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RDS VII (2015), 1, 161‑188 Dever de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedade – Anotação a STJ 30‑Set.‑2014 PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, LLM SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIçA Acórdão de 30 de setembro de 2014, Processo 1195/08.0TYLSB,L1.S1 Sumário: I. Assaca a Autora ao Réu, visando a sua destituição de gerente, a violação de deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, todos previstos no art. 64.º do Código das Sociedades Comerciais, enfatizando, sobretudo, a violação do dever de lealdade. II. O dever de lealdade é indissociável do princípio de confiança, quer seja perante a sociedade, quer perante os sócios, quer perante terceiros. O acautelar do interesse social não se confina apenas ao interesse societário tout court, ou seja, a uma actividade que vise lucros. A eticização do direito e da vida societária impõem uma actuação honesta, criteriosa e transparente compaginável com a tutela de terceiros que possam ser prejudicados pela actuação do ente societário através da actuação de quem delineia a sua estratégia e é responsável pela actuação da sociedade, o que convoca os princípios da actuação de boa fé, da confiança e a da proibição do abuso do direito. III. A actuação concorrencial exercida pelo gerente e que afecta a sociedade prote‑ gida pode ser exercida por uma sociedade em que o gerente seja único sócio de uma outra sociedade. No caso em apreço, a actividade concorrente é exercida por uma sociedade unipessoal por quotas detida pelo Réu: poder‑se‑ia pensar que dada a auto‑ nomia jurídica dessa sociedade, não seria o Réu quem exercia actividade concorrente. IV. O art. 254.º, n. os 1 e 5 do Código das Sociedades Comerciais, alude ao conceito de “justa causa”. Trata‑se de um conceito indeterminado, dotado de plastici‑ dade adaptável casuisticamente para aferir se uma actuação se compagina com os direitos e deveres do exercente, postulados pelos princípios jurídicos nela implicados. No caso, esses deveres são os de deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, este na vertente da proibição de concorrência próprios da gestão societária, não sendo de desconsiderar a aplicação de princípios como o da confiança e da boa‑fé, também nesta sede convocáveis.

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RDS VII (2015), 1, 161‑188

Dever de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedade – Anotação a STJ 30 ‑Set. ‑2014

PRoF. doUtoR a. BaRReto Menezes coRdeiRo, LLM

sUPReMo tRiBUnaL de JUstiçaacórdão de 30 de setembro de 2014, Processo 1195/08.0tYLsB,L1.s1

sumário:

i. assaca a autora ao Réu, visando a sua destituição de gerente, a violação de deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, todos previstos no art. 64.º do código das sociedades comerciais, enfatizando, sobretudo, a violação do dever de lealdade.

ii. o dever de lealdade é indissociável do princípio de confiança, quer seja perante a sociedade, quer perante os sócios, quer perante terceiros. o acautelar do interesse social não se confina apenas ao interesse societário tout court, ou seja, a uma actividade que vise lucros. a eticização do direito e da vida societária impõem uma actuação honesta, criteriosa e transparente compaginável com a tutela de terceiros que possam ser prejudicados pela actuação do ente societário através da actuação de quem delineia a sua estratégia e é responsável pela actuação da sociedade, o que convoca os princípios da actuação de boa fé, da confiança e a da proibição do abuso do direito.

iii. a actuação concorrencial exercida pelo gerente e que afecta a sociedade prote‑gida pode ser exercida por uma sociedade em que o gerente seja único sócio de uma outra sociedade. no caso em apreço, a actividade concorrente é exercida por uma sociedade unipessoal por quotas detida pelo Réu: poder ‑se ‑ia pensar que dada a auto‑nomia jurídica dessa sociedade, não seria o Réu quem exercia actividade concorrente.

iv. o art. 254.º, n.os 1 e 5 do código das sociedades comerciais, alude ao conceito de “justa causa”. trata ‑se de um conceito indeterminado, dotado de plastici‑dade adaptável casuisticamente para aferir se uma actuação se compagina com os direitos e deveres do exercente, postulados pelos princípios jurídicos nela implicados.

no caso, esses deveres são os de deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, este na vertente da proibição de concorrência próprios da gestão societária, não sendo de desconsiderar a aplicação de princípios como o da confiança e da boa ‑fé, também nesta sede convocáveis.

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v. constitui justa causa de destituição de gerente, actuação sua que exprima violação grave dos deveres de gerente, mormente, dos deveres de cuidado, de diligência e de leal‑dade, que impliquem perda irreparável da confiança dos afectados por essa actuação, seja no contexto interno da sociedade, seja na sua relação com terceiros a justificar a impossibilidade da manutenção do vínculo que o une ao ente societário, por existir conflito de interesses gerador de danos efectivos ou potenciais, que devam ser conside‑radas razão inequívoca da inexigibilidade da manutenção daquele vínculo jurídico. a lei alemã alude a “grosseira violação dos deveres, incapacidade de condução regular dos negó‑cios ou privação da confiança…”, ou seja, quando “a confiança por manifestos e improcedentes fundamentos foi destruída” – § 84, n.º3 da Aktiengesetz.

vi. Para que haja concorrência desleal – proibida no art. 254.º, n.º 1, do código das sociedades comerciais não se exige que a actividade concorrente, exercida pelo também gerente de outra sociedade, deva ser coincidente com a exercida pela “socie‑dade protegida”, previamente exercente dessa actividade: basta que essa actividade seja similar à da sociedade protegida e possa com ela, mormente, pela sua actuação e situação geográfica, concorrer de modo a causar “desvio de clientela”.

vii. a lei não proíbe a concorrência, sob pena de coarctar o direito de livre estabelecimento e de iniciativa privada que têm tutela constitucional – arts. 47.º e 61.º da Lei Fundamental; proíbe, sim, a concorrência desleal, violadora do dever de lealdade, que é a que um sujeito de direito exerce de modo a afectar, à margem da lei, os saudáveis princípios da concorrência.

viii. o dever de lealdade está associado à obrigação de não concorrência, à obri‑gação de não aproveitar em benefício próprio possíveis oportunidades de negócio, a actuação de boa ‑fé ao respeito pelo princípio da confiança e à omissão de proce‑dimentos que provoquem conflitos de interesses.

a actuação do Réu, enquanto gerente da “cc”, infringiu gravemente os citados deveres pelo que existe justa causa para a sua destituição.

iX. os factos revelam utilização abusiva de bens da “cc” quando o Réu já nenhuma ligação de facto mantinha com essa sociedade, demitindo ‑se, assim, dos seus deveres de cuidado e diligência, descurando os interesses desta sociedade e contemplando os seus.

X. o facto de se manter ligado juridicamente à “cc”, malgrado a sua quase total ausência de exercício da função de gerente em prol do respectivo interesse social e o facto de ter utilizado bens e informações da “cc” para instalar o seu estabele‑cimento que exerce concorrência a esta sociedade, exprime, além de violação dos deveres de cuidado e diligência, violação do nodal dever de lealdade, afectando, de maneira clamorosa, a relação de confiança que deveria cultivar.

Xi. esta conduta torna objectiva e subjectivamente inexigível a sua manutenção como gerente da “cc”, sendo patente que a actuação do Recorrente revela um claro conflito de interesses entre a autora e esta sociedade, sobretudo, desde que, em 23 de Julho de 2008, o Réu constitui a sociedade unipessoal “GG ‑Gestão de Restaurantes Unipessoal Lda.”.

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acordam no supremo tribunal de Justiça:

aa, Lda., intentou, em 18.10.2008, no tribunal de comércio de Lisboa – 1.º Juízo – acção especial, nos termos do disposto no art. 1484º ‑B do código de Processo civil, contra:

– BB, e; – cc Lda. Peticionando que seja decretada: – a suspensão imediata do requerido BB do cargo de gerente da sociedade

cc …, Lda., sem audiência prévia deste, com perda do direito à remuneração e demais regalias financeiras pelo exercício daquele cargo, ordenando ‑se a entrega à sociedade da respectiva viatura de serviço, telemóvel e computador;

– a destituição do requerido BB de gerente da sociedade cc, Lda. com fundamento em justa causa por violação grave dos deveres gerais de cuidado e de lealdade e do dever específico de não concorrência com a sociedade.

Omissoapós, foi elaborada a resposta à matéria de facto (fls. 271 a 279) e proferida

sentença, na qual se julgou improcedente a acção tendo a Ré sido absolvida dos pedidos contra ela formulados.

