22
Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso Realizada em Providence, EUA, em 7/11/2004 * CRISTOVAM: Antigamente a gente brigava para a idØia da gente prevalecer. Agora a gente briga para que o outro nªo seja dono da idØia da gente. FHC: O PT brigou o tempo todo com o PSDB e comigo, em especial, passando a imagem de que tinha uma outra idØia. Depois chegou no governo e nªo parece ter. Cristovam Buarque ** 195 Entrevista ** Senador pelo PT de Brasília. Ex-ministro da Educaçªo, ex-reitor da Universidade de Brasília UnB. P ara um visitante que o encontra hoje, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso transmite trŒs sensaçıes: saœ- de, felicidade e realizaçªo. Liguei da Universidade de Berkeley, onde eu estava por uns dias, para ele, na Universidade de Brown, onde passa um período como professor a cada ano. De * Pequeno trecho desta entrevista foi publicado pelo jornal O Globo, em sua ediçªo de 29 de no- vembro de 2004, p.10.

Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

  • Upload
    others

  • View
    13

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

Cristovam Buarqueentrevista ex-presidente

Fernando Henrique CardosoRealizada em Providence, EUA, em 7/11/2004*

�CRISTOVAM: Antigamente a gente brigava para a idéia da

gente prevalecer. Agora a gente briga para que o outro não seja

dono da idéia da gente.�

FHC: O PT brigou o tempo todo com o PSDB e comigo, em especial,

passando a imagem de que tinha uma outra idéia. Depois chegou

no governo e não parece ter.�

Cristovam Buarque**

195

Entrevista

** Senador pelo PT de Brasília. Ex-ministro da Educação,ex-reitor da Universidade de Brasília � UnB.

Para um visitante que o encontra hoje, o ex-presidente

Fernando Henrique Cardoso transmite três sensações: saú-

de, felicidade e realização. Liguei da Universidade de

Berkeley, onde eu estava por uns dias, para ele, na Universidade

de Brown, onde passa um período como professor a cada ano. De

* Pequeno trecho desta entrevista foi publicado pelo jornal O Globo, em sua edição de 29 de no-vembro de 2004, p.10.

Page 2: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

196

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

imediato aceitou que eu fosse visitá-lo. Brown está do outro lado

de Berkeley. Foi preciso mais de quatro horas de avião, uma noite

em Nova York e mais de três horas em trem, para chegar até

Providence, onde fica a Universidade de Brown.

Cheguei na metade da manhã, ele esperava na estação e ficamos

juntos todo o dia até que me levou de volta a estação, na metade da

noite. Durante este período conversamos em sua casa, juntamente

com D. Ruth e o Ministro Frederico Duque Estrada, da Missão do

Brasil em Nova York. Caminhamos até um restaurante, depois até

à universidade para assistirmos juntos à palestra de Mary Robinson

[ex-Presidente da Irlanda (1990-97), ex-Alta-Comissária para Direitos

Humanos da ONU (1997-2002)], e ainda fomos caminhando até o

seu escritório de professor visitante e voltamos para a universida-

de, parando outra vez em sua casa.

Durante todo este tempo, ele caminhou os diversos quilômetros

mais rapidamente do que muitos jovens, conversou sobre todos

os temas da atualidade no mundo e no Brasil, demonstrando sem-

pre um conhecimento profundo, uma grande preocupação e tam-

bém otimismo.

Ao lado de conversas políticas e pessoais, durante algumas horas

liguei o gravador para uma entrevista com ele, no seu gabinete de

professor. Uma longa entrevista sobre o pensamento social no

mundo de hoje e as lutas políticas internacionais e no Brasil. Este é

apenas um pequeno trecho, não mais do que 20% do conjunto. A

idéia era guardar toda a entrevista para publicá-la um dia na com-

panhia de outras, com diferentes personalidades mundiais.

Começamos falando de equipamentos modernos, como um apa-

relho à vista, do tamanho de uma caixa de cigarros, que é capaz

de levar gravados milhares de discos, retirados diretamente do

computador.

Page 3: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

197

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

CRISTOVAM BUARQUE: O pensamento so-cial ficou parado enquanto o pensamentocientífico avançou?FERNANDO HENRIQUE CARDOSO:Foi muito rápida essa mudança. Não foisó tecnológica. Também na relação entreas pessoas. Alterou a estrutura da socieda-de. E os pensadores não registraram oquanto está sendo alterado. E agora hou-ve um susto lá na Espanha. Eu vi uma pes-quisa do Manuel Castells [sociólogo espanhol,professor da Universidade da Califórnia, autorde A sociedade em rede (1997)] dizendoque lá na Catalunha, pelo menos, a viradafoi dada pelos mais jovens*. Usando o queeles chamam de torpedos. Pequenas men-sagens por meio eletrônico. A opinião pú-blica muda assim, de repente. Como sedesse um curto-circuito. Existe um meca-nismo que você pode saber a reação daspessoas em tempo real. Então os partidosvão ter de se organizar pra isso.

CRISTOVAM: Isso não vai ser o fim da lide-rança política? Os políticos vão estar a rebo-que da opinião pública�FHC: A opinião pública é dessa maneira,muda rapidamente. Eu, há muitos anos,quando era presidente da Sociedade In-ternacional de Sociologia, fiz um encon-tro de sociólogos na Índia. Nos anos 80,eu era senador. Essa associação era basica-mente composta de europeus e norte-ame-ricanos. Então eu disse: vamos fazer naÍndia. E fizemos a reunião na Índia. Meudiscurso de encerramento do meu man-dato foi sobre mudança social. Eu disse:

nós estamos num mundo muito interes-sante porque todas as teorias de mudançaque nós temos não dão conta de como omundo muda, a política muda, a socieda-de muda. A grande linha de mudança eraa teoria marxista da mudança, com cho-que de classes, crise da economia, algumaprevisibilidade da mudança. Ou então ateoria funcionalista, a mudança por peque-nos incrementos em uma certa direção.Talvez os dois funcionassem dependendodo momento. Mas, agora a mudança seriadiferente. Por que escrevi isso? Eu estavaem Paris em maio de 68. Vi o que aconte-ceu ali. Houve o que eu chamei de curto-circuito. Quer dizer, a sociedade moderna,que parece estar bem organizada, de re-pente sofre um curto-circuito. Em feverei-ro de 68, eu tive um almoço, como eu tinhatoda quarta-feira, com Celso Furtado,Luciano Martins [professor da USP] e oValdir Pires [Consultor-Geral da Repúblicano governo João Goulart; ex-Governador daBahia (87-89), atualmente Ministro daControladoria-Geral da União]. A gente seencontrava às quartas-feiras. Numa dessasquartas-feiras chegou lá o Paulo de TarsoSantos, que foi seu antecessor [deCristovam] no governo de Brasília. E o Pau-lo não era uma pessoa informada sobre aFrança. Nós éramos, eu estudei na Françaantes, era professor. O Celso nem se fala,era doutor em França. E o Celso, mais sa-bichão que nós, explicou: aqui não vaiacontecer nada. Isto, em Fevereiro de 68.�Aqui se chegou a um grau de racionali-dade que elimina riscos, está havendo ago-

Page 4: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

198

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

ra um debate sobre salário. Só que o sin-dicato tem tanta pesquisa quanto o gover-no, então vão fazer uma negociação echegam a um entendimento.� Bom, na-quela época se dizia o seguinte: a diferen-ça entre o De Gaulle e o Luís XIV era queo De Gaulle podia andar na rua que eraaplaudido e o Luís XIV era vaiado. Queeram iguais. Outro roi soleil. Bom, trêsmeses depois, quase cai tudo.

