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Marilena Chaui
Convite Filosofia
Ed. tica, So Paulo, 2000.
Convite Filosofia
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SUMRIO
Introduo
[01] Para que Filosofia?
Unidade 1: A Filosofi a
[02] Capitulo 1: A origem da Filosofia
[03] Captulo 2: O nascimento da Filosofia
[04] Captulo 3: Campos de investigao da Filosofia
[05] Captulo 4: Principais perodos da histria da Filosofia
[06] Captulo 5: Aspectos da Filosofia contempornea
Unidade 2: A razo
[07] Captulo 1: A Razo
[08] Captulo 2: A atividade racional
[09] Captulo 3: A Razo: inata ou adquirida?
[10] Captulo 4: Os problemas do inatismo e do empirismo
[11] Captulo 5: A razo na Filosofia contempornea
Unidade 3: A verdade
[12] Captulo 1: Ignorncia e verdade
[13] Captulo 2: Buscando a verdade
[14] Captulo 3: As concepes da verdade
Unidade 4: O conhecimento
[15] Captulo 1: A preocupao com o conhecimento
[16] Captulo 2: A percepo
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Marilena Chau
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[17] Captulo 3: A memria
[18] Captulo 4: A imaginao
[19] Captulo 5: A linguagem
[20] Captulo 6: O pensamento
[21] Captulo 7: A conscincia pode conhecer tudo?
Unidade 5: A lgica
[22] Captulo 1: O nascimento da lgica
[23] Captulo 2: Elementos de lgica
[24] Captulo 3: A lgica aps Aristteles
[25] Captulo 4: Lgica e Dialtica
Unidade 6: A metafsica
[26] As indagaes metafsicas
[27] Captulo 1: O nascimento da metafsica
[28] Captulo 2: A metafsica de Aristteles
[29] Captulo 3: As avent uras da metafsica
[30] Captulo 4: A ontologia contempornea
Unidade 7: As cincias
[31] Captulo 1: A atitude cientfica
[32] Captulo 2: A cincia na Histria
[33] Captulo 3: As cincias da Natureza
[34] Captulo 4: As cincias humanas
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[35] Captulo 5: O ideal cientfico e a razo instrumental
Unidade 8: O mundo da prtica
[36] Captulo 1: A cultura
[37] Captulo 2: A experincia do sagrado e a instituio da religio
[38] Captulo 3: O universo das artes
[39] Captulo 4: A existncia tica
[40] Captulo 5: A filosofia moral
[41] Captulo 6: A liberdade
[42] Captulo 7: A vida poltica
[43] Captulo 8: As filosofias polticas 1
[44] Captulo 9: As filosofias polticas 2
[45] Captulo 10: A poltica contra a servido voluntria
[46] Captulo 11: A questo democrtica
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Marilena Chau
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Introduo
Para que Filosofia?
As evidncias do cotidiano
Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou
recusamos coisas, pessoas, situaes. Fazemos perguntas como que horas so?, ou que dia hoje?. Dizemos frases como ele est sonhando , ou ela ficou maluca. Fazemos afirmaescomo onde h fumaa, h fogo , ou no saia na chuva para no se resfriar. Avaliamoscoisas e pessoas, dizendo, por exemplo,
esta casa mais bonita do que a outra e Maria est mais jovem do que
Glorinha.
Numa disputa, quando os nimos esto exaltados, um dos contendores pode
gritar ao outro: Mentiroso! Eu estava l e no foi isso o que aconteceu, e algum, querendoacalmar a briga, pode dizer: Vamos ser objetivos, cada um
diga o que viu e vamos nos entender.
Tambm comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito
subjetivos quando o assunto o namorado ou a namorada. Freqentemente,
quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa
pessoa legal .
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Convite Filosofia
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Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.
Quando pergunto que horas so? ou que dia hoje?, minha expectativa a de que algum,tendo um relgio ou um calendrio, me d a resposta exata. Em
que acredito quando fao a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que elepassa, pode ser medido em horas e dias, que o que j passou diferente de agora e o que virtambm h de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e ofuturo, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contm, silenciosamente, vriascrenas no questionadas por ns.
Quando digo ele est sonhando , referindo-me a algum que diz ou pensa
alguma coisa que julgo impossvel ou improvvel, tenho igualmente muitas
crenas silenciosas: acredito que sonhar diferente de estar acordado, que, no sonho, oimpossvel e o improvvel se apresentam como possvel e provvel, e
tambm que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a viglia se relaciona com o que existerealmente.
Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso perceb-la e
conhec-la tal como , sei diferenciar realidade de iluso.
A frase ela ficou maluca contm essas mesmas crenas e mais uma: a de que
sabemos diferenciar razo de loucura e maluca a pessoa que inventa uma
realidade existente s para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razo de loucura, acreditotambm que a razo se refere a uma realidade que a mesma
para todos, ainda que no gostemos das mesmas coisas.
Quando algum diz onde h fumaa, h fogo ou no saia na chuva para no se resfriar,afirma silenciosamente muitas crenas: acredita que existem relaes de causa e efeito entre ascoisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa causa de alguma outra (o fogo causa a fumaa como efeito, a chuva causa o resfriado comoefeito). Acreditamos, assim, que a realidade feita de causalidades, que as coisas, os fatos, assituaes se
encadeiam em relaes causais que podemos conhecer e, at mesmo, controlar
para o uso de nossa vida.