***

inconformada, a requerente interpôs recurso de apelação, para o tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 1.4.2014 – fls. 592 a 624 – julgou proce‑dente o recurso, e em consequência:

– Revogou a sentença recorrida; – Julgou procedente o pedido de destituição do requerido das funções de

gerente da sociedade cc …, Lda., com fundamento em justa causa; – declarou extinta a instância atinente ao pedido de suspensão da gerência,

por inutilidade superveniente da lide; – condenou o requerido/apelado nas custas (devidas em 1.ª instância e na

Relação);

***

inconformado, recorreu o Réu recorreu para este supremo tribunal de JustiçaOmissocolhidos os vistos legais, cumpre decidir tendo em conta que a Relação

considerou provados os seguintes factos: 1. a sociedade aa, Lda., foi constituída em 26 de Fevereiro de 2004 e tem

como objecto social a representação, compra, venda e revenda de produtos e

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equipamento, nomeadamente, na área da restauração e similares, prestação de serviços conexos representação de marcas de restaurantes

2. entre as marcas detidas e representadas pela requerente inclui ‑se a marca nacional e comunitária, respectivamente com os números … e …, denominada “dd”.

3. a sociedade FF Lda. cedeu à sociedade Requerente a marca “dd”, cuja criação, implementação e valorização comercial fora da sua autoria.

4. o requerido foi, através de uma sociedade unipessoal por si constituída, franchisado da referida marca “dd”.

5. o conceito comercial subjacente à marca “dd” é o de venda de comida saudável.

6. em 18 de Março de 2005, requerente e requerido constituíram a socie‑dade cc …, Lda.

7. cc …, Lda., pessoa colectiva n…., tem sede na av. …, n.º…, …, freguesia de …, em Lisboa.

8. cc…, Lda. tem como objecto social exclusivo o investimento, explo‑ração, operação e … da cadeia “dd”, sob o regime de franchising e tem o capital social de € 15.751,68.

9. Requerente e requerido são os únicos sócios da sociedade cc, Lda., sendo a primeira titular de quotas no valor nominal de € 6.500,00 e de € 3.738,59 e o segundo titular de duas quotas no valor nominal de € 3.500,00 e € 2.013,09.

10. a gerência da sociedade cc, Lda., pertence aos sócios ou não sócios a designar em assembleia ‑geral.

11. a sociedade cc …, Lda., obriga ‑se em todos os actos e contratos, designa‑damente, pela assinatura conjunta de dois gerentes.

12. Foram nomeados gerentes no contrato de sociedade cc, Lda., o sócio BB e o não sócio ee

13. Mostra ‑se registada a designação de JJ como gerente da sociedade cc, Lda., por ap.135 de 31.7.2008.

14. o gerente e não sócio ee ficou autorizado a exercer, por conta própria ou alheia, actividade concorrente com a da sociedade cc, Lda.

15. BB não foi autorizado a desenvolver actividade concorrente com a da sociedade cc …, Lda.

16. a sociedade cc sempre se dedicou à exploração de restaurantes da marca “dd”.

17. ee é sócio e gerente da sociedade FF. Lda. desde a respectiva consti‑tuição, em 1997.

18. em 18.10.2008 ee, casado com JJ era titular de uma quota no valor de € 175.000 na sociedade FF, cujo capital social era, à data, de € 250.000.

19. FF. Lda., pessoa colectiva n.º…, tem sede na av. …, n…., …, freguesia de …, em Lisboa.

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20. FF. Lda. tem como objecto social, a venda a retalho de sumos de frutas, sandes, saladas, salgados e sobremesas.

21. em 18.10.2008 ee, casado com JJ era titular de uma quota no valor de € 4.900 e o seu cônjuge de uma quota no valor de € 100,00 ambas na sociedade requerente, cujo capital social era, à data, de € 5.000.

22. o requerido, por força das funções de gerente da sociedade cc …, Lda., tem acesso a informação confidencial na área da restauração de comida saudável,

23. o pessoal administrativo e contabilístico e o equipamento afecto à activi‑dade da sociedade cc …, Lda. é o da sociedade FF Lda., partilhando os respec‑tivos custos de funcionamento da estrutura de acordo com uma percentagem mensal apurada em função do cômputo global das vendas mensais de ambas as sociedades e na respectiva proporção.

24. o requerido recusou a autorização para pagamento das notas de débito de custos da estrutura de funcionamento comum, emitidas a partir de Março do ano de 2008, invocando a existência de irregularidades que não concretizou.

25. o requerido remeteu à requerente que a recebeu, carta datada de 14.7.2008 na qual se lê:

“Serve a presente para informar V. Exas. de que programo, para muito em breve, dar início à exploração, por conta própria, de estabelecimentos de restauração.

Os estabelecimentos em causa serão franchisados de uma marca de restauração rápida do tipo “fast casual” já implantada no mercado.

Esses estabelecimentos tendencialmente serão abertos em centros comerciais e unidades de carácter análogo no norte do país considerando ‑se para o efeito) todo o território acima da linha de Coimbra) Incluindo esta cidade.”

26. a requerente não respondeu à carta datada de 14.7.2008. 27. ee convocou uma assembleia ‑geral de sócios da sociedade cc …, Lda.

com vista à aprovação das contas e do relatório de gestão do exercício de 2007 e à resolução do conflito existente na gerência.

28. em 30 de Julho de 2008, reuniu a assembleia ‑geral de sócios da socie‑dade cc…, Lda., constando da acta da assembleia o seguinte:

Omisso29. o requerido convocou para o dia 11 de agosto de 2008, uma assembleia‑

‑geral de sócios tendo como ponto único da ordem de trabalhos a destituição com justa causa do gerente ee.

30. da acta da referida assembleia consta, além do mais, que o requerido no uso da palavra disse: “Aliás, possivelmente esta destituição, a menos que se verificasse a unanimidade dos votos, teria de ser judicial”.

31. em 23 de Julho de 2008 foi constituída a sociedade GG – … Unipessoal Lda., pessoa colectiva …, matriculada no Registo comercial de Lisboa.

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32. a sociedade tem por objecto “a exploração e gestão de estabelecimentos comer‑ciais destinados à actividade de restauração e/ou actividades similares, com a possibilidade de recurso à utilização de marca em regime de Franchising; prestação de serviços de alimentação e de bebidas no próprio estabelecimento ou fora dele; exercício de quaisquer actividades que sejam acessórias, instrumentais ou complementares às supra enunciadas”.

33. é sócio único da sociedade GG – … Unipessoal, Lda., BB. 34. é gerente da sociedade GG – … Unipessoal Lda., RR. 35. a requerente foi alertada por terceiros das suas relações comerciais que

o requerido planeava abrir um estabelecimento de restauração no centro comer‑cial …, na cidade do Porto.

36. em 16 de setembro de 2008, no período de gozo de férias enquanto gerente da sociedade cc …, Lda., o requerido abriu uma loja da marca ii – …, no c. comercial …, no Porto.

37. a requerente comprovou a abertura do dito estabelecimento através de uma venda a dinheiro.

38. o referido estabelecimento exerce actividade de venda de comida sob a marca “ii …”.

39. encontram ‑se em funcionamento uma loja dd e uma loja … no c. comercial …

40. o estabelecimento de restauração no centro comercial … está localizado em frente à loja que a sociedade cc detém no mesmo centro comercial.

41. o requerido usou o computador, o servidor de correio electrónico da sociedade cc e os fornecedores desta para contactos e negociações de forneci‑mento e instalação de equipamento e prestação de serviços para o estabelecimento comercial “ii”.

42. o requerido usou o seu telemóvel de serviço, propriedade da sociedade cc e com facturação paga por esta, a que corresponde o número …, para contactos com os sócios e gerentes da sociedade comercial “HH – Restauração …”, titular da referida marca “ii”.

43. na negociação dos contratos com fornecedores, o requerido pretendeu beneficiar de idênticos preços e demais condições comerciais concedidas à socie‑dade cc.

44. nos meses anteriores à entrada em juízo da presente acção, o requerido pouco foi à sede da sociedade cc.

45. À data de entrada em juízo da presente acção a presença do requerido na sociedade cc raramente excedia umas horas num único dia por semana.

46. normalmente na sua deslocação à sociedade cc o requerido procura ser ressarcido das despesas em que incorreu ao serviço da sociedade e inteirar ‑se das actividades e performance da sociedade.

47. a sociedade GG – … Unipessoal, Lda. abriu outro “ii” no centro comercial … em ….

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48. a marca dd explora um estabelecimento de restauração no centro comercial … em ….

49. o requerido informou que estaria de férias de 13 a 15 de outubro de 2008.

50. o centro comercial … em … foi inaugurado no dia 15 de outubro de 2008.

51. o requerido tem uma viatura de marca B… e matrícula ‑aU ‑, um tele‑móvel, um cartão multibanco e um cartão para abastecimento de combustíveis atribuídos pela sociedade cc – …, Lda.

52. o telemóvel, o veículo e a via verde foram atribuídos pela sociedade cc ao requerido sem restrição de utilização.

53. até 2009, o requerido utilizou a viatura e a via verde sem justificar essa utilização.

54. até 2009, os gerentes das sociedades cc e aa utilizaram a viatura e a via verde que lhes foram atribuídas sem justificar essa utilização.

55. no extracto da via verde, referente ao período de férias do requerido no ano de 2008, constam débitos de portagens no norte.

