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9 Adriano Pessoa da Costa * Gina Vidal Marcílio Pompeu ** CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E DESMONETARIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL INTERAMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS AND DEMONSTRATION OF CIVIL LIABILITY CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS Y DESMONETARIZACIÓN DE LA RESPONSABILIDAD CIVIL Resumo: A centralidade do ordenamento brasileiro repousa na pessoa hu- mana. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva dos direitos fun- damentais, força motriz do fenômeno da constitucionalização do direito privado. No atual cenário, impõe-se uma reconfiguração fun- cional da responsabilidade civil, na esteira do que já ocorre com ou- tros institutos privatísticos - como o contrato, a família e a propriedade. Este trabalho demonstra que, no panorama atual de interação entre o direito privado e o direito constitucional, a técnica tradicional da re- paração exclusivamente monetária deve ser repensada em prol de mecanismos alternativos aptos a proporcionar um adequado ressar- cimento do dano injusto. A metodologia de abordagem é analítica, empírica e comparativa. Parte do estudo da teoria dos direitos fun- damentais e sua projeção no direito privado, nomeadamente a res- ponsabilidade civil. Avança para análise do quadro hodierno da matéria no direito brasileiro e desenvolve a crítica ao paradigma mo- netário de reparação de danos a partir de precedentes da Corte Inte- ramericana de Direitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte, marcantes para a promoção das liberdades civis no continente latino- * Doutorando em Direito pela Universidade de Fortaleza, linha de pesquisa Relações Privadas. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, área de concentração Ordem Jurídica Constitucional.Especialista em Direito Privado pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Ceará. Gra- duado magna cum laude pela Universidade Federal do Ceará. Professor em tempo integral da Faculdade Farias Brito (FFB). Advogado e consultor Jurídico em Fortaleza. ** Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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Adriano Pessoa da Costa*

Gina Vidal Marcílio Pompeu**

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS EDESMONETARIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

INTERAMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTSAND DEMONSTRATION OF CIVIL LIABILITY

CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOSY DESMONETARIZACIÓN DE LA RESPONSABILIDAD CIVIL

Resumo:

A centralidade do ordenamento brasileiro repousa na pessoa hu-

mana. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva dos direitos fun-

damentais, força motriz do fenômeno da constitucionalização do

direito privado. No atual cenário, impõe-se uma reconfiguração fun-

cional da responsabilidade civil, na esteira do que já ocorre com ou-

tros institutos privatísticos - como o contrato, a família e a propriedade.

Este trabalho demonstra que, no panorama atual de interação entre

o direito privado e o direito constitucional, a técnica tradicional da re-

paração exclusivamente monetária deve ser repensada em prol de

mecanismos alternativos aptos a proporcionar um adequado ressar-

cimento do dano injusto. A metodologia de abordagem é analítica,

empírica e comparativa. Parte do estudo da teoria dos direitos fun-

damentais e sua projeção no direito privado, nomeadamente a res-

ponsabilidade civil. Avança para análise do quadro hodierno da

matéria no direito brasileiro e desenvolve a crítica ao paradigma mo-

netário de reparação de danos a partir de precedentes da Corte Inte-

ramericana de Direitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte,

marcantes para a promoção das liberdades civis no continente latino-

* Doutorando em Direito pela Universidade de Fortaleza, linha de pesquisa RelaçõesPrivadas. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, área de concentraçãoOrdem Jurídica Constitucional.Especialista em Direito Privado pela Universidade deFortaleza. Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Ceará. Gra-duado magna cum laude pela Universidade Federal do Ceará. Professor em tempointegral da Faculdade Farias Brito (FFB). Advogado e consultor Jurídico em Fortaleza.** Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora eProfessora do Programa de Pós-Graduação de Mestrado e Doutorado em DireitoConstitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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americano, costumam inovar na imposição de medidas que trans-

cendem a simples indenização em pecúnia. Ao final, clarifica-se a re-

levância jurisprudencial da CIDH para a edificação da

responsabilidade civil voltada à concretização da dignidade da pessoa

humana como valor jurídico supremo no Brasil e na América Latina.

Abstract:

The centrality of the Brazilian order rests on the human person. This

is reflected in the historical-evolutionary trajectory of fundamental

rights, the driving force of the phenomenon of the constitutionalization

of private law. In the current scenario, a functional reconfiguration of

civil liability is required, in the wake of what already happens with other

private institutes - such as contract, family and property. This paper

demonstrates that in the current context of interaction between private

law and constitutional law, the traditional technique of pure monetary

reparation must be rethought in favor of alternative mechanisms ca-

pable of providing adequate compensation for unfair damages. The

approach methodology is analytical, empirical and comparative. Part

of the study of the theory of fundamental rights and its projection in

private law, namely civil liability. It advances to analyze the current fra-

mework of the matter in Brazilian law and develops the critique of the

monetary paradigm of reparation of damages based on precedents

of the Inter-American Court of Human Rights (IACHR). The Court's

decisions, which are important for the promotion of civil liberties in the

Latin American continent, often innovate in the imposition of measures

that transcend the simple indemnity in pecunia. In the end, it clarifies

the jurisprudential relevance of the IACHR for the construction of civil

responsibility aimed at achieving the dignity of the human person as

a supreme legal value in Brazil and Latin America.

Resumen:

La centralidad del ordenamiento brasileño reposa en la persona

humana. Esto se refleja en la trayectoria histórico-evolutiva de los

derechos fundamentales, fuerza motriz del fenómeno de la consti-

tucionalización del derecho privado. En el actual escenario, se im-

pone una reconfiguración funcional de la responsabilidad civil, en

la estera de lo que ya ocurre con otros institutos privados, como el

contrato, la familia y la propiedad. Este trabajo demuestra que, en

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el panorama actual de interacción entre el derecho privado y el de-

recho constitucional, la técnica tradicional de la reparación exclusi-

vamente monetaria debe ser repensada en pro de mecanismos

alternativos aptos para proporcionar un adecuado resarcimiento

del daño injusto. La metodología de enfoque es analítica, empírica

y comparativa. Parte del estudio de la teoría de los derechos fun-

damentales y su proyección en el derecho privado, en particular la

responsabilidad civil. Avanza para analizar el cuadro actual de la

materia en el derecho brasileño y desarrolla la crítica al paradigma

monetario de reparación de daños a partir de precedentes de la

Corte Interamericana de Derechos Humanos (CIDH). Las decisio-

nes de la Corte, marcadas para la promoción de las libertades ci-

viles en el continente latinoamericano, suelen innovar en la

imposición de medidas que trascienden la simple indemnización

en pecunia. Al final, se aclara la relevancia jurisprudencial de la

CIDH para la edificación de la responsabilidad civil volcada a la

concreción de la dignidad de la persona humana como valor jurí-

dico supremo en Brasil y en América Latina.