Quando avaliamos que uma casa mais bonita do que a outra, ou que Maria est mais jovem doque Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situaes, os fatos podem ser comparadose avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos,maior, menor). Julgamos, assim,
que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhec-las e us-las em
nossa vida.
Se, por exemplo, dissermos que o sol maior do que o vemos, tambm
estamos acreditando que nossa percepo alcana as coisas de modos diferentes, ora tais como
so em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da
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Marilena Chau
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distncia, de nossas condies de visibilidade ou da localizao e do movimento dos objetos.
Acreditamos, portanto, que o espao existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) equantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No
exemplo do sol, tambm se nota que acreditamos que nossa viso pode ver as
coisas diferentemente do que elas so, mas nem por isso diremos que estamos
sonhando ou que ficamos malucos.
Na briga, quando algum chama o outro de mentiroso porque no estaria dizendo os fatosexatamente como aconteceram, est presente a nossa crena de que h
diferena entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como so,
enquanto a segunda faz exatamente o contrrio, distorcendo a realidade.
No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro
porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentirosodecide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.
Com isso, acreditamos que o erro e a mentira so falsidades, mas diferentes
porque somente na mentira h a deciso de falsear.
Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma iluso ou um
engano involuntrios e a segunda uma deciso voluntria, manifestamos
silenciosamente a crena de que somos seres dotados de vontade e que dela
depende dizer a verdade ou a mentira.
Ao mesmo tempo, porm, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa
ruim: no gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E no so mentira? que tambm acreditamos que quando algum nos avisa que est
mentindo, a mentira aceitvel, no seria uma mentira no duro, pra valer.
Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras
inaceitveis de mentiras aceitveis, no estamos apenas nos referindo ao
conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas tambm ao carter da
pessoa, sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem
vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade livre para o bem ou para omal.
Na briga, quando uma terceira pessoa pede s outras duas para que sejam
objetivas ou quando falamos dos namorados como sendo muito subjetivos,
tambm estamos cheios de crenas silenciosas. Acreditamos que quando algum
quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferncia, uma
opinio, at brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse algumperde a objetividade, ficando muito subjetivo .
Com isso, acreditamos que a objetividade uma atitude imparcial que alcana as coisas taiscomo so verdadeiramente, enquanto a subjetividade uma atitude
parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, dio, medo, desejo).
Assim, no s acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como
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ainda acreditamos que so diferentes e que a primeira no deforma a realidade, enquanto asegunda, voluntria ou involuntariamente, a deforma.
Ao dizermos que algum legal porque tem os mesmos gostos, as mesmas
idias, respeita ou despreza as mesmas coisas que ns e tem atitudes, hbitos e costumes muitoparecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas- famlia, amigos, escola, trabalho, sociedade, poltica - nos faz semelhantes ou diferentes emdecorrncia de normas e valores morais, polticos, religiosos e artsticos, regras de conduta,
finalidades de vida.
Achando bvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta,
possuem valores morais, religiosos, polticos, artsticos, vivem na companhia de seus semelhantese procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito,acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidadess podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocnio.
Como se pode notar, nossa vida cotidiana toda feita de crenas silenciosas, da aceitao tcitade evidncias que nunca questionamos porque nos parecem
naturais, bvias. Cremos no espao, no tempo, na realidade, na qualidade, na
quantidade, na verdade, na diferena entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade ementira; cremos tambm na objetividade e na diferena entre ela e a subjetividade, naexistncia da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.
A atitude filosfica
Imaginemos, agora, algum que tomasse uma deciso muito estranha e
comeasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de que horas so? ou que dia hoje?,perguntasse: O que o tempo? Em vez de dizer est sonhando ou
ficou maluca, quisesse saber: O que o sonho? A loucura? A razo?
Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas
afirmaes por outras: Onde h fumaa, h fogo , ou no saia na chuva para no ficarresfriado, por: O que causa? O que efeito? ; seja objetivo , ou
eles so muito subjetivos, por: O que a objetividade? O que a
subjetividade? ; Esta casa mais bonita do que a outra, por: O que mais? O
que menos? O que o belo?
Em vez de gritar mentiroso!, questionasse: O que a verdade? O que o falso?
O que o erro? O que a mentira? Quando existe verdade e por qu? Quando
existe iluso e por qu?
Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que o amor?
O que o desejo? O que so os sentimentos?
Se, em lugar de discorrer tranqilamente sobre maior e menor ou claro e
escuro, resolvesse investigar: O que a quantidade? O que a qualidade?
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E se, em vez de afirmar que gosta de algum porque possui as mesmas idias, os mesmos gostos,as mesmas preferncias e os mesmos valores, preferisse analisar: O que um valor? O que umvalor moral? O que um valor artstico? O que a moral? O que a vontade? O que aliberdade?
Algum que tomasse essa deciso, estaria tomando distncia da vida cotidiana e de si mesmo,teria passado a indagar o que so as crenas e os sentimentos que alimentam, silenciosamente,nossa existncia.
Ao tomar essa distncia, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremosno que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que so nossas
crenas e nossos sentimentos. Esse algum estaria comeando a adotar o que
chamamos de atitude filosfica.
Assim, uma primeira resposta pergunta O que Filosofia? poderia ser: A
deciso de no aceitar como bvias e evidentes as coisas, as idias, os fatos, as situaes, osvalores, os comportamentos de nossa existncia cotidiana; jamais aceit-los sem antes hav-losinvestigado e compreendido.
Perguntaram, certa vez, a um filsofo: Para que Filosofia?. E ele respondeu:
Para no darmos nossa aceitao imediata s coisas, sem maiores
consideraes.
