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O 3. SÁBADO, 14 DE ABRIL DE 2012 ESTADO DE MINAS//PENSAR Livro sobre o Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, destaca a trajetória da companhia que traçou um retrato profundo do Brasil com uso de elementos da literatura e da cultura popular Aldeia UNIVERSAL ENTREVISTA/FERNANDA FERNANDES JOÃO PAULO Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, é um caso à parte na cul- tura brasileira. Sem abrir mão de suas raízes, de Barbacena, no Campo das Vertentes, a companhia vem construindo, desde os anos 1980, uma das mais importantes trajetórias do teatro bra- sileiro. Fora do chamado eixo, vem realizando um trabalho que funde teatro e música, com a participação de grandes nomes das artes cênicas brasileiras, com Fernanda Montenegro e Sér- gio Britto . Com ousadia e profundidade, o grupo criou diálogos com obras literárias de Guimarães Rosa, Bartolomeu Campos de Queirós e João Ubaldo Ribeiro, ao lado de pesquisa com a cul- tura popular de várias regiões de Minas. A jornalista Fernanda Fernandes mergulhou na história do grupo em sua pesquisa de teoria da literatura do mestrado na Universidade Federal de Juiz de Fora, analisando aspectos técni- cos, literários e políticos do Ponto de Partida. O resultado, Um país em cena (Editora Funalfa), é um trabalho que vai da histó- ria para a teoria, para retornar à sociedade por meio dos acha- dos estéticos e éticos dos espetáculos do Ponto de Partida. Nes- se périplo, a pesquisa de Fernanda Fernandes trata de elementos que marcaram a cultura brasileira das últimas décadas, da resis- tência à busca de um lugar de eficácia social e artística, em meio a demandas da política e do mercado. Em entrevista ao Pensar, Fernanda destaca ainda o caráter de busca de identidade que perpassa a trajetória do grupo, que não deixa de enfrentar as contradições contemporâneas nem se es- quiva de ir ao Brasil profundo. “O Ponto de Partida continua sen- do um chamado de luta, construindo um discurso que coloca em cena um ser nacional rico, vigoroso e feliz para o qual todos precisam contribuir”, defende. Seu livro Um país em cena é um passo importante nessa história. Por que a escolha do Ponto de Partida pa- ra seu estudo? Conheci o grupo na adolescência, em 1995, quando ganhei um amigo muito especial, que estava ingressando para no Ponto de Partida, o ator Felipe Saleme. A partir daí passei a acompanhar as estreias em Barbacena e, ao longo do tempo, meu lugar na plateia foi se transformando. De fã do teatro como arte fui passando para um lado mais crítico e de pesquisadora. Acompanhei o trabalho do grupo tam- bém como jornalista (fui repórter do ca- derno de cultura da Tribuna de Minas du- rante seis anos) e isso ajudou a desenvol- ver a observação e a análise antes da vida acadêmica. No mestrado, foi necessário construir maior distanciamento crítico, mas as relações e as escolhas, claro, pas- sam pelo afeto. Como você avalia o trabalho dos grupos de teatro fora do chamado eixo das grandes cidades? Eleger um grande centro como sede po- deria ser uma opção capaz de garantir vi- sibilidade e maior acesso ao mercado cul- tural estabelecido. Nesse sentido, a manu- tenção de um grupo profissional distante dos espaços tradicionais de legitimação é sempre um trabalho de luta e resistência, que passa pela questão da identidade, pe- la tensão entre o local e o cosmopolita. Is- so no Brasil está ligado à dificuldade de constituição de uma res pública, justa- mente por conta dessa centralização. Mas as coisas estão mudando e o Ponto de Par- tida participou do que poderíamos iden- tificar como vanguarda dessa mudança quando foi criado como uma associação cultural. Não vejo outra saída para um grupo fora do eixo, pois fazer mais do que teatro é necessário não apenas para ga- rantir a sobrevivência da companhia, mas para interferir na coisa pública, já que há nisso uma forma de revolver o po- der estabelecido. Como o Ponto de Partida conseguiu rom- per