Palavras-chave:

Direitos fundamentais, responsabilidade civil, desmonetarização,

Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Keywords:

Fundamental rights, civil liability, dismantling, Inter-American Court

of Human Rights.

Palabras clave:

Derechos fundamentales, responsabilidad civil, desmontaje, Corte

Interamericana de Derechos Humanos.

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INTRODUÇÃO

A centralidade axiológico-material dos sistemas internacio-nais de proteção dos direitos humanos e da Constituição Federal de1988 é a mesma: a tutela integral da pessoa humana em sua digni-dade. Isso se reflete na trajetória histórico-evolutiva de expansão eafirmação dos direitos fundamentais, força motriz do fenômeno daconstitucionalização do direito privado. Essa caminhada teórica con-duz ao reconhecimento da reparação de danos como direito funda-mental e à reconfiguração funcional da responsabilidade civil, naesteira do que já ocorre com outros institutos privatísticos - como ocontrato, a família e a propriedade. Repensar essa província jurídica em função do indivíduo eassentir na fundamentalidade do direito ao adequado ressarcimentosão avanços que requerem o necessário reexame de um de seuselementos tradicionais, a saber, o modo por meio do qual o ofensordeverá indenizar integralmente a vítima. Entre nós, há muito predomina, tanto no plano teóricoquanto na aplicação pretoriana das leis, a técnica da reparação ex-clusivamente monetária. Esse modelo cria graves empecilhos à re-configuração do direito de danos na perspectiva civil-constitucional.O principal deles consiste no desprestígio à dimensão existencial doser humano, cuja violação muitas vezes não é compensável comsomas pecuniárias. De tudo isso decorre a necessidade de que outros fatoressejam tomados em conta no arbitramento da indenização. Elementoscomo a anormalidade do dano, a reconstrução completa do bem-estar psíquico da vítima, a repercussão social e a profilaxia da rein-cidência da conduta antijurídica passam a ser imprescindíveis parao adequado ressarcimento. Assim, mecanismos reparatórios alter-nativos devem ser concebidos e praticados, para além da simplescondenação em moeda corrente. A partir da premissa de que a jurisprudência desempenhapapel central no aprimoramento da responsabilidade civil, este tra-balho está focado em precedentes da Corte Interamericana de Di-reitos Humanos (CIDH). As decisões da Corte são protagonistas dapromoção das liberdades civis e da solidificação dos valores demo-cráticos nos países da região. Não raro, transcendem a indenização

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em pecúnia e determinam, dentre outras, medidas como a adequa-ção legislativa, a implementação de políticas públicas e a designaçãohonrosa de equipamentos urbanos em nome das vítimas. Ao final, será demonstrado que as sentenças da CIDHpodem operar como farol a iluminar o caminho para a edificação deum aprimorado direito de danos, voltado à efetiva concretização dadignidade da pessoa humana como valor jurídico supremo no Brasile na América Latina.

Direito fundamental à reparação de danos

Vive-se hoje a “sociedade de risco”1, em que “tudo, ouquase tudo em direito, acaba em responsabilidade civil”, elevadaà condição de “espécie de estuário onde deságuam todas asáreas do direito - público e privado, contratual e extracontratual,material e processual” (MENEZES DIREITO; CAVALIERI FILHO,2007, p.35). Essa é também a sociedade dita “pós-moderna” dasnovas tecnologias, em que somos alvo de incessante bombar-deio de informações.

O ser humano, mais consciente de seus direitos, torna-semenos tolerante com abusos e atos ilícitos contra si perpetrados.Ano após ano, o número de ações indenizatórias aumenta e inau-ditas situações fáticas terminam por alcançar os tribunais2. Não édifícil chegar-se à conclusão de que esta é a era do direito de danos.

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1 BECK, Ulrich. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage, 1993. Nessanotável obra o autor analisa a chegada do que nomina como a “segunda moderni-dade” ou “modernidade reflexiva”, na qual a distribuição dos riscos não toma emconta as diferenças sociais, econômicas e geográficas como ocorria na “primeiramodernidade” (aquela decorrente das revoluções industriais e políticas que tiveramlugar na Europa a partir do século XVIII). Aponta, dentre os principais perigos domundo atual, os riscos ambientais, químicos, nucleares, genéticos e econômicos.Como cinco maiores processos sociais de potencial nocivo a ser enfrentados pelasociedade contemporânea, elenca: a globalização, a individualização, o desem-prego, a revolução dos gêneros e os riscos globais da crise ecológica e da turbu-lência dos mercados financeiros.2 Nesse contexto, sugere-se a leitura do texto de Nelson Konder acerca da proteçãoda privacidade (2013, p. 386). Em tempos de acentuada comunicação interpessoal,a manipulação inadequada de informações sobre a vida íntima ilustra à perfeiçãoos “novos danos” a que está sujeito o ser humano. Com efeito, a indevida divulgação

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Na tradição jurídica brasileira, a matéria se posicionacomo objeto de estudo da seara privatística, mais precisamentedo direito civil. A influência do Código de Napoleão foi decisivapara a solidificação de um cientificismo vigorosamente apegadoao cânone liberal-individualista-patrimonialista. Nessa linha depensamento, a lógica jurídica predominante na Europa oitocen-tista prestigiava a separação entre sociedade e Estado, assimcomo fazia todo sentido a summa divisio entre direito público edireito privado, haja vista o pleno protagonismo então represen-tado pela codificação civil nas relações jusprivadas – nas quaisoperava como “a verdadeira carta constitucional da sociedadeautossuficiente” (BILBAO UBILLOS, 1997, p. 237).

Segundo Konrad Hesse (1995, p. 69-70), o momento de-cisivo para a guinada dogmática que revolucionou as relaçõesentre o direito constitucional e o direito privado, bem como as ta-refas e funções de cada seara, foi o final da Primeira Guerra Mun-dial. A partir dali, o trato desses diferentes âmbitos jurídicospassou da justaposição e afastamento original a uma relação derecíproca complementaridade e independência3.