A atitude crtica
A primeira caracterstica da atitude filosfica negativa, isto , um dizer no ao senso comum,aos pr-conceitos, aos pr-juzos, aos fatos e s idias da
experincia cotidiana, ao que todo mundo diz e pensa, ao estabelecido.
A segunda caracterstica da atitude filosfica positiva, isto , uma interrogao sobre o que soas coisas, as idias, os fatos, as situaes, os comportamentos, os valores, ns mesmos. tambmuma interrogao sobre o porqu disso tudo e de ns, e uma interrogao sobre como tudo isso assim e no de outra maneira. O
que ? Por que ? Como ? Essas so as indagaes fundamentais da atitude
filosfica.
A face negativa e a face positiva da atitude filosfica constituem o que
chamamos de atitude crtica e pensamento crtico.
A Filosofia comea dizendo no s crenas e aos preconceitos do senso comum
e, portanto, comea dizendo que no sabemos o que imaginvamos saber; por
isso, o patrono da Filosofia, o grego Scrates, afirmava que a primeira e
fundamental verdade filosfica dizer: Sei que nada sei. Para o discpulo de Scrates, ofilsofo grego Plato, a Filosofia comea com a admirao; j o
discpulo de Plato, o filsofo Aristteles, acreditava que a Filosofia comea com o espanto.
Admirao e espanto significam: tomamos distncia do nosso mundo costumeiro,
atravs de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivssemos visto antes,
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como se no tivssemos tido famlia, amigos, professores, livros e outros meios de comunicaoque nos tivessem dito o que o mundo ; como se estivssemos
acabando de nascer para o mundo e para ns mesmos e precisssemos perguntar
o que , por que e como o mundo, e precisssemos perguntar tambm o que
somos, por que somos e como somos.
Para que Filosofia?
Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia?
uma pergunta interessante. No vemos nem ouvimos ningum perguntar, por
exemplo, para que matemtica ou fsica? Para que geografia ou geologia? Para
que histria ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou qumica?Para que pintura, literatura, msica ou dana? Mas todo mundo acha muito natural perguntar:Para que Filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irnica, conhecida dos
estudantes de Filosofia: A Filosofia uma cincia com a qual e sem a qual o mundo permanecetal e qual. Ou seja, a Filosofia no serve para nada. Por isso, se costuma chamar de filsofoalgum sempre distrado, com a cabea no
mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ningum entende e que so
perfeitamente inteis.
Essa pergunta, Para que Filosofia?, tem a sua razo de ser.
Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma
coisa s tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prtica, muito visvel e de utilidadeimediata.
Por isso, ningum pergunta para que as cincias, pois todo mundo imagina ver a utilidade dascincias nos produtos da tcnica, isto , na aplicao cientfica realidade.
Todo mundo tambm imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da
compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura v os artistas
como gnios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade.
Ningum, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: no serve paracoisa alguma.
Parece, porm, que o senso comum no enxerga algo que os cientistas sabem
muito bem. As cincias pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graas aprocedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade,
atravs de instrumentos e objetos tcnicos; pretendem fazer progressos nos
conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretenses das cincias pressupem que elas acreditam na
existncia da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento,
na tecnologia como aplicao prtica de teorias, na racionalidade dos
conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeioados.
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Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relao entre teoria eprtica, correo e acmulo de saberes: tudo isso no cincia, so questes filosficas. Ocientista parte delas como questes j respondidas, mas a Filosofia quem as formula e buscarespostas para elas.
Assim, o trabalho das cincias pressupe, como condio, o trabalho da
Filosofia, mesmo que o cientista no seja filsofo. No entanto, como apenas os cientistas efilsofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a
Filosofia no serve para nada.
Para dar alguma utilidade Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia no serviriapara nada, se servir fosse entendido como a possibilidade de fazer usos tcnicos dos produtosfilosficos ou dar-lhes utilidade econmica, obtendo lucros com eles; consideram tambm que aFilosofia nada teria a ver com a
cincia e a tcnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia no seriam os
conhecimentos (que ficam por conta da cincia), nem as aplicaes de teorias
(que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou tico. A
Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixes e os vcios humanos, a liberdade e avontade, analisando a capacidade de nossa razo para impor limites aos nossos desejos e paixes,ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, aFilosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que o princpio do bem-viver.
Essa definio da Filosofia, porm, no nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma artemoral ou tica, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas
desconcertantes e embaraosas: O que o homem? O que a
vontade? O que a paixo? O que a razo? O que o vcio? O que a virtude?
O que a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e avirtude so valores para os seres humanos? O que um valor? Por que avaliamos os sentimentose as aes humanas?
Assim, mesmo se dissssemos que o objeto da Filosofia no o conhecimento da realidade, nemo conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se
dissssemos que o objeto da Filosofia apenas a vida moral ou tica, ainda
assim, o estilo filosfico e a atitude filosfica permaneceriam os mesmos, pois as perguntasfilosficas - o que, por que e como - permanecem.
Atitude filosfica: indagar
Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a
Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosfica possui algumas
caractersticas que so as mesmas, independentemente do contedo investigado.
Essas caractersticas so:
- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idia, . A Filosofia pergunta qual a realidade ounatureza e qual a significao de alguma coisa, no importa qual;
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Convite Filosofia
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- perguntar como a coisa, a idia ou o valor, . A Filosofia indaga qual a estrutura e quais so asrelaes que constituem uma coisa, uma idia ou um
valor;
- perguntar por que a coisa, a idia ou o valor, existe e como . A Filosofia pergunta pelaorigem ou pela causa de uma coisa, de uma idia, de um valor.
