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Christian Ingrao Crer e destruir Os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista Tradução: André Telles

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Christian Ingrao

Crer e destruirOs intelectuais na máquina de guerra da SS nazista

Tradução:André Telles

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A Guido Fanti

Título original:Croire et détruire (Les intellectuels dans la machine de guerre SS)

Tradução autorizada da edição francesa, publicada em 200 por Librairie Arthème Fayard, de Paris, França

Copyright © 200, Librairie Arthème Fayard

Copyright da edição brasileira © 205:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marquês de S. Vicente 99 – o | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) 2529-4787 [email protected] | www.zahar.com.br

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication 20 Carlos Drummond de Andrade de la médiathèque, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères et du Développement International.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação 20 Carlos Drummond de Andrade da Mediateca, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e do Desenvolvimento Internacional.

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.60/98)

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Preparação: Diogo Henriques | Revisão: Eduardo Monteiro, Mariana OliveiraIndexação: Nelly Praça | Capa: Sérgio Campante Foto da capa: © Collaboration JS/Arcangel Images

cip-Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Ingrao, ChristianI39c Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista/Christian

Ingrao; tradução André Telles. – .ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 205. 

Tradução de: Croire et détruire (Les intellectuels dans la machine de guerre SS)Inclui bibliografia e índiceisbn 978-85-378-406-2

. Alemanha – História – Século XX. 2. Alemanha – História – Condições sociais. 3. Hitler, Adolf, 889-945. 4. Nazismo – Alemanha. i. Título.

cdd: 943.0874-886 cdu: 94(43)’9’

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Prefácio

Eles eram garbosos, brilhantes, inteligentes e cultos. São culpados pela morte de várias centenas de milhares de pessoas. Este livro conta sua história. Ele é fruto de uma tese de doutorado redigida entre 997 e 200, “Os intelec-tuais do serviço de informações da SS, 900-945”.*¹Sua finalidade era estudar um grupo de oitenta indivíduos com formação universitária, economistas, advogados, linguistas, filósofos, historiadores e geógrafos, alguns deles tendo seguido carreiras universitárias paralelamente a uma atividade de construção dogmática, vigilância política e informação interna ou externa, na esfera dos órgãos de repressão do Terceiro Reich – em especial do Serviço de Segurança (SD) da SS –, e que, em sua maioria, envolvem-se a partir de junho de 94 na tentativa nazista de extermínio dos judeus da Europa do Leste, no âmbito das unidades móveis de matança denominadas “Einsatzgruppen”. As escolhas científicas fundamentais adotadas naquela época subsistem nos dias de hoje.1

Ser um historiador francês do nazismo, formado em história pelos defensores de uma história cultural da crença e da violência, não foi indiferente à escolha de minhas ferramentas de análise. Em meados dos anos 980, um grupo de historiadores estabeleceu como objetivo revisitar a história da grande con-flagração matricial do início do século XX – internacional, interdisciplinar, atento às fontes mais diversas e, sobretudo, ao universo material produzido pelas sociedades europeias na Primeira Guerra com a formação das coleções históricas da Primeira Guerra Mundial de Péronne. Esse grupo de histo-riadores, entre os quais cumpre citar Jean-Jacques e Annette Becker, Gerd Krumeich, John Horne e Jay Winter, desempenhou um papel relevante na escolha do conjunto de ferramentas conceituais que orientou o presente livro.²

* Sobre o contexto historiográfico e sua evolução, reportar-se à bibliografia.

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Nesse aspecto, o papel determinante foi assumido por Stéphane Audoin- Rouzeau. Por seu trabalho sobre as culturas da violência, o universo infantil em guerra,³ o luto⁴ e os imaginários de guerra, ele se tornou o guia deste estudo, insistindo em dimensões determinantes e, ao mesmo tempo, deixando o jovem pesquisador que eu era totalmente livre em seus descaminhos. Graças a eles, percebi o quanto aquela guerra havia sido grandiosa, como sua dimensão apo-calíptica havia sido central, e isso em dois sentidos bem distintos: por um lado, ela constituíra uma revelação para o historiador e, por outro, ganhara efetiva-mente uma dimensão milenarista, seminal e matricial, para os intelectuais SS.⁵

A isso se somou a exploração de outros horizontes. A história das gran-des confrontações religiosas das épocas medievais e modernas e a leitura de Alphonse Dupront e, principalmente, de Denis Crouzet pareciam sugerir a possibilidade de outra abordagem da questão da crença e da violência; que o enunciado dos atores, longe de ser um falar vazio, substrato de mecanismos sociológicos inacessíveis aos próprios atores, constituía um caminho para que forjassem suas concepções.⁶ Apreender o nazismo como um sistema de crenças que se combinam em discursos e práticas específicos, decerto igualmente fruto de uma mecânica de políticas públicas feitas de impulsos e decisões, mas no fundo percorrido por emoções de outra ordem que não as apreendidas pelas ciências políticas e a sociologia, as quais, durante vinte anos de paradigma funcionalista, haviam constituído o acervo de recursos conceituais da historiografia alemã: foi este o ponto de partida de meu per-curso. Pois haviam permanecido fora do alcance dessas ferramentas o fervor e a angústia, o suicídio e a crueldade, a utopia e o desespero, o ódio…

Nenhuma grande originalidade, talvez, nessas escolhas: outros especialis-tas franceses em ciências humanas também haviam optado por abordagens alternativas e apresentaram trabalhos interessantes em meados dos anos 990. Édouard Conte e Cornelia Essner, por exemplo, publicaram La Quête de la race. Une anthropologie du nazisme,⁷ que sugeria importar recursos oriundos da antropologia social estruturalista para os estudos sobre o nazismo. Concen-trando-se nos imaginários da filiação e no casamento, bem como nas crenças raciais, nos rituais mortuários e nas práticas de colonização, Édouard Conte e Cornelia Essner mostravam quão rica em ensinamentos era a articulação entre discurso ideológico, política e comportamento. E emitiam sutilmente uma crítica ao funcionalismo radical dos historiadores alemães.