A toda evidência, as diretrizes privatísticas do passadonão se coadunam ou, quando muito, carecem de aperfeiçoa-mento diante da ordem jurídica constitucional vigente no Brasilpós-1988. Como se observa,

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de referências como a opção sexual, a ideologia política, a saúde físico-psíquica eas características genéticas da pessoa - os chamados dados sensíveis - têm grandeaptidão de nocividade ao livre desenvolvimento da personalidade. Por exemplo, noâmbito das relações de trabalho, os empregadores podem recusar funcionários maispropensos ao alcoolismo e ao déficit de atenção; no direito contratual, o acesso adados genéticos pode evidenciar propensão a certos males, como câncer, Parkinsone Alzheimer, fato capaz de tornar inviável a contratação do seguro-saúde.3 A seguir, complementa que o direito constitucional e o direito privado “aparecem comopartes necessárias de uma ordem jurídica unitária que se complementam, se apóiam ese condicionam. Nesse ordenamento integrado, o direito constitucional resulta de im-portância decisiva para o direito privado, e o direito privado de importância decisiva parao direito constitucional” (HESSE,1995, p. 81). Igualmente, Habermas (1984, p. 178)aponta o final da Primeira Grande Guerra como o marco temporal em que surgiu umacomplicada mistura de tipos que, de início, “foi registrada sob a rubrica publicização dodireito privado; mais tarde aprendeu-se a considerar o mesmo procedimento tambémsob o ponto de vista inverso, o da privatização do direito público”, até chegar-se ao qua-dro atual, em que “elementos do Direito Público e do Direito Privado se interpenetramaté a incognoscibilidade e a indissolubilidade”.

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O Direito Privado, assim ‘socializado’, é com certeza diverso do Di-reito Privado do Code Napoleón, que exauria a sua tutela, por umlado, no direito subjetivo (ou seja, sobretudo na propriedade) ouantes, no seu titular, e, por outro lado, na vontade individual, ou seja,no contrato. (GIORGIANI, 1998, p. 50).

Na modernidade, leciona Pietro Perlingieri (2002, p. 55),o direito civil não se apresenta em antítese ao direito público; éapenas um ramo que se justifica por razões didáticas e sistemá-ticas e que se conecta diretamente à vida dos cidadãos como ti-tulares de direitos fundamentais, oponíveis ao Estado e tambémaos particulares. Nesse enfoque, não existe contraposição entreprivado e público, na medida em que o próprio direito civil fazparte de um ordenamento unitário4.

Agora bem, não há outra província jurídica em que o pesodas elaborações pretorianas se faça sentir com tamanha intensi-dade quanto à responsabilidade civil, cuja trajetória, na célebremáxima de Louis Josserand (1941, p. 63), representa “a históriado triunfo da jurisprudência”5. Não obstante, no Brasil, o trato cien-tífico e forense das ações indenizatórias revela grave estagnaçãodogmática: seguem teorizadas pela doutrina e apreciadas pelostribunais na perspectiva exclusiva das pretensões individuais eresolvidas somente com amparo em critérios patrimonialistas.

Prevalece, como regra, uma resposta jurisdicional emque se prestigia o interesse particular/individual sobre o social/co-letivo. O foco repousa na resolução do caso sub judice, sem anecessária preocupação com uma adequada profilaxia judicialcapaz de evitar sua repetição por parte do ofensor. Nesse pano-rama, a responsabilidade civil paradoxalmente acaba por se dis-tanciar da reconstrução do direito privado à luz da Constituiçãode 1988 empreendida pela doutrina – o crescente teórico que seconvencionou nominar como “direito civil-constitucional”, no qual

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4 Nessa lógica, desaparece a noção de que temáticas como a responsabilidade civil, dehá muito reguladas somente pela legislação privada, seguem ainda blindadas à irradiaçãojusfundamental. Na sintética metáfora de Ingo Von Munch (1997, p. 33): “una vez des-monorado el dique que separaba el Derecho constitucional del Derecho privado, los de-rechos fundamentales se precipitaron como una cascada en el mar del Derecho privado”.5 Como salienta o autor francês, graças às cortes o direito de danos pôde evoluir com omínimo de intervenção legislativa, processo no qual o juiz “foi a alma do progresso jurí-dico, o artífice laborioso do direito novo contra as fórmulas velhas do direito tradicional”.

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a tutela da pessoa humana é alçada ao ponto mais elevado.Da mesma forma, o direito aquiliano isola-se do que

ocorreu com outros tradicionais institutos civilísticos. Isso porqueaté mesmo família, propriedade e contrato - os “três pilares” dodireito privado (FACCHINI NETO, 2006, p. 31) - ganham diferen-tes tons a partir de sua vinculação direta com a ordem constitu-cional, notadamente com os direitos fundamentais. Com efeito,não é difícil visualizar as transformações desses temas, precio-sos ao direito civil clássico, a partir do momento em que se dei-xaram influenciar pelos valores emanados da Constituição.

Cumpre lembrar que a propriedade deixou de ser um di-reito moldado na plataforma liberal e passou a ter indispensávelfunção social. Nesse viés, a família, antes hierarquizada, tornou-se igualitária em sua conformação interpessoal e democráticaquanto à origem, com o rompimento do paradigma matrimonialcomo única causa de surgimento do núcleo familiar. Já nas rela-ções contratuais, surgiram intervenções voltadas para o interessede categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se apreocupação com a justiça distributiva (RAMOS, 2000, p. 10-11).

Enquanto isso, o direito de danos segue no geral ape-gado à dogmática de tempos idos, fulcrada no trinômio conduta- nexo causal - dano6. Evoluir é preciso! A cláusula de aberturagrifada no art. 5º, §2º, da Constituição Federal de 1988 e as nor-mas dos arts. 5º, V, 5º, X, e 37, §6º, que àquela se alinham, sãoa chave para a compreensão de que à pessoa humana lesadaassiste o direito fundamental de ressarcimento7.

Nesse passo, já se pode observar que a responsabili-dade civil do século XXI adota nova feição. Encontra-se agora

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6 Seria incorreto afirmar que inexistiu qualquer evolução no plano da responsabilidadecivil. Exemplo disso se colhe dos atos lesivos cometidos por agentes estatais no exercíciodessa função. Enquanto no passado o assunto já foi tratado como incapaz de deflagraro dever ressarcitório, hoje a matéria nem mesmo exige a demonstração de culpa, nostermos do art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988. No mesmo diapasão, é nítidaa tendência à objetivização da responsabilidade aquiliana, como ferramenta capaz defacilitar o acesso da vítima à reparação devida.7 No constitucionalismo do novo século, poucos põem em dúvida a primazia axiológicados direitos fundamentais. Assim constatou Peter Häberle (1991, p. 261), ao afirmarque, em nossos dias, há “uma impressionante imagem de onipresença dos direitos fun-damentais no Estado constitucional”.

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iluminada pelos valores constitucionais e adaptada aos princípiosbásicos do direito civil-constitucional brasileiro8. Tem reafirmadoseu escopo de promover a existência digna do indivíduo, e paratanto se vale da recognição da fundamentalidade9 do direito à re-paração do dano e da projeção dos direitos fundamentais sobreas interações jurídico-privadas (“eficácia horizontal”)10.