essa barreira, fazer um trabalho reco- nhecido em todo o país e atrair atenção de grandes nomes da arte brasileira? Negociando espaços, abrindo brechas e se adaptando às modificações no cenário cultural do país. O Ponto de Partida foi fundado em 1980 e se mantém até hoje graças a diversas adaptações às modifica- ções no cenário cultural brasileiro. Fazer teatro no chamado período de abertura do governo militar era algo completa- mente diferente do que se faz hoje. E no meio desse caminho surgiu a Lei Sarney, a Lei Rouanet e suas diversas modifica- ções, o Fundo Nacional de Cultura, entre outras tentativas de regulação da área. Pa- ra contextualizar isso, foi preciso destacar uma trajetória que não é do Ponto de Par- tida, mas da cultura brasileira. Como se deu, durante esse tempo, a rela- ção com as fontes de financiamento? Se a conformação às novas regras de mer- cado exigia que se trabalhasse a partir de leis de incentivo e de alianças com a ini- ciativa privada, os 14 anos passados finan- ciando espetáculos com dinheiro de bi- lheteria ensinaram formas alternativas de captação de recursos que ainda são uti- lizadas pelo grupo, garantindo meios de existência que ainda hoje fazem a com- panhia não depender exclusivamente do grande patrocínio e do incentivo estatal. Os valores arrecadados não foram toma- dos apenas como pagamento dos artistas, mas investidos em quesitos que partici- pam dessas negociações, foram utilizados na formação da própria companhia e de seu público e envolveram ações como convidar atores como Fernanda Monte- negro para dar oficinas em Barbacena, fi- nanciar temporadas nos grandes centros, promover intercâmbio com grupos de fora do país. Isso, claro, envolve escolhas estéticas e éticas que busco analisar ao longo do livro em meio aos textos e can- ções que embalam um sonho de Brasil. Que dificuldades se interpõem ao trabalho de grupos como o Ponto de Partida, que não fazem concessão ao mercado e se man- têm fiel à linha de pesquisa e inovação? Ninguém tem como não fazer concessão. O mercado está em tudo e a sobrevivên- cia depende dele. A questão é que tipo de concessão se faz. Se o Caetano gravar a música do Michel Teló isso terá outro sig- nificado, se tornará uma forma de pensar o Brasil, a identidade, quem somos. É isso que o Ponto faz. Ele nos ajuda a nos pen- sar. Então há uma busca de resultado pa- ra além do mercado. Podemos citar como exemplo no trabalho do grupo o convite a Nélson Xavier para viver Riobaldo em Grande sertão: veredas. Não se trata de uma estrela global acostumada a inter- pretar mocinhos, mas à época o ator esta- va há 10 anos longe dos palcos, assumin- do apenas papéis na TV e no cinema, o que lhe dava uma circulação diferencia- da, um “capital” capaz de atrair a atenção do público e da mídia. Mas a trajetória de- le, iniciada no Teatro de Arena, confere uma marca de identificação com o ideá- rio seguido pelo Ponto de Partida . Seu trabalho mostra o papel político do Pon- to de Partida desde sua fundação, o que é uma marca de outros grupos de teatro bra- sileiros. O que é peculiar na leitura da realida- de proposta pelos trabalhos do Ponto? O chamado teatro da repressão levantou a bandeira de que o fato de se estar de pé num palco já era uma atitude política. Os tempos mudaram e, na década de 1980, já não se podia generalizar e dizer isso da atitude dos rostinhos de novela transferi- dos para o teatro. Se nos anos 1970 os ato- res do Rio e de São Paulo foram para as portas de fábrica montar esquetes e tra- tar de temas de gente de carne e osso, os operários, os favelados, o Ponto de Partida buscou ler essa realidade a partir da sua aldeia, inserindo temas que nem sempre estão na ordem do dia da metrópole, mas que também precisam ser discutidos e demonstram outras visões de Brasil. A lei- tura do Ponto tem toques de crítica e po- lítica, mas sem deixar de lado uma visão otimista do país que ajudam a construir. Há muito de utopia na atitude dos artis- tas dos anos 1970 e parte