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Prefácio 11

O interesse essencial dos homens aqui estudados está, acima de tudo, no fato de haverem ao mesmo tempo produzido um discurso dogmático que permitia uma verdadeira análise de seu sistema de crenças e imposto, na prática, as consequências últimas desse sistema de crenças ao comandar unidades móveis de matança (“Einsatzgruppen”) que exterminaram os judeus da Rússia nos territórios invadidos da Crimeia, Ucrânia, Bielorrússia, Rússia e antigos Estados bálticos. Graças aos trabalhos de Denis Crouzet, empreendi uma releitura decisiva das práticas de violência nazistas. Em Les Guerriers de Dieu, ele postulava que o gestual da violência era, em si mesmo, uma lin-guagem que refletia o sistema cultural que o tornara possível, constituindo portanto um objeto em si, detectável a partir de ferramentas procedentes da antropologia – Françoise Héritier⁸ foi valiosa, assim como Véronique Nahoum-Grappe,⁹ Noëlie Vialles,¹⁰ Élisabeth Claverie¹¹ e Catherine Rémy¹² –, possibilitando o questionamento da relação com o humano, o animal, a cor-poreidade, a filiação e a crença.¹³ Daí a importação, para a história do nazismo, de interrogações oriundas da antropologia social. Foi então sob seus auspícios e equipado com essas ferramentas que se construiu o presente trabalho, e isto segundo três eixos.

Minha maior ambição era retraçar o que o historiador alemão Gerd Krumeich chamou de uma Erfahrungsgeschichte, uma história da experiência desses homens,¹⁴ e compreender em que medida as molduras da experiên- cia vivida foram capazes de modelar seu sistema de representações. Foi com esse intuito que bebi na herança dos historiadores da Primeira Guerra e me lancei no estudo da experiência infantil da guerra como experiência matri-cial marcada pelo selo de uma ferida narcísica coletiva que levava os atores a apreendê-la em termos apocalípticos e escatológicos.

Em segundo lugar, tratava-se de apreender a militância nazista como uma reação cultural a essa primeira experiência e como um objeto de estudo em consonância com uma antropologia histórica do crer. Em outras palavras, analisar o nazismo como um sistema de crenças “desangustiante”, cuja coe-rência entre discursos e práticas fosse apontada pelas ferramentas de análise e se encarnasse em percursos e carreiras.

Restava a experiência da aterradora viagem ao Leste, que se encarnava nas práticas genocidas no seio das Einsatzgruppen, bem como na participação em políticas de germanização e deslocamentos de populações, por sua vez

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marcadas por tensões utópicas e assassinas. Por fim, eu desejava concluir esse balanço estudando a percepção da derrota por esses homens e seu destino judiciário após a guerra.

Resumindo: tentei compreender como esses homens fizeram para crer e para destruir.

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parte i

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. Um “mundo de inimigos” (I)

A primeira experiência comum aos membros do grupo objeto deste livro foi a Primeira Guerra Mundial. Ela compõe o pano de fundo de sua infância, ainda mais na medida em que foi seguida, até 924, por vários anos de con-flagrações. Uma década de subversão do cotidiano, determinante, ao longo da qual os membros do grupo passaram da infância à adolescência.

Tentando dar conta da imensa produção retórica de combate, e também civil, após a Primeira Guerra, Stéphane Audoin-Rouzeau e Annette Becker observaram que o desejo de dizer e contar “sua” guerra inspirara um grande número de europeus dos séculos XIX e XX, levando-os a tomar pela primeira

– e não raro pela última – vez da pena para tentar transmitir a experiência matricial que fora a guerra para eles. Poder-se-ia, portanto, esperar que os Akademiker¹ SS, homens da palavra escrita, ao procederem a uma análise in-trospectiva, invocassem, de uma maneira ou de outra, sua infância na guerra. Ao contrário, eles calaram-se, e é esse silêncio que deve chamar nossa atenção em primeiro lugar.

A deflagração da guerra

Toda guerra abre uma fenda no lento desenrolar dos trabalhos e dos dias. De-certo permite que subsistam tempos e espaços preservados, mas afeta, direta ou indiretamente, todos os protagonistas. A Alemanha que se esfacelou em 94 não fugiu à regra. As crianças – salvo raras exceções – não foram nem combatentes nem trabalhadores. Portanto, os futuros SS não participaram do esforço da nação em armas. Em contrapartida, foram seus espectadores e atores centrais nas relações familiares abaladas com a partida dos homens: suas percepções advêm em primeiro lugar da esfera privada, a dos afetos e

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laços familiares. Nem por isso as sociedades ocidentais deixaram de optar por um controle infantil precoce por intermédio do sistema escolar e tam-pouco as crianças deixaram de ir à escola – desde a idade de cinco anos na Alemanha. Nesse sentido, a percepção do acontecimento adquire igualmente uma dimensão cultural e social. Como apreender a “experiência de guerra” dessas crianças?

A entrada na guerra implica a partida dos homens e a mobilização das populações. Às vésperas da declaração de guerra, nas grandes manifestações alemãs, as populações viviam na expectativa da resposta sérvia ao ultimato austríaco. A entrega dos jornais diários era ensejo para refregas, as pessoas espremiam-se para ter a primazia da evolução da crise. Mais tarde, a notícia da declaração de guerra provocou manifestações; porém, mais do que a ale-gria beligerante, haviam predominado a seriedade e a circunspecção. Aquela deveria ser encontrada em outras plagas, nas grandes zonas urbanas, onde se concentrava a maior parte das classes médias às quais pertencia a imensa maioria de nossos personagens. Isso significa que suas próprias famílias pos-sivelmente vivenciaram a entrada na guerra num espírito entusiasmado e determinado. Se nunca fizeram menção a isso posteriormente, convém entre-tanto notar que Jeffrey Verhey vê cristalizado nesse “espírito de 94” o fun-damento da vontade völkisch (etnonacionalista) de união nacional, vontade da qual os membros do grupo tornaram-se em seguida adeptos incondicionais.² Seria então insensato pensar que, a despeito do silêncio sob o qual passariam a entrada na guerra em seus escritos posteriores, esta exerceu uma impressão duradoura sobre eles?