A atitude filosfica inicia-se dirigindo essas indagaes ao mundo que nos rodeia e s relaesque mantemos com ele. Pouco a pouco, porm, descobre que essas
questes se referem, afinal, nossa capacidade de conhecer, nossa capacidade de pensar.
Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao prprio
pensamento: o que pensar, como pensar, por que h o pensar? A Filosofia
torna-se, ento, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamentorealiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexo.
A reflexo filosfica
Reflexo significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. Areflexo o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si
mesmo, interrogando a si mesmo.
A reflexo filosfica radical porque um movimento de volta do pensame nto sobre si mesmopara conhecer-se a si mesmo, para indagar como possvel o
prprio pensamento.
No somos, porm, somente seres pensantes. Somos tambm seres que agem no
mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as
plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relaes tanto por meio dalinguagem quanto por meio de gestos e aes.
A reflexo filosfica tambm se volta para essas relaes que mantemos com a
realidade circundante, para o que dizemos e para as aes que realizamos nessas relaes.
A reflexo filosfica organiza-se em torno de trs grandes conjuntos de perguntas ou questes:
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que
fazemos? Isto , quais os motivos, as razes e as causas para pensarmos o que pensamos,dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando
falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto , qual o contedo ou o sentido do quepensamos, dizemos ou fazemos?
3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que
fazemos? Isto , qual a inteno ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?
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Essas trs questes podem ser resumidas em: O que pensar, falar e agir? E elas pressupem aseguinte pergunta: Nossas crenas cotidianas so ou no um saber verdadeiro, um conhecimento?
Como vimos, a atitude filosfica inicia-se indagando: O que ? Como ? Por que ?, dirigindo-seao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. Soperguntas sobre a essncia, a significao ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
J a reflexo filosfica indaga: Por qu?, O qu?, Para qu?, dirigindo-se ao pensamento, aosseres humanos no ato da reflexo. So perguntas sobre a
capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.
Filosofia: um pensamento sistemtico
Essas indagaes fundamentais no se realizam ao acaso, segundo preferncias e opinies decada um de ns. A Filosofia no um eu acho que ou um eu
gosto de. No pesquisa de opinio maneira dos meios de comunicao de
massa. No pesquisa de mercado para conhecer preferncias dos consumidores
e montar uma propaganda.
As indagaes filosficas se realizam de modo sistemtico.
Que significa isso?
Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentoslgicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idias
obtidos por procedimentos de demonstrao e prova, exige a fundamentao
racional do que enunciado e pensado. Somente assim a reflexo filosfica pode fazer com quenossa experincia cotidiana, nossas crenas e opinies alcancem uma viso crtica de si mesmas.No se trata de dizer eu acho que , mas de poder afirmar eu penso que.
O conhecimento filosfico um trabalho intelectual. sistemtico porque no se contenta em
obter respostas para as questes colocadas, mas exige que as
prprias questes sejam vlidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam
verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclaream umas s outras, formem conjuntoscoerentes de idias e significaes, sejam provadas e demonstradas
racionalmente.
Quando o senso comum diz esta minha filosofia ou isso a filosofia de fulana ou de fulano,engana-se e no se engana.
Engana-se porque imagina que para ter uma filosofia basta algum possuir um conjunto deidias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto deprincpios mais ou menos coerentes para julgar as
coisas e as pessoas. Minha filosofia ou a filosofia de fulano ficam no plano de um eu achocoerente.
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Mas o senso comum no se engana ao usar essas expresses porque percebe,
ainda que muito confusamente, que h uma caracterstica nas idias e nos
princpios que nos leva a dizer que so uma filosofia: a coerncia, as relaes entre as idias eentre os princpios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente,com coerncia e lgica, que a Filosofia tem uma vocao para formar um todo daquilo queaparece de modo fragmentado em
nossa experincia cotidiana.
Em busca de uma definio da Filosofia
Quando comeamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela .
Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que no h apenas uma definio da Filosofia,mas vrias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, alm de
vrias, as definies parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de
perplexidade, indagam: afinal, o que a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela ?
Uma primeira aproximao nos mostra pelo menos quatro definies gerais do
que seria a Filosofia:
1. Viso de mundo de um povo, de uma civilizao ou de uma cultura. Filosofia corresponde, demodo vago e geral, ao conjunto de idias, valores e prticas
pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma,
definindo para si o tempo e o espao, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, obelo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possvel e o impossvel, o contingente e o necessrio.
Qual o problema dessa definio? Ela to genrica e to ampla que no
permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religio, Filosofia e arte, Filosofia e cincia. Naverdade, essa definio identifica Filosofia e Cultura, pois esta uma viso de mundo coletivaque se exprime em idias, valores e prticas de uma
sociedade.
A definio, portanto, no consegue acercar-se da especificidade do trabalho
filosfico e por isso no podemos aceit-la.
2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia identificada com a definio e a ao de algumaspessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se
contemplao do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo tico esbio.
A Filosofia seria uma contemplao do mundo e dos homens para nos conduzir a
uma vida justa, sbia e feliz, ensinando-nos o domnio sobre ns mesmos, sobre nossos impulsos,desejos e paixes. nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.
Esta definio, porm, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior),mas no o que e o que faz a Filosofia e, por isso, tambm no podemos aceit-la.