da arte contem- porânea produzida nos grandes centros hoje revela um mundo pós-utópico. O Ponto de Partida continua sendo um cha- mado de luta, construindo um discurso que coloca em cena um ser nacional rico, vigoroso e feliz para o qual todos preci- sam contribuir. Há uma mescla de aparente ingenuidade com consciência crítica no trabalho do Pon- to de Partida. Como se articulam esses dois polos na trajetória do grupo? Isso não é o Brasil? Temos os filhos de Francisco e os padres fazendo sucesso, as- sim como Paulo Coelho. A questão é que esses campeões de bilheteria carregam na ingenuidade sem mesclar mais nada, diferentemente do que fez um Jorge Amado ao escrever Dona flor... e se mos- trar um mestre na arte de combinar nos- sas contradições brasileiras. Uma das fa- cetas da ação política é mesclar crítica com as relíquias do Brasil, é uma herança do nosso modernismo, o contraponto do nosso lado doutor. O uso de obras literárias é uma caracterís- tica que se articula com a cultura popular nos espetáculos do Ponto de Partida. Co- mo isso se realiza nas montagens? Temos uma tradição iletrada do Brasil, o que faz a literatura ser uma coisa de eli- te, algo que ela não é. Literatura é do po- vo. E aí tem que ensinar a ler, mas esta- mos recém-saídos da escravidão e por is- so hoje a literatura produzida a partir das periferias urbanas tem chamado tanto a atenção. A música e a cultura po- pular tornam a literatura mais próxima de um monte de gente e, somadas, ga- rantem a sobrevivência de muitas obras. Claro que aí é preciso negociar com o câ- none e ajudar a formá-lo. O Ponto de Partida oraliza a literatura canônica, ex- plora sua musicalidade e aproveita, nos espetáculos, a tradição brasileira da ora- lidade. Isso se articula também na esco- lha das cidades em que o grupo investe seu capital social, como Araçuaí. A busca de uma linguagem própria e de uma identidade brasileira são ainda hoje marcas presentes no trabalho do Ponto de Partida? Sim. Acredito que essa busca, como um objetivo, não mudou e continua sendo uma marca do grupo. Mas a cultura mu- da, as estratégias precisam ser revistas a todo momento, e dizer se as estratégias que o grupo tem utilizado nos últimos anos estão sendo efetivas ou não poderia ser um juízo precipitado. Como disse, os ajustes serão sempre necessários para acompanhar as mudanças da sociedade e questionar o que pode estar compro- metendo a circulação da arte de maneira ampla. Penso que todo artista deve se per- guntar que tipo de arte tem um discurso potente o suficiente para intervir na esfe- ra pública e furar o esquemão mercado- lógico, e o quanto interessa aos financia- dores que a arte seja de fato livre e trans- formadora da sociedade. Mantendo essas questões em mente, é possível acertar ou errar, mas pensando a arte, e não apenas realizando um produto cultural. Em sua opinião, qual o papel da crítica pa- ra o teatro? O papel é o mesmo de qualquer crítica do contemporâneo. É fazer junto, dialo- gar, tensionar o artista e o produtor e não necessariamente servir de fonte de recomendação para o público como os jornais às vezes fazem crer. Daí a impor- tância de a crítica acadêmica ganhar visi- bilidade pública. O O P Po on nt to o d de e P Pa ar rt ti i d da a o or ra al l i i z za a a a l l i i t te er ra at tu ur ra a c ca an nô ôn ni i c ca a, , e ex xp pl l o or ra a s su ua a m mu us si i c ca al l i i d da ad de e e e a a a ap pr ro ov ve ei it ta a n no os s e es sp pe et tá ác cu ul lo os s T To od do o a ar rt ti is st ta a d de ev ve e s se e p pe er rg gu un nt ta ar r q qu ue e t ti ip po o d de e a ar rt te e t te em m u um m d di is sc cu ur rs so o p po ot te en nt te e p pa ar ra a f fu ur ra ar r o o e es sq qu ue em mã ão o m me er rc ca ad do ol ló óg gi ic co o O O m me er rc ca ad do o e es st tá á e em m t tu ud do o e e a a s so ob br re ev vi iv vê ên nc ci ia a d de ep pe en nd de e d de el le e. . 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EM 14 abril 2012