O segundo fato proeminente da guerra diz respeito à experiência da perda e do luto dos combatentes, incluindo o sofrimento gerado pelo ferimento de um parente. Essa marca, quase intangível em sua falta de registro, sem dúvida deixou marcas profundas. Postulemos, junto com os demógrafos, que cada morte da Grande Guerra era cercada no mínimo por dois círculos de sociabilidade concêntricos compostos de aproximadamente dez pessoas cada um. Considerando que o império alemão perdeu 2 milhões de soldados, são 8 milhões de pessoas diretamente afetadas pelo luto. Sem falar nas 36 milhões de pessoas que foram afetadas nos círculos de sociabilidade mais afastados.³ Metade da população alemã, portanto, teria passado pela experiência do luto familiar. De toda forma, esse cálculo não inclui as reações ao anúncio do

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ferimento de um combatente amigo, a expectativa por notícias do desapare-cido – parte integrante do processo de luto –,⁴ encontrado ou não nas listas de prisioneiros. Tudo, assim, contribui para tornar a experiência da perda – temporária ou definitiva – dos homens enviados ao front um trauma de massa.

Restam as privações alimentares. Embora tenham afetado todas as so-ciedades beligerantes, em nenhum outro lugar foram mais agudas do que na Alemanha. Com efeito, no verão de 94, o Reich, sufocado pelo bloqueio, viu-se de certa forma compelido à autarquia. Não obstante, naquele ano a Alemanha parecia ter alcançado uma relativa autonomia em matéria de ali-mentos. Os víveres básicos eram produzidos em mais de 90% no território do Reich.⁵ Em todo caso, essa relativa independência alimentar era condicionada pela cobrança dos impostos sobre a produção agrícola, os quais eram aplica-dos na aquisição maciça de insumos e na manutenção de uma mão de obra numerosa nas plantações. Além disso, sobretudo a partir de 96, os gêneros alimentícios eram destinados prioritariamente ao exército, o que fez com que as cidades enfrentassem severas dificuldades de abastecimento. Em Berlim, a queda nas rações diárias ganhou um aspecto bastante grave com a escalada de preços durante a guerra. Se as rações de batata e açúcar conservaram-se em níveis suficientes para que a escassez não se instalasse, a carne, os peixes e as substâncias gordurosas, gêneros sensíveis na medida em que representavam o cardápio alimentar típico das classes médias, praticamente desapareceram das prateleiras, abrindo espaço para um amplo mercado negro. A partir de 96, os alemães tiveram literalmente a sensação de ganhar o “pão de cada dia” com seu trabalho. Se o bloqueio aliado não gerou problemas de abasteci-mento para a Alemanha, contribuiu para aumentá-los ao provocar pânico nos meios populares e na classe média.⁶ Terminada a guerra, em todo caso, ele foi percebido como um ataque direto dos Aliados contra as populações civis, como uma guerra contra as mulheres e crianças.⁷ A fome, o luto e a sensação de lutar pela sobrevivência cotidiana constituíram assim os três elementos principais da experiência infantil de guerra, ainda mais se considerarmos que eram inscritos numa leitura específica do cotidiano.

Com efeito, a sociedade alemã, analogamente às outras sociedades euro-peias em guerra, elaborou um sistema de representações que dava sentido ao conflito. Quando entraram em guerra, os alemães consideravam que a luta travada na Bélgica e na França era de natureza profundamente defensiva: se o

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Reich devia invadir a Bélgica para pôr em prática o plano Schlieffen, era com a finalidade de impedir a Inglaterra de invadir o território alemão usando a Bélgica como cabeça de ponte. Pautando-se por esse modelo, jornais, crônicas políticas e cartas dos soldados construíam a imagem de um conflito no qual a Alemanha se vira lançada a contragosto, e lutando exclusivamente por sua segurança. A canção “A guarda do Somme”, que fez relativo sucesso junto às tropas opostas aos ingleses durante a grande batalha, atesta de fato esse imagi-nário.⁸ O exército alemão lutava diretamente no solo francês para proteger o território da pátria. Susanne Brandt mostrou como as imagens de destruição, embora ilustrando os danos causados pela guerra, expunham sempre um inimigo que, em caso de derrota alemã, promoveria estragos similares no território nacional.⁹ A guerra era uma questão de segurança: em nome da vitória final, cumpria romper a estratégia de cerco adotada pela Entente. E os repórteres não se calavam: “Eles [os civis franceses] não sabem ou fingem ignorar que foram as classes governantes de seu país que, em agosto do ano precedente, tentaram penetrar em nosso território e nos infligir o destino que hoje é o deles. A melhor defesa é o ataque.”¹⁰

Essa concepção combinou-se, durante o verão de 94, com os aconteci-mentos no Leste. De fato, com a declaração de guerra, as tropas cossacas in-vadiram a Prússia Oriental, provocando um êxodo em massa das populações locais. As barbaridades geraram uma onda de pânico que só fez amplificar as representações originadas com a invasão da Bélgica. Tanto no Leste como no Ocidente, invasora ou invadida, a Alemanha lutava para defender sua Kultur, seu território, cercado e ameaçado por um “mundo de inimigos”.¹¹

Um dos fatores que alimentava a concepção de um Reich cercado e con-denado a uma guerra total defensiva era a imagem desumana do inimigo que se cristalizara desde os primeiros dias do conflito.¹² Os belgas e russos, princi-palmente, eram associados a diversos atos de crueldade cometidos contra os soldados alemães feridos e os civis das regiões invadidas. As unidades alemãs que invadiam os territórios da Bélgica e do norte da França foram assim per-corridas por ondas de pânico que as levavam a acreditar na realidade do trata-mento dispensado a seus companheiros feridos por civis, mulheres e crianças, o que “provava” a desumanidade do inimigo e legitimava as execuções sumárias promovidas pelas tropas alemãs. Esse “corpo de provas”, e isto é o essencial, foi amplamente difundido na Alemanha por intermédio da imprensa, das imagens