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3. Esforo racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada
e dotada de sentido. Nesse caso, comea-se distinguindo entre Filosofia e religio e at mesmoopondo uma outra, pois ambas possuem o mesmo objeto
(compreender o Universo), mas a primeira o faz atravs do esforo racional,
enquanto a segunda, por confiana (f) numa revelao divina.
Ou seja, a Filosofia procura discutir at o fim o sentido e o fundamento da
realidade, enquanto a conscincia religiosa se baseia num dado primeiro e
inquestionvel, que a revelao divina indemonstrvel.
Pela f, a religio aceita princpios indemonstrveis e at mesmo aqueles que podem serconsiderados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia no
admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrrio, a conscincia
filosfica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e
inquestionvel.
No entanto, esta definio tambm problemtica, porque d Filosofia a tarefa de ofereceruma explicao e uma compreenso totais sobre o Universo,
elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje,
que essa tarefa impossvel.
H pelo menos duas limitaes principais a esta pretenso totalizadora: em
primeiro lugar, porque a explicao sobre a realidade tambm oferecida pelas cincias e pelasartes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no casodas cincias) e para a expresso (no caso das
artes), j no sendo pensvel uma nica disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dosconhecimentos; em segundo lugar, porque a prpria Filosofia j no admite que seja possvel umsistema de pensamento nico que oferea uma
nica explicao para o todo da realidade. Por isso, esta definio tambm no pode ser aceita.
4. Fundamentao terica e crtica dos conhecimentos e das prticas. A Filosofia, cada vezmais, ocupa-se com as condies e os princpios do
conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o contedo dosvalores ticos, polticos, artsticos e culturais; com a compreenso das causas e das formas da
iluso e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformaes histricas dosconceitos, das idias e dos valores.
A Filosofia volta-se, tambm, para o estudo da conscincia em suas vrias
modalidades: percepo, imaginao, memria, linguagem, inteligncia,
experincia, reflexo, comportamento, vontade, desejo e paixes, procurando
descrever as formas e os contedos dessas modalidades de relao entre o ser
humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente,
a Filosofia visa ao estudo e interpretao de idias ou significaes gerais como: realidade,mundo, natureza, cultura, histria, subjetividade, objetividade, diferena, repetio, semelhana,conflito, contradio, mudana, etc.
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Sem abandonar as questes sobre a essncia da realidade, a Filosofia procura
diferenciar-se das cincias e das artes, dirigindo a investigao sobre o mundo natural e o mundohistrico (ou humano) num momento muito preciso: quando
perdemos nossas certezas cotidianas e quando as cincias e as artes ainda no ofereceram outrascertezas para substituir as que perdemos.
Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a
realidade natural (o mundo das coisas) e a histrica (o mundo dos homens)
tornam-se estranhas, espantosas, incompreensveis e enigmticas, quando o senso comum j nosabe o que pensar e dizer e as cincias e as artes ainda no sabem o que pensar e dizer.
Esta ltima descrio da atividade filosfica capta a Filosofia como anlise (das condies dacincia, da religio, da arte, da moral), como reflexo (isto , volta da conscincia para simesma para conhecer-se enquanto capacidade para o
conhecimento, o sentimento e a ao) e como crtica (das iluses e dos preconceitos individuaise coletivos, das teorias e prticas cientficas, polticas e artsticas), essas trs atividades (anlise,reflexo e crtica) estando orientadas pela elaborao filosfica de significaes gerais sobre a
realidade e os seres humanos. Alm de anlise, reflexo e crtica, a Filosofia a busca dofundamento e do sentido da realidade em suas mltiplas formas indagando o que so, qual suapermanncia e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que o ser e oaparecer-desaparecer dos seres?
A Filosofia no cincia: uma reflexo crtica sobre os procedimentos e
conceitos cientficos. No religio: uma reflexo crtica sobre as origens e formas dascrenas religiosas. No arte: uma interpretao crtica dos
contedos, das formas, das significaes das obras de arte e do trabalho artstico.
No sociologia nem psicologia, mas a interpretao e avaliao crtica dos
conceitos e mtodos da sociologia e da psicologia. No poltica, mas
interpretao, compreenso e reflexo sobre a origem, a natureza e as formas do poder. No histria, mas interpretao do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo ecompreenso do que seja o prprio tempo. Conhecimento
do conhecimento e da ao humanos, conhecimento da transformao temporal
dos princpios do saber e do agir, conhecimento da mudana das formas do real ou dos seres, aFilosofia sabe que est na Histria e que possui uma histria.
Intil? til?
O primeiro ensinamento filosfico perguntar: O que o til? Para que e para quem algo til?O que o intil? Por que e para quem algo intil?
O senso comum de nossa sociedade considera til o que d prestgio, poder, fama e riqueza. Julgao til pelos resultados visveis das coisas e das aes,
identificando utilidade e a famosa expresso levar vantagem em tudo. Desse ponto de vista, aFilosofia inteiramente intil e defende o di reito de ser intil.
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Marilena Chau
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No poderamos, porm, definir o til de outra maneira?
Plato definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em
benefcio dos seres humanos.
Descartes dizia que a Filosofia o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisasque os humanos podem alcanar para o uso da vida, a
conservao da sade e a inveno das tcnicas e das artes.
Kant afirmou que a Filosofia o conhecimento que a razo adquire de si mesma para saber oque pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a
felicidade humana.
Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando
o mundo e que se tratava, agora, de conhec-lo para transform-lo, transformao que trariajustia, abundncia e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia um despertar para ver e mudar nosso
mundo.
Espinosa afirmou que a Filosofia um caminho rduo e difcil, mas que pode ser percorrido portodos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual seria, ento, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for til; se no se deixar guiarpela submisso s idias dominantes e aos poderes estabelecidos for til; se buscar compreendera significao do mundo, da cultura, da histria for til; se conhecer o sentido das criaeshumanas nas artes, nas cincias e na poltica for til; se dar a cada um de ns e nossa sociedadeos meios para serem conscientes de si e de suas aes numa prtica que deseja a liberdade e a
felicidade para todos for til, ento podemos dizer que a Filosofia o mais til de todos os saberesde que os seres humanos so capazes.
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Convite Filosofia
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Unidade 1
A Filosofia
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Marilena Chau
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Captulo 1
A origem da Filosofia
A palavra filosofia
A palavra filosofia grega. composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia,que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais.
Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sbio.
Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber.
Filsofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim, filosofia indica um estado de esprito, o da pessoa que ama, isto , deseja o conhecimento,o estima, o procura e o respeita.
Atribui-se ao filsofo grego Pitgoras de Samos (que viveu no sculo V antes de Cristo) ainveno da palavra filosofia. Pitgoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertenceaos deuses, mas que os homens podem desej-la ou
am-la, tornando-se filsofos.
Dizia Pitgoras que trs tipos de pessoas compareciam aos jogos olmpicos (a festa maisimportante da Grcia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas paraservir aos seus prprios interesses e sem preocupao com as disputas e os torneios; as que iampara competir, isto , os atletas e artistas (pois, durante os jogos tambm havia competiesartsticas: dana, poesia, msica,
teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o
desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa, diziaPitgoras, como o filsofo.
Com isso, Pitgoras queria dizer que o filsofo no movido por interesses
comerciais - no coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada evendida no mercado; tambm no movido pelo desejo de competir
- no faz das idias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer
competidores ou atletas intelectuais; mas movido pelo desejo de observar, contemplar, julgare avaliar as coisas, as aes, a vida: em resumo, pelo desejo de
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Convite Filosofia
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saber. A verdade no pertence a ningum, ela o que buscamos e que est diante de ns para sercontemplada e vista, se tivermos olhos (do esprito) para v -la.
A Filosofia grega
A Filosofia, entendida como aspirao ao conhecimento racional, lgico e
sistemtico da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de
suas transformaes, da origem e causas das aes humanas e do prprio
pensamento, um fato tipicamente grego.
Evidentemente, isso no quer dizer, de modo algum, que outros povos, to
antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os rabes, os persas, oshebreus, os africanos ou os ndios da Amrica no possuam
sabedoria, pois possuam e possuem. Tambm no quer dizer que todos esses
povos no tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da
Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia um fato grego, o que se quer dizer que ela
possui certas caractersticas, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos,estabelece certas concepes sobre o que sejam a realidade, o
pensamento, a ao, as tcnicas, que so completamente diferentes das
caractersticas desenvolvidas por outros povos e outras culturas.
Vejamos um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muito
profundo sobre a existncia de coisas, seres e aes contrrios ou opostos, que formam arealidade. Deram s oposies o nome de dois princpios: Yin e Yang.
Yin o princpio feminino passivo na Natureza, representado pela escurido, o frio e a umidade;Yang o princpio masculino ativo na Natureza, representado pela luz, o calor e o seco. Os doisprincpios se combinam e formam todas as
coisas, que, por isso, so feitas de contrrios ou de oposies. O mundo, portanto, feito daatividade masculina e da passividade feminina.
Tomemos agora um filsofo grego, por exemplo, o prprio Pitgoras. Que diz
ele? Que a Natureza feita de um sistema de relaes ou de propores
matemticas produzidas a partir da unidade (o nmero 1 e o ponto), da oposio entre osnmeros pares e mpares, e da combinao entre as superfcies e os
volumes (as figuras geomtricas), de tal modo que essas propores e
combinaes aparecem para nossos rgos dos sentidos sob a forma de
qualidades contrrias: quente-frio, seco-mido, spero-liso, claro-escuro, grande-pequeno, doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitgoras, o pensamento alcana a
realidade em sua estrutura matemtica, enquanto nossos sentidos ou nossa
percepo alcanam o modo como a estrutura matemtica da Natureza aparece
para ns, isto , sob a forma de qualidades opostas.
Qual a diferena entre o pensamento chins e o do filsofo grego?
O pensamento chins toma duas caractersticas (masculino e feminino) existentes em algunsseres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro
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Marilena Chau
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feito da oposio entre qualidades atribudas a dois sexos diferentes, de sorte que o mundo organizado pelo princpio da sexualidade animal ou humana.
O pensamento de Pitgoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais
ampla do que a sexualidade prpria a alguns seres da Natureza, e faz distino entre asqualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisvel da
Natureza, que, para ele, de tipo matemtico e alcanada apenas pelo intelecto, ou inteligncia.
So diferenas desse tipo, alm de muitas outras, que nos levam a dizer que
existe uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos ndios,
mas no h filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indgena.
Em outras palavras, Filosofia um modo de pensar e exprimir os pensamentos
que surgiu especificamente com os gregos e que, por razes histricas e polticas, tornou-se,depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada
cultura europia ocidental da qual, em decorrncia da colonizao portuguesa do Brasil, nstambm participamos.