A inadequação do paradigma monetarista à função social daresponsabilidade civil

O já referido processo de “constitucionalização do direitoprivado” - e, por conseguinte, de conversão da responsabilidade civile outras áreas civilísticas em “direito constitucional concretizado”-,não há de ser visto como algo passageiro; bem ao contrário, de

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8 Gustavo Tepedino (2006, p. 378), em conhecida passagem teórica, anuncia as pre-missas essenciais do direito civil constitucional: (i) o reconhecimento do direito como rea-lidade cultural, e não como resultado (rectius, submissão) da ordem econômica vigente:o direito tem uma intrínseca função promocional e não apenas uma função mantenedorado status quo (repressora) e reguladora de divergências; (ii) o decisivo predomínio dassituações existenciais sobre as situações patrimoniais, devido à tutela constitucional dadignidade humana; (iii) a valorização do perfil funcional em detrimento do perfil estruturaldos institutos jurídicos, impedindo, por essa via, a perpetuação do esquema da subsun-ção, já completamente ultrapassado, e libertando o fato – e juntamente com ele o juiz -dos enquadramentos rígidos em prol da aplicação da normativa mais adequada ao casoconcreto; (iv) o reconhecimento da historicidade dos institutos, na medida da importânciada função que exercem naquela determinada sociedade, naquele determinado momentohistórico; (v) a relatividade dos princípios, das regras e dos direitos, na medida em quetodos exercem sua função em sociedade, isto é, em relação ao outro.9 Há simetria entre a eticidade humana inerente aos direitos da personalidade e o conceitode fundamentalidade material dos direitos fundamentais. Ingo Sarlet (2006, p. 88-89),valendo-se de lições de Alexy e Canotilho, sustenta que esta “decorre da circunstânciade serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, con-tendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade, [...] demodo especial no que diz com a posição nestes ocupada pela pessoa humana”.10 O pioneirismo no reconhecimento jurisprudencial da dimensão objetiva dos direitosfundamentais - passo decisivo para a admissão da eficácia desses direitos entre atoresprivados - se deu no célebre “Caso Lüth”, apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemãono ano de 1958. Ao sublinhar que os direitos fundamentais não reduzem sua operativi-dade à defesa do cidadão nas situações de ameaça imposta pelo poder estatal - postoque representam “decisões de constitucionais de natureza jurídico-objetiva válidas paratodo o ordenamento jurídico” - a Corte de Karlsruhe desempenhou papel histórico naultrapassagem da relação indivíduo-Estado como âmbito exclusivo de aplicação dosdireitos fundamentais.

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há muito encontra-se amadurecido pela doutrina e jurisprudência(TUTIKIAN, 2004, p. 47).

Decorre, na verdade, do surgimento de outro patamar ci-vilizatório, em que “as idéias de dignidade, liberdade, segurança,igualdade e justiça social, dentre outras, conduzem a sociedadebrasileira na busca de seus destinos e influenciam os rumos dalegislação” (BITTAR; BITTAR FILHO, 2003, p. 26), o que bem seexemplifica com o próprio direito de danos, alvo de impulso coma entrada em vigor do Código Civil11.

Da projeção nesse campo da força normativa dos prin-cípios constitucionais, em cujo ápice figura a dignidade da pes-soa humana, é preciso extrair-se uma dogmática assaz diferentedo defasado cânone de outrora, pautado num individualismo pa-trimonialista que enxergava na reparação monetária o objetivomaior da tutela indenizatória - como se tudo se resolvesse pelopagamento em pecúnia efetivado pelo lesante12.

Na contemporaneidade, a responsabilidade civil recons-truída sob a paleta constitucional se volta para o princípio da re-paração integral (restitutio in integrum)13 com olhar diferenciado,até mesmo em vista da fundamentalidade do direito violado(LUTZKY, 2012). Condenações em pecúnia amiúde são insufi-cientes para reconduzir a vítima a patamares próximos da situa-ção vivida antes da lesão14. Elementos de cunho social,

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11 Dentre as inovações positivadas no direito pátrio pelo Código Civil brasileiro, cabecitar a cláusula geral de responsabilidade objetiva baseada no risco da atividade(art. 927, parágrafo único) e a identificação do abuso de direito como espécie dogênero ato ilícito (art. 187), dispositivos que abriram possibilidades até então impen-sadas para o direito de danos.12 Exemplo lapidar dessa linha de pensamento é o art. 944 do Código Civil, que sintetizatão bem a lógica patrimonialista: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.13 O dever de reparar o dano situa-se entre as mais antigas regras humanas de con-vivência. Integra o Código de Hamurabi, os livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo,Levítico, Números e Deuteronômio), o Alcorão e a Lei das Doze Tábuas romana(Lex Duodecim Tabularum).14 Arraigada sempre foi essa concepção monetarista em nosso direito, como secolhe da passagem ora destacada acerca do dano moral: “a sua reparação se fazatravés de uma compensação, e não de um ressarcimento; impondo ao ofensor aobrigação de pagamento de uma certa quantia de dinheiro em favor do ofendido,ao mesmo tempo em que agrava o patrimônio daquele, proporciona a este umareparação satisfativa” (CAHALI, 2011, p. 38).

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interrelacional e, sobretudo, existencial e preventivo devem sertomados em conta na equação jurídica que levará à definição daforma de ressarcimento.

Ocorre que a tutela integral e efetiva da pessoa humanajá não mais condiz com rótulos dogmáticos (como bem ilustra aerosão da dicotomia entre direito público e privado), muito menoscom o binômio dano/reparação monetária. Agora, exige-se queo arbitramento da indenização inclua instrumentos de efetiva pro-moção do ser vivente, considerado em qualquer situação jurídicade que participe, contratual ou extracontratual, de direito públicoou de direito privado (MORAES, 2004, p. 52).

Com efeito, por figurar a personalidade humana e a pro-moção de sua dignidade no ápice axiológico-constitucional bra-sileiro, sua defesa exige uma proteção judicial diferenciada, quevai além dos mecanismos tradicionais cíveis e criminais de re-pressão. Nessa senda, essencial é o papel da elaboração preto-riana, como sempre foi na responsabilidade civil, para oaperfeiçoamento da compreensão jurídica da matéria.

A atuação dos órgãos judiciários é posta em relevo porClaus-Wilhelm Canaris (2006, p. 241-242), para quem a elabo-ração pretoriana pode “remediar” eventuais transgressões do le-gislador privado. À guisa de exemplo, pondera que o ‘direitodelitivo’ alemão era falho na proteção da personalidade, mas oSupremo Tribunal Federal “eliminou esse déficit, incluindo oassim chamado ‘direito geral de personalidade’ no grupo dos di-reitos tutelados pelo direito dos delitos (direito da responsabili-dade aquiliana)”.