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e da escola. A propósito, eram inúmeras as imagens que insistiam na sujeira dos russos e em sua debilidade mental, fruto da inferioridade cultural da população: um imaginário quase colonial, feito de um sentimento de superioridade e de preconceitos raciais, presidia portanto os projetos do Oberost, a administração militar alemã na frente do Leste.¹³ A Primeira Guerra era percebida como uma luta defensiva na qual se jogava o destino de uma Alemanha às voltas com um inimigo dotado de ubiquidade, um inimigo que se distinguia pela desu-manidade de seus métodos de luta, desumanidade que, pelo menos em parte, pertencia à esfera de uma hostilidade de essência étnica, biológica.¹⁴

Embora defensiva, a Primeira Guerra nem por isso deixava de ser aureo-lada pelos beligerantes com grandes expectativas, que davam sentido às pro-vações sofridas. Cumpria, segundo os observadores, atravessar os infortúnios do tempo. A guerra como calvário, como travessia rumo a uma nova era: era esta uma das temáticas que conferiam sentido à conflagração, tanto na frente de batalha quanto na retaguarda.¹⁵ O historiador Friedrich Meinecke, por exemplo, revitalizou a metáfora do Ver Sacrum romano, ritual do sacrifício humano anunciador da fertilidade de uma nova primavera,¹⁶ para ilustrar a matança por ocasião da batalha da Flandres. Foi de fato a grande expectativa milenarista que conferiu sentido à hecatombe:

Nosso Ver Sacrum repousa agora nos canais do Yser, onde os jovens regimentos

de reserva dos voluntários de guerra deram o assalto. Seu sacrifício para nós

significa uma nova primavera sagrada para toda a Alemanha.¹⁷

No calor das próprias hostilidades, os soldados forjaram o mito do campo de batalha como local de iniciação.¹⁸ Um jovem professor de liceu, veterano dos movimentos de juventude, tentou encontrar as palavras adequadas para exprimir isso numa carta à mãe, datada de 26 de maio de 95:

Querida mãe, sinto-me na obrigação de escrever uma carta toda especial e tentar

exprimir o que eu gostaria de dizer. Como uma espécie de consolação, já que

… Erich também se tornou um daqueles que ajudaram a construir o futuro de

uma grande Alemanha com o sangue e a força de seu coração.

A guerra nos mostrou com toda força que a nossa vida tinha um sentido

completamente diferente do que o que acontece nos caminhos normais de

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uma vida familiar e burguesa. Ela pertence ao âmbito de um objetivo gran-

dioso e sagrado. Esse objetivo, não o conhecemos. Ele foi implantado em nós

desde a eternidade e nos conduz para alguma coisa grandiosa e eterna. Pres-

sentimos isso.

Neste momento Deus traça gloriosos caminhos para a história mundial, e nós

somos os eleitos, o instrumento eleito. Devemos realmente, verdadeiramente,

ficar felizes por isso? À minha volta tudo vicejou e floriu, e os pássaros estão

exuberantes de alegria na luz. Como será mais bela e mais grandiosa a grandiosa

primavera pós-guerra!¹⁹

A imanência da esperança e o imaginário milenarista²⁰ aqui sugerido revelam-se com mais força ainda na medida em que Walther I é oriundo da Bildungsbürgertum (burguesia culta), que acompanhou o consentimento das sociedades europeias ao conflito. Ele militou naqueles movimentos de juven-tude que exprimiam antes da guerra um desejo de renovação social e intelec-tual: reinvestido, esse desenho dá seu sentido ao conflito e opera a fusão entre o fervor guerreiro e os conteúdos militantes dos Wandervögel²¹ (“pássaros migratórios”). Fato capital, o autor não se distingue dos membros do grupo que estudamos senão pela data de nascimento: sua militância precoce, seu pertencimento às classes cultivadas e sua grande juventude conferiam-lhe um perfil bem próximo daquele dos jovens adolescentes que haviam ficado para trás. Porém, os poucos anos que os separam explicam por que, ao contrário dos futuros intelectuais SS, ele fez a experiência do fogo.

Essa carta, a centésima sétima em dez meses escrita por esse rapaz à sua família,²² ilustra igualmente a intensidade da comunicação entre o front e a retaguarda. O vaivém contínuo do correio, que transmitia esperança, an-gústia, dor, expectativas milenaristas e preocupações cotidianas, explica por outro lado a grande porosidade entre o sistema de representações dos civis e o de seus parentes e amigos estacionados nas trincheiras. Se a experiência do combate, do assalto e da violência interpessoal permaneceu, em ampla medida, escamoteada, o consentimento ao conflito, suas hesitações, crises e recidivas circularam durante toda a guerra entre o front e a retaguarda.²³ Nessa luta gigantesca contra um inimigo impiedoso – uma vez que, pelo menos em parte, marcado pelo selo da barbárie e da bestialidade –, jogava-se o destino da nação. Em muitos desses núcleos ricos e cultos, que constituíam

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sociologicamente o foco do consentimento alemão no conflito, a guerra fun-cionou como uma forma derivada de utopia milenarista.

Essas questões eram demasiado importantes para os alemães para que pudes-sem manter as crianças afastadas. E, de fato, a Primeira Grande Guerra foi o primeiro conflito no qual as crianças foram “mobilizadas”, no sentido de que foram objeto de um discurso específico que lhes explicava a guerra, seu sentido e os inimigos. Se por um lado a experiência de guerra passava – de uma maneira impossível de estimar no caso geral – pelo diálogo entre pais e filhos, por outro ela também irrompeu nos sistemas de percepção e repre-sentação das crianças e adolescentes por intermédio de brinquedos, livros e jornais. No outono de 94, a indústria alemã de brinquedos, a primeira do mundo em produção e em parte do comércio mundial, entrou no diapasão da cultura de guerra.²⁴ Algumas firmas, como a Otto Maïer Verlag – futura Ravensburger – ou o célebre fabricante de trens elétricos Märklin, produzi-ram brinquedos em linha direta com a guerra, até mesmo com o combate. A violência era, assim, “banalizada”, para repetir a expressão cara a George Mosse:²⁵ os brinquedos, embora tornando-a abstrata, introduziram-na no cotidiano das crianças. Os fabricantes, aliás, não erraram quanto aos dilemas culturais em jogo. No fim de 94, seu órgão oficial declarava:

