores no muda em nada a idia de que os trabalhadores diretos, isto , aqueles a quem esto destinados os produtos da P&D ficam excludos de toda participao nas atividades de concepo das mquinas e matrias primas sobre as que aplicaro seu trabalho, assim como das formas de organizao e das condies de exerccio de seu trabalho" (CORIAT 1976, p.51-52)."A C&T no funcional em relao sociedade e dominao capitalistas apenas pela diviso do trabalho refletida na linguagem, na definio e na repartio das suas disciplinas. Ela tambm funcional pela sua forma de colocar na agenda de pesquisa certas questes e no outras e denolevantar problemas que o complexo que a produz no possa resolver" (GORZ, 1974, p. 223-224)No fundo, trata-se do estabelecimento de um novo conjunto de relaes entre as modalidades de formao do pessoal tcnico, por uma parte, e as modificaes havidas na organizao do trabalho, por outra, dos aspectos inseparveis de uma mesma poltica que tende liquidao da diviso capitalista do trabalho, j a instaurao de uma organizao do trabalho de novo tipo - elementos de um processo de revolucionarizao das relaes de produo. (CORIAT, 1976)."A empresa capitalista foi bastante estimulada pela contnua assimilao dos avanos tecnolgicos derivados do conhecimento cientfico. A deciso quanto ao aproveitamento dos resultados da investigao da pesquisa realizada no sistema produtivo tornada possvel pela existncia prvia de um setor cientfico na sociedade, realizou-se plenamente porque pde ser tomada e implementada pelos detentores dos instrumentos de produo, vale dizer, por aqueles que controlavam a produo cientfica. No queremos negar, bvio, a existncia do desenvolvimento cientfico independente das determinaes econmicas. Este sempre existiu e existir. Partimos, porm, da premissa de que, se estamos considerando cincia e desenvolvimento, devemos ter presente o fato de que tal relao apenas tem lugar quando o conhecimento cientfico fixado pela produo, atravs da mediao da tecnologia" (SANTANNA, op.cit., p.68).3.2. A Tese Forte da no-neutralidade.Para os que no aceitam a idia da neutralidade, esta idia entendida como pertencente concepo de mundo da classe dominante e por ela permanente, ainda que sutilmente, alimentada como forma de manter sua supremacia poltica. Ou, ento, como simplesmente associada a uma viso de mundo fragmentada e desconexa, de senso comum, no decorrente de uma construo terica propriamente dita e, portanto, "anterior" ou independente do desenvolvimento de uma concepo da classe dominante acerca da C&T. Em ambos os casos, entretanto, verifica-se uma no-percepo da C&T como uma construo social.Esta seo se inicia pelo enunciado denominado anteriormente tese forte da no-neutralidade segundo os principais autores que a formularam, como o francs Benjamin Coriat e o ingls David Dickson.Eles entendem a cultura cientfica e tecnolgica existente como uma cultura que, por ter sido conformada desde suas origens sob a gide do modo de produo capitalista, quando o conhecimento sobre a natureza - a cincia - foi sujeitada condio de uma fora produtiva a servio do capital, possuiria caractersticas intrinsecamente capitalistas. A tecnologia produzida por essa cultura cientfica somente serviria para reproduzir este sistema, sendo incapaz, portanto, de ser utilizada numa sociedade igualitria, no fundamentada na explorao do homem pelo homem.Em seguida, a partir de outros autores, como Charles Betheleim, #, que baseados numa matriz terica marxista analisam o processo histrico da transio do capitalismo ao socialismo, apresentam-se elementos que subsidiam a tese forte e a colocam no terreno que nos interessa mais de perto, que o de discutir as diretrizes a serem adotadas para gerar a base cognitiva necessria para alavancar o processo de democratizao latino-americano.O conjunto disperso, e em vrios sentidos heterogneo, de contribuies que consideramos como estando alinhados com a tese forte introduzem uma questo e uma perspectiva novas ao debate sobre o determinismo tecnolgico. Ao indagar acerca da possibilidade de que a C&T gerada sob a gide de um certo regime de acumulao possa vir a ser funcional para a construo de uma sociedade distinta, eles dirigem a reflexo para um futuro a ser construdo.3.2.1. As principais formulaes segundo seus autoresTrs autores contemporneos, partindo de matrizes tericas diferentes e com preocupaes igualmente distintas, podem ser considerados como formuladores da tese forte. So eles Benjamin Coriat, e David Dickson e Harry Braverman. Escolhemos o segundo para iniciar sua apresentao, entre outras razes pelo fato do mesmo no adotar o marxismo como matriz terica e porque esta a que servir de guia para a o desenvolvimento da seo subseqente, para abordar, com