56. no extracto de via verde, referente ao veículo de matrícula ‑aU ‑ constam os seguintes débitos, sem outros registados entre eles:

dia 11.9.2008 – 12.02h – ericeira – € 0,60; 12.28h – venda do Pinheiro – € 3,60; 13.30h – tomada Pv – Mira Pv – € 11,25; 14.14h – albergaria – Grijó Pv – €3,15.

dia 19.9.2008 – 14.56h – Grijó Pv – alverca Pv – € 19,10; 17.54h – odivelas – venda Pinheiro – € 1,05; 18.03h – ericeira – 0,60.

57. a consultora imobiliária ss anunciou que representaria a cadeia de restau‑rantes ii, tendo aquela sede na av. …, …, em Lisboa.

58. Por referência aos dias em 29.8.2008, 5.9.2008, 8.9.2008, 10.9.2008 e 23.9.2008, foram cobrados estacionamentos no Pq. …, …, Lisboa, referente à viatura de matrícula ‑aU ‑.

59. o requerido não se desloca às lojas da cc – …, Lda., desde data não concretamente apurada, mas anterior a setembro de 2008.

60. o requerido tem acesso a toda a informação da sociedade cc, concre‑tamente, acções de marketing, preços de aquisição de produtos e contratos cele‑brados com colaboradores.

61. no ano de 2011 o pagamento de vencimento e segurança social referentes ao requerido importava para a sociedade cc uma despesa de cerca de €2.500 por mês; as despesas de combustível perfazem uma média mensal de €600, e as de manutenção do veículo € 10.000,00 (até agosto).

62. os restaurantes explorados pela cc são, sem qualquer excepção, fran‑chisados da marca “dd”.

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63. os produtos servidos, nos restaurantes “dd”, consistem em sumos de frutas, saladas e sopas.

64. os clientes que, num dado momento, procuram uma salada ou uma sopa, não vêem uma hamburgueria como alternativa.

65. a publicidade da marca ii, em www.ii.com, consta: “nem hambúrguer II not so fast food – 200 g pura carne de novilho 10% fresca, grelhado com sal marinho, no ponto escolhido, com batatas frescas ou arroz thai” e apresenta as opções: grelhado; com molho; champignon; tuga; benedict; cheese; french e breado Publicita ainda batatas fritas frescas, e não congeladas e esparregado.

66. as contas da sociedade cc referentes ao exercício de 2007 foram apro‑vadas e depositadas.

67. os vegetais podem ser adquiridos em cash and carry, sendo o preço nego‑ciado semanalmente e dependente das quantidades adquiridas e do local da entrega.

Fundamentação: Omissoa valoração das imputações feitas pela autora ao Réu BB – convoca, além das

regras da responsabilidade civil, as normas dos arts. 64.º, (após a alteração intro‑duzida pelo dL. n.º 76 ‑a/2006, de 29.3 – Reforma de 2006 – atenta a data dos factos), 72.º, e 254.º do código das sociedades comerciais (csc).

o art. 64.º do código das sociedades comerciais, na redacção anterior à da Reforma de 2006, estatuía:

“Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

após a Reforma de 2006, o preceito passou a ter a seguinte redacção:

“1. Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar: a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento

da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado;

b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabili‑dade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.

Já na vigência desta redacção, Menezes cordeiro, in “código das socie‑dades comerciais” – 2009 – págs. 243 e 244 – em comentário àquele norma‑tivo, escreveu:

“os administradores das sociedades têm, no essencial, dois deveres ou poderes‑‑deveres: o de gestão e o de representação. o 64.º reporta ‑se, antes, ao modo de

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concretização desses dois deveres e, ainda, de todas as restantes obrigações que lhes advenham da lei ou dos estatutos.

[…]“na tradição nacional, a diligência traduz a medida de esforço exigível ao

devedor, no cumprimento das obrigações. tal medida pode ser determinada em concreto ou em abstracto, remetendo para um bom cidadão comum (bonus pater famílias) ou para critérios mais exigentes.

[…]“O gestor criterioso e ordenado surge como uma bitola mais exigente do que a

comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a especialistas fiduciários, que gerem bens alheios. apesar de inserida no final do 64.º/1, a), a diligência dá corpo a todos os deveres dos administradores, explicando a intensidade requerida na sua execução.

[…]“no direito das sociedades, a lealdade exprime o conjunto dos valores básicos

do sistema que, em cada situação concreta, devam ser acatados pelos diversos inter‑venientes. equivale, de certo modo, à ideia civil de boa fé.

a lealdade aplica ‑se: (a) nas relações dos sócios com a sociedade e entre si, inte‑grando a ideia básica de status do sócio; (b) nas relações da sociedade para com os sócios, implicando um alargamento ex bona fide da competência da assembleia geral; (c) nas relações dos administradores com a sociedade e com os próprios sócios, as quais estão, agora, em causa.

[…]“Pela positiva, a lealdade obriga a seguir as regras do bom governo das socie‑

dades (corporate governance). a lei portuguesa, objectivamente tomada, remeteu essa matéria para os deveres de cuidado.

“no direito português, os deveres de cuidado devem ser tomados como normas de conduta que densificam, à luz dos ditames do bom governo das sociedades, os deveres gerais de gestão. afastam ‑se dos duties of care, próprios do negligence law, de onde foram retirados, em 2006, configurando ‑se como normas de procedimento.

“Modalidades. a lei especifica: (a) disponibilidade; (b) competência técnica; (c) conhecimento da actividade da sociedade: outros tantos deveres, não ‑taxativos, que dão um colorido geral a toda a actuação, essencialmente fiduciária, dos admi‑nistradores.

“opera caso a caso: “adequados às suas funções”. Relevam a dimensão da socie‑dade, a actividade social, o pelouro, os objectivos fixados e os condicionamentos externos, jurídicos, económicos e sociais”.

não obstante a primitiva redacção não enunciar de forma clara o princípio da “corporate govenance”[3] ele estava contido na regra do “dever de cuidado e de diligência” imposta ao gerente a quem incumbe actuar segundo o padrão do “gestor criterioso e ordenado”, pautando a sua actuação pelos critérios da isenção e do agir de boa fé em vista da salvaguarda dos interesses da sociedade, “tendo em conta os interesses dos

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sócios e dos trabalhadores”; de notar que nas als. a) e b) da redacção agora vigente do citado preceito se alude, de igual modo, a “diligência de um gestor criterioso e ordenado” e nos deveres de lealdade se apontam os interesses dos sócios, da sustentabilidade da sociedade “tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.

antes, o art. 64.º tinha como epígrafe “Dever de diligência”, após Reforma aparece como “Deveres fundamentais”, um plus de expressa maior exigência.

Mantém ‑se actual o ensino de Raul ventura e Brito correia, in “Responsa‑bilidade civil dos administradores”, pág. 118 e segs., quando escrevem:

“os deveres característicos do administrador, por cuja violação ele, como admi‑nistrador, se constitui em responsabilidade civil para com a sociedade, vinculam ‑no em última análise por força dos actos de nomeação e aceitação para tal função, que integram o chamado contrato de administração. trata ‑se, em regra, de rela‑ções obrigacionais entre a sociedade e o administrador que preexistem à violação. …a qualificação como obrigacional da responsabilidade civil do administrador para com a sociedade não obsta a que este, no exercício das suas funções, possa praticar actos que, segundo as normas do direito civil, constituam delitos civis em prejuízo da sociedade, sujeitos ao regime comum da responsabilidade delitual. e, em certos casos, é concebível que o mesmo facto possa ser qualificado como violação de obri‑gação e como delito civil, surgindo então o problema de saber qual a qualificação que deve prevalecer e qual consequentemente o regime de responsabilidade a aplicar.”

o art. 64.º do código das sociedades comerciais, antes e depois da Reforma de 2006, impõe a observância de deveres de cuidado, verdadeiros poderes ‑deveres dos gerentes ou administradores baseados numa relação de confiança (fiducia) que se estabelece entre a sociedade e quem a gere, seja no círculo das suas relações internas, seja nas relações externas com terceiros, sejam eles credores, entidades administrativas, trabalhadores ou quaisquer outros interessados. o dever de cuidado – duty of care – está ínsito na actuação do “gestor criterioso e ordenado” e no grau de diligência que esse standard postula.

comentando a formulação do art. 64.º do código das sociedades comerciais, antes da Reforma, Fátima Gomes, in “Reflexões Em Torno dos Deveres Fundamentais dos Membros dos Órgãos de Gestão (e Fiscalização) das Sociedades Comerciais à Luz da Nova Redacção do artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais”, na obra “20 Anos de Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier”, volume ii, vária, escreve – pág. 551:

“o art. 64.º do código das sociedades comerciais tem sido entendido, pela doutrina nacional, como a norma jurídica que fundamenta a existência do dever de prosseguir o “interesse social”, na condução dos negócios societários, interesse esse que não se esgota na mera recondução ao interesse da sociedade, dos sócios e/ou dos trabalhadores.

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“nesse sentido o conceito de interesse social tem sido utilizado de uma forma mais abrangente, que engloba em si a potencialidade de conciliação dos referidos interesses considerados numa perspectiva não meramente isolada face aos demais”.

Referindo ‑se ao art. 64.º, na redacção anterior à Reforma de 2006, Gabriela Figueiredo dias, in “código das sociedades comerciais em comentário”, n.º 1, pág. 734 escreve:

“na anterior formulação do art. 64.º, o critério do “gestor criterioso e ordenado” surgia, parece, como uma bitola objectiva de esforço e diligência sobre como fazer na execução (ou omissão) de tarefas concretas de administração. assim continuará para a medida de exigência no cumprimento dos deveres gerais impostos ao administrador e, se for o caso, de uma correspondente ilicitude por incumprimento do dever.

“simultaneamente, fornecia o padrão geral para ajuizar da culpa (em abstracto) relativa ao comportamento do administrador, imputando censura ou reprovação à possibilidade de poder ter actuado de maneira diferente, de acordo com circunstâncias concretas e em função desse critério mais exigente do “gestor criterioso e ordenado”.

Mais exigente porque, em vez do critério comum civilístico da diligência de “um bom pai de família”, homem normal e medianamente cuidadoso e prudente, temos no art. 64.º – agora: 1, a) quanto à imputação subjectiva do acto ao agente, uma bitola que nos remete para, nas palavras de Raul ventura, “um gestor dotado de certas qualidades”. (destaque nosso)

a violação do dever contemplado no art. 64.º do código das sociedades comerciais tem como sanção a responsabilidade civil dos gerentes para com a sociedade e a sua destituição com justa causa, verificados os requisitos da respon‑sabilidade civil contratual já que, por força do art. 72.º, n.º 1, do referido código, a sua culpa se presume.

“ora, importa sublinhar aqui que o art. 64.º, 1, desempenha no campo da responsabilidade uma dupla função: prevê deveres de cuidado e de lealdade que se traduzem em vários deveres objectivos de conduta cuja violação significa ilicitude; e circunscreve o critério da culpa: a “diligência de um gestor criterioso e ordenado”. conse‑quentemente, a norma do art. 64.º é fundamento autónomo de responsabilidade” – coutinho de abreu, in “idet instituto das empresas e do trabalho, colóquios”, n.º 3, pág. 30, “Deveres de Cuidado e de Lealdade dos Administradores e Interesse Social.”

comentando o art. 64.º do código das sociedades comerciais, na redacção vigente aqui aplicável, armando triunfante, in “código das sociedades comer‑ciais anotado”, págs. 59 e 50, afirma:

“Foram previstos os deveres de cuidado, de diligência e de lealdade. a doutrina tem contribuído para a densificação destes deveres. vejamos então. o dever de cuidado tem sido dividido em três parcelas distintas (…): reunião da competência

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e disponibilidade para o exercício das funções; obrigação de acompanhar e vigiar a actividade social; obrigação de obter informação indispensável à tomada de decisões.

Já o dever de diligência concretiza ‑se na fórmula do “gestor criterioso e ordenado” a que daremos maior atenção nas anotações seguintes. Por último, o dever de lealdade costuma ser associado à obrigação de não concorrência, obrigação de não aproveitar em benefício próprio eventuais oportunidades de negócio, obrigação de transpa‑rência, a não ‑actuação em conflitos de interesses, o dever de moderação na recolha de vantagens remuneratórias, o dever de neutralidade, etc. (…).”

assaca a autora ao Réu a violação de deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, todos previstos no art. 64.º do código das sociedades comerciais, enfatizando, sobretudo, a violação do dever de lealdade.

o dever de lealdade é indissociável da ideia de confiança, quer seja perante a sociedade, quer perante os sócios, quer perante terceiros. o acautelar do interesse social não se confina apenas ao interesse societário tout court, ou seja, a uma acti‑vidade que vise lucros. a eticização do direito e da vida societária impõem uma actuação honesta, criteriosa e transparente compaginável com a tutela de terceiros que possam ser prejudicados pela actuação do ente societário através da actuação de quem delineia a sua estratégia e é responsável pela actuação da sociedade, o que convoca os princípios da actuação de boa fé, da confiança e a da proibição do abuso do direito.

como refere carneiro da Frada: “os administradores devem, portanto, ser leais a todos: à sociedade, aos sócios, aos credores, aos trabalhadores e aos clientes. não podem ser “mais leais a uns do que a outros”. se o são, já são desleais” – “a Business Judgment Rule no Quadro dos deveres Gerais dos administradores”, pág. 219.

antónio Pereira de almeida, in “sociedades comerciais e valores Mobiliá‑rios”, págs. 239/240, acerca do dever de lealdade, escreve:

“este dever de lealdade corresponde aos fiduciary duties do direito anglo ‑saxónico e pode decompor ‑se na: – obrigação de não concorrência (competition with the corpo‑ration); – obrigação de não apropriação de informações internas ou negócios com a sociedade (inside trading); – obrigação de transparência, ou seja, de manter infor‑mados os outros administradores, os sócios e o público (duty of disclosure) de todos os factos relevantes, não confidenciais, que possam influenciar o voto dos sócios ou as decisões de investimento.

a obrigação de não concorrência com a sociedade constitui uma concretização do dever de lealdade e veda aos administradores o exercício, por conta própria ou alheia, de actividades concorrentes com as que a sociedade exerça ou tenha delibe‑rado exercer.

Mas, os sócios podem autorizar, expressa ou tacitamente, o exercício dessas actividades, considerando ‑se que o consentimento foi prestado quando o exercício

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dessas actividades é anterior à constituição da sociedade e do conhecimento de sócios que disponham da maioria do capital (arts. 254.º, n.os 1 a 4, e 398. º, n.os 3 e 4) […].

Por outro lado, por actividade concorrente, entende ‑se uma actividade similar à da sociedade protegida, exercida de facto, não bastando a identidade formal do objecto social (art. 254.º, n.º 2).

a violação desta proibição sujeita o administrador a destituição com justa causa e poderá fazê ‑lo incorrer em responsabilidade civil se a sociedade vier a sofrer preju‑ízos causados por actos praticados pelo administrador no exercício da actividade concorrente com a da sociedade, servindo ‑se, por exemplo, de informações ou conhecimentos obtidos na sociedade protegida e violando o dever de lealdade…com a sociedade destina ‑se a evitar conflitos de interesses com a sociedade.

assim, o administrador não pode aproveitar em benefício próprio informações ou oportunidades de negócio de que tenha conhecimento no exercício das suas funções. como também não pode receber “luvas” ou vantagens patrimoniais de terceiros relacionadas com negócios celebrados com a sociedade.”

Quanto à proibição de concorrência o art. 254.º do código das sociedades comerciais consigna:

1 – Os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, actividade concorrente com a da sociedade.

2 – Entende ‑se como concorrente com a da sociedade qualquer actividade abrangida no objecto desta, desde que esteja a ser exercida por ela ou o seu exercício tenha sido deliberado pelos sócios.

3 – No exercício por conta própria inclui ‑se a participação, por si ou por interposta pessoa, em sociedade que implique assunção de responsabilidade limitada.

4 – O consentimento presume ‑se no caso de o exercício da actividade ser anterior à nome‑ação do gerente e conhecido de sócios que disponham da maioria do capital, e bem assim quando, existindo tal conhecimento da actividade do gerente, este continuar a exercer as suas funções decorridos mais de 90 dias depois de ter sido deliberada nova actividade da sociedade com a qual concorre a que vinha sendo exercida por ele.

5 – A infracção do disposto no n.º 1, além de constituir justa causa de destituição, obriga o gerente a indemnizar a sociedade pelos prejuízos que esta sofra.

6 – Os direitos da sociedade mencionados no número anterior prescrevem no prazo de 90 dias a contar do momento em que todos os sócios tenham conhecimento da actividade exercida pelo gerente ou, em qualquer caso, no prazo de cinco anos contados do início dessa actividade.

Menezes cordeiro, in “código das sociedades comerciais anotado”, 2009, pág.669, em anotação ao normativo citado no item “O Regime. Proibição de acti‑vidade concorrente” escreve:

“o 254.º/1 proíbe aos gerentes o exercício de actividade concorrente com a da sociedade, a menos que esse exercício seja autorizado pelos sócios.

a primeira tarefa é a de determinar a existência de uma situação de concorrência: seja de um ponto de vista material, seja de um ponto de vista geográfico. Perante o

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direito da concorrência, o mercado relativo à actividade da sociedade, vedado ao gerente, deve ser definido, primordialmente, através do critério da substituibilidade funcional dos bens criados em relação a uma utilização específica do ponto de vista dos consumidores.

a existência da uma situação de concorrência está na dependência de se poder verificar uma transferência de procura motivada por um pequeno e duradouro aumento de preço de um deles (desvio de clientela).

entende ‑se que a elasticidade cruzada deverá ser significativa e de longo prazo, para que se possa deduzir que os bens resultantes da actividade em causa são suscep‑tíveis de ser substituídos.

só assim é possível delimitar com precisão um mercado relativamente a bens suficientemente homogéneos e distintos em relação a outros mercados, e será nesse que a actividade do gerente e da sociedade, quando exercidas em simultâneo, poderão colocar questões relacionadas com a concorrência.

no que respeita ao ponto de vista geográfico, só existirá concorrência na área em que a sociedade forneça os seus produtos ou preste os seus serviços. Mais uma vez determinante nesta definição é a questão do comportamento dos compradores e da oferta.

se em determinada área quanto à actividade integrante no mercado de procura relevante, mas não existe oferta da sociedade, não será evidentemente concorrencial a actividade do gerente que vise a satisfação daquelas necessidades.

Já não se exige, como resulta do 254.º/1, que estejamos perante casos de concor‑rência diferencial, ou seja, que a actuação concorrencial possa efectivamente causar prejuízo à sociedade”.

a actuação concorrencial exercida pelo gerente e que afecta a sociedade prote‑gida pode ser exercida por uma sociedade em que o gerente seja único sócio de uma outra sociedade. no caso em apreço, a actividade concorrente é exercida por uma sociedade unipessoal por quotas detida pelo Réu: poder ‑se ‑ia pensar que dada a autonomia jurídica dessa sociedade não seria o Réu quem exercia actividade concorrente.

em anotação ao “código das sociedades comerciais em comentário”, volume iv, pág. 99, em comentário ao artigo 254.º, pode ler ‑se:

“no exercício por conta alheia inclui ‑se a actuação como administrador de sociedade anónima ou gerente de uma outra sociedade em nome colectivo ou por quotas (…). é indiferente que esse outro cargo na sociedade concorrente seja, numa sociedade anónima, o de administrador delegado, membro da comissão executiva ou outro membro do conselho de administração.

como é indiferente que, numa sociedade por quotas, seja gerente delegante ou gerente delegado. a proibição já não abrangerá os gerentes que sejam também meros administradores suplentes de uma outra sociedade anónima concorrente enquanto não forem chamados a exercer funções, pois até esse momento não estarão a exercer

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uma actividade concorrente. o que é necessário é que essa outra sociedade exerça ou delibere exercer actividades compreendidas no objecto da sociedade por quotas prote‑gida e que esta última também as exerça ou que os seus sócios tenham deliberado o respectivo exercício. e isto ainda que a actividade concorrente não seja abrangida pelo objecto da sociedade por conta da qual o gerente exerce a concorrência.”

ora, se assim é de considerar em relação a sociedades por quotas, dado o seu pendor quase personalista, por maioria de razão se deve considerar que o único titular de quota de uma sociedade unipessoal de responsabilidade limitada se exercer sem autorização da sociedade protegida, actividade concorrente, o faz por conta alheia.

a finalizar esta excursão doutrinária e jurisprudencial, importa precisar o conceito de “ justa causa” de destituição relacionado nos n.os 1 e 5.º do art. 254.º do código das sociedades comerciais.

trata ‑se de um conceito indeterminado dotado de plasticidade adaptável casuis‑ticamente para aferir se uma actuação se compagina com os direitos e deveres do exercente postulados pelos princípios ou deveres jurídicos nela implicados.

no caso, esses deveres são os de deveres de cuidado, de diligência e de leal‑dade, este na vertente da proibição de concorrência próprios da gestão societária, não sendo de desconsiderar a aplicação de princípios como o da confiança e da boa ‑fé, também nesta sede convocáveis.

constitui justa causa de destituição de gerente, actuação sua que exprima violação grave dos deveres de gerente, mormente, dos deveres de cuidado, de diligência e de lealdade, que impliquem perda irreparável da confiança dos afec‑tados por essa actuação, seja no contexto interno da sociedade, seja na sua relação com terceiros a justificar a impossibilidade da de manutenção do vínculo que o une ao ente societário, por existir conflito de interesses gerador de danos efectivos ou potenciais, que devam ser consideradas razão inequívoca da inexigibilidade da manutenção daquele vínculo jurídico.

a lei alemã alude a “grosseira violação dos deveres, incapacidade de condução regular dos negócios ou privação da confiança…”, ou seja, quando “a confiança por manifestos e improcedentes fundamentos foi destruída” – § 84, n.º3 da Aktiengesetz.

Baptista Machado, in “obra dispersa. vol. i”, depois de referir que entre outros do contrato de sociedade decorre “uma relação particularmente estreita de confiança mútua e de leal colaboração” (pág.141) – afirma – pág. 143:

“o conceito de “justa causa” é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto.

“será uma “justa causa” ou um “fundamento importante” qualquer circuns‑tância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o

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fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente pessoais ou reais, essenciais ao essenciais ao desenvolvi‑mento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na (ou ao dever de fidelidade na relação associa‑tiva). a “justa causa” representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um “incumprimento”): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual.”

“não define a lei, de modo taxativo, o que seja a justa causa, tão só apontando, exemplificativa e genericamente, que aquela integra o vazado no n.º 6 do art. 257 do código das sociedades comerciais.

“estamos ante um conceito indeterminado. “Perfilha ‑se o entendimento de que a justa causa referida no art. 257.º do código

das sociedades comerciais “tem um carácter especial, consubstanciando ‑se numa quebra de confiança, por razões justificadas, entre a sociedade, representada pela assembleia geral, e o gerente (cfr., neste sentido, entre outros, acs. deste tribunal, de 10.02.00 e 19.02.04, in BMJ 494 ‑353 e “sumários”, n.º78, pág. 27, respectiva‑mente)” – acórdão do supremo tribunal de Justiça, de 11.7.2006, in www.dgsi.pt.

o Prof. Raul ventura, in “sociedades por Quotas”, iii, pág. 91, afirma:

“o art. 257.º não define justa causa, mas aponta, exemplificativa e generica‑mente, como tal a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções. como se viu no comentário ao art. 254.º a infracção do disposto no n.º 1 desse artigo – dever de não concorrência – é expres‑samente qualificada como justa causa de destituição.”

o Professor Baptista Machado, in estudo sobre a “Tutela da confiança e Venire Contra Factum Proprium”, – obra dispersa, vol. i, págs. 352, afirma. “o princípio da confiança é um princípio ético ‑jurídico fundamental e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito”.

enquadrando os factos, vejamos se o acórdão é de manter. o recorrente sustenta que, sendo diversas as actividades exercidas pela “cc”

e a “GG”, não poderia haver, por parte desta sociedade, pertença do recorrente, actividade concorrente, partindo da consideração que, sendo ambas do sector da restauração, o seu objecto integra conceitos diferentes não sobreponíveis.

assim a “cc”, tem por objecto social exclusivo o investimento, exploração, operação e … da cadeia “dd”, sob o regime de “franchising”. em contrapartida

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a sociedade “GG ‑… Unipessoal, Lda.”, através da qual o Recorrente exerceria a referida actividade concorrente, tem por objecto social a “exploração e gestão de estabelecimentos comerciais destinados à actividade de restauração e/ou actividades similares, com a possibilidade de recurso à utilização de marca em regime de “franchising”; prestação de serviços de alimentação e de bebidas no próprio estabelecimento ou complementares às supra enunciadas”.

antes de mais, importa dizer que ambas as sociedades são franchisadas da marca “dd e companhia” que são detidas e representadas pela autora. o Réu é franchisado, daquela marca, através da sociedade unipessoal que constituiu.

Provou ‑se que o conceito comercial subjacente à marca “dd” é o de venda de comida saudável.

Para que haja concorrência desleal – proibida no art. 254.º, n.º 1, do código das sociedades comerciais, não se exige que a actividade concorrente, exercida pelo também gerente de outra sociedade, deva ser coincidente com a exercida pela “sociedade protegida”, previamente exercente dessa actividade. Basta que essa actividade seja similar à da sociedade protegida e possa com ela, mormente, pela sua actuação e situação geográfica, concorrer de modo a causar “desvio de clientela”.

a lei não proíbe a concorrência, sob pena de coarctar o direito de livre esta‑belecimento e de iniciativa privada que têm tutela constitucional – arts. 47.º e 61.º da Lei Fundamental; proíbe, sim a concorrência desleal, violadora do dever de lealdade, que é a que um sujeito de direito exerce de modo a afectar, à margem da lei, os saudáveis princípios da concorrência.

no caso, não deixa de relevar que, sendo ambas as sociedades do ramo da restauração e a “GG” franchisada da autora, a questão da concorrência desleal é mais sensível por via do referido contrato, já que o franchising pressupõe obriga‑ções do franquiado ante o franquiador, a convocar, quantas vezes, a questão da confundibilidade das marcas.

a imitação ou a confundibilidade das marcas pressupõe, um “confronto”, de modo a que se possa concluir, ou não, sobre se os produtos que as marcas assi‑nalam são idênticos ou afins, ou despertam, pela semelhança dos seus elementos, a possibilidade de associação a outros produtos ou marcas já existentes no mercado.

esse confronto não demanda, da parte do consumidor, especiais qualidades de perspicácia, subtileza ou atenção, já que, no frenético universo do consumo, o padrão é o do consumidor médio, razoavelmente informado, mas não particular‑mente atento às especificidades próprias das marcas.

daí que, no juízo a fazer acerca da imitação, se deva ter em conta uma impressão de conjunto e não de pormenor das marcas ou produtos, sendo rele‑vantes os elementos que, essencialmente, as distinguem por serem os dominantes.

tendo a autora e a Ré estabelecimentos, no mesmo centro comercial – … – operando a Ré sob a marca “ii …”, vendendo comida – facto provado 38) e

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estando provado – item 40) – que esse estabelecimento de restauração no centro comercial … está localizado em frente à loja que a sociedade “cc” detém no mesmo centro comercial, não sendo o tipo de comida claramente diverso do da “cc”, o potencial de concorrência desleal exercida pela sociedade detida pela “GG” é lesivo da cc.

nem se diga que, como pretende o recorrente, em estabelecimentos comer‑cias como são os Centros Comerciais com uma oferta muito intensa de locais de refeições rápidas que o consumidor tem claras opções de diferenciação e que, por isso, não escolhe alternativamente locais onde é confeccionada e servida a refeição que tem em mente. ninguém ignora que nesses centros comerciais existem as denominadas “praças de alimentação” e, em muitos casos, os estabelecimentos têm escassa dimensão e os clientes se sentam em lugares comuns, sem grande exigência de diferenciação entre os produtos alimentares, pretendendo um aten‑dimento rápido e não sofisticado.

Retomamos o ensino do Professor Menezes cordeiro:

“o 254.º/1 proíbe aos gerentes o exercício de actividade concorrente com a da sociedade, a menos que esse exercício seja autorizado pelos sócios.

“a primeira tarefa é a de determinar a existência de uma situação de concor‑rência: seja de um ponto de vista material, seja de um ponto de vista geográfico.

“Perante o direito da concorrência, o mercado relativo à actividade da socie‑dade, vedado ao gerente, deve ser definido, primordialmente, através do critério da substituibilidade funcional dos bens criados em relação a uma utilização específica do ponto de vista dos consumidores.

[…] “só assim é possível delimitar com precisão um mercado relativamente a bens

suficientemente homogéneos e distintos em relação a outros mercados, e será nesse que a actividade do gerente e da sociedade, quando exercidas em simultâneo, poderão colocar questões relacionadas com a concorrência.

“no que respeita ao ponto de vista geográfico, só existirá concorrência na área em que a sociedade forneça os seus produtos ou preste os seus serviços. Mais uma vez determinante nesta definição é a questão do comportamento dos compradores e da oferta.” (destaque nosso)

de notar que o Réu se estabeleceu no centro comercial …, no Porto, e depois no centro comercial …, em …, num quadro de litigiosidade societária com a autora e com a “cc” de que é sócio ‑gerente, sendo que estatutariamente não foi autorizado a exercer actividade concorrente com a “cc”.

a sociedade “cc, Lda.”, da qual o recorrente é sócio ‑gerente, e a socie‑dade “GG”, actual Fii, de que é sócio único e gerente, não só de facto, como de direito, têm por objecto a actividade de restauração, em regime de franchising, que exercem no mesmo espaço geográfico massificado de centros comerciais, não

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oferecendo opções distinguíveis no contexto do “ fast food”. concluímos, assim, que têm natureza concorrencial.

ocorre, assim, o invocado fundamento para a destituição do Réu das funções de gerência da cc.

Quanto à violação dos deveres de gerente por parte do recorrente em relação à “cc”.

como antes referimos estão em causa os deveres de cuidado, de diligência e de lealdade esta na vertente já analisada do exercício de actividade concorrente.

subjazem a estes princípios deveres implicados na relação fiduciária que impende sobre os gerentes e administradores das sociedades nas relações com os sócios ou accionistas, credores e trabalhadores em ordem a, salvaguardando o interesse social, não afrontar os direitos de terceiros.

temos para nós que a actuação do Recorrente violou os deveres de cuidado e de lealdade que deveria observar em relação à “cc”, na veste de seu sócio ‑gerente.

convoquemos os factos, relembrando, antes, o conceito de “dever de lealdade”, segundo Menezes cordeiro:

“no direito das sociedades, a lealdade exprime o conjunto dos valores básicos do sistema que, em cada situação concreta, devam ser acatados pelos diversos inter‑venientes.

“equivale, de certo modo, à ideia civil de boa fé. “a lealdade aplica ‑se: (a) nas relações dos sócios com a sociedade e entre si, inte‑

grando a ideia básica de status do sócio; (b) nas relações da sociedade para com os sócios, implicando um alargamento ex bona fide da competência da assembleia geral; (c) nas relações dos administradores com a sociedade e com os próprios sócios, as quais estão, agora, em causa.

“Pela positiva, a lealdade obriga a seguir as regras do bom governo das socie‑dades (corporate governance).

“a lei portuguesa, objectivamente tomada, remeteu essa matéria para os deveres de cuidado.

“no direito português, os deveres de cuidado devem ser tomados como normas de conduta que densificam, à luz dos ditames do bom governo das sociedades, os deveres gerais de gestão.”

– O requerido usou o computador, o servidor de correio electrónico da sociedade CC e os fornecedores desta para contactos e negociações de fornecimento e instalação de equipamento e prestação de serviços para o estabelecimento comercial “II”.

– O requerido usou o seu telemóvel de serviço, propriedade da sociedade CC e com factu‑ração paga por esta, a que corresponde o número …, para contactos com os sócios e gerentes da sociedade comercial “HH – Restauração …”, titular da referida marca “II”.

– Na negociação dos contratos com fornecedores, o requerido pretendeu beneficiar de idênticos preços e demais condições comerciais concedidas à sociedade CC.

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180 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2014

– Nos meses anteriores à entrada em juízo da presente acção, o requerido pouco foi à sede da sociedade CC.

– À data de entrada em juízo da presente acção a presença do requerido na sociedade CC raramente excedia umas horas num único dia por semana.

– Normalmente na sua deslocação à sociedade CC o requerido procura ser ressarcido das despesas em que incorreu ao serviço da sociedade e inteirar ‑se das actividades e perfor‑mance da sociedade.

– A sociedade GG – … Unipessoal, Lda. abriu outro “II” no Centro Comercial … em ….

– A marca DD explora um estabelecimento de restauração no Centro Comercial … em ….

– O requerido informou que estaria de férias de 13 a 15 de Outubro de 2008. – O Centro Comercial … em … foi inaugurado no dia 15 de Outubro de 2008. – O requerido tem uma viatura de marca B… e matrícula …AU ‑…, um telemóvel,

um cartão multibanco e um cartão para abastecimento de combustíveis atribuídos pela socie‑dade CC …, Lda.

– O telemóvel, o veículo e a via verde foram atribuídos pela sociedade CC ao requerido sem restrição de utilização.

– Até 2009, o requerido utilizou a viatura e a via verde sem justificar essa utilização. – Até 2009, os gerentes das sociedades CC e AA utilizaram a viatura e a via verde

que lhes foram atribuídas sem justificar essa utilização. – No extracto da via verde, referente ao período de férias do requerido no ano de 2008,

constam débitos de portagens no Norte. – No extracto de via verde, referente ao veículo de matrícula …AU ‑… constam os

seguintes débitos, sem outros registados entre eles: Dia 11.9.2008 – 12.02h – Ericeira – € 0,60; 12.28h – Venda do Pinheiro – € 3,60; 13.30h – Tomada PV – Mira PV – € 11,25; 14.14h – Albergaria – Grijó PV – €3,15.

Dia 19.9.2008 – 14.56h – Grijó PV – Alverca PV – € 19,10; 17.54h – Odivelas – Venda Pinheiro – € 1,05; 18.03h – Ericeira – € 0,60.

– A consultora imobiliária SS anunciou que representaria a cadeia de restaurantes II, tendo aquela sede na Av. da …, …, em Lisboa.

– Por referência aos dias em 29.8.2008, 5.9.2008, 8.9.2008, 10.9.2008 e 23.9.2008, foram cobrados estacionamentos no Pq. … …, Lisboa, referente à viatura de matrícula … ‑AU ‑….

– O requerido não se desloca às lojas da CC …, Lda., desde data não concretamente apurada, mas anterior a Setembro de 2008.

– O requerido tem acesso a toda a informação da sociedade CC, concretamente, acções de marketing, preços de aquisição de produtos e contratos celebrados com colaboradores.

– No ano de 2011 o pagamento de vencimento e Segurança Social referentes ao reque‑rido importava para a sociedade CC uma despesa de cerca de €2.500 por mês; as despesas

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de combustível perfazem uma média mensal de €600, e as de manutenção do veículo € 10.000,00 (até Agosto).

– Os restaurantes explorados pela CC são, sem qualquer excepção, franchisados da marca “DD”.

os factos revelam utilização abusiva de bens da “cc” quando o Réu já nenhuma ligação de facto mantinha com essa sociedade, demitindo ‑se, assim, dos seus deveres de cuidado e diligência, descurando os interesses desta sociedade e contemplando os seus.

ademais, o facto de se manter ligado juridicamente à “cc”, malgrado a sua quase total ausência de exercício da sua função de gerente em prol do respectivo interesse social e o facto de ter utilizado bens e informações da “cc” para instalar o seu estabelecimento que exerce concorrência a esta sociedade, exprime, além de violação dos deveres de cuidado e diligência, violação do nodal dever de leal‑dade, afectando, de maneira clamorosa, a relação de confiança que deveria cultivar.

esta conduta torna objectiva e subjectivamente inexigível a sua manutenção como gerente da cc, sendo patente que a actuação do Recorrente revela um claro conflito de interesses entre a autora e esta sociedade, sobretudo desde que em 23 de Julho de 2008 o Réu constitui a sociedade “GG – … Unipessoal Lda.” de que é único sócio.

o dever de lealdade está associado à obrigação de não concorrência, à obri‑gação de não aproveitar em benefício próprio possíveis oportunidades de negócio, a actuação de boa ‑fé ao respeito pelo princípio da confiança e à omissão de proce‑dimentos que provoquem conflitos de interesses.

a actuação do Réu, enquanto gerente da “cc”, infringiu gravemente os citados deveres pelo que existe justa causa para a sua destituição.

Finalmente, entende o recorrente que o acórdão é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão – art. 615.º, n.º 1, c) do ncPc por considerar que o acórdão afirmou que “os clientes que, num dado momento, procuram uma salada ou uma sopa, não vêem uma hamburgueria como alternativa”.

essa contradição, a seu ver, exprime ‑se pela afirmação do acórdão de que “coexistindo as duas sociedades em alguns espaços comerciais (Centros Comercias), identi‑camente esquecendo as respectivas especificidades, se deveria dar como assente a existência de concorrência uma vez que foi da opinião de que os bens oferecidos por uma delas poderiam ser substituídos pelos da outra.”

não existe a acusada contradição. a af irmação transcrita, feita pelo recorrente, está descontextualizada.

o tribunal considerou e bem que a circunstância de existir ou não essa opção, ela não era relevante para considerar que a sociedade “cc” e a “GG” prosseguiam, no essencial, a mesma actividade no contexto da restauração – cfr. fls. 615 a 616[4].

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182 Anotação por A. Barreto Menezes Cordeiro

aquele facto 64) já vinha provado do julgamento em primeira instância, ao invés do que afirma o recorrente, a matéria de facto permaneceu inalterada no recurso de apelação.

não existe, pois, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.sumário – art. 663.º, n.º 7, do código de Processo civil. decisão: nega ‑se a revista. custas pelo Recorrente.supremo tribunal de Justiça, 30 de setembro de 2014. – Fonseca Ramos

(Relator) – Fernandes do Vale – Ana Paula Boularot.

Anotação

sumário: 1. Factos. 2. Deveres de cuidado e de lealdade. 3. Dever de não concorrência. 4. Dever de não aproveitamento de bens pertencentes à sociedade.

1. Factos

i. a aa, sociedade por quotas e autora no presente litígio, deu entrada com uma ação especial, nos termos do disposto no artigo 1484.º ‑B do cPc (correspondendo ao atual artigo 1055.º), em que requer a suspensão imediata de BB do cargo de gerente da sociedade e a sua destituição, por justa causa, por violação grave dos deveres gerais de cuidado e de lealdade e do dever especí‑fico de não concorrência.

ii. a aa era representante da marca dd. nos restaurantes associados a esta marca (dd) são servidos sumos de frutas, saladas e sopas.

BB foi, através de uma sociedade unipessoal, franchisado da marca dd.a 18 de março de 2005, aa e BB constituíram a sociedade cc, que tinha

como objeto social o investimento, a exploração e a operação da cadeia cc, sob o regime de franchising. os produtos servidos e explorados pela cc são, sem qual‑quer exceção, franchisados da marca dd.

BB e ee foram nomeados gerentes da sociedade cc. ee foi autorizado a exercer concorrência à cc, mas o mesmo já não se verificou para com BB.

iii. a 23 de julho de 2008, BB constituiu uma sociedade unipessoal (GG), que, em termos sucintos, tinha como objeto social a exploração e a gestão de estabelecimentos comerciais destinados à atividade da restauração.

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Dever de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedade 183

a 16 de setembro de 2008, BB abriu, durante o seu período de férias, uma loja da marca ii, num centro comercial no Porto, fisicamente localizado em frente à loja que a sociedade cc detinha no mesmo espaço comercial. BB voltaria a abrir um novo restaurante da marca ii, num centro comercial onde a marca dd também era explorada.

os produtos da marca ii são hamburguers, servidos com os mais variados acompanhamentos.

iv. ao longo de todo o processo de negociação e fixação do restaurante associado à marca ii, BB usou o telemóvel de serviço, o computador e o servidor de correio electrónico da cc; recorreu aos fornecedores da cc para facilitar as negociações e contactos; e exigiu, no âmbito das negociações com esses fornece‑dores, condições negociais idênticas às concedidas à cc. enquanto gestor da cc, BB tinha acesso a informação privilegiada, sobre todos os contratos celebrados pela sociedade e sobre a sua vida interna.

a assiduidade de BB na sede da cc foi gradualmente diminuindo. À data da entrada da petição inicial, a sua presença não excedia umas horas num único dia por semana.

v. o supremo tribunal de Justiça, confirmando a decisão da 2.ª instância, considera, à luz dos factos ora sucintamente expostos, que BB violou os deveres de lealdade, de cuidado e de diligência que adstringem a atuação de qualquer administrador.

2. Deveres de cuidado e de lealdade

i. da leitura do acórdão não fica claro que tipo de atuação representa uma violação do dever de cuidado ou do dever de lealdade; algumas passagens sugerem, de resto, uma certa indeterminação em relação aos respetivos conceitos e campos de atuação.

no leque de comportamentos contrários ao dever de cuidado, o supremo tribunal de Justiça inclui o uso do computador, do servidor do correio eletró‑nico e do telemóvel, bem como o recurso aos fornecedores da cc. ora, estes comportamentos materializam violações do dever de lealdade e não do dever de cuidado. o mesmo se diga quando o nosso mais alto órgão jurisdicional afirma que BB se demitiu dos seus “deveres de cuidado e diligência, descurando os interesse desta sociedade e contemplando os seus”: a prossecução de interesses próprios em desfavor dos interesses da sociedade corresponde ao conteúdo último do dever de lealdade.

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184 Anotação por A. Barreto Menezes Cordeiro

o facto de BB ter negligenciado os seus deveres de administração stricto sensu, elemento especialmente visível no facto de raramente se deslocar à sede da socie‑dade, consubstancia uma efetiva violação do dever de cuidado, mas o mesmo já não se poderá dizer quanto à utilização de bens pertencentes à sociedade. Basta pensar ‑se na hipótese de BB ser um gestor criterioso, conhecedor da sua atividade e cumpridor pontual de todas as suas obrigações de gestão diária, contudo, utili‑zava, reiteradamente, os bens da sociedade em seu benefício. neste caso, estaria a violar o dever de lealdade, mas já não o dever de cuidado.

ii. o dever de cuidado respeita à gestão da sociedade, englobando, de acordo com o disposto no artigo 64.º/1, a), “a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções”.

Já o dever de lealdade, fundado, nos direitos continentais, na boa ‑fé objetiva1 ‑2, exige que os administradores atuem sempre em função dos interesse da sociedade que representam. violará este dever o administrador que coloca os próprios inte‑resses ou os interesses de terceiros à frente dos interesses da sociedade.

iii. o dever de lealdade é o elemento diferenciador da posição jurídica dos administradores. é, de resto, a imposição deste dever que permite classificar a relação concluída com a sociedade como sendo fiduciária.

classicamente e por influência anglo ‑saxónica, são descritas como fiduciárias as seguintes relações: fiduciário (trustee); mandatário; advogado; partner; e adminis‑trador. a esta lista clássica poderão ser acrescentados, consoante as especificidades concretas que rodeiam a relação, os depositários; os promotores de negócios e empresas; os curadores; os bancos; ou mesmo os trabalhadores3.

a caracterização destas relações como fiduciárias está dependente da assunção de um dever de lealdade, ou seja, a obrigação de o fiduciário, em sentido lato, colocar os interesses do beneficiário último da relação, quer seja uma sociedade ou um depositante, à frente dos seus interesses individuais. não se demonstrando a assunção desta obrigação, então a relação não poderá ser descrita como fiduciária4.

1 antónio Menezes cordeiro, Anotação ao artigo 64.º do CSC em CSC/MC, 2.ª ed., almedina, coimbra, 2011, 253.2 o dever de lealdade, bem como as relações fiduciárias, é produto da Equity Law, que, para os presentes efeitos, encontra na boa ‑fé continental o seu paralelismo natural, vide, o nosso, Do trust no Direito civil, almedina, coimbra, 2014, 221 ss.3 Do trust, cit., 470 ss.4 Do Trust, cit., 463 ss. veja ‑se, com posição diversa, Ricardo costa e Gabriela Figueiredo dias, Anotação ao artigo 64.º do CSC em CSC em comentário, vol. i, coordenação Jorge coutinho de abreu, almedina, coimbra, 2010, 743: os autores apresentam a relação fiduciária como fundamento do dever de lealdade.

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3. Dever de não concorrência

i. a doutrina portuguesa tende a apresentar o dever de não concorrência como uma concretização do dever de lealdade5. esta interpretação, igualmente seguida em terras germânicas6, não pode, como já tivemos oportunidade de comentar7, ser generalizada a todos os tipos de sociedades: conquanto globalmente correta, no que às sociedades de capitais respeita – sociedades por quotas e sociedades anónimas –, o dever de não concorrência, no âmbito das denominadas sociedades de pessoas – sociedades civis e em nome coletivo –, deverá antes ser apresentado como uma decorrência lógica da prestação que caracteriza a posição jurídica dos sócios: contribuição de “bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica”, artigo 980.º do cc, representando a prossecução de ativi‑dades concorrenciais uma clara violação desta prestação principal.

ii. no âmbito das sociedades por quotas, a proibição de não concorrência encontra o seu regime geral no artigo 254.º do csc. de acordo com o disposto no seu número 1:

os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, atividade concorrente com a da sociedade.

sendo que se entende como concorrente, à luz do número seguinte:

[Q]ualquer atividade abrangida no objeto desta, desde que esteja a ser exercida por ela ou o seu exercício tenha sido deliberado pelos sócios.

5 antónio Menezes cordeiro, Manual de Direito das sociedades, vol. ii: Das sociedades em especial, 2.ª ed., almedina, coimbra, 2007, 182: sem descurar, no âmbito das sociedades em nome coletivo e civis, o papel assumido pela natureza jurídica de ambas as pessoas coletivas; Anotação ao artigo 64.º, cit., 253; Pedro Pais de vasconcelos, Business judgment rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, 1/2 dsR, 2009, 41 ‑79, 64; nuno trigo dos Reis, Os deveres de lealdade dos administradores de sociedade comerciais em Temas de Direito comercial, 4 cadernos o direito, 2009, 279 ‑419, 372; Hélder Quintas, Regime jurídico das sociedades por quotas anotado, almedina, coimbra, 2010, 476: corolário do dever de lealdade; Ricardo costa e Gabriela Figueiredo dias, Anotação ao artigo 64.º do CSC, cit., 743 ou Maria de Fátima Ribeiro, O dever de os administradores não aproveitarem para si ou para terceiros, oportunidades societárias, EH Heinrich Ewald Hörster, almedina, coimbra, 2012, 633 ‑665, 636.6 Gerd H. Langhein, Anotação ao § 112 do HGB em Münchener Kommentar zum HGB, vol. ii, 3.ª edição, Beck, Munique, 2011, Rn. 1; ou Wulf Goette, Anotação ao § 112 do HGB em Ebenroth/Boujong/Joost/Strohn Kommentar zum HGB, vol. i, 2.ª ed., Beck, Munique, 2008, Rn. 1.7 Doutrina das oportunidades societárias (corporate opportunities doctrine). Parte II: Direito português, 5 Rds, 2013, 741 ‑778, 758 ss.

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186 Anotação por A. Barreto Menezes Cordeiro

o primeiro ponto não levanta especiais dúvidas: demonstrou‑se em juízo que BB, ao contrário de ee, o outro gerente da sociedade cc, não foi autorizado a exercer qualquer atividade concorrente. Já a subsunção da atividade concreta – abertura e exploração de hamburguerias – ao conceito de atividade concor‑rencial pode levantar dúvidas. Julgamos, contudo, que a razão está com o nosso supremo tribunal.

iii. o disposto no número 2 do artigo 254.º não deve ser interpretado lite‑ralmente, sob pena de o seu propósito se esvaziar por completo. Para o efeito, atente ‑se ao conteúdo do objeto da sociedade cc, à luz dos factos dados como provados no acórdão:

investimento, exploração, operação e… da cadeia dd, sob o regime de franchising.

ora, a aplicação de uma construção formalista, defendida nos autos pelo gerente prevaricador, conduziria ao risco de considerar que BB apenas não poderia explorar, investir e operar no ramo da restauração no caso de existir, em concreto, uma ligação à marca dd. no limite, nada impediria que BB abrisse um restau‑rante de sumos, saladas e sopas associado a qualquer outra marca.

o critério terá de ser, não a prossecução de uma atividade prevista no objeto social, mas sim, a prossecução de uma atividade que seja concorrencial à atividade prevista no objeto social.

iv. o supremo tribunal de Justiça considerou que, em concreto, a abertura e a exploração de hamburguerias consubstanciava uma atividade concorrencial. assim efetivamente o é. no preenchimento jurídico do conceito de atividade concorrencial, devemos centrar a nossa atenção no comportamento do mercado, em especial no impacto produzido no lado da procura, abrangendo, consequen‑temente, não apenas a concorrência direta – produtos idênticos –, como a concor‑rência indireta – produtos sucedâneos8.

o confronto não deve, assim, ser feito entre os bens comercializados pelas duas sociedade – frutas, sopas e sumos vs. hamburguers – mas entre as respetivas clientelas, em sentido amplo.

ora, o tipo de restauração em causa partilha os mesmos espaços – centros comerciais –, pratica preços idênticos – basta, para o efeito, comparar a oferta tradicionalmente disponibilizada – e partilha os mesmos clientes – a realidade evidencia a existência de um mercado comum, formado pelas empresas localizadas

8 Menezes cordeiro, Manual, vol. ii, cit., 181 e diogo Pereira duarte, Anotação ao artigo 254.º do CSC em CSC/MC, cit., 741.

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Dever de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedade 187

nas zonas de restauração dos centros comerciais, caracterizado por uma volatili‑dade da procura, por oposição a uma suposta segmentação que está longe de se verificar, ou seja, a empresa cc não compete apenas com estabelecimentos de restauração que fornecem sopas, frutas e saladas, mas com todos os estabeleci‑mentos situados nas zonas de restauração de centros comerciais.

4. Dever de não aproveitamento de bens pertencentes à sociedade

i. o supremo tribunal de Justiça apresenta a utilização de bens – telemóvel, computador e servidor do correio electrónico – e de informação – contactos e elementos respeitantes ao negócio – pertencentes à sociedade como sendo um comportamento violador do dever de cuidado. como acima afirmámos, estes atos consubstanciam antes violações do dever de lealdade, mais especificamente do dever de não aproveitamento de bens pertencentes à sociedade representada, materialização fiduciária desenvolvida no seio da denominada doutrina das opor‑tunidades societárias9.

ii. especialmente desenvolvida pelos tribunais estado ‑unidenses, na primeira metade do século XX10, a doutrina das oportunidades societárias encontra ‑se hoje espalhada pelos mais relevantes sistemas jurídicos europeus – inglaterra11, alemanha12 ou itália13. a construção tem sido objeto de uma atenção crescente, por parte de alguma doutrina nacional14. a jurisprudência nacional, embora a apresente, usualmente, como uma concretização do dever de lealdade, tarda em reconhecer o seu potencial.

iii. ao contrário do que tradicionalmente se defende, a doutrina das oportu‑nidades societárias não é unitária, antes congregando duas modalidades distintas: (1) a doutrina das oportunidades societárias subjetivas: o administrador prossegue uma oportunidade de negócio pertencente à sociedade; e (2) a doutrina das

9 vide, os nossos Doutrina das oportunidades societárias (corporate opportunities doctrine). Parte I: Introdução – Direito estado ‑unidense – Direito inglês, 5 Rds, 2013, 603 ‑632, as remissões para a primeira parte serão feitas com a indicação “Parte i”, seguindo ‑se a respetiva página; e Doutrina das oportunidades societárias (corporate opportunities doctrine). Parte II: Direito português, 5 Rds, 2013, 741 ‑778, as remissões para a segunda parte serão feitas com a indicação “Parte ii”, seguindo ‑se a respetiva página.10 Parte i, 605 ss.11 Parte i, 622 ss.12 Parte ii, 741 ss.13 Parte ii, 746 ss.14 Parte ii, 748 ss.

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188 Anotação por A. Barreto Menezes Cordeiro

oportunidades societárias objetivas: o administrador utiliza, de forma abusiva, informação e bens pertencentes à sociedade, tendo em vista a prossecução de interesses próprios.

os factos em análise subsumem ‑se sem especiais dificuldades à segunda moda‑lidade: o administrador utilizou bens e informação que pertenciam à sociedade, na busca de interesses pessoais, violando, de forma evidente, o dever de lealdade que molda a atuação de todo e qualquer fiduciário.