A indústria dos brinquedos é erroneamente classificada entre as indústrias su-

pérfluas. Ela tem sua missão específica na guerra, já que é importante, por meio

dos brinquedos, incutir nas crianças a evolução dos últimos acontecimentos e

lhes inocular [verimpfen] o espírito reto, nacional e patriótico.²⁶

O esforço de pedagogia empreendido pela sociedade e o Estado traduz- se igualmente por um discurso de legitimação do conflito prodigalizado às crianças e aos adolescentes no âmbito da escola e do liceu. Por exemplo, livros didáticos, cadernos de exercícios, aulas nas universidades começaram a falar da guerra, de suas evoluções, de seu sentido, adotando um discurso adaptado, a serviço de objetivos precisos. O ideal perseguido pelos pedagogos era o de uma juventude circunspecta e preocupada, uma juventude cheia de gratidão pelos heróis que davam suas vidas no front para defender a nação: “Mobiliza-ção dos espíritos, mobilização dos corações”, dizia um dos textos a respeito

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“daqueles que ficavam na retaguarda”…²⁷ Esse esforço foi encampado em 97 pelo sistema educativo via “cursos patrióticos”, verdadeiros condensados da cultura de guerra. Essa brusca generalização do esforço mobilizador, per-ceptível no ensino primário e secundário com a institucionalização de uma pedagogia do conflito, constituía o âmbito de transmissão privilegiado de uma moral heroica aplicada ao cotidiano das crianças e dos jovens.²⁸ Estes se viam incitados a acompanhar as peripécias do conflito, a comungar em pen-samento com os combatentes, a agir de maneira grave e responsável na vida cotidiana. Primogênito da família, o adolescente devia por fim transformar- se em herói do cotidiano, capaz de amenizar a ausência do pai e/ou irmãos. Se o soldado devia ser admirado, o discurso todavia não incitava ninguém a imitá-lo partindo para o front, ainda que a fantasia da criança-herói, tão vivaz na França, não deixasse de ter equivalentes na Alemanha: algumas ilustrações de álbuns juvenis mostravam crianças ou adolescentes vigiando sozinhos a fronteira contra o inimigo russo e francês reunido,²⁹ enquanto outras estampavam criancinhas chorando de frustração por não poderem partir com os pais, e outras, ainda, exibiam a criança sonhando com o uni-forme.³⁰ Todas insistiam na importância do papel do front do interior, front no qual a criança tinha seu lugar.

O silêncio dos Akademiker

Entretanto, a despeito da dimensão tão intensa do conflito e do esforço mo-bilizador desenvolvido pelo Estado, os membros do grupo que tiveram opor-tunidade de contar sua infância e a guerra não fizeram nada disso. Quase todos eles, ao ingressarem na SS ou por ocasião de seu casamento, foram obrigados a redigir um relato de vida, misto de curriculum vitae e texto pes-soal em que eram descritos os contextos familiares, o desenrolar dos estudos e, às vezes, até mesmo o universo afetivo dos narradores. Nem que fosse de maneira fugaz, esses Lebensläufe teriam logicamente abordado a experiência de guerra. Ora, apenas cinco deles evocam um ou outro aspecto dela. E isto, quase sempre de modo contingente, para informar sobre a morte do pai, o êxodo ou o cativeiro.

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Ernst Turowsky nasceu em 906, numa família de fazendeiros, perto de Johannisburg, na Prússia Oriental. Quando a guerra explode, ele passa pela experiência da invasão russa. Sem se estender sobre o assunto, menciona seu status de refugiado de guerra e o alistamento do pai. Além disso, Turowsky explica que seu percurso escolar foi interrompido por cerca de dois anos em seguida à invasão e declara só ter retornado às suas terras com a família em 922, isto é, segundo seus próprios termos, “após o retorno de [seu] pai da guerra e a estabilização da situação nas fronteiras”.³¹ São estes os únicos vestígios da experiência de guerra que ele admite expor.

O candidato SS, embora atendo-se rigorosamente aos fatos, não se sente compelido a falar das recordações da criança de oito anos que ele era. Por outro lado, sabemos que a cidade natal de Turowsky, Johannisburg, foi um dos epicentros das atrocidades cometidas pelos cossacos e do movimento de pânico que se sucedeu. Em conformidade com uma prática que se difundiu nos primeiros meses da guerra, o governo alemão colheu sistematicamente os depoimentos relativos aos atos de brutalidade das tropas russas. Embora grande parte fosse da lavra de soldados e prisioneiros alemães que haviam logrado fugir, outra série de declarações foi feita por civis, homens e mu-lheres, que haviam assistido – ou diziam haver assistido – às barbaridades inimigas. Os relatos de estupros, mutilações e execuções sumárias, tanto de civis quanto de prisioneiros, eram assim propagados pelos canais insti-tucionais clássicos dos prospectos, mas também sob a forma de rumores, à medida que os refugiados retornavam ao território alemão.³² Turowsky pertencia precisamente a essa categoria de indivíduos que se viram mo-mentaneamente na esfera do primeiro círculo da guerra. Em lugar algum, entretanto, o candidato SS faz menção às atrocidades ou ao movimento de pânico que presidiu ao êxodo. Em lugar algum, tampouco, dá informações sobre o estado de espírito de sua família. Em lugar algum, por fim, explica os meios de subsistência dessa família de refugiados, que perdeu terras e emprego durante os longos anos de exílio. Seria irracional pensar que, apesar do silêncio do menino tornado adulto, o êxodo de 94 houvesse sido vivenciado por sua família com uma intensidade traumática de tal ordem que somente oito anos mais tarde esta resolveu regressar à Prússia Oriental? Mas Turowsky apaga esse aspecto, como se o exílio não houvesse exercido nenhuma influência sobre ele.