CRISTOVAM: Eu ouvi de Darcy Ribeiro coisaparecida sobre o Chile. Em Agosto de 73,um mês antes do golpe, nos encontramos noPeru, no apartamento onde ele morava. Fuicom meu irmão Sérgio, que estava exilado noChile querendo sair porque achava que ia terum golpe. Darcy disse: �Não tem perigo. OChile é uma sociedade bem organizada.� Ummês depois....FHC: Eu estava no Chile. Em agosto euestava no Chile. Eu fui pro Chile em julhode 73, trabalhava na Cepal. Mas eu tive asensação contrária. Por quê? Porque eutinha tido a experiência do Brasil e da Fran-ça. Eu disse: isso aqui vai acabar. Eu esta-va um dia jantando com um grandesociólogo argentino chamado GinoGermani, que era o maior sociólogo ar-gentino daquela época. Jantando num res-taurante que eu gostava muito lá no Chile,chamado Dacarla. E o Allende tava falan-do no rádio e de repente deu um apagão.Por quê? Porque boicotaram uma torre detransmissão. Eu disse à Ruth: quero vol-tar pro Brasil, porque vem coisa aqui. Pou-co depois, o Weffort [Francisco Weffort,sociólogo, professor da USP, Ministro da Cul-tura nos dois mandatos de FHC] estava lá e

nós fomos jantar na casa do Ricardo La-gos [atual Presidente do Chile], que era meuvizinho. O Ricardo tinha sido nomeadoembaixador em Moscou pelo Allende. Enós fomos jantar: eu, o Weffort, o Ricardo,a Luíza � mulher dele �, e o Almeida. OAlmeida naquela época era do Exterior,tinha sido da Defesa. Isso foi fim de agos-to. O Almeida não parava de andar de umlado para o outro. Depois do jantar, per-guntou: �Quando é que vocês vão embo-ra? Talvez, não sei se há tempo, vocês serãotestemunhas de uma virada de página nahistória�.

CRISTOVAM: A virada ele imaginava que erapara a esquerda...?FHC: Não... para a direita. O Lagos nuncanem chegou a ir a Moscou. Para você vercomo essas coisas são difíceis: o Allendeconfiava no Pinochet.

CRISTOVAM: Nomeou-o comandante doexército...FHC: Nomeou-o comandante. Então, édifícil perceber quando a coisa vai virar...

CRISTOVAM: Mas o pessoal que fala que aHistória acabou, supõe que não vai havermais curto-circuito...FHC: Está errado. Pode haver curto-circui-to. O que caracteriza o curto-circuito é aimprevisibilidade. Nos mercados é a mes-ma coisa. Há momentos em que você achanão ter risco, mas vem o imprevisto. Ris-co é o que você pode calcular. O 11 de se-tembro criou uma mudança total. Eraimprevisto. E deu um curto-circuito, pro-vocou uma mudança.

Page 5: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

199

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

CRISTOVAM: Mas naquela época, França,Chile, Brasil em 64, havia um debate de idéias.Hoje a gente não vê....FHC: Na França certamente havia essedebate... Mas qual era o debate na Fran-ça? O debate me chocou muito porque euestava chegando do Chile, em 67. E o Chi-le naquela época não era o Allende, era oGuevara. Tinham matado o Guevara. Eutinha escrito o livro Dependência e desen-volvimento naquela época. Tinham mata-do o Guevara que era a expectativa darevolução na América Latina. Bom, e eratudo referido à luta de classe e ao imperi-alismo. Na França, o debate não era esse.Era existencial. Era a questão de liberda-de sexual, era proibir proibir. Não haviauma referência à classe nem ao imperia-lismo. E o que me chamava a atenção nasruas de Paris naquelas imensas manifesta-ções eram pessoas que vinham com ban-deiras anarquistas negras cantando aInternacional que começa dizendo: �Empé os famintos da terra�. Todos gordinhos.(Risos). Eu levei o Mário Pedrosa [escri-tor, crítico de arte, um dos fundadores do PT]com o Luciano Martins para Nanterrepara assistir a um debate de estudantes.Em plena greve. Eles abriram a escolapara os operários e entraram operáriosdas redondezas. E os operários não en-tendiam nada. Aquilo não era com eles.Depois, houve uma greve na indústriaRenault, aí sim houve luta operária. Querdizer, o curto-circuito se deu por umarazão educacional, eles queriam fazeruma mudança no sistema educacional, osprofessores de Nanterre eram reacioná-rios, não queriam...

CRISTOVAM: As teorias marxistas não ser-viam para explicar....FHC: Nada, Nada. Depois deu um curto-circuito. Mas a sociedade tem estrutura.Você vê que não muda de repente, por-que tem forças que limitam. Essa dialéticaentre o inesperado e a estrutura é que éinteressante de ver na sociedade atual. Enão há teoria pra isso. Talvez a Teoria doCaos, que no fundo é a teoria do inespe-rado. Eu acho que nós temos de começara nos acostumar com o inesperado. Mui-to mais hoje por causa desses meios mo-dernos com o inesperado... E como é quevocê conceitualiza isso numa disciplinacomo Ciências Sociais, que quer fazertudo a partir de regularidades e de causae efeito?

CRISTOVAM: Quais foram os grandes fatos ines-perados ao longo da sua vida?FHC: Bom, pra mim, o golpe de 64 foiinesperado no Brasil.

CRISTOVAM: Mas no mundo, quais fatos lhesurpreenderam com maior dose de inespe-rado, durante sua vida, quais os maiores cur-tos-circuitos a que assistiu?FHC: 68 na França foi certamente inespe-rado, o bombardeio no WTC foi certamen-te inesperado. Eu estava lá no Brasil e iareceber naquela manhã o pessoal da Fun-dação Getúlio Vargas. E eu estava no apar-tamento residencial, no 2º andar doAlvorada, quando a Ana Tavares [Assesso-ra da Presidência da República na gestão deFHC] telefonou: �Estão bombardeando oWorld Trade Center!� Eu liguei a televi-são e vi aquele negócio. No começo não

Page 6: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

200

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

consegui nem entender. Mas era o segun-do que �tava ali.

CRISTOVAM: A queda do muro de Berlimtambém foi inesperada...FHC: Berlim também. Tem um artigobelíssimo do Hirshmann, acho que é nasmemórias dele. Que é lindíssimo, sobreo muro de Berlim. Conta o que aconte-ceu, quando era o contrário que se espe-rava. É claro que o mundo sempre foiassim. Sei lá, quando você teve a tomadado Palácio de Inverno [ataque dosbolcheviques à sede do Governo Provisório li-derado por Kerensky, a 25 de outubro de 1917(no calendário russo), marco da RevoluçãoRussa]. Sempre teve assim. Acontecemfenômenos de repente que precipitamuma tendência que estava havendo. Masno curto-circuito não tem tendência ne-nhuma. De repente, ocorre.

CRISTOVAM: A sua eleição e a do Lula nãosão fatos inesperados? A esquerda chegarao poder?FHC: Totalmente. Saiu um livro... Até voumostrar a você... Chama-se O príncipe e osapo. Sobre eu e o Lula, do Paulo Markun(mostra a capa do livro e continua). O Luladisse outro dia sobre isso aqui: �está ven-do, eu sempre carregando pedra e elenão...�

CRISTOVAM: Além de ter uma surpresa, aesquerda chegar ao poder, não é uma sur-presa também que nós chegamos sem umaproposta nova para o povo? Chegamos re-bocados pela direita.FHC: Surpresa não é chegar, é chegar de

duas vias... (Risos). Por quê? Porque omundo mudou muito. E a chamada es-querda não mudou. Aí chega lá e fica adiscussão: �Ah, o Lula está indo para ooutro lado. Fernando Henrique foi para ooutro lado�... Você chega lá, como o Lulaestá lá hoje, com toda sua formação políti-ca, e não tem como pôr em prática. Por-que o mundo é outro. O mundo é outro,não é? Mudou muito, profundamente. Oque não quer dizer que não haja uma ten-dência para continuar mudando.

CRISTOVAM: Esse fenômeno de não estarse pensando uma nova esquerda, não é sóno Brasil... É no mundo inteiro...FHC: É geral... É geral... Na França acon-teceu com o Jospin [Lionel Jospin, dirigentedo Partido Socialista francês, ex-Primeiro-Mi-nistro, derrotado nas eleições presidenciais demaio de 2002]. Então, quando se vai fazero que os italianos chamam de aggiorna-mento? É difícil fazer... A Terceira Via foiuma tentativa de aggiornamento. O Blair[Tony Blair, Primeiro-Ministro e líder do Par-tido Trabalhista inglês], o Anthony Giddens[sociólogo inglês -autor de The Third Way:The Renewal of Social Democracy (1998)-que contribuiu para levar o Labour Party aabandonar seu viés estatizante], aí depoisvocê vê que não chegou a haver umaggiornamento de nada porque faltou for-ça pra fazer o que é possível fazer. O que épossível fazer? É na área da justiça e dasociedade. A esquerda hoje é mais garan-tir direitos e dar igualdade, mais voz.Muito mais isso do que controlar os mei-os de produção. Para a esquerda clássica,a idéia é essa: controlar os meios de pro-

Page 7: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

201

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

dução coletivamente. Mas não tem nemcomo...A esquerda clássica queria isso e a esquer-da comunista via o controle de Estado porum partido. Hoje, eu acho que o pensa-mento progressista é muito mais força nasociedade civil, não é isso? É tentativa deabrir caminhos de participação com obje-tivo de dar igualdade de oportunidades. Ea esquerda muitas vezes ficou envelhecidano sentido de que ela quer ainda pensarque o Estado e o partido vão levar à mu-dança.