A reconstrução civil-constitucional da pessoa exige dife-renciada concepção da responsabilidade civil por parte dos tri-bunais, já desprendida da antiga visão patrimonialista15 edoravante projetada na perspectiva da reparação integral do

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15 Na ótica do direito civil de outrora, a liberdade individual alçava-se à condição dea mais preciosa das garantias jurídicas. Do pensamento de Benjamin Constant ex-traem-se as idéias hegemônicas do período. Segundo o “corifeu do liberalismo”, odireito público do Estado é alheio aos direitos das pessoas privadas, e o direito po-lítico consiste em jamais conspurcar os direitos imprescritíveis da natureza humana- bem como restaurá-los, quando forem atacados. Liberdade, para ele, não é outracoisa senão “o triunfo da individualidade” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 324-327).

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“dano à pessoa”. Longe vai a percepção de cada pessoa comoum “ter”, bem antes de um “ser”, como ocorria nas antigas codi-ficações civilísticas. Bem ao reverso, na atualidade, as questõesexistenciais é que ganham relevo - e trazem consigo a preocu-pação com formas desmonetarizadas de ressarcimento.

A partir dessa afirmação, até mesmo os elementos dedetecção do dano indenizável sofrem mutações, pois há algomais no horizonte além da “conduta do ofensor” e da “relaçãocausal”. Outros critérios de valoração, como o dever de proteçãoao próximo (duty of care), a ausência de medidas preventivas(carelessness) e a proximidade do dano (remoteness) entram emcena na análise da obrigação de indenizar, como acentua GuidoAlpa (2010, p. 175-184).

Como se pode ver, enquanto o direito privado atribui pre-valência às relações patrimoniais, no sistema do direito civil re-fundado pela Constituição Federal de 1988, a prevalência é dasquestões existenciais, “porque à pessoa humana deve o ordena-mento jurídico inteiro, e o ordenamento civil em particular, asse-gurar tutela e proteção prioritárias” (MORAES, 2010, p. 21-32).

A título de exemplo de manifestação pretoriana do direitoaquiliano convergente para a integral proteção do indivíduo, es-pecialmente no que tange ao seu bem-estar psicológico, destaca-se a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em 2012,na qual se reconheceu o dever indenizatório decorrente do cha-mado “abandono afetivo”, hipótese inimaginável anos atrás16.

Para além do já exposto, convém relembrar que não sãopoucos os problemas acarretados pelo referencial de indeniza-ção que se materializa somente pela entrega de somas pecuniá-rias ao lesado. Nessa esteira de pensamento, AndersonSchreiber (2013, p. 210), em trabalho dedicado ao tema, apontaos principais deles: (i) a propagação da lógica de que os danos

16 O próprio STJ havia se pronunciado anteriormente pela denegação do pleito deressarcimento sob esse fundamento. O decisório ficara assim ementado: “RES-PONSABILIDADE CIVIL - ABANDONO MORAL - REPARAÇÃO - DANOS MORAIS-IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de atoilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civilde 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especialconhecido e provido” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ, Recurso Especialn. 757.411/MG - (2005/0085464-3) - Rel. Min. Fernando Gonçalves - j. 29.11.2005).

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morais podem ser causados desde que seja possível pagar poreles; (ii) o estímulo ao “tabelamento” judicial das indenizações;(iii) a crescente “precificação” dos atributos humanos; (iv) o in-centivo a demandas frívolas, propostas de modo aventureiro, porpessoas que pretendem se valer de cada inconveniente ou abor-recimento social para conseguir uma indenização.

A tais graves inconvenientes pode-se adicionar outras hi-póteses: (i) se o ofensor simplesmente não dispuser de recursosmonetários que lhe permitam fazer frente à reparação arbitrada,a vítima se quedará privada de qualquer ressarcimento; (ii) noutrogiro, caso o lesado seja pessoa abastada, a indenização não re-presentará conforto algum17.

Nessa vertente, enfatiza-se que a fixação judicial do res-sarcimento deve ser focada não apenas no dano, mas, sobretudo,na pessoa. Para tanto, a ciência jurídica e os tribunais devem li-bertar-se do paradigma monetarista, mediante o recurso a diferen-ciadas ferramentas de reação jurídica que alcancem o maiorobjetivo da indenização: a uma, reabilitar a vítima na máxima me-dida possível, incluído o necessário bem-estar psíquico; a duas,evitar a repetição do comportamento antijurídico por parte do ofen-sor. Dessa forma, a responsabilidade civil se alinha aos demaisinstitutos privados no atendimento de sua função social, exigênciaincontornável dos tempos modernos.

Na lição de Judith Martins-Costa acerca da dimensãopreventiva da responsabilidade civil, no processo evolutivo de umdado instituto jurídico é preciso que

a doutrina não se aferre a dogmas que bem vestiam tão-só a funçãoantiga, restando a nova como roupas mal cortadas, em massa pro-duzidas. É precisamente o que ocorre com a insistência de atribuir-se à responsabilidade civil, como se integrasse a sua próprianatureza, um caráter estritamente reparatório, sem nenhum elementode punição ou de exemplaridade. (2002, p. 441).

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17 Nota-se que as duas hipóteses aventadas são bem prováveis no cenário brasileiro.No primeiro caso, pela notória disparidade socioeconômica aqui existente, que pro-duz a existência de milhões de pessoas alijadas até mesmo do “patrimônio mínimo”necessário; no segundo, pelo fato de os tribunais pátrios adotarem uma política defixação de valores ressarcitórios bem modestos, prática amiúde justificada pelo com-bate a uma tal “indústria da indenização” que jamais se estabeleceu entre nós.

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Por tais motivos, os precedentes da Corte Interameri-cana de Direitos Humanos (CIDH)18 muito têm a contribuir paraa desmonetarização da responsabilidade civil, e sua influênciana aplicação do direito pátrio pode indicar o caminho a seguir.Destarte, cumpre examiná-los.

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E ADESMONETARIZAÇÃO DO DIREITO DE DANOS

A partir da segunda metade do século XX, assistiu-se àconsagração dos direitos humanos em documentos multinacio-nais, como a Carta de Direitos Fundamentais da União Européiae a Convenção Americana de Direitos Humanos. O crescenteprotagonismo das cortes internacionais é consectário natural doprocesso de afirmação desses direitos.

Na América Latina, a Convenção Americana de DireitosHumanos (Pacto de São José da Costa Rica) é pedra angular dosistema de proteção dos direitos humanos. Na esfera nacional,por óbvio, incumbe a cada Estado o asseguramento das liberda-des humanas fundamentais; no plano internacional, a própriaConvenção esclarece, em seu preâmbulo, que a tutela dessesdireitos, quando insuficiente no âmbito interno, propicia a atuaçãosubsidiária e complementar da CIDH.