Atravs da Filosofia, os gregos instituram para o Ocidente europeu as bases e os princpiosfundamentais do que chamamos razo, racionalidade, cincia, tica, poltica, tcnica, arte.
Alis, basta observarmos que palavras como lgica, tcnica, tica, poltica,
monarquia, anarquia, democracia, fsica, dilogo, biologia, cronologia, gnese, genealogia,cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmcia, entre muitas outras, so palavras gregas, parapercebermos a influncia decisiva e predominante da
Filosofia grega sobre a formao do pensamento e das instituies das sociedades europiasocidentais.
por isso que, em decorrncia do predomnio da economia capitalista criada
pelo Ocidente e que impe um certo tipo de desenvolvimento das cincias e das tcnicas,falamos, por exemplo, em ocidentalizao dos chineses,
ocidentalizao dos rabes, etc. Com isso queremos significar que modos de
pensar e de agir, criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados at mesmo porculturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a
Filosofia.
pelo mesmo motivo que falamos em orientalismos e orientalistas para
indicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang,
nos mantras, nas pirmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar arealidade, a Natureza, a vida e as aes humanas que no so
prprias ou especficas do Ocidente, isto , so diferentes do padro de
pensamento e de explicao que foram criados pelos gregos a partir do sculo
VII antes de Cristo, poca em que nasce a Filosofia.
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Convite Filosofia
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O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu
Por causa da colonizao europia das Amricas, ns tambm fazemos parte -
ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim
tambm somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o
pensamento ocidental europeu.
Desse legado, podemos destacar como principais contribuies as seguintes:
? A idia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princpios necessrios e universais, isto ,os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo, graas aos gregos, nosculo XVII da nossa era, o filsofo ingls Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitaouniversal de todos os corpos da Natureza.
A lei da gravitao afirma que todo corpo, quando sofre a ao de um outro,
produz uma reao igual e contrria, que pode ser calculada usando como
elementos do clculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a ao e areao se deram.
Essa lei necessria, isto , nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outramaneira que no desta; e esta lei universal , isto , vlida para todos os corpos em todos ostempos e lugares.
Um outro exemplo: as leis geomtricas do tringulo ou do crculo, conforme
demonstraram os filsofos gregos, so universais e necessrias, isto , seja em Tquio em 1993,em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em So Paulo
em 1792, em Moambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do
tringulo ou do crculo so necessariamente as mesmas.
? A idia de que as leis necessrias e universais da Natureza podem ser
plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto , no so conhecimentos
misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas so conhecimentos queo pensamento humano, por sua prpria fora e capacidade,
pode alcanar.
? A idia de que nosso pensamento tambm opera obedecendo a leis, regras e
normas universais e necessrias, segundo as quais podemos distinguir o
verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idia de que o nosso pensamento
lgico ou segue leis lgicas de funcionamento.
Nosso pensamento diferencia uma afirmao de uma negao porque, na
afirmao, atribumos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que
Scrates um ser humano , atribumos humanidade a Scrates) e, na negao, retiramosalguma coisa de outra (quando dizemos este caderno no verde,
estamos retirando do caderno a cor verde).
Nosso pensamento distingue quando uma afirmao verdadeira ou falsa. Se
algum apresentar o seguinte raciocnio: Todos os homens so mortais. Scrates homem.Logo, Scrates mortal , diremos que a afirmao Scrates mortal
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Marilena Chau
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verdadeira, porque foi concluda de outras afirmaes que j sabemos serem
verdadeiras.
? A idia de que as prticas humanas, isto , a a o moral, a poltica, as tcnicas e as artesdependem da vontade livre, da deliberao e da discusso, da nossa escolha passional (ouemocional) ou racional, de nossas preferncias, segundo certos valores e padres, que foram
estabelecidos pelos prprios seres humanos e no por imposies misteriosas e incompreensveis,que lhes teriam sido feitas por foras secretas, invisveis, sejam elas divinas ou naturais, eimpossveis de serem conhecidas.
? A idia de que os acontecimentos naturais e humanos so necessrios, porque obedecem a leisnaturais ou da natureza humana, mas tambm podem ser
contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberaes dos
homens, em condies determinadas.
Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia natural enecessariamente; um ser humano anda porque as leis anatmicas e fisiolgicas que regem o seucorpo fazem com que ele tenha os meios necessrios para a locomoo.
No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabea de um passante, esse
acontecimento contingente ou acidental. Por qu? Porque, se o passante no
estivesse andando por ali naquela hora, a pedra no o atingiria. Assim, a queda da pedra necessria e o andar de um ser humano necessrio, mas que uma pedra caia sobre minhacabea quando ando inteiramente contingente ou acidental.
Todavia, muito diferente a situao das aes humanas. verdade que por
uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas por
deliberao voluntria que ando para ir escola em vez de andar para ir ao
cinema, por exemplo. verdade que por uma lei necessria da Natureza que os corpos pesadoscaem, mas por uma deliberao humana e por uma escolha
voluntria que fabrico uma bomba, a coloco num avio e a fao despencar sobre Hiroshima.
Um dos legados mais importantes da Filosofia grega , portanto, essa diferena entre onecessrio e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - tudo necessrio, temos quenos conformar e nos resignar -, mas tambm evitar a iluso de que podemos tudo quantoquisermos, se alguma fora extranatural ou
sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessrias que podemos
conhecer e nem tudo possvel por mais que o queiramos.