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Jornal fala sobre o lançamento do Livro "Um país em cena". O livro sobre o Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, destaca a trajetória da companhia que traçou um retrato profundo do Brasil com o uso de elementos da literatura e da cultura popular.

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Page 1: EM 14 abril 2012

O3 . S Á B A D O , 1 4 D E A B R I L D E 2 0 1 2

ESTADO DE MINAS//PENSAR

Livro sobre o Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, destaca a trajetória da companhia quetraçou um retrato profundo do Brasil com uso de elementos da literatura e da cultura popular

Aldeia UNIVERSAL● ENTREVISTA/FERNANDA FERNANDES

JOÃO PAULO

Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, é um caso à parte na cul-tura brasileira. Sem abrir mão de suas raízes, de Barbacena, noCampo das Vertentes, a companhia vem construindo, desde osanos 1980, uma das mais importantes trajetórias do teatro bra-sileiro. Fora do chamado eixo, vem realizando um trabalho quefunde teatro e música, com a participação de grandes nomesdas artes cênicas brasileiras, com Fernanda Montenegro e Sér-gio Britto . Com ousadia e profundidade, o grupo criou diálogoscom obras literárias de Guimarães Rosa, Bartolomeu Camposde Queirós e João Ubaldo Ribeiro, ao lado de pesquisa com a cul-tura popular de várias regiões de Minas.

A jornalista Fernanda Fernandes mergulhou na história dogrupo em sua pesquisa de teoria da literatura do mestrado naUniversidade Federal de Juiz de Fora, analisando aspectos técni-cos, literários e políticos do Ponto de Partida. O resultado, Umpaís em cena (Editora Funalfa), é um trabalho que vai da histó-ria para a teoria, para retornar à sociedade por meio dos acha-dos estéticos e éticos dos espetáculos do Ponto de Partida. Nes-se périplo, a pesquisa de Fernanda Fernandes trata de elementosque marcaram a cultura brasileira das últimas décadas, da resis-tência à busca de um lugar de eficácia social e artística, em meioa demandas da política e do mercado.

Em entrevista ao Pensar, Fernanda destaca ainda o caráter debusca de identidade que perpassa a trajetória do grupo, que nãodeixa de enfrentar as contradições contemporâneas nem se es-quiva de ir ao Brasil profundo. “O Ponto de Partida continua sen-do um chamado de luta, construindo um discurso que colocaem cena um ser nacional rico, vigoroso e feliz para o qual todosprecisam contribuir”, defende. Seu livro Um país em cena é umpasso importante nessa história.

Por que a escolha do Ponto de Partida pa-ra seu estudo?Conheci o grupo na adolescência, em1995, quando ganhei um amigo muitoespecial, que estava ingressando para noPonto de Partida, o ator Felipe Saleme. ApartirdaípasseiaacompanharasestreiasemBarbacenae,aolongodotempo,meulugar na plateia foi se transformando. Defã do teatro como arte fui passando paraum lado mais crítico e de pesquisadora.Acompanhei o trabalho do grupo tam-bém como jornalista (fui repórter do ca-dernodeculturadaTribunadeMinasdu-rante seis anos) e isso ajudou a desenvol-ver a observação e a análise antes da vidaacadêmica. No mestrado, foi necessárioconstruir maior distanciamento crítico,mas as relações e as escolhas, claro, pas-sam pelo afeto.

Como você avalia o trabalho dos grupos deteatro fora do chamado eixo das grandescidades?Eleger um grande centro como sede po-deria ser uma opção capaz de garantir vi-sibilidadeemaioracessoaomercadocul-turalestabelecido.Nessesentido,amanu-tençãodeumgrupoprofissionaldistantedosespaçostradicionaisdelegitimaçãoésempreumtrabalhodelutaeresistência,quepassapelaquestãodaidentidade,pe-la tensão entre o local e o cosmopolita. Is-so no Brasil está ligado à dificuldade deconstituição de uma res pública, justa-menteporcontadessacentralização.MasascoisasestãomudandoeoPontodePar-tida participou do que poderíamos iden-tificar como vanguarda dessa mudançaquando foi criado como uma associaçãocultural. Não vejo outra saída para umgrupoforadoeixo,poisfazermaisdoqueteatro é necessário não apenas para ga-rantir a sobrevivência da companhia,mas para interferir na coisa pública, jáquehánissoumaformaderevolveropo-der estabelecido.

Como o Ponto de Partida conseguiu rom-per essa barreira, fazer um trabalho reco-nhecido em todo o país e atrair atenção degrandes nomes da arte brasileira?Negociandoespaços,abrindobrechaseseadaptando às modificações no cenáriocultural do país. O Ponto de Partida foifundado em 1980 e se mantém até hojegraçasadiversasadaptaçõesàsmodifica-ções no cenário cultural brasileiro. Fazerteatro no chamado período de aberturado governo militar era algo completa-mente diferente do que se faz hoje. E nomeio desse caminho surgiu a Lei Sarney,a Lei Rouanet e suas diversas modifica-ções, o Fundo Nacional de Cultura, entreoutrastentativasderegulaçãodaárea.Pa-racontextualizarisso,foiprecisodestacarumatrajetóriaquenãoédoPontodePar-tida, mas da cultura brasileira.

Como se deu, durante esse tempo, a rela-ção com as fontes de financiamento?

Seaconformaçãoàsnovasregrasdemer-cado exigia que se trabalhasse a partir deleis de incentivo e de alianças com a ini-ciativaprivada,os14anospassadosfinan-ciando espetáculos com dinheiro de bi-lheteria ensinaram formas alternativasdecaptaçãoderecursosqueaindasãouti-lizadas pelo grupo, garantindo meios deexistência que ainda hoje fazem a com-panhianãodependerexclusivamentedogrande patrocínio e do incentivo estatal.Os valores arrecadados não foram toma-dosapenascomopagamentodosartistas,mas investidos em quesitos que partici-pamdessasnegociações,foramutilizadosna formação da própria companhia e deseu público e envolveram ações comoconvidar atores como Fernanda Monte-negro para dar oficinas em Barbacena, fi-nanciartemporadasnosgrandescentros,promover intercâmbio com grupos defora do país. Isso, claro, envolve escolhasestéticas e éticas que busco analisar aolongo do livro em meio aos textos e can-ções que embalam um sonho de Brasil.

Que dificuldades se interpõem ao trabalhode grupos como o Ponto de Partida, quenão fazem concessão ao mercado e se man-têm fiel à linha de pesquisa e inovação?Ninguémtemcomonãofazerconcessão.O mercado está em tudo e a sobrevivên-cia depende dele. A questão é que tipo deconcessão se faz. Se o Caetano gravar amúsicadoMichelTelóissoteráoutrosig-nificado,setornaráumaformadepensaroBrasil,a identidade,quemsomos.Éissoque o Ponto faz. Ele nos ajuda a nos pen-sar. Então há uma busca de resultado pa-raalémdomercado.Podemoscitarcomoexemplo no trabalho do grupo o convitea Nélson Xavier para viver Riobaldo emGrande sertão: veredas. Não se trata deuma estrela global acostumada a inter-pretarmocinhos,masàépocaoatoresta-va há 10 anos longe dos palcos, assumin-do apenas papéis na TV e no cinema, oque lhe dava uma circulação diferencia-da, um “capital” capaz de atrair a atençãodopúblicoedamídia.Masatrajetóriade-le, iniciada no Teatro de Arena, confereuma marca de identificação com o ideá-rio seguido pelo Ponto de Partida .

Seu trabalho mostra o papel político do Pon-to de Partida desde sua fundação, o que éuma marca de outros grupos de teatro bra-sileiros. O que é peculiar na leitura da realida-de proposta pelos trabalhos do Ponto?

O chamado teatro da repressão levantoua bandeira de que o fato de se estar de pénumpalcojáeraumaatitudepolítica.Ostempos mudaram e, na década de 1980,já não se podia generalizar e dizer isso daatitudedosrostinhosdenovelatransferi-dosparaoteatro.Senosanos1970osato-res do Rio e de São Paulo foram para asportas de fábrica montar esquetes e tra-tar de temas de gente de carne e osso, osoperários,osfavelados,oPontodePartidabuscou ler essa realidade a partir da suaaldeia, inserindo temas que nem sempreestãonaordemdodiadametrópole,masque também precisam ser discutidos edemonstramoutrasvisõesdeBrasil.Alei-tura do Ponto tem toques de crítica e po-lítica, mas sem deixar de lado uma visãootimista do país que ajudam a construir.Há muito de utopia na atitude dos artis-tas dos anos 1970 e parte da arte contem-porânea produzida nos grandes centroshoje revela um mundo pós-utópico. OPontodePartidacontinuasendoumcha-mado de luta, construindo um discursoque coloca em cena um ser nacional rico,vigoroso e feliz para o qual todos preci-sam contribuir.