Esse tribunal, que entrou em funcionamento no ano de1978, foi reconhecido pelo Brasil, juntamente com o Pacto deSão José, somente em 1992. A CIDH está autorizada a apreciare julgar denúncias de violação da Convenção Americana de Di-reitos Humanos por qualquer Estado-parte19. Cumpre reafirmar

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18 Essa sigla será usada no presente texto para se reportar à Corte.19 O Pacto de São José da Costa Rica prevê a existência de outro órgão, a ComissãoInteramericana de Direitos Humanos, a quem compete receber petições de vítimasde violações de direitos humanos e realizar o juízo de admissibilidade das denún-cias. Caso positivo, são solicitadas informações ao Estado denunciado, após o que,se necessário, é realizada uma investigação dos fatos, seguida de tentativa de con-ciliação. Se esta for infrutífera, a Comissão elaborará relatório conclusivo, eventual-mente fazendo recomendações ao Estado violador, que terá prazo de 3 (três) mesespara atendê-las. Expirado o prazo, o caso será submetido à CIDH para apreciação(PIOVESAN, 2006, p. 139).

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sua relevância para a consolidação continental de uma verda-deira cultura democrática (O´DONNELL, 2007, p. 152-153)20 ede respeito humanístico a partir das decisões por ela proferidas,que têm força vinculante.

Em trabalho dedicado à análise da atuação da CIDH en-quanto tribunal “garantista” ou “ativista”, Lênio Streck e Jânia Sal-danha (2013) se valem da metáfora do “romance em cadeia”,proposta por Dworkin, para enaltecer o trabalho da Corte. Se-gundo eles, o tribunal leva a sério suas “responsabilidades decontinuidade” no que tange à expansão dos direitos individuaise dos deveres estatais de respeitá-los. Concluem no sentido de“reconhecer na jurisprudência da CIDH uma atitude garantista ede reafirmação do pacto democrático assumido pelos Estadosda América Latina”.

A exemplo do que ocorre na Corte Europeia, a CIDH criadireito jurisprudencial, que se rege pela lógica do precedente ju-dicial do tribunal supranacional de direitos humanos em causa,donde decorre que

não são as normas convencionais que detêm maior relevância dentrode cada ordenamento estatal, mas a sua interpretação uniforme re-lativa à tutela de um determinado direito, em termos ‘compensatórios’– e certamente não ‘substitutivos’ - do direito interno (CARDUCCI;MAZZUOLI, 2014, p. 44).

Na esteira do anunciado, a análise de alguns precedentesdo tribunal há de reforçar a tese até aqui desenvolvida, a saber:que o objetivo essencial de proporcionar à vítima de lesão anti-jurídica a integral reparação demanda maior sensibilidade do jul-gador, a quem compete determinar providências outras - alémdo ressarcimento pecuniário -, voltadas ao necessário confortoespiritual e existencial do lesado e seus parentes dentro de cada

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20 Pondera Guillermo O´Donnell que as recorrentes violações de direitos humanosna América Latina levam vários autores a questionar se a maioria dos países da re-gião efetivamente merece o rótulo de “democracias”. Conforme o autor, a verdadeirademocracia exige mais do que eleições livres periódicas, partidos políticos, liberdadede associação e expressão, etc.; demanda a concretização de um patamar consi-derável de igualdade socioeconômica, ou seja, que haja uma ordem política geralvoltada à efetivação desta igualdade.

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contexto fático. Nessa senda, questiona Maria Alice Hofmeister,ao defender a tese de que o julgador deve ter em mente a integralproteção e ressarcimento do ofendido: “Quem é a vítima? A queaspira? O que se pode entender como ampla indenização, re-composição ao status quo ante? O que se conhece acerca desuas necessidades?” (HOFMEISTER, 2002, p. 213).

Assim, nas sentenças a seguir relembradas, o foco daabordagem incide sobre os aspectos não monetários presentesem cada condenação - com a atenção voltada ao fato de quenesses pronunciamentos houve arbitramento de indenização fi-nanceira, mas a decisão da CIDH a esse aspecto não se limitou(SALES; CORREIA, 2013).

Com frequência são determinadas providências de longoalcance, como mudanças na legislação para adequá-la ao Pactode São José da Costa Rica21, a tipificação de delitos até entãonão previstos no ordenamento interno22 e a criação de medidaslegislativas, executivas, administrativas e judiciárias voltadaspara a efetivação dos direitos humanos23.

No caso Caracazo24, a CIDH, ao reafirmar o primado da re-paração integral do dano, impôs à Venezuela a obrigação de inves-tigar os fatos e apurar responsabilidades, localizar os restos mortaisdas vítimas, implementar medidas de capacitação das forças ar-

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21 Isso ocorreu no caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e To-bago (2002). Na espécie, um total de trinta e duas pessoas denunciaram o país porsuas condenações penais à morte por enforcamento. Diante do esgotamento daspossibilidades recursais no plano interno, restou-lhes acionar a CIDH, cuja decisãofoi pela substancial mudança nas leis criminais daquele país.22 No caso Trujillo Oroza vs. Bolívia (2000), o senhor José Carlos Trujillo Oroza haviasido preso sem ordem judicial válida, torturado e seu corpo jamais foi encontrado. ACIDH, além de cominar a tipificação do crime de desaparecimento forçado de pes-soas, impôs a investigação completa do caso e a punição dos responsáveis, bemcomo a atribuição do nome da vítima a um centro educativo da cidade de Santa Cruz.23 No precedente Niños de la Calle vs. Guatemala (1999), analisou-se o assassinatode vários jovens moradores de rua por agentes de segurança, com característicasde execução sumária (disparo de arma de fogo no crânio).24 No julgamento Caracazo vs. Venezuela (1999), o termo define uma sequência deprotestos populares contra medidas econômicas adotadas pelo Governo AndrésPerez no começo de 1989. A escalada dos conflitos levou o Estado venezuelano aadotar medidas como a mobilização do aparato militar e a suspensão de garantiasconstitucionais. Números oficiais mencionam, como decorrência dos enfrentamentos,276 mortos e múltiplos desaparecidos, além de consideráveis danos patrimoniais.

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madas e divulgar a sentença em jornal de ampla circulação. Noutroaresto, determinou a criação, em cursos de formação dos servidorespúblicos militares e de segurança, de um programa voltado à análiseda jurisprudência do sistema interamericano de proteção dos direi-tos humanos25.