? A idia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento
verdadeiro, felicidade, justia, isto , que os seres humanos no vivem nem agem
cegamente, mas criam valores pelo quais do sentido s suas vidas e s
suas aes.
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Convite Filosofia
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A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade,insatisfeitos com as explicaes que a tradio lhes dera, comearam a fazer perguntas e buscarrespostas para elas, demonstrando que o mundo e os
seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as aeshumanas podem ser conhecidos pela razo humana, e que a prpria
razo capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos
humanos no era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por
divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrrio, podia ser conhecida por todos, atravs darazo, que a mesma em todos; quando se descobriu que tal
conhecimento depende do uso correto da razo ou do pensamento e que, alm da
verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida atodos.
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Marilena Chau
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Captulo 2
O nascimento da Filosofia
Ouvindo a voz dos poetas
Escutemos, por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos desentimento do mundo , o sentimento da velhice e da juventude
perene do mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais.
Assim, o poeta grego Arquloco escreveu:
E no te esqueas, meu corao,
que as coisas humanas apenas
mudanas incertas so.
Outro poeta grego, Tegnis, cantando sobre a brevidade da vida, dizia:
Choremos a juventude e a velhice tambm,
pois a primeira foge e a segunda sempre vem.
Tambm o poeta grego Pndaro falava do sentimento das coisas humanas como
passageiras:
A glria dos mortais num s dia cresce,
Mas basta um s dia, contrrio e funesto,
para que o destino, impiedoso, num gesto
a lance por terra e ela, sbito, fenece.
Mas no s a vida e os feitos dos humanos so breves e frgeis. Os poetas
tambm exprimem o sentimento de que o mundo tecido por mudanas e
repeties interminveis. A esse respeito, a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu:
O vento, a chuva, o sol, o frio
Tudo vai e vem, tudo vem e vai.
E o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:
Como a vida muda.
Como a vida muda.
Como a vida nuda.
Como a vida nada.
Como a vida tudo.
...
Como a vida senha
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Convite Filosofia
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de outra vida nova
...
Como a vida vida
ainda quando morte
...
Como a vida forte
em suas algemas.
...
Como a vida bela
...
Como a vida vale
mais que a prpria vida
sempre renascida.
O sentimento de renovao e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos o
que transparece nos versos do poeta brasileiro Mrio Quintana, nos seguintes
versos:
Quando abro a cada manh a janela do meu quarto
como se abrisse o mesmo livro
Numa pgina nova...
E, por isso, em outros versos seus, lemos:
O encanto
sobrenatural
que h
nas coisas da Natureza!
...
se nela algo te d
encanto ou medo,
no me digas que seja feia
ou m,
, acaso, singular...
Numa das obras poticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, as
Metamorfoses, o poeta romano Ovdio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamosdiante da mudana, da renovao e da repetio, do nascimento
e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos: No h coisaalguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo s
apresenta uma imagem passageira. O prprio tempo passa com um
movimento contnuo, como um rio... O que foi antes j no , o que no
tinha sido , e todo instante uma coisa nova. Vs a noite, prxima do
fim, caminhar para o dia, e claridade do dia suceder a escurido da
noite... No vs as estaes do ano se sucederem, imitando as idades de
nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, semelhante
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Marilena Chau
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criana nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche
de esperana o agricultor. Tudo floresce. O frtil campo resplandece com
o colorido das flores, mas ainda falta vigor s folhas. Entra, ento, a
quadra mais forte e vigorosa, o vero: a robusta mocidade, fecunda e
ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, a
quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as tmporas
embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: o velho trpego, cujos
cabelos ou caram como as folhas das rvores, ou, os que restaram, esto
brancos como a neve dos caminhos. Tambm nossos corpos mudam
sempre e sem descanso... E tambm a Natureza no descansa e,
renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre no
vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os seres
tm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fencios do o
nome de fnix. No se alimenta de gros ou ervas, mas das lgrimas do
incenso e do suco da amnia. Quando completa cinco sculos de vida,
constri um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de
canela, do aromtico nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e
termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fnix,
que viver outros cinco sculos... Assim tambm a Natureza e tudo o
que nela existe e persiste.
O que perguntavam os primeiros filsofos
Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes do origem aos
semelhantes, de uma rvore nasce outra rvore, de um co nasce outro co, de
uma mulher nasce uma criana? Por que os diferentes tambm parecem fazer
surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera,um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar dotempo?
Por que tudo muda? A criana se torna adulta, amadurece, envelhece e
desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores nooutono, at ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia
luminoso e ensolarado, de cu azul e brisa suave, repentinamente, se torna
sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela
tempestade, pelos raios e troves?
Por que a doena invade os corpos, rouba-lhes a cor, a fora? Por que o alimento que antes meagradava, agora, que estou doente, me causa repugnncia? Por que o som da msica que antesme embalava, agora, que estou doente, parece um
rudo insuportvel?
Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma s rvore,
quantas flores e quantos frutos nascem! De uma s gata, quantos gatinhos
nascem!
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Convite Filosofia
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Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A gua do copo, to
transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser lquida etransparente para tornar-se slida e acinzentada. O dia, que comea frio e gelado, pouco a pouco,se torna quente e cheio de calor.
Por que nada permanece idntico a si mesmo? De onde vm os seres? Para onde
vo, quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns
dos outros? Mas tambm, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o
dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o vero, depois deste, o outono edepois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar tranqilo e propcio
navegao; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O calor leva as guas para o cu e astraz de volta pