Download Clarice Jornalista Por Aparecida Maria

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    JOGO DE DISFARCES Clarice Lispector e o ofcio de escrever colunas femininas

    Clarice Lispector no era jornalista, tampouco gostava de atuar na imprensa. Mas foi

    justamente nas redaes de jornais da cidade do Rio de Janeiro que a ficcionista conseguiu publicar seus primeiros textos, alguns deles at hoje inditos, e desenvolver diversas atividades, estabelecendo, paralelamente sua longa atividade literria, relaes com um tipo de pblico diferente do de seus livros. Ela atuou como cronista, reprter e entrevistadora, para citar apenas algumas das funes, entre os anos 1940 at 1977, quando falece.

    Em 1952, Clarice Lispector convidada por Rubem Braga para assinar uma pgina

    feminina em O Comcio tablide que seria um dos precursores da imprensa alternativa fundado por ele, Joel Silveira e Rafael Corra de Oliveira. O jornal teria curta durao quatro meses contando com um time de colaboradores de primeira linha: Millr Fernandes, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Srgio Porto, entre outros.

    Clarice aceita o convite e retorna ao jornalismo, agora como escritora consagrada. Sob o

    pseudnimo de Tereza Quadros, Clarice Lispector publicar, nesta coluna feminina, alguns rudimentos de crnica em pgina onde se misturam conselhos de etiqueta, moda, culinria, maquiagem, postura e tudo o mais que cerca o universo da mulher, me e esposa. Entre Mulheres, nome da coluna, marca, ento, o ponto de partida dessa nova atividade desempenhada por Clarice na imprensa, que seria retomada em outros peridicos sob outros pseudnimos, anos mais tarde.

    Clarice ser tambm a Helen Palmer da Feira de Utilidades do Correio da Manh (RJ), de

    1959 a 1961. E ainda a ghost writer da atriz e manequim Ilka Soares, na coluna S para Mulheres do Dirio da Noite (RJ), de abril de 1960 a maro de 1961. Nestes textos, desvela-se uma autora acessvel ao pblico em geral, que trata de amenidades e coisas triviais.

    Tereza Quadros e o jogo dos disfarces

    Entre Mulheres compe-se de pequenos textos narrativos sobre beleza, decorao, moda e comportamento, sob a forma de conselhos, receitas e segredos. Trabalhando com assuntos comuns mentalidade do pblico feminino da poca, Tereza Quadros acabar por adquirir a confiana de quem a l. Conversa sobre coisas simples, revela segredos, apresenta novidades da Europa, ensina como tornar a vida prtica e faz com que sua companheira de bate-papo se sinta diferenciada, especial, feminina.

    Na brincadeira ldica, mesclada de receitas de fico e de aprendizado no lar, a pgina

    feminina de Comcio, porm, no se apresenta como uma simples pgina feminina. A edio de 8 de agosto de 1952, por exemplo, deixa transparecer a maneira pela qual Clarice Lispector se pautava ao escrever suas pginas na imprensa feminina, simulando o que talvez poderia ser mais uma de suas personagens: Tereza Quadros. Os pequenos textos aparentemente inofensivos da coluna, na verdade, so apologias ao jogo de disfarces, no qual vai iniciando sua leitora.

    Na receita de vestir, a colunista ensina que, na grande moda, so os pequenos detalhes,

    quase imperceptveis, que constroem o conjunto. Por isso, o corte raglan das mangas, combinando com uma lapela ovalada, esconde as linhas retas e tira a severidade do sbrio tecido de inverno. E a leitora aprende que os detalhes da moda ajudam a compor o feitio, simulando elegncia e bom gosto. Mas tambm, atravs da fala de Tereza Quadros, se pode identificar o

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    recurso pelo qual Clarice Lispector se pautou para compor suas pginas femininas e que de certa forma caracteriza sua fico: o gosto pelo interdito, pelas entrelinhas, pelos pequenos detalhes.

    As aes sugeridas pela colunista no se restringem apenas ao comer, ao vestir, ao limpar,

    ao enfeitar-se. H ainda o ato de matar que deve ser apreendido com eficincia e tcnica pela dona-de-casa. Afinal, ela tambm deve proteger o lar de intrusos. Das baratas, por exemplo, na edio de 8 de agosto de 1952. Assim, conferindo outra funo sua interlocutora, Tereza Quadros no guardar segredo sobre os ingredientes e o modo de aviar essa nova receita, que se pretende eficaz e que diagramada discretamente na coluna, como todo bom disfarce. Eis como tudo se processa:

    Meio cmico, mas eficaz...

    De que modo matar baratas? Deixe, todas as noites, nos lugares preferidos por esses bichinhos nojentos, a seguinte receita: acar, farinha e gesso, misturados em partes iguais. Essa iguaria atrai as baratas que a comero radiantes. Passado algum tempo, insidiosamente o gesso endurecer dentro das mesmas, o que lhes causar morte

    certa. Na manh seguinte, voc encontrar dezenas de baratinhas duras, transformadas em esttuas.

    H ainda outros processos. Ponha, por exemplo, terebentina nos lugares freqentados pelas baratas: elas fugiro. Mas para onde? O melhor, como se v, mesmo engessa-las em inmeros monumentozinhos, pois para

    onde pode ser outro aposento da casa, o que no se resolve o problema. Meio cmico, mas eficaz... texto embrionrio do conto A quinta histria de Clarice

    Lispector e, portanto, a receita que aqui se inscreve no tem a mesma finalidade das outras distribudas pela pgina. Os ingredientes so todos de uso domstico - acar, farinha e gesso. O lugar onde a ao deve ser praticada tambm o do lar. E o problema levantado faz parte da manuteno de limpeza e higiene de qualquer casa. Como se v, a receita de matar baratas segue os mesmos padres de outras receitas da imprensa feminina, o que poderia levar uma leitora distrada a no perceber a verdadeira natureza dessa receita marota que se mistura a outras to comportadas.

    A receita de matar baratas adquire formatos variados ao longo da fico de Clarice

    Lispector. Em 1960, a histria publicada, com algumas variaes, no Dirio da Noite. Em 1962, ela transforma-se em conto, publicado na revista Senhor. Em 1964, a histria ganha as pginas do livro A legio estrangeira.

    Ilka Soares e o Laboratrio de Feitiaria

    Em tantas histrias de odiar, amar e matar que compem o universo ficcional de Clarice Lispector, evidencia-se o papel de feiticeira que a colunista se atribui, procurando iniciar tambm sua interlocutora em tal aprendizado. No toa que Clarice Lispector, quando ghost writer de Ilka Soares, cria, na coluna S para mulheres, uma seo denominada Laboratrio de Feitiaria. Ainda sob a forma de disfarce, Clarice convida sua leitora de jornal, a distrada dona-de-casa, a se tornar uma bruxa moderna e a transformar a cozinha em laboratrio de experincias, para fabricar cremes e xampus, por exemplo, para manter a juventude, tal qual uma bruxa moderna procura de elixires.

    Clarice chama sua leitora de feiticeira moderna, numa tentativa de aflorar no ntimo de

    quem a l a convico de que ela, a interlocutora, detm um poder para transformaes. O caldeiro e os outros utenslios para a confeco de poes mgicas esto bem ali, ao alcance de suas mos. A bruxa moderna manipula suas frmulas secretas na... cozinha. Alis, a cozinha sempre foi o espao onde a mulher pde se mover e produzir sua fala com maior liberdade. E

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    agora local de bruxarias. Mas a feiticeira tambm mata para proteger o lar. E assim que novamente a receita de matar baratas reaproveitada, estratgia comum no trabalho de escrever de Clarice Lispector. No entanto, o ttulo, desta vez, sugere um ato macabro: Receita de Assassinato.

    Comparada receita de matar baratas de Comcio, a do Dirio da Noite est mais prxima da

    escritura do conto A quinta histria. dividida em trs passos como as trs primeiras histrias do conto. Por isso, relacionando a receita de jornal receita do conto, podemos verificar o quanto de semelhana j se estabelece. Nessa ltima verso, no aparece a figura da vizinha ou da senhora que ouviu a queixa e ensinou a receita. O enfoque recai nas fases, meticulosamente observadas, de atrao, seduo e morte. Afinal, um crime deve ser estrategicamente planejado, sem deixar pistas.

    A receita de matar tambm pode ser uma receita de seduo, no sentido de que a autora

    criminosa aproveita alguns procedimentos dessa armadilha: deve atrair para atacar. Por isso toma outros cuidados. A mulher no deve aparecer no momento do assassinato. Mas deve conhecer os hbitos da vtima para a preparar a cena do crime, isto , estudar os lugares freqentados pelas baratas para deixar o veneno sob a forma de iguaria. E as baratas so horrveis, sugestiona ardilosamente a narradora, no seu jogo discursivo, para comprometer a leitora em sua artimanha.

    O local do crime tambm o local do laboratrio de feitiarias. E os ingredientes que

    compem o veneno e preparam o assassinato so os mesmos utilizados em outras receitas inocentes, feitas para agradar a famlia. Com exceo do gesso, que meticulosamente includo frmula to apetitosa.

    A crueldade com tom sdico surge como resultado de quando o processo de seduo

    chega ao fim, na conquista do objeto desejado. Assim como as baratas transformadas em esttuas no oferecem mais risco e adquirem a funo de adorno, o objeto de qualquer tipo de seduo depois de seduzido passa a ser simplesmente um motivo de contemplao aps o gozo da conquista.

    Helen Palmer e os padres de beleza

    A fala de Clarice Lispector, nessas pginas femininas, movida pela dissimulao. A

    comear pelo disfarce que usa para chegar casa das leitoras. Clarice Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares. Existe, de antemo, uma mscara. Mscara essa objeto da seduo, espera do ser seduzido. No tem a pretenso da verdade. Apenas seduz. E isso basta.

    Alm do mais, as idias tinham tambm por meta levar a mulher com mais idade, aquela

    com mais de trinta anos, a nutrir sentimentos de insegurana por envelhecer. Para impor um produto, a indstria dos cosmticos, juntamente com a mdia, cria padres de beleza e consagra a mulher jovem. Tanto assim que uma das crnicas de Helen Palmer discutir justamente o tema Seduo e feminilidade. Na verdade no bem uma discusso, mas uma receita. A seduo da mulher, explicita a colunista, comea com sua aparncia fsica. Para atrair os olhares masculinos, a mulher deve ter uma pele bem cuidada, olhos brilhantes e cabelos sedosos, alm do que denominou personalidade cativante.

    A mulher que se forma nas pginas femininas de Clarice Lispector, praticamente, a

    mesma da fico. Ainda que, aqui, desvestida do trabalho ficcional, apresente traos comuns. a mulher s voltas com seu entorno, o ambiente domstico, a que possui inquietaes, a que tenta ouvir sua voz. Como a Ana do conto Amor. tambm a que est procura de sua

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    feminilidade, a que busca se conhecer, a que se encontra na condio de mulher. Como a Lri de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. So receitas e segredos que Clarice Lispector soube manejar e misturar em seu caldeiro alqumico, dividindo com a leitora de jornal uma viso s vezes estereotipada, mas revelando tambm segredos at ento muito bem guardados. Para as que tm olhos de ver.

    Aparecida Maria Nunes jornalista e professora universitria. Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de So Paulo.

    Autora de Clarice Lispector jornalista: pginas femininas & outras pginas e organizadora dos inditos de Clarice publicados no volume Correio Feminino, da editora Rocco.