Como exposto, o direcionamento da responsabilidade civilà promoção da dignidade humana exige medidas voltadas à rea-firmação existencial das vítimas. Atenta a isso, a Corte frequente-mente impõe ao país transgressor a realização de ato público dereconhecimento de sua responsabilidade, o que inclui a ampla di-vulgação da decisão em jornais de grande circulação26.

Em várias decisões a ordem de reparação inclui obrigaçõesconcretas de fazer - cujo cumprimento efetivo é fiscalizado pelaCorte -, as quais tomam a forma de expedientes diversos e variados.Por exemplo, o custeio de uma bolsa de estudos27; o fornecimentode serviços de saúde gratuitos28; a publicação de declaração escritaformal de reconhecimento da responsabilidade e pedido de descul-pas29; a anulação de prévia condenação penal e a retirada do nomeda vítima dos registros públicos de antecedentes criminais30.

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25 Caso Gutiérrez Soler vs. Colômbia (2005). A vítima, Wilson Gutiérrez Soler, foipresa, extorquida e torturada por agentes públicos, fatos que ainda ensejaram pos-teriores ameaças a si e seus familiares para que se mantivesse calado. Durantemais de 10 anos lutou contra a impunidade de seus agressores, sem êxito.26 Em Juan Humberto Sanchez vs. Honduras (2003), a vítima havia sido presa porforças estatais de segurança, sem ordem judicial e nem ao menos a explicitação dasrazões. Após sua liberação, militares armados invadiram sua residência, em julho de1992, constrangeram seus familiares e o levaram amarrado. Seu corpo seria encon-trado dias depois. Além do ato público de desagravo, a CIDH ordenou o traslado deseus restos mortais para novo sepultamento, em local a ser definido pelos parentes.27 Cantoral Benevides vs. Peru (2000). Acusado de fazer parte do grupo extremistaconhecido como “Sendero Luminoso”, Luis Alberto Cantoral Benavides foi preso deforma arbitrária, permaneceu incomunicável por vários dias e foi torturado por poli-ciais, em período de provação que durou mais de quatro anos.28 No julgamento Barrios Altos vs. Peru (2001), os fatos tocavam à ação de um grupode extermínio que, em novembro de 1991, invadiu uma festa de arrecadação defundos para a manutenção de edifício situado no bairro de Barrios Altos, na capitalLima. Após atirar a esmo, dizimaram quinze pessoas, uma criança inclusive.29 No caso Tibi vs. Equador (2004), a vítima Daniel Davi Tibi - francês residente noEquador - foi preso por agentes da Interpol, sem respaldo judicial, sob a acusaçãode envolvimento com o tráfico de drogas. Foi submetido a torturas durante vinte eoito meses e teve seus bens apreendidos, que não lhe foram restituídos nem mesmoquando deixou o cárcere, em janeiro de 1998.30 Eduardo Gabriel Kimel, jornalista, escritor e historiador político argentino, publicara

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Outro traço marcante é a superação do vetusto modelo desolução individual e atomística para cada caso, deixado de ladoem prol de uma resposta adequada também no plano transindivi-dual. Já a dimensão preventiva da indenização, tão cara à funçãosocial da responsabilidade civil, se evidencia quando o Tribunalexplicitamente ordena a adoção de medidas para que os fatosnão se repitam, mediante a efetivação de políticas públicas deadequação das normas de direito interno à Convenção Americanade Direitos Humanos31.

Em julgamento sobre morticínio de centenas de pessoasde etnia indígena, ocorrido na Guatemala em 1982, a decisãoda Corte impôs ao país diligências para o fortalecimento da culturamaia, mediante a implementação de políticas públicas de difusãodas tradições e da memória daquele grupo social32. Decisãosemelhante decorreu do massacre ocorrido no presídio Retende Catia, em Caracas, do qual resultou uma ordem de amplareformulação do sistema carcerário venezuelano33. Na mesma

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obra sobre o assassínio de religiosos durante a ditadura daquele país. Um dos juízesmencionados no livro iniciou processo penal por delito de calúnia, que gerou a con-denação do escritor a um ano de prisão (caso Kimel vs. Argentina (2008)).31 Foi o que se verificou no caso Bulacio vs. Argentina (2003). A vítima, Walter DavidBulacio, de dezessete anos, havia sido presa e torturada pelas autoridades, o queocasionou seu óbito logo depois. Sua detenção ocorreu durante operação da políciafederal argentina que levou ao cárcere dezenas de pessoas, num bairro pobre deBuenos Aires. Embora os detidos fossem liberados gradualmente, no caso da vítima,sua família sequer fora notificada do aprisionamento. A CIDH não apenas determi-nou que se prosseguisse a investigação sobre os responsáveis pela barbárie, comotambém exigiu o asseguramento da participação dos familiares em todas as etapasde processos dessa natureza.32 Esse foi o caso Massacre Plán de Sánchez vs. Guatemala (2004), evento consi-derado “genocida” pela CIDH.33 Em novembro de 1992, durante um período de grande instabilidade política contrao presidente Andres Perez, os reclusos do presídio Reten de Catia, em Caracas, te-riam tentado uma fuga em massa. A violenta intervenção militar daí decorrente resultouem nada menos que 63 reclusos mortos, 52 feridos e 28 desaparecidos. Afora isso,motivou a denúncia também a falta de colaboração das autoridades para com as fa-mílias das vítimas. No precedente Monteiro Aranguren e outros (2006), a CIDH impôsà Venezuela a adoção de medidas retificadoras das condições inumanas a que eramsubmetidos os presos no país e sua adequação aos padrões internacionais - ou seja,medidas de caráter legal, administrativo, político e econômico aptas a evitar a repetiçãodos abjetos fatos ali apurados. Ordenou-se, ainda, a realização de ato público de ad-missão da responsabilidade estatal pelos eventos ocorridos no Reten de Catia.

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senda, a partir de sentença de 2010, foi o México obrigado a realizarcampanhas de conscientização da população acerca da vio-lência e discriminação contra mulheres indígenas34.

Acrescenta-se que atentados à liberdade de expressãoconsubstanciam grave ameaça a este princípio imprescindível àssociedades democráticas. A Corte reafirmou seu desiderato de de-fensora do desenvolvimento humano na América Latina ao ordenarà Venezuela - em julgamento que teve atuação de entidades deimprensa de vários países na condição de amicus curiae -, que seabstivesse de qualquer restrição infundada ao direito de obter edifundir informações35.

Os aportes do Tribunal à evolução do direito de danos in-cluem a dogmática jurídica. Ao analisar precedente acerca doataque de forças militares a uma minoria étnico-cultural do Suri-name, do qual resultou a morte de dezenas de pessoas, o juizAntonio Augusto Cançado Trindade inovou na terminologia cien-tífica ao reportar-se ao chamado “dano espiritual”, por ele consi-derada como “forma agravada de dano moral insuscetível dereparação monetária”36.

A CIDH igualmente contribui para a ampliação e aperfei-çoamento da reparação de danos com a efetivação de medidasvoltadas ao apaziguamento espiritual dos parentes dos mortos edesaparecidos pela preservação de sua memória. Por tal motivo,em vários arestos adotou o expediente de ordenar a atribuiçãodos nomes das vítimas a equipamentos públicos.

À guisa de exemplo, o Tribunal incluiu nas sentenças me-didas como a construção de um monumento às vítimas e o des-cerramento de placa com sua identificação na presença dos

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34 No julgamento Rosendo Cantú e outra vs. México (2010), a sra. Valentina Ro-sendo Cantú, indígena, sofreu violação sexual e tortura, às quais se seguiu mani-festa ausência de diligências para apuração de responsabilidades. Sucede que ocrime fora praticado por soldados, e o caso restou encaminhado à jurisdição militarprecisamente para que ninguém fosse punido.35 No caso Perozo e outros vs. Venezuela (2009), a moldura fática envolvia atos deassédio, agressões físicas e prisão praticados contra dezenas de profissionais docanal de televisão Globovisión durante o conturbado período 2001-2005, quandoum golpe tentou tirar Hugo Chávez do poder e um contragolpe o manteve.36 Caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname (2005). Na espécie, integrantes doexército nacional atacaram a comunidade Maroon N´djuka Moiwana em novembrode 1986, tirando a vida de homens, mulheres e crianças.

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respectivos familiares37; a atribuição de seus nomes a centroseducativos38; a criação de disciplina ou curso de direitos humanoscom o nome do lesado39; a designação de rua, praça ou escolaem homenagem à vítima40. Em precedente acerca da desapari-ção forçada de jornalista político na República Dominicana, foiimposta ao país a realização de um documentário sobre a vidada vítima, no qual fosse exaltado seu trabalho jornalístico e seusesforços para a cultura do país41.

Constata-se que nos pronunciamentos condenatórios daCIDH há nítida atenção focada na verdadeira e integral reparaçãodo infortúnio - não apenas no plano monetário, mas igualmentena esfera psíquica da vítima, mediante imposições ao ofensor devariadas obrigações de fazer aptas a oferecer àquela algumalento, imprescindível a seu bem-estar. Na mesma vertente,nota-se que a Corte busca incutir no transgressor a mudançacomportamental necessária para evitar a repetição do ilícito, pro-filaxia jurisprudencial que bem se alinha à função social da res-ponsabilidade civil.

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37 No precedente denominado 19 Comerciantes vs. Colombia (2004), apurou-se amorticínio de dezoito comerciantes por um grupo paramilitar na fronteira entre Co-lômbia e Venezuela porque estes se recusaram a pagar “impostos” ao referidogrupo. Os desditosos tiveram seus corpos esquartejados e lançados num rio.38 Trujillo Oroza x Bolívia; o mesmo ocorreu no caso Molina Theissen x Guatemala(2004), em que o tribunal determinou que se designasse um centro educativo na ci-dade da Guatemala com um nome que fizesse menção aos meninos desaparecidosdurante conflito armado ocorrido no país. Ordenou-se também que ali deveria haveruma placa em memória de Marco Antonio Molina Theissen.39 Versava o caso Huilca Tecse vs. Peru (2005) sobre o assassinato do líder sindicalperuano Pedro Crisólogo Huilca Tecse em dezembro de 1992. Ativo, respeitado ecombativo às medidas do então presidente Alberto Fujimori, sua morte foi artifíciopara atemorizar os trabalhadores peruanos e causou grande comoção no país.40 No caso Baldeón Garcia vs. Peru (2006), apurou-se a detenção, tortura e mortede Bernabé Baldeón García, camponês de 68 anos, por militares. Os fatos ocorre-ram em setembro de 1990.41 O desaparecimento de Narciso González Medina, ativista e opositor ao governo,foi o eixo central do caso Gonzáles Medina e familiares vs. República Dominicana(2012). Após publicar artigo de opinião com duras críticas ao presidente JoaquínBalaguer e conclamar os professores e estudantes de uma universidade local à de-sobediência civil, desapareceu para jamais ser encontrado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na “sociedade de risco” contemporânea, em que se viveà sombra permanente da ameaça de dano injusto, é considerávelo ganho de prestígio da responsabilidade civil como ciência jurí-dica, segundo se constata, por exemplo, a partir da proliferaçãode inéditas situações que passaram a chegar aos tribunais. Emparalelo, o direito civil sofreu consideráveis mutações a partir dasegunda metade do século XX, quando a reconstrução dogmá-tica do constitucionalismo levou à queda da antiga dicotomiaentre direito público e direito privado. Com a ascensão da digni-dade da pessoa humana ao ápice axiológico da Constituição Fe-deral de 1988, seus valores e princípios ultrapassaram asrelações entre indivíduo e Estado e alcançaram as interaçõesentre atores privados. Consequências relevantes disso decorrem:a recognição da eficácia dos direitos fundamentais entre particu-lares e a fundamentalidade do direito à reparação de danos.

Remodelada em função da tutela efetiva da pessoa, aresponsabilidade civil carece de um novo olhar sobre seus ele-mentos substanciais, da mesma forma como sucedeu com outrosinstitutos civilísticos, nomeadamente o direito de propriedade,contratual e familista. Nessa lógica, o modelo tradicional de com-pensação monetária mostra-se em tudo infenso ao direito funda-mental à reparação do dano injusto. Várias adversidades deledecorrem, como a precificação das tribulações humanas, a me-canização das condenações, o estímulo à propositura de deman-das aventurescas e, pior ainda, o desprezo ao fato de quemedidas outras de natureza não pecuniária muitas vezes sãoigualmente importantes para a plena reparação do infortúnio.

No cenário latino-americano, a atuação da CIDH é de ine-gável relevância na defesa das liberdades civis e na propagaçãodos valores democráticos. No que tange ao direito de danos,suas sentenças demonstram aguda preocupação com a funçãosocial da responsabilidade civil, tanto pelo foco na reabilitaçãoexistencial - não apenas material -, da vítima quanto pela impo-sição de medidas focadas na prevenção de outros malfeitos.

Diante dessa ótica, os precedentes da CIDH devem sertomados como paradigmáticos para a edificação de um direito

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de danos alinhado ao centro axiológico comum do Pacto de SãoJosé da Costa Rica e da Constituição Federal de 1988: a promo-ção e concretização da dignidade da pessoa humana em todasas suas dimensões.

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