CRISTOVAM: Agora a idéia do Estado é daesquerda soviética. Marx via o Estado deoutra maneira...FHC: Marx era muito mais progressista.Onde Marx nunca foi muito específico foina teoria da revolução. O que ele foi espe-cífico foi na análise do capitalismo. Mas,mesmo aí, veja o seguinte: como é que nósfomos treinados? Na idéia da exploração,não é isso? A exploração do homem pelohomem. Hoje, o mais grave é os que nãoservem nem pra ser explorados, são os�marginados�. Que não são mais nemexército de reserva...

CRISTOVAM: São descartáveis...FHC: Descartáveis... Descartados! O sis-tema os trata como irrelevantes. É trági-co. A gente está tendo um mundo ondevocê tem uma imensa massa irrelevantepra formação da riqueza... E isso não erapensado assim...

CRISTOVAM: E qual é nossa proposta praesse pessoal?

FHC: Esse é que é o problema. Você sabe,quando mais cedo lhe falei sobre o livroOccidentalism [Occidentalism � The Westin the Eyes of its Enemies, de Ian Buruma eAvishai Margalit, The Penguin Press, NovaIorque, 2004], fiz uma referência ao FrantzFanon, que escreveu Les Damnés de la Terre[Os condenados da Terra (prefácio de Jean-Paul Sartre), foi editado no Brasil pela EditoraCivilização Brasileira, Rio, 1968]. Isso nãotinha nada a ver com o pensamento mar-xista tradicional, que sempre desprezou lesdamnés de la Terre. Pra usar a linguagemque Marx usava na economia, les faux fraisde la production, custos de falsa produção.O Engels tinha horror do campesinato...

CRISTOVAM: Como Stálin também teve...FHC: Como Stálin também teve... Era aidiotia rural... Aí você vem e começa comMao, que expressa o contrário... O que nofundo é um retrocesso do ponto de vistada visão marxista. Les damnés de la Terre éque vão fazer a revolução e vamos ter umaigualdade. E vamos matar a cidade por-que a cidade é um foco de males. Na teo-ria marxista, a cidade é o contrário, é oberço da liberdade. Eles passaram a inven-tar o mal também que é o campo. O cam-po é que vai dar a coisa... Isso acabou denovo. Ninguém mais hoje pensa em ter-mos de Mao-Tsé-Tung. Bom, qual é a ex-pectativa que você pode ter? É preciso teruma globalização altamente assimétrica quedispensa essa gente, mas que por outro ladoestá provocando pela via da imigração opavor dos desenvolvidos, não é? É uma si-tuação de medo, de medo mesmo. O ex-tremo é o medo dos muçulmanos...

Page 8: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

202

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

CRISTOVAM: De todos os �deserdados�, não é?FHC: Medo dos �damnés�... Se você pe-gar os muçulmanos como �damnés�, omedo está substantivado hoje. Porque osmuçulmanos, alguns muçulmanos, algunsque viraram terroristas, têm a capacidadede usar essa coisa moderna e golpear aquie ali no coração do sistema. Explodiram otrem na Espanha com o telefone celular,não é isso? E explodiram as torres gêmeassabendo pilotar avião... Usando as armasdo mundo moderno para a destruição.

CRISTOVAM: Quando se fala de FrantzFanon, a gente podia listar 10, 15 nomes,20 nomes daquela época. Agora, não hánomes intelectuais pensando diferente. Acontracultura morreu...FHC: Hoje não tem mais...

CRISTOVAM: Não será provável sair do Bra-sil um pensamento alternativo. Porque osdamnés de la Terre no Brasil, eles votam,exigem um pensamento e propostas novas.Os imigrantes não votam na Europa. Podemfechar a fronteira da Europa para osdeserdados. O Brasil não pode fechar a fron-teira para os seus deserdados. Por isso, nos-sa indigência intelectual é ainda maior.FHC: Na Europa, eles esquecem a fron-teira, mas não totalmente. Nem nos Esta-dos Unidos, que eles precisam dessa gente,como mão-de-obra. A tragédia desse mun-do lá e cá é que eles precisam deixar algu-ma gente entrar e ficam com medo dosque entram. Do ponto de vista deles aqui,têm que deixar entrar os latinos, que �nãosão tão perigosos�. São cristãos, são oci-dentais... Na Europa, não. Na Europa eles

estão lidando com muçulmanos e negros,o que assusta os europeus enormemente.No Brasil é outra coisa. Porque no Brasil,apesar de tudo, nós não temos esse tipode diferença cultural. Você não tem genteque gere um valor que seja totalmentecontrário ao valor dominante. São todos,grosso modo, católicos, ocidentais, pobres.Não é? Falam a mesma língua. Eles sãomais iguais aos integrados e o que elesquerem é se integrar. Não é? Eles não es-tão numa proposta de destruir essa socie-dade por razões culturais ou religiosas...Eles estão querendo é se integrar. Eu acheimuito interessante o resultado dessas úl-timas eleições municipais. Porque de al-guma maneira o PSDB cresceu mais naszonas integradas e o PT nas não integra-das. Não é bem assim, porque em BeloHorizonte o PT também cresceu. Mas, deSP pro Sul foi mais o PSDB. E do Rio proNorte foi o PT. Não é? No fundo eu nãosei se os dois partidos não estão cumprin-do a mesma missão para diferentes audi-ências, públicos. No fundo o que é queestá acontecendo? É um pensamento maisaberto, mais democrático, mais modernoe mais progressista... Com duas diferen-tes tonalidades: uma tonalidade dos já in-tegrados e uma tonalidade dos quequerem se integrar.

CRISTOVAM: Mas aí não tem o perigo dasnossas brigas ? PT e PSDB terminarem im-possibilitando de a gente fazer um traba-lho...FHC: Eu diria que tem perigo de dificul-tar a velocidade da mudança. As brigasdificultam a velocidade da mudança. Os

Page 9: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

203

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

dois lados querem a mesma... Não sei se éa mesma coisa, talvez não pelos mesmosmodos. E aí tem uma outra diferença quesão os menos crentes no Estado e na disci-plina que o PT. Não é? Mas, os objetivosnão são diferentes. Uma vez que você dei-xe de lado a questão... Sabendo que hárestrições econômicas, o objetivo qual é?É mais educação, mais saúde...

CRISTOVAM: E apesar disso a gente vivebrigando...FHC: É por que nós não discutimos nemdisputamos ideologia, é poder, é quemcomanda. Minha idéia pro Brasil é o se-guinte: você tem uma massa atrasada nopaís, tem, e tem partidos que representamesse atraso, clientelismo. Os dois partidosque têm capacidade de liderança paramudar isso são o PT e o PSDB. Em aliançacom outros partidos. No fundo, nós dis-putamos quem é que comanda o atraso.O risco é quando o atraso se comanda. Orisco nesse processo... Eu estou escreven-do no meu livro... É um pouco o negóciodo pacto com o diabo, do Fausto1, não é?Você pode perder a sua alma nesse pro-cesso, porque o atraso pode te comandar.O risco neste momento é de vocês, do PT.De comandar um pouco o atraso e impri-mir os outros nessa direção. Mas eu achoque as forças motoras do Brasil hoje sãoesses dois partidos.

CRISTOVAM: Você ainda acredita que é pos-sível fazer uma aliança PT e PSDB?FHC: Eu acho que pode. Mas, se tiver essapossibilidade de controlar o avanço sozi-nhos, não. Porque a luta é política, não éideológica.

CRISTOVAM: Antigamente a gente brigavapara a idéia da gente prevalecer. Agora agente briga para que o outro não seja donoda idéia da gente.FHC: O PT brigou o tempo todo com oPSDB e comigo, em especial, passando aimagem de que tinha uma outra idéia. De-pois chegou no governo e não parece ter.

CRISTOVAM: Vai ver que podia ter naquelaépoca, antes.FHC: Talvez tivesse... Mas de qualquermaneira, esse é o quadro que eu vejo noBrasil. Eu acho muito engraçado quandovejo uma discussão às vezes no jornal: es-querda versus direita. O PMDB está onde?Na esquerda? Na direita? O PFL? O PSB?Não estão em nenhum lugar... Não estãosituados. Então representam às vezes coi-sas importantes, até, de interesse impor-tante, mas que não estão nessa dinâmica.Na verdade é o conjunto da sociedade umpouco atrasada e alguns setores querendoavançar mais na sociedade. Nessa direçãoo que eu disse: antes de mudar o controledos meios de produção, vamos tentar aqui

1 No clássico de Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), o personagem central, o dr. Fausto, um médicoobcecado pela sede de conhecimento, firma um pacto com o demônio (na peça, o anjo Mefistófeles), cujaaliança o levará aos prazeres do conhecimento, da vida e do amor. Uma das diversas edições brasileiras éa da Ed. Itatiaia (Belo Horizonte, 2002, 5a edição), com prefácios de Erwin Theodor e Antônio Houaiss.

Page 10: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

204

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

fazer um Estado mais competente. O Es-tado não vai ser mínimo nem deve sergrande e bobo, inchado. Tem que ser umEstado competente. O grande desafio nos-so é manter, criar e avançarmos num Es-tado competente e poroso � eu gostomuito dessa expressão que é do Gramsci,poroso... gelatinal...

CRISTOVAM: Partido poroso... Nesse sentidoo PT é poroso, mas o Gramsci escrevia quevocê tem que liderar...FHC: Liderar... Ele pode não liderar... Elepode ser tão poroso que a sociedade tomeconta dele.

CRISTOVAM: A pergunta é se nós, do PT,fomos cooptados, ficamos lúcidos, amedron-tados ou oportunistas. A nossa mudança veiode qual destes fatos?FHC: Veio de tudo isso. Em determinadomomento da campanha, é natural um cer-to oportunismo. Que aliás, pelo jeito foi

bem feito. Tem que haver... Houve essaporosidade positiva, de entender os pro-cessos. Outro que você falou é medo?CRISTOVAM: É... medo do sistema, medo domercado...FHC: Tem que haver. É uma mistura detudo isso. Eu não critico o PT por isso. Eunão critico o Lula. O Lula foi jantar lá noAlvorada uma vez. Logo na primeira vezque ele foi lá... tinha uma reunião de pre-sidentes latino-americanos e eu o convi-dei... estávamos só nós dois andando alinaquele jardim interno, naquela varandalá... ele: �O que você achou da campanhae do slogan?�. Falei: �Lula, eu achei bom.�Lula paz e amor�. Porque você é isso�. Nãofoi um slogan totalmente falso. Quer di-zer, o Lula tem um lado de paz e amor.Ele é uma pessoa �gostável�... que não éde briga. Bom, então eu acho que foi bomusar na campanha... campanha hoje, comjogada de marketing, você cria um mito,conta uma história... O meu mito era fá-cil, era o Real... moeda, estabilidade... e

tinha até um ícone, que era a moeda.Não é isso? Agora, o Lula era ele

próprio. Era a vida dele. Umlíder que subiu, veio de po-

bre, imigrante, chegou lá.É forte, não precisa maisque isso numa campa-nha. E você conta umahistória. Tem que sersimples e repetir aqui-lo. Tem que guardaruma certa relação en-tre a história que vocêconta, o ícone que vocêestá usando e a vida. Eu

FHC: Marx era muito maisprogressista. Onde Marx nunca foimuito específico foi na teoria darevolução. O que ele foi específico foi naanálise do capitalismo. Mas, mesmo aí, vejao seguinte: como é que nós fomos treinados?Na idéia da exploração, não é isso? Aexploração do homem pelo homem. Hoje, omais grave é os que não servem nem pra serexplorados, são os �marginados�. Que nãosão mais nem exército de reserva...

Page 11: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

205

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

não estava mentindo. Eu realmente tinhafeito o Real. O Lula também não estavamentindo... ele representa uma ascensãode uma camada no Brasil. Então campa-nha é assim. Agora, uma coisa é campa-nha e outra coisa é governo. No governonão basta paz e amor. No governo tem queter conhecimento, capacidade, competên-cia, perseguir os objetivos e fazer com queo atraso entre na sua. Senão você entra nadele. A luta permanente é essa. Quem estáno governo está lutando o tempo todopara evitar que os interesses enraizados co-mandem. É quando você empurra umpouco para criar alguma coisa nova, ten-tar alguma coisa nova. Essa é a dinâmicada política contemporânea. Aqui nos EUA,eu fiquei assistindo à campanha... Eu as-sisti às primárias, eu participei da conven-ção democrática americana, eu fui lá, tiveuma mesa redonda com o Clinton emBoston... Em Cambridge, na verdade... Eufiquei vendo o que eles estavam fazendo eno começo eu fiquei muito assustado por-que eles não diziam nada... No final, de-pois é que nos debates o Kerry [JohnKerry, senador norte-americano, candidato de-mocrata derrotado nas eleições presidenciaisde 2004] disse alguma coisa. E aí conse-guiram polemizar. Não conseguiram se-quer discutir se a guerra era justa ouinjusta, era se o Presidente conduzia beme se era eficiente ou não... Não é isso?Bush tentou colocar a questão do confli-to atacando o Iraque e não o Bin Laden,por quê? Não pegou... o patriotismo estána guerra. Kerry teve que atacar pelo ladoda incompetência... Quem é o melhorchefe do comando do exército? Ele ten-

tou levar adiante a questão social: �Você,Bush, está governando para os ricos e euvou governar pros outros, pra classe mé-dia�. O que o Bush fez? Não respondeu.Deixou que a coisa ficasse só em tornode uma questão que, digamos, não esta-va em jogo. Quem era o melhor coman-dante em chefe, não é isso? Ele ganhoucomo se fosse o melhor comandante emchefe e somou a isso uma sociedade queestá com medo à religião por causa do 11de setembro... O que eles chamam aquide valores morais, que nós chamaríamosno Brasil �o atraso�: contra o casamentogay, contra a pesquisa científica, enfimtodos esses valores arcaicos com uma tin-tura religiosa... e isso ganhou aqui...

CRISTOVAM: A Mary Robinson há pouco napalestra disse que até a semana passadatinha-se o Bush como a encarnação do male os EUA como outra coisa diferente dele.Com a eleição, juntou tudo.FHC: Até certo ponto... Porque na verda-de isso aqui é uma sociedade complexa.Deu metade, metade. A diferença é quevocê tem nos EUA é um mapa curioso:pegava a Nova Inglaterra, a Califórnia eNova York. Tudo isso é vermelho, a cordos democratas. E o meio americano queé azul puseram Jesus land. Tem uma Jesusland aqui religiosa, no sentido de ideolo-gia, não de crença espiritual, de ideologiaatrasada, que é grande, mas tem o outrolado também...

CRISTOVAM: Igual a mil anos atrás, �cristia-nismo versus islamismo�. O tempo das Cru-zadas.

Page 12: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

206

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

FHC: Voltamos um pouco para as Cruza-das. Mas a linguagem é a mesma. O Bushdisse várias vezes: �Estamos sendo guia-dos pelas mãos de Deus�.

CRISTOVAM: A mesma frase que o Bin Ladenrepete...FHC: Mesma coisa, mesma frase. Quer di-zer... Um vê o outro como inimigo. A de-mocracia fica no meio disso. A democraciaé how to compromise, coisa que foi difícil deentender no Brasil. Aliança, negociação,tudo isso era visto como se fosse traiçãoao ideal. Quer dizer, você tem que ter, nademocracia, a predisposição de aceitar ooutro. Quando você fundamentaliza eradicaliza, não tem mais isso. Aí desapa-rece o espaço da democracia.

CRISTOVAM: Você pode ser isolado na idéia,mas na política tem que conciliar...FHC: Esse é outro ponto interessante:como é que você mantém seus valores eao mesmo tempo você cria condições paraque esses valores te permitam andar e nãoque eles paralisem tudo? Quando o valoré fundamentalista desse jeito, só tem umasolução: é matar o outro. Eliminar o ou-tro. Ganhar do outro. Você não tem umcaminho que leve a dizer: vamos fazer umcaminho que nesse caminho eu possaavançar mais que ele. Vamos fazer um ca-minho comum.

CRISTOVAM: Mas são três caminhos. Recen-temente você participou diretamente de trêschoques: o democrático de 85, o da estabili-dade monetária, a partir de 94, e o eleitoralcom Lula. Não está na hora de a gente darum �choque social� no Brasil?

FHC: Eu não tenho dúvida. Eu acho queestá passando da hora. Mas, vamos voltaraos seus três caminhos: outro curto-circui-to foi as Diretas-Já...

CRISTOVAM: Antes da democratização? Foio choque democrático?FHC: Não, não... Antes da democratiza-ção... Você teve as Diretas-Já... Que foi umacoisa... o primeiro comício grande que foiaquele organizado pelo Montoro [AndréFranco Montoto, governador do Estado de SãoPaulo (83-87)] surpreendeu-nos a todos.Ninguém no PSDB queria o comício. Euera presidente do PSDB [Na verdade oPSDB foi fundado em 25 de junho de 1988,portanto quatro anos após o comício pelas Di-retas em SP]. A reunião nossa foi contra.Eu disse ao Montoro: o partido não estáde acordo. De novo não vai ter ninguémna rua. Ele tentou o PT. O PT não quis. OPT queria fazer um caminho sozinho. En-tão o Montoro insistiu, insistiu, insistiu.Fizemos dia 25 de janeiro. Eu estava comele na USP, que era aniversário da USPtambém, quando o Zé Gregóri, que esta-va na praça, nos telefonou pedindo paraeu ir correndo pra lá porque a praça esta-va enchendo, sendo que nós não tínhamosnem alto-falante pra cobrir a praça. Aqui-lo nos surpreendeu, nós que estávamos or-ganizando... Bom, voltando ao choquesocial... Eu acho que sim, Cristovam, por-que veja... Se nós não fizermos algumacoisa rápida nessa matéria vai danificar ademocracia porque as expectativas estãoaí. E se nós não conseguirmos delivery... Ademocracia exige que você entregue osresultados. Quando a sociedade é aberta,

Page 13: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

207

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

o povo se organiza, demanda, você temque fazer, tem que ter um resultado. Bom,se o resultado vai muito devagar, é umatragédia. Se não anda, pior ainda. Não é?Andar pra trás é inaceitável. Esse eu achoque é o desafio: é manter a democracia ecriar o choque social. Mas, você não podelevar adiante o choque social sem certascondições econômicas. E eu resumiria di-zendo: mais investimento em infra-estru-tura e um choque social.

CRISTOVAM: Com a capacidade fiscal doBrasil, uma carga fiscal de mais de 30% eum PIB de 1 trilhão e 600 bilhões, esse orça-mento já dá pra fazer...FHC: Dá. Nosso problema não é de faltade dinheiro...

CRISTOVAM: Por exemplo, você conseguiuquatro bilhões para o Fundo de Erradicaçãoda Pobreza... Faz quantos anos isso? Seisanos? Quatro anos?FHC: Quatro anos...

CRISTOVAM: Não é possível que a genteconsiga mais quatro ou mais dez bilhões?FHC: E aumentou muito a arrecadação...Eu não entendi porque houve um aumen-to do superávit primário. Eu sou doutor emsuperávit primário. Desde 99 estou lutan-do com o Fundo. Quando alguém me dis-se lá que iam propor 5%, eu disse: �É umaloucura, porque propõe 5% e o Fundo vaiquerer 5,5%�. Agora melhorou um pou-co porque o mercado está mais afrouxa-do... a idéia do Fundo é sempre um poucomais alto. E você pega alguns economistase eles vão sempre dizer que tem que au-

mentar mais o superávit. Porque com essesuperávit atual, que é de 4,5%, você nãopaga nem os juros... Bom, mas também sefor de 5% também não vai pagar. Então éum negócio complicado... Juros da dívidaexterna e da dívida interna... é um negó-cio complicado. Então eu acho que é preci-so fazer um programa de mais longoprazo... Não precisa exagerar no superávitprimário. Eu até posso dizer isso. O Lula éque não pode porque ele é o Presidente daRepública. Os mercados caem no dia se-guinte, é verdade.

CRISTOVAM: O senhor pode. Não pode Lulae nem ninguém de dentro do governo.FHC: É, não pode. Não pode porque aíabala tudo. O que nós fizemos? Eu expan-di o caixa social todo o tempo. Nós fomosde 11% para 14% do PIB, o gasto social.Em pleno momento de estabilização daeconomia. Isso foi uma briga permanenteporque visto do âmbito estritamente fi-nanceiro está errado. Mas, se eu não tives-se feito o que fiz não tinha avançado aeducação...

CRISTOVAM: E criou programas como o Bol-sa-Escola e o Fundef...FHC: O Fundef, o Bolsa-Escola e na Saú-de... então eu acho que o Brasil já tem con-dições. Há um problema de eficiêncianisso tudo... De gestão e de focalizaçãocom o gasto. Então você pega o orçamen-to do Brasil e compara com outros paísesde igual produto bruto, você vai ver que onosso gasto social é razoável, ele é disper-sado muitas vezes. Mas hoje as condiçõesestão melhores ainda para fazer um cho-

Page 14: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

208

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

que social, porque tem mais recursos sen-do arrecadados.

CRISTOVAM: Para isso a gente não precisater... a palavra pacto não é boa... Mas, terum compromisso maior, porque todo país quedeu um salto fez uma aliança de todos ospartidos em função de metas comuns.FHC: Eu acho que nós não devemos falarde pacto porque dá má sorte, estádesgastado. Digamos uma convergência.

CRISTOVAM: Mas convergência com com-promisso para que o programa continue...FHC Isso é uma coisa que tem de sersuprapartidária, não é multipartidário, ésupra. Além dos partidos, tem de ser asociedade comprar essa idéia, tem que tergente que faça entrar em ação. Sua idéiade pegar umas 20 pessoas que se compro-metam é boa, mas eu estava atépensando...Tinha que pegar gente que te-nha também influência na mídia, porquehoje não existe nada sem mídia. Porquena política atual, parafraseando Descartes,�Penso, logo existo�; agora, �Estou na TV,logo existo�. Se você não é virtual, vocênão existe.

CRISTOVAM: É. O problema é que a impren-sa até a gente traz, agora a Justiça é quedifícil trazer...FHC: A justiça é muito mais difícil...

CRISTOVAM: Se não fizer algum movimento,alguma mudança na Justiça, não vai...FHC: É. Eu acho que talvez seja o que meperguntaram aqui outro dia: o que eu acha-va que estava mais difícil de mexer no Bra-

sil. Eu disse: A Justiça. Porque não é só noBrasil, eu vi no Chile. Quer dizer, as clas-ses dirigentes, dominantes, e mais do queas classes, as mentalidades dominantes eas culturas tradicionais, elas estãoencasteladas na Justiça. Porque na socie-dade de massa a dinâmica maior se dá narelação direta da opinião pública com opresidente que elege. Depois a frustraçãoimediata é com o presidente eleito, quenão pode fazer muito porque tem o Con-gresso. De qualquer maneira, o Congres-so tem uma certa abertura pra sociedade,para impressionar. Quando as idéias do-minantes perdem na presidência, depoiso Congresso avança e elas perdem lá tam-bém, então o pessoal mais tradicional vaiprá Justiça e segura lá. A Justiça é o bastiãomaior dos interesses definidos. Eu vi issono Chile com o Allende naquele momen-to lá. Chega um momento que a Justiçamostra sua cara, enfim, sobretudo nós quetemos o Direito positivo romano. Tem queter tudo prescrito já, não há interpretação,aplicação da lei. Então você vê, quantasvezes nos últimos anos que o tribunal votacontra o interesse da maioria, do país. Masele vota, porque ele não tem jeito de vo-tar de outra maneira.

CRISTOVAM: Agora devem cassar oCapiberibe [João Capiberibe, senador do PSBpelo Estado do Amapá] com base em umdepoimento de duas pessoas que já desdis-seram, mas não está nos autos, e tecnica-mente não se pode colocar. Então ele vai sercassado por uma tecnicalidade.FHC: E freqüentemente é o que aconte-ce. O juiz fica amarrado na lei. Bom, en-

Page 15: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

209

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

tão não haverá dúvida nenhuma de quehaverá muita dificuldade. Mas, eu achoque a coisa fundamental, voltando ao queestava dizendo antes, de mudança nomundo contemporâneo, é a mudança daopinião. E por isso foi grave essa eleiçãoaqui nos EUA porque a opinião públicaamericana não teve força para mudar.Mudou um pouco. Talvez não tenha en-contrado a expressão em alguém quemudasse, porque o Kerry no começo foidifícil de fazer a aceitação. Mas o fato éque não conseguiu mudar. E o mundohoje globalizado depende muito da mu-dança nos Estados Unidos. Outro dia eudisse pra eles aqui �A eleição para Presi-dente dos EUA vai ser um voto univer-sal, não só dos EUA, porque a decisão doPresidente afeta a todos�. Quer dizer... écomplicado o negócio.

CRISTOVAM: Mas não é só aqui. A demo-cracia foi inventada quando o poder do che-fe de Estado era restrito e durava pouco tem-po. Hoje, qualquer presidente pode tomaras decisões que repercutem no mundo intei-ro. Imagine uma ilha do Caribe permitir umbanco de lavagem de dinheiro para onarcotráfico? Ou uma base para terroristasfazerem armas nucleares? E o presidente éeleito com os votos de sua população. A de-mocracia não dá mais para ficar restrita aum país.FHC: Mas, esse é um grande problema anível global que é o que tem a ver comEstado Nacional. Quer dizer, democraciafoi uma coisa feita na nação. E criou o Es-tado. Os Estados Nacionais. Hoje, vocênão pode governar mais só na perspectiva

do Estado-nação. Não dá jeito. Você nãoresolve o meio-ambiente por aí.

CRISTOVAM: E nem pensar no curto prazoentre duas eleições...FHC: E nem pensar em quatro anos...Vocênão resolve nem o terrorismo nem a dro-ga e nem a criminalidade, que tambémestão usando os instrumentos modernos.Não é só o lado progressista que usa o ins-trumental moderno, o que eu chamei nes-se documento para a ONU de uncivilsociety...

CRISTOVAM: O demônio também gosta deeletrônica...FHC: Também gosta de eletrônica, é as-sim com a eletrônica, não é só Deus, não...Deus e o diabo (Risos). Bom, então comoé que você lida com esses problemas noâmbito do Estado Nacional? Não dá. Poroutro lado como é que você faz com queos Estados, sobretudo os mais poderosos,abram mão da sua soberania? Agora aquinos EUA, nem se discutiu soberania, jáestá se discutindo soberania nos outros.Eles querem ter o direito de interferir nosoutros, no unilateralismo...

CRISTOVAM: A solução seria regras moraisinternacionais, para as armas, para o meio-ambiente.FHC: Ninguém reage. As notícias daguerra preventiva é uma coisa louca. Éo oposto de um mundo organizadocivilizadamente. É a barbárie, é um mun-do hobbesiano. Nem hobbesiano, porquelá no mundo hobbesiano é a luta de to-dos contra todos e aqui é de um contra

Page 16: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

210

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

todos. E os outros todos não têm forçapara enfrentar esse um.

CRISTOVAM: Por falar em Deus e o Diabo,na sua idade o senhor está mais preocupa-do em terem inventado que o senhor disse�Esqueçam o que eu li� [n. do editor: naverdade, a frase atribuída a FHC é �Esque-çam o que escrevi�] ou ter inventado que osenhor era ateu?FHC: Não, esqueçam o que eu li eu nuncadisse... inventaram... Nem disse que eraateu...

CRISTOVAM: Pois é... Mas então, nessa suaidade o que é que preocupa mais?FHC: �Esqueçam que eu li...� (Risos) Ocurioso é que a minha resposta sobre essenegócio de Deus foi correta. Foi o BórisCasoy que perguntou a pedido da Folha. Eele fez a pergunta correta. E eu disse:�Olha, Bóris, eu fiz uma besteira...� Por-que eu tinha almoçado na Folha e oOtavinho [Otávio Frias Filho, diretor editori-al do jornal Folha de São Paulo] me disse �ese lhe perguntassem se acredita em Deus?�E eu disse: �Ninguém vai me perguntarisso�. Então ele mandou perguntar. Entãoquando o Bóris perguntou, eu disse �masisso não �tava no combinado!�, dando aimpressão de que havia uma combinação,mas não havia. Porque eu tinha tido umalmoço com eles lá. Então não havia com-binação nenhuma. Então ele perguntou eeu disse: �Olha aqui, isso não é perguntaque se deva fazer a um candidato. Não temque perguntar ao candidato qual é a con-vicção dele, porque isso é uma coisa pes-soal. Eu não seria arrogante de dizer que

não existe Deus, ou uma coisa desse tipoassim... O que você tem que perguntar ése eu respeito as religiões. Porque o que oprefeito tem é que respeitar todas as reli-giões e os que não tem religião�. Essa foi aminha resposta. E isso foi lido como se eutivesse dito que não acreditava em Deus.Que eu era ateu. Mais grave que o ateu,foi a maconha. Porque eu tinha dado umaentrevista para a Miriam Leitão na Playboye me perguntaram muitas coisas, inclusi-ve sobre maconha. E eu disse: �Olha, umavez eu estava em Nova York, num bar fa-moso que tem lá, em um banquete commeus primos, primas e tal e alguém deveter acendido um negócio de maconha,passou aquilo e eu achei horrível... Umcheiro horroroso�. Pronto, daí tiraram queeu era maconheiro. E o Jânio usou isso...não ele, mas mandou usar, e distribuírampanfletos dizendo... Uma vez eu fui à ci-dade de Tiradentes, na periferia de SãoPaulo, quase uma favela, e a mulher disse:�Você vai distribuir maconha no lanchedas crianças? Na merenda das crianças?�Isso foi terrível...

CRISTOVAM: E isso no tempo que não tinhamarqueteiro... se fosse agora era pior.FHC: Isso foi mais danoso do que o negó-cio de não acreditar em Deus. Porque nodia seguinte do meu programa, �tava nasparedes: �anticristo�.

CRISTOVAM: Presidente, o seu avô entregoua carta que destituía D. Pedro II. A nossageração tem razões para ter mais orgulhodo que fizemos pelo Brasil do que a geraçãodo seu avô?

Page 17: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

211

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

FHC: Eu não saberia dizer, porque a gera-ção do meu avô fez a libertação dos escra-vos e mudou a forma de Monarquia paraRepública. Que foram fatos importantes.Talvez a libertação dos escravos tenha sidoaté mais importante que a República. Foiuma República feita por uma minoria. Masenfim, o Império significava realmente aescravidão e o latifúndio. Então nesse sen-tido eles fizeram uma coisa importante. Ea geração do meu avô também foi umageração modernizadora, não só por causadas idéias positivistas e tal, como tambémporque depois eles continuaram lutandopela democracia: a revolução de 22, de 24,e eles ganharam em 30, não é? E a nossa, aminha e a sua, o que nos aconteceu? Nósfomos adultos pós-varguistas, não é isso?Getúlio já tinha... Os anos cinqüenta é quenos pegam com uma vida mais conscientedas coisas, não é? O segundo Getúlio, Jus-celino e tal. Bom, e já o Estado brasileiroorganizado depois da revolução de 30, jáas massas começando a se incorporar efomos cortados por 64. Bom, o que nósfizemos como geração? Recupera-mos a democracia e isso foi im-portante.

CRISTOVAM: Mas, a geraçãoque fez a ditadura foi apenasum pouquinho antes da nossa,foi a nossa também... A nossageração tanto deu o golpecomo fez a democracia...FHC: A minha geração fez o gol-pe também... Um pouquinho an-tes, não é? O pessoal mais velho,uns dez anos mais, cinco a dez anos

mais. Mas é verdade, alguns representa-ram tudo isso e estão aí...

CRISTOVAM: Representaram e estão aí...FHC: Então foi o bem e foi o mal ao mes-mo tempo, não é? Agora, é difícil saberporque eu acho que a mudança ocorridado fim do século XIX para o século XX foiimportante...

CRISTOVAM: Pois é... Ali a gente fez doisgestos fortes, de que seu avô participou: aAbolição e a República. Mas, se eles encon-trassem a gente hoje, eles iriam dizer: �Vocêsainda não completaram o trabalho da gen-te�. Dá pra dizer que o Brasil é um país re-publicano?FHC: Não...

CRISTOVAM: Nos Estados Unidos o Presi-dente mora é na Casa Branca, não é o Palá-cio da Alvorada. No Senado a gente se cha-

FHC: Ninguém reage. Asnotícias da guerra preventiva é

uma coisa louca. É o oposto de ummundo organizado civilizadamente.

É a barbárie, é um mundohobbesiano. Nem hobbesiano, porquelá no mundo hobbesiano é a luta de

todos contra todos e aqui é de umcontra todos. E os outros todos não

têm força para enfrentar esse um.

Page 18: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

212

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

ma de Excelência... a elite é uma minoriabranca e distante do povo. Como se tives-sem castas. A gente não completou a Repú-blica ainda...FHC: Nós não completamos a Repúblicaem vários sentidos...Veja: mais de uma vezeu disse o seguinte: �O Joaquim Nabucodizia que a nódoa do Brasil era a servidão�.A nossa é o analfabetismo, não é isso?Bom, nós não completamos, mas nós de-mos um passo grande...

CRISTOVAM: No mundo de hoje, se não ter-minar o segundo grau com qualidade, naverdade é uma forma de analfabetismo...FHC: É... Essa coisa ainda estamos deven-do. Não podemos dizer que estamos numaRepública propriamente democrática, nãoé? Acho que houve coisas importantes.Porque bem ou mal a eleição do Lula sig-nificou pela primeira vez não apenas pes-soas só, mas representantes de traçosnovos. Eu venho de uma velha família.Meu bisavô foi governador de Goiás ousenador e tal. Mas eu não represento isso.Represento outra coisa. Que é a nova clas-se média ilustrada...

CRISTOVAM: E não só isso... Intelectualmen-te progressista...FHC: Intelectualmente... e o Lula repre-senta uma elipse do caos... Uma parte doque está acontecendo no Brasil, inclusiveagora no governo Lula, já vinha aconte-cendo um pouco antes. Vários segmentosdo meu governo eram compostos por uni-versitários. O núcleo do governo atual éliderança sindical, não é isso? Do pontode vista democrático isso é interessante.

Tanto a entrada dos universitários progres-sistas quanto dos líderes sindicais...

CRISTOVAM: Melhor é se estivessem juntos,não é?FHC: Melhor ainda. Mas é interessanteporque ainda que eles façam erros de ti-pos variados, uns e outros, é um aprendi-zado de novas camadas no exercício dopoder. Você sabe que o líder sindical émais imediatista, não é? Ele é o homemda negociação do dia-a-dia.

CRISTOVAM: Do curto prazo.FHC: E o sindicalismo tem um pouco decorrupção sempre. Sempre não, mas temfreqüentemente pequena corrupção, nãoé? Agora, quando você vê historicamente,essa pequena corrupção não tem tanta im-portância quanto o fato de você ter a as-censão de uma categoria. Nesse sentido,eu acho que avançou a democracia brasi-leira. No que diz respeito ao seu coman-do, mas não no que diz respeito... Avançoutambém, mas não tanto no que diz respei-to às massas. A capacidade que as massastêm de atuar.

CRISTOVAM: Agora, esses universitários eesses sindicalistas... Será que a gente estácriando uma nova classe?FHC: Do meu governo pro governo doLula, no que diz respeito a que as maiori-as estejam mais presentes no processo dedecisão, não houve. Eu até diria que nomeu governo houve mais. Porque houveuma incorporação da sociedade civil emmuita coisa que era nova. Não tinha di-reitos humanos, meio-ambiente, questão

Page 19: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

213

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

das mulheres, questão dos negros, come-çou ali naquele momento. Mesmo o Mo-vimento dos Sem-Terra, a presença delesfoi muito forte no meu governo. E eu tivede levá-los em consideração, quisesse ounão. E negociei e não sei o que e tal. Ago-ra, parece que parou tudo isso. Parece quehouve mais uma delegação, do que umarepresentação. Então isso preocupa.

CRISTOVAM: Em novembro de 98 eu acom-panhei o Lula para visitá-lo. E quando o se-nhor próprio abriu a porta do apartamentoresidencial no Alvorada, o senhor disse: �Lula,venha conhecer a casa onde você um dia vaimorar�. Ele tinha acabado de perder a ter-ceira eleição. A minha pergunta é: isso foium ato de generosidade, como ir buscar agente hoje na estação de trem, ou foi umaprevisão?FHC: Eu não creio que tenha sido umaprevisão porque eu não tinha condiçõespara prever naquele momento, mas eusempre achei uma possibilidade.

CRISTOVAM: Mesmo ali... Depois da tercei-ra derrota? Todo mundo achava que Lula ti-nha acabado.FHC: Não sei... Porque eu acho o seguin-te: uma liderança política forte não mor-re. Fica assim às vezes um poucoobscurecida, então se representa algumacoisa, não morre. O Lula representa algu-ma coisa. Talvez ele naquele momentoestivesse desiludido. Mais de uma vez eleesteve desiludido com a possibilidade deele ser candidato. Na segunda derrota tam-bém, na primeira também. E eu entendoaté isso... Mas, eu não posso dizer que eu

tenha previsto isso não. Uma possibilida-de, sim. E também um gesto de simpatia.Eu queria muito conversar com o Lula.

CRISTOVAM: Pois é... Qual é o seu interesse,aí? O senhor passou os quatro anos do pri-meiro mandato querendo conversar... Eu melembro que eu participei, tentei ajudar...FHC: É... Tentando, tentando... e sempreuma coisa negativa, negativa, negativa...Qual era minha idéia? Minha idéia basi-camente era democrática. Eu disse ao Lulanaquele dia: �Nós temos uma relação deamizade há tantos anos... não tem cabimen-to que o chefe do governo não possa falarcom o chefe da oposição�. É que o Lulanunca foi chefe da oposição. Uma coisacuriosa: ele nunca foi o chefe da oposição amim. Ele nunca fez oposição. O PT fazia...

CRISTOVAM: É verdade...FHC: ...mas o Lula, não. Ele nunca foi che-fe da oposição. Enfim, mas qual era a mi-nha idéia? É o que eu disse. Era uma épocamuito difícil para o Brasil. Eu disse lá, nãosei se você se lembra: �Algum dia nós po-demos ter de estar juntos�. Eu pensavanuma crise. Nós estávamos num momen-to muito difícil ali. E eu disse ao Lula aque-le dia: �Eu não quero nada de você. Euquero só conversar. Eu não estou esperan-do que você vá me apoiar no Congressoporque ainda que você queira, seu partidonão vai. Essa conversa nossa não é por ra-zões instrumentais, é por razões cada vezmais importantes. É pra você ter realmen-te essa noção de que num país você nãopode alienar uma força�. Eu acho estranhoque no Brasil não haja isso. Em certas cir-

Page 20: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

214

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

cunstâncias, os chefes das facções não con-versem. O Sarney tem uma expressão queeu até coloquei no meu livro de memórias.Ele diz assim �No Congresso, num momen-to difícil, sempre o sacro colégio se reúne�.Quem é o sacro colégio? São os homensdos vários partidos que têm sentido insti-tucional. Então na crise... Por exemplo, nacrise do Collor eu conversei com o Sarneymuitas vezes. Em vários momentos de cri-se... Não só com ele. Você tem... Não sãomuitos... Sete, oito, nove pessoas... Que dealguma maneira encaminham a solução.Bom, eu acho que como eu tenho uma pre-ocupação institucional forte, eu sou umapessoa institucional, eu não soupersonalista. Eu acho que é preciso deixarsempre a possibilidade de algumas pesso-as que têm essa noção conversarem. Pen-sando na Nação, não é pensando nopartido. Pensando no país. Então o meuobjetivo era esse. Era dizer: �Eu tenho queter uma condição de nós conversarmos�.Porque é muito estranho que nós, mesmohoje, é muito estranho que o Lula conver-sou comigo quando foi eleito, no dia da pos-se, que a gente foi embora... Ele me levouaté o elevador e foi bonita aquela posse...

CRISTOVAM: Foi muito bonita...FHC: Por que eu quis que fosse ali fora?Eu quis porque achei que era simbólicotirar a faixa de mim e colocar no Lula di-ante de todo o povo. Nunca foi feito isso.E o Lula disse que faria o que eu quisesse.E eu disse: �Vamos fazer assim�. Na horade ir embora, o Lula , veio como é do ritu-al, e levou a mim e a Ruth até o elevador.É assim que se faz. Ele até fez um outro

gesto, me apresentou um por um dos mi-nistros, o que não se fazia antes. E eu apre-sentei os meus a ele. Ficou bonito. E aí elegrudou o rosto em mim, chorando. E medisse: �Você deixa aqui um amigo�. Aqui-lo ele falou com sinceridade, não é?

CRISTOVAM: Sem dúvida...FHC: Ele falou com sinceridade. Pois bem,depois disso...

CRISTOVAM: Aquela aproximação que osenhor queria, no início do seu governo, nãoera uma tentativa de aliança entre o PT e oPSDB?FHC: Eu até pensei nisso. Eu pensei quepodia haver uma convergência mais adi-ante...

CRISTOVAM: Eu também pensei nisso...FHC: Porque veja, depois daquele dia queo Lula se despediu de mim, ele foi à Euro-pa e eu estava em Paris...Terminou a pos-se, eu peguei a Ruth e pegamos um avião...fomos para Paris sozinhos, sem guarda-cos-tas, sem assessor, sem ninguém. Chegoulá em Paris, entrei num carro e fui paraum hotel que tem por lá... Cheguei lá, cer-cado de polícia francesa, apitando. Che-gando lá, eu chamei o chefe da políciafrancesa e falei: �Eu sei que vocês estãocumprindo o seu dever, mas eu não que-ro que vocês estejam perto de mim. Se euvenho para uma cidadezinha dessas e ficocercado por vocês, todo mundo vai saber...se não, ninguém sabe quem eu sou�. E elesfizeram assim. Eu só vi polícia de novo nodia em que eu fui falar com o Chirac, aíeles fizeram barulho de novo. Fora disso,

Page 21: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

215

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

não. E tivemos uma vida normal. Andeide metrô. Porque você tem que cortar.Você tem que sair do formalismo presi-dencial para ser cidadão. Também aqui eugosto de andar de metrô. Para o meu tra-balho, eu vou de metrô. E aqui vocês vêemcomo é que eu vivo. É diferente de andarem Genebra, que as pessoas me reconhe-cem na rua, bom, em Washington tam-bém, em Paris....

CRISTOVAM: Mas aí o Lula foi pra Europa...FHC: Ele chegou na Europa e telefonou lápara onde eu estava. Ele tinha voltado deDavos. Ele estava na embaixada... ele e oPalocci... E o Lula me disse �Você acha quevai ter guerra no Iraque?� E eu disse: �Euacho, eu acho que vai ter�. �Ah, mas nãofoi o que me disse o Schröder� [GerhardSchröder, Chanceler (Primeiro-Ministro) daRepública Federal da Alemanha] �Bom, podeser que o Schröder tenha outras informa-ções�. Ele tinha falado com ele lá emDavos. E ele falou: �Por que é que vocêacha que vai ter guerra?�. E eu disse: �OlhaLula, é o seguinte: eles já mobilizaram mui-ta gente. Tem 250 mil americanos lá. Vaiter eleição este ano. Como é que eles vol-tam com esse pessoal? E depois toda a vi-são americana é guerreira nessa coisa. Elesvão pra guerra�. Aí o Lula disse uma coisainteressante: �Ah, quer dizer que foi comonaquela greve lá que nós não conseguimossegurar�. Eu digo: é isso. E os americanosnão vão sair. Depois, no mês de fevereiroou março eu vim aos EUA, e aí na casa dagente, já no governo Bush, o assessor desegurança me procurou num jantar queeu estava na casa de um assessor do

Clinton que também estava junto. Ele medisse que eles queriam que eu tivesse umaconversa com o Chávez. Queriam saberse o Chávez [Hugo Chávez, Presidente daRepública Bolivariana da Venezuela] tinharelações de amizade comigo. Eu disse: �Eunão sou mais Presidente. Não vou fazernada sem falar com o Lula�. E telefoneipara o Lula. Contei a ele isso e contei avisão deles no Conselho de Segurança,também. E disse: �A situação aqui é a se-guinte: eles vão para a guerra. Eles estãofazendo uma pressão imensa. Eu acho queo Brasil deve tomar a posição que sempretomou: contra a guerra. Mas eles vão praguerra e pediram que eu falasse com oChávez�. E Lula: �Ah, você tem que falarcom o Chávez�. Ele não agüenta o Chávez.Então eu conversei isso pelo telefone. OLula não me encorajou a falar com oChávez, eu não falei. Eu pensei: �Não soumais Presidente, não vou me meter nessaconfusão, deixa que o Lula tira essa casta-nha do fogo�. Depois eu falei com o Lulana Bolívia. Tivemos uma longa conversasó nos dois, boa, sobre uma porção de coi-sas. Depois, nunca mais.

CRISTOVAM: Ele não o tem procurado?FHC: Não, nem pra tomar um café. Ah,eu estive com ele lá em Brasília. Ele fezum discurso pra mim, em janeiro desseano, foi muito bonito. Mas o Lula nãotem... é um erro... o clima que ele tem quecriar em política, isso eu aprendi com oUlisses, você não deixa o adversário lon-ge (Risos).

CRISTOVAM: Você é adversário dele?

Page 22: Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando ... … · Cristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso imediato aceitou que eu fosse visitÆ-lo. Brown

216

EntrevistaCristovam Buarque entrevista ex-presidente Fernando Henrique Cardoso

FHC: Eleitoralmente, sim. Tem que estarperto. Tem que saber o que o outro pensa.

CRISTOVAM: Naquele encontro que a gentesaiu às 2 da manhã, ele disse: �O FernandoHenrique só quis falar. Ele não nos ouve�. Sóque eu estou me lembrando agora, o que elefalou foi a idéia de não ir ao FMI....FHC: Era �não� a tudo... e ele estava com aimpressão de que havia uma crise... eudevia ter dito isso a ele: ��Tá bom, eu e oCristovam fomos socialistas, você não�.Naquele tempo, depois da crise vinha aredenção. Agora não, vem só a crise. Aprópria plataforma do PT, agora nessa úl-tima eleição, era uma plataforma negati-va. Não ao FMI, não a isso, não àquilo.Qual será a plataforma da próxima candi-datura? Difícil saber... Isso é um proble-ma. Porque ele tem uma batata quente namão. O que ele vai dizer...? Vai ter queinventar uma história. Vamos ver o que oPT terá feito mesmo nesses dois anos. Por-que aí você pode comparar com o que nósfizemos. Não é uma coisa tão fácil, ele vaiter que se candidatar sobre o positivo enão sobre o negativo.

CRISTOVAM: De certa maneira vai depen-der também de quem será o candidato doPSDB. Agora, uma coisa que começa a mepreocupar é que estamos num período deeuforia, a chamada esquerda. E a gente pen-sa que a disputa vai ser PSDB versus PT.

Pode não ser... pode sair alguém aí pelo ladoconservador com uma proposta mais...FHC: Ou um populista...

CRISTOVAM: Ou um populista, claro. O Ga-rotinho pode terminar sendo...FHC: No primeiro semestre desse ano[2004], o governo �tava ruim pro PT. Sobre-tudo aquele negócio do Waldomiro, de CPI,não sei o quê. E eu disse: �Olha aqui, nósnão devemos nos contentar, com isso não.Porque no momento em que você tiver umdescrédito do PT, quem ganha não é o PSDB.Quem ganha é o populismo. O risco é deuma coisa assim meio de direita�. Mesmoque ele não seja de direita no sentido clássi-co, clientelista, de atraso. Ganha o atraso,não ganha o progresso. E isso continua...

CRISTOVAM: Continua... a gente �tá achandoque não, porque em São Paulo venceu o PSDB.No Rio Grande do Sul, foi o PPS. Não tevedisputa com a direita nas cidades grandes...Porque eu, por exemplo, não tenho o CésarMaia como um homem de direita... o CésarMaia é um homem que tem um passado...Então não houve disputa. É como se a direitativesse sumido. Mas ela volta facilmente.FHC: Eu acho que, dependendo das circuns-tâncias, ela volta. Porque eleição é muitocomplicado você prever com essa antecipa-ção que nós estamos. E tomara que seja pos-sível ter uma outra desculpa para dizer queo PT e o PSDB é bom pro Brasil. n