Há uma mescla de aparente ingenuidadecom consciência crítica no trabalho do Pon-to de Partida. Como se articulam essesdois polos na trajetória do grupo?Isso não é o Brasil? Temos os filhos deFranciscoeospadresfazendosucesso,as-sim como Paulo Coelho. A questão é queesses campeões de bilheteria carregamna ingenuidade sem mesclar mais nada,diferentemente do que fez um JorgeAmado ao escrever Dona flor... e se mos-trar um mestre na arte de combinar nos-sas contradições brasileiras. Uma das fa-cetas da ação política é mesclar críticacomasrelíquiasdoBrasil,éumaherançadonossomodernismo,ocontrapontodonosso lado doutor.

O uso de obras literárias é uma caracterís-tica que se articula com a cultura popularnos espetáculos do Ponto de Partida. Co-mo isso se realiza nas montagens?Temos uma tradição iletrada do Brasil, oque faz a literatura ser uma coisa de eli-te, algo que ela não é. Literatura é do po-vo. E aí tem que ensinar a ler, mas esta-mos recém-saídos da escravidão e por is-so hoje a literatura produzida a partirdas periferias urbanas tem chamadotanto a atenção. A música e a cultura po-

pular tornam a literatura mais próximade um monte de gente e, somadas, ga-rantem a sobrevivência de muitas obras.Claro que aí é preciso negociar com o câ-none e ajudar a formá-lo. O Ponto dePartida oraliza a literatura canônica, ex-plora sua musicalidade e aproveita, nosespetáculos, a tradição brasileira da ora-lidade. Isso se articula também na esco-lha das cidades em que o grupo investeseu capital social, como Araçuaí.

A busca de uma linguagem própria e de umaidentidade brasileira são ainda hoje marcaspresentes no trabalho do Ponto de Partida?Sim. Acredito que essa busca, como umobjetivo, não mudou e continua sendouma marca do grupo. Mas a cultura mu-da, as estratégias precisam ser revistas atodo momento, e dizer se as estratégiasque o grupo tem utilizado nos últimosanosestãosendoefetivasounãopoderiaser um juízo precipitado. Como disse, osajustes serão sempre necessários paraacompanhar as mudanças da sociedadee questionar o que pode estar compro-metendo a circulação da arte de maneiraampla.Pensoquetodoartistadeveseper-guntar que tipo de arte tem um discursopotenteosuficienteparaintervirnaesfe-ra pública e furar o esquemão mercado-lógico, e o quanto interessa aos financia-dores que a arte seja de fato livre e trans-formadoradasociedade.Mantendoessasquestõesemmente,épossívelacertarouerrar, mas pensando a arte, e não apenasrealizando um produto cultural.

Em sua opinião, qual o papel da crítica pa-ra o teatro?O papel é o mesmo de qualquer críticado contemporâneo. É fazer junto, dialo-gar, tensionar o artista e o produtor enão necessariamente servir de fonte derecomendação para o público como osjornais às vezes fazem crer. Daí a impor-tância de a crítica acadêmica ganhar visi-bilidade pública.

OO PPoonnttoo ddee PPaarrttiiddaa oorraalliizzaa aalliitteerraattuurraa ccaannôônniiccaa,, eexxpplloorraa

ssuuaa mmuussiiccaalliiddaaddee ee aaaapprroovveeiittaa nnooss eessppeettááccuullooss

TTooddoo aarrttiissttaa ddeevvee sseeppeerrgguunnttaarr qquuee ttiippoo ddee aarrtteetteemm uumm ddiissccuurrssoo ppootteennttee

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OO mmeerrccaaddoo eessttáá eemmttuuddoo ee aa

ssoobbrreevviivvêênncciiaaddeeppeennddee ddeellee..

AA qquueessttããoo éé qquuee ttiippooddee ccoonncceessssããoo ssee ffaazz

TTeemmooss uummaa ttrraaddiiççããooiilleettrraaddaa,, oo qquuee ffaazz aalliitteerraattuurraa sseerr uummaaccooiissaa ddee eelliittee,, aallggooqquuee eellaa nnããoo éé..LLiitteerraattuurraa ddoo ppoovvoo‘

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‘PAULA RIVELLO/TRIBUNA DE MINAS

Pra Nhá Terra, montagem do Grupo Ponto de Partida: exercício de linguagem com compromisso político

JULIO BISPO/DIVULGAÇÃO

FUNALFA/REPRODUÇÃO

UM PAÍS EM CENA● De Fernanda Fernandes● Editora Funalfa, 180 páginas