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Se a experiência de guerra de Ernst Turowsky foi por um lado a do refu-giado e da vítima civil, constituiu por outro a matriz de uma identidade con-figurada pela fronteira: nascido na Prússia Oriental, cercado por poloneses e russos, Turowsky escreveu sua tese de doutorado em história medieval sobre os problemas da fronteira entre poloneses e alemães no século XV.³³ Como não pensar que aí se forjou um interesse científico ligado à vivência juvenil da guerra? Essa tese, autêntica tentativa de legitimação no passado da iden-tidade alemã das terras limítrofes, não pertenceria à esfera do engajamento numa prática de defesa territorial, defesa de tipo intelectual, decerto, mas em consonância com aquela “mobilização intelectual” (geistige Mobilmachung) instaurada pela Bildungsbürgertum por ocasião da Primeira Grande Guerra?³⁴ Embora a vivência traumática da guerra não se exprima e a guerra não seja na maior parte do tempo sequer mencionada, o silêncio não representa a insignificância da experiência. Ao contrário, o silêncio não é uma ausência, mas um indício: o do trauma.

Heinz Gräfe, por sua vez, é filho de um livreiro saxão e, por conse-guinte, nascido num ambiente culto. Seu pai, mobilizado logo no início da guerra, foi morto no front, na Flandres, em 94. Ainda que seus Lebensläufe estejam entre os mais extensos, esse fato só é mencionado num deles, e apenas entre parênteses, porque se tratava de informar a profissão paterna. Logo, ignoramos tudo acerca do que significou a morte do pai para Gräfe. Em todo caso, ele escreve que sua mãe arranjou um emprego nos Correios, o que implicava o abandono da livraria da família e a experiência da perda de status social e rendimentos. Mas Gräfe não toca no assunto, nem em seu luto, nem em sua vida durante a guerra, embora possivelmente tenha passado muito tempo sozinho em virtude da ausência da mãe, obrigada a trabalhar. Em contrapartida, esmiúça seu percurso após 98, detalhando seus problemas disciplinares na escola e oferecendo a imagem de um ado-lescente – tinha então catorze anos – perturbado, que não obstante termina por compensar o atraso escolar iniciando uma trajetória política sob os auspícios da recusa de Versalhes e Weimar.³⁵

Os exemplos de Ernst Turowsky e Heinz Gräfe, portanto, indicam que a guerra pode estar presente em estado vestigial nos Lebensläufe, mas que sua dimensão traumática impediria dedicar-lhe discursos mais extensos. Nesse aspecto, eles comportam-se simplesmente como toda a sociedade alemã, que

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discute de maneira apaixonada tanto as origens como as consequências do conflito³⁶ – a questão das responsabilidades –, mas não seu desenrolar, atitude coletiva próxima do recalcamento.

Mais perturbadora ainda é a ausência universal de alusão à derrota alemã de 98. Diferentemente da própria guerra, esta jamais é mencionada, mesmo quando se trata de pessoas obrigadas a abandonar suas casas em decorrência do armistício ou dos tratados.³⁷ Nos Lebensläufe, a guerra existe nos fatos mas não no discurso; a derrota, por sua vez, não tem existência neles, nem factual nem discursiva. Entre as duas abordagens do acontecimento, há a mesma diferença de natureza e grau que entre o recalcamento e a rejeição.

Esse trauma, por certo quase inexprimível no entreguerras, chegou a ser ob-jeto de uma tentativa de expressão ao longo do pós-Segunda Guerra Mundial. Werner Best, por exemplo, ex-chefe adjunto do Escritório Central de Segu-rança do Reich (RSHA),³⁸ buscou isso, em 947, na prisão. Seu biógrafo, Ulrich Herbert, aponta corretamente que esses relatos de infância explicam tanto a infância real vivida por Werner Best quanto a estilização geracional que ele queria imprimir a seu percurso.³⁹ Em seus relatos de vida, o ex-alcaide nazista opera sempre uma cesura bastante nítida entre os anos pré e pós-94. O ano da guerra é, desde 4 de outubro, o do luto. Seu pai, mobilizado no início do conflito, morre em consequência de um ferimento num hospital em Trèves.

A morte como herói [Heldentod] de meu pai me deixou sozinho quando eu tinha onze anos. Minha mãe desmoronou e procurou mais apoio junto a seus filhos do que ela podia prodigalizar-lhes. Fui, em virtude disso, criado na tradição familiar mais do que pela própria família … . Meu pai nos deixara uma carta na qual nos recomendava nossa mãe e nos exortava a nos tornarmos homens, alemães e patriotas. Aos onze anos, eu me sentia então responsável por minha mãe e meu irmão caçula. E, a partir dos quinze anos, me senti responsável pela reorientação da Alemanha. Em minha juventude, conheci apenas a seriedade, as preocupações, o trabalho e a responsabilidade. … As tribulações financeiras – minha mãe não tinha nenhuma pensão de viúva – também escureceram minha juventude.⁴⁰

O que Best se esquece de dizer aqui, e que menciona em seu relato de 965,⁴¹ é que seu avô paterno faleceu poucas semanas depois da morte de seu

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pai: os lutos se superpõem, o primeiro falecimento havendo talvez precipi-tado o seguinte.⁴² Da mesma forma, Werner Best nem sempre consegue falar da derrota de 98. Sugere-a, parcialmente, dizendo que se sentia “responsável pela reorientação da Alemanha” desde a idade de quinze anos, mas não fala de sua reação face à catástrofe. Seria preciso aguardar até 965:

Como o fim da guerra, a Revolução de Novembro – mesmo na forma extrema-

mente atenuada que teve em Mainz – e sobretudo a ocupação da cidade haviam

sido surpreendentes e dolorosas!

O fato de que todos os sacrifícios haviam sido inúteis parecia-me inimaginável.

E quando as condições do armistício de Compiègne foram conhecidas, eu estava

de tal forma persuadido de que elas podiam ser aceitas e de que a guerra devia

prosseguir que – do alto dos meus quinze anos – decidi com um amigo ir até o

Reno para me juntar a uma tropa que daria sequência ao combate.⁴³

Com cerca de cinquenta anos de distância, a guerra revela-se insuportável, pois os sacrifícios imensos e consentidos – tanto por ele próprio quanto pela população – foram em vão. Em outro texto, ele emprega o termo umsonst (“em vão”) nas mesmas circunstâncias, identificando-o dessa vez exclusiva-mente com a morte do pai. É o complemento do luto e da derrota, da dor íntima e do trauma coletivo, que torna o inominável insuportável. A recusa da derrota encontra uma expressão particularmente clara no jovem estu-dante: a derrota, não nomeada, inominável, é igualmente inimaginável, o que torna evidente o prosseguimento das hostilidades. E, no fim das contas, o que Best julga mais doloroso é sem dúvida o fato de que o inimigo ocupa sua cidade. Após ter comungado com os soldados que, durante quatro anos, haviam levado a guerra a território inimigo, Best percebia logicamente aquela ocupação como uma invasão, ao passo que ela acontecera após a cessação das hostilidades.⁴⁴ Isso é a prova da inexistência da derrota em sua consciência. A primeira frase de seu texto não dizia, no fundo, as palavras “fim da guerra”, ao mesmo tempo que negava sua significação real, a derrota?

Imaginário de prosseguimento da luta e violência das emoções: estas pa-recem ser as percepções de uma derrota que não é mencionada senão para ser imediatamente repelida até mesmo por um imaginário inteiramente modelado segundo a forma da cultura de guerra. Além do luto e de suas consequências

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econômicas e sociais, o depoimento de Best descreve sua atitude durante a luta, confessando expressamente ter “acompanhado com interesse agudo as peripécias do conflito e sentido o maior trauma de sua vida em virtude de não ter podido lutar pela vitória alemã”.⁴⁵ Em 947 ou 965, esses relatos mostravam invariavelmente uma criança madura, grave, responsável, de comportamento em conformidade com os discursos de mobilização das crianças desenvolvidos durante a guerra,⁴⁶ que, embora lhes apresentando modelos de crianças heroi-cas, mantinham a interdição do heroísmo do campo de batalha para os jovens, relegando o ideal da criança-soldado à esfera da fantasia.

Por outro lado, esses relatos de guerra e derrota expõem a invasão do campo político e militar pelas paixões. Esse processo deve ser atribuído ao imenso investimento afetivo das populações durante a guerra. Emolduradas por um discurso de legitimação do conflito onipresente, estas não podiam perceber o desfecho do conflito senão como um choque brutal. De acordo com o relato de Werner Best, entretanto, esse sentimento atenua-se em prol de uma cadeia de acontecimentos numerosos em meio aos quais a derrota não passa do elemento deflagrador. Se Best cita em primeiro lugar o armis-tício, também insiste na revolução e na ocupação. Na realidade, esta é uma constante nos narradores alemães: eles não conseguem conceber a derrota isoladamente. Mil novecentos e dezoito é ao mesmo tempo a derrota, as re-voluções comunistas, a invasão francesa, o desmembramento dos territórios do Leste, os Putschs separatistas. O de novembro não pode ser isolado do 9, tampouco da ocupação da Renânia e depois do Ruhr em 92-24. Ora, se a guerra e a derrota são objeto do silêncio, como dissemos, em contrapartida os tumultos que se lhes sucederam irrompem com força.

Os “anos de turbulência”: uma experiência de guerra?

Os Lebensläufe quase sempre mencionam uma participação ativa num ou noutro período turbulento que a Alemanha conheceu após 98. A narração de Richard Frankenberg, futuro professor e oficial de informações do RSHA Amt III B encarregado da vigilância das relações interétnicas nos países nór-dicos, oferece uma espécie de inventário dos acontecimentos que marcaram aqueles anos:

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… em Dortmund, durante o Putsch [ilegível], participei dos combates contra o

Exército Vermelho (milícia de moradores de Dortmund, ordenança no corpo

franco Epp). Em 99, cofundador da Liga Nacional da Juventude de Dortmund.

Em 99, cofundador da Liga dos Jovens Nacionais. …

Em 923, durante a ocupação do Ruhr, [ativo] na organização do serviço de

propaganda e chefe do serviço do combate renano no Deutsche Hochschulring.⁴⁷

Em Flensburg, colaborador encarregado da política de fronteiras na Liga

do Schleswig-Holstein. [ativo] como professor em [Arg ilegível] em Schleswig-

Holstein separado [da Alemanha e sob a guarda da Dinamarca (NdT)*2 ] 929: via-

gem a Flandres para encontrar o chefe dos nacionalistas flamengos. Em 930,

viagens à Finlândia, Estônia e Lituânia. Em 93, viagem à Alsácia para estudo

do movimento autonomista. Em 933, viagens a Memel e Danzig. No Schleswig

do Norte, atividade política de fronteira importante, chefe dos scouts alemães

do Schleswig do Norte.⁴⁸

Portanto, Richard Frankenberg desenvolveu uma atividade política pro-teiforme, a princípio lutando contra os comunistas, depois engajando-se nas milícias armadas. Em seguida, adere à resistência passiva e ao trabalho de informação contra os franceses por ocasião da ocupação do Ruhr, terminando por trabalhar pela preservação da germanidade em todas as comunidades ale-

mães separadas do Reich pelos tratados do subúrbio parisiense.**3A exemplo de Frankenberg e de Best, a grande maioria dos membros do grupo conheceu, durante a infância ou adolescência, uma das dimensões das crises políticas atravessadas pela Alemanha. Ou uma mudança forçada, como no caso de Karl Burmester, cujo pai, pastor no Schleswig, emigrou em 920, pois “se recusava a virar funcionário dinamarquês”⁴⁹ e “desejava dar uma educação alemã a seus sete filhos”.⁵⁰ O estudante Georg Herbert Mehlhorn, que seria chefe da administração do SD entre 932 e 937, ingressou em diversas organiza-ções nacionalistas paramilitares. Desde a idade de dezesseis anos, Mehlhorn, encaixando-se no mito da criança-herói sugerido pela literatura de guerra

* NdT indica complemento do tradutor do texto citado. ** Expressão genérica que designa os tratados de paz assinados pelas potências vitoriosas com as potências vencidas depois da Primeira Guerra Mundial. O nome advém do fato de esses tratados terem sido firmados nos diversos subúrbios de Paris, entre eles Versalhes. (N.T.)

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para crianças, participou das ações de camuflagem de armas dirigidas contra a Comissão aliada de desarmamento.⁵¹ Embora muito jovem para participar diretamente dos combates das milícias alemãs contra os grupos poloneses, reagiu à ameaça de anexação que pairava sobre a Silésia com um trabalho clandestino de resistência passiva.

Reinhard Höhn, futuro professor de direito nas universidades de Iena e Berlim e futuro chefe do SDHA II/ de 93 a 939, não se limita ao combate e à militância:

Fiz estudos no liceu em Meinigen e desenvolvi certo talento político precoce.

Comecei pela primeira vez o combate contra a canalha e a ralé como adjunto,

dirigindo então o círculo dos jovens da Turíngia do Sul. Atuei nos movimentos

de juventude até o fim do secundário. Nessa época aconteceram os Abwehrkämpfe

contra o comunismo. Participei desses combates e, em 922, entrei na Deuts-

chvölkische Schutz- und Trutzbund.⁵² Fui preso … .

Durante a interdição do NSDAP, tive participação ativa no Jungdeutsch Orden,

que tentava então unificar as forças völkisch na Baviera. Morei então dois anos e

meio em Munique … . Dirigi então pela primeira vez um serviço de informações

e lutei contra os complôs separatistas.⁵³

Os inimigos – comunistas e separatistas –, qualificados de “ralé” e “ca-nalha”, a dimensão defensiva do combate e a extrema juventude de Höhn quando começou a “lutar” traem a conservação intacta da cultura de guerra nascida do primeiro conflito mundial. Em seus Lebensläufe dos anos 930, Werner Best insiste em sua atividade polivalente durante os “anos de turbu-lência”. Seu ativismo precoce, sua participação na fundação da Deutschvölkis-che Schutz- und Trutzbund, no braço do Jungnational Partei de Mainz, sua militância no Deutsche Hochschulring são ali minuciosamente dissecados. Não obstante, ele continua a passar sob silêncio as concepções que presidem essa militância.

É num panfleto do Deutsche Hochschulring lançado no momento da invasão francesa da Renânia que Best desvenda suas motivações profundas:

Komilitonen [camaradas]! Eis a guerra mais uma vez. O inimigo está no coração

da Alemanha. … Todo francês, todo belga é nosso inimigo, membro de um

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povo que se alijou de todo direito e toda moralidade. Todo alemão que lhes

der qualquer apoio, tolerá-los em sua casa, tratá-los como iguais, tombará sob

o golpe da Vehme [organização secreta que planejava assassinatos políticos].⁵⁴

O imaginário de guerra acha-se explicitamente no âmago das representa-ções mentais. A intervenção franco-belga, motivada por considerações finan-ceiras,⁵⁵ é comparada a uma invasão sem declaração de guerra. O panfleto delineia um inimigo agindo traiçoeiramente, o que justifica a afirmação se-gundo a qual ele “extrapolou todo direito e toda moralidade”. E lança final-mente um apelo à resistência, que, sob tais auspícios, não pode ser senão um combate autêntico. Best revela o que está em jogo em dois artigos, publicados num jornal renano:

No entanto, a decisão de resistir está presente. Mas a Renânia não pode chegar

a isso senão apoiada por um Reich corajoso e resoluto. Os derrotistas devem

passar perante um tribunal de guerra ou tombar sob os golpes da Vehme, pois

apunhalam à sorrelfa nossa frente de luta ocidental … . Em 4 de fevereiro, os

franceses entraram em Baden. Seu objetivo é dividir a Alemanha em três partes,

uma, a maior possível, a oeste e sob protetorado francês, um Sul influenciado

pela França e um resíduo prussiano, destinado aos apetites dos poloneses. O

desfecho da guerra mundial acontece hoje. Trata-se de empenhar nele nossas

últimas forças, físicas e principalmente morais …⁵⁶

É vital o que está em jogo na luta, pois trata-se de enfrentar um exército francês impelido por uma vontade de destruição da Alemanha. A distribuição em zonas de influência múltiplas significaria, segundo o estudante Best, o fim da Alemanha, como Estado e como nação. Desde o início do texto citado, o ativista exprime essa ameaça de desaparecimento nacional com grande precisão e clareza:

Eis-nos confrontados com um ambicioso plano francês de extermínio [Ver-

nichtungsplan]. Nosso governo está, graças a Deus, determinado à resistência.

Agindo dessa forma, faz tão somente o que é possível e concebível. O povo, por

sua vez, está imbuído da mesma vontade. Em todo caso, a social-democracia

teme a união nacional e promove sabotagens onde pode. Trata-se agora de es-

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clarecer para o nosso povo as consequências e a invariabilidade do plano de

extermínio francês. Resistência e combate ou aniquilamento [Vernichtung] sem

misericórdia! Para nós, mais que nunca, só vale uma coisa: estar preparado,

isso é tudo.⁵⁷

Confrontado com o que lhe parece ser a fase final de um plano calcu-lista, Best descreve com veemência os objetivos finais da invasão francesa. Os Akademiker se engajam nas milícias de bairro, onde os corpos francos interiorizaram amplamente essas ideias.⁵⁸ Essa angústia quase apocalíptica não teria constituído o cerne do imaginário que presidia o comportamento dos membros do grupo durante esses “anos de turbulência”? Já não estaria no âmago da cultura de guerra cristalizada durante a grande conflagração de 94-8? Sperrfeuer um Deutschland, o livro de Werner Beumelburg que tratava a Primeira Guerra como um “combate decisivo” contra a “vontade de aniquilamento” da Entente, estuda seu teor, o que explica seu imenso sucesso nas livrarias entre 929 e 94.⁵⁹

A cristalização da crença na extinção, a longo ou curto prazo, da Ale-manha – como entidade estatal, decerto, mas igualmente como entidade biológica – parece então, em última análise, ter constituído o cerne das re-presentações mentais da Primeira Guerra e dos “anos de turbulência”. Sem dúvida, nela residiu a própria essência da experiência traumática inicial dos membros do grupo, experiência tão dolorosa que tornava praticamente im-possível qualquer evocação da infância. Já adultos, ressignificando a guerra mediante a Abwehrkampf, eles conseguiram, ao menos em parte, exteriorizá-la. A intensidade de sua percepção parece assim ter constituído uma dimensão capital do engajamento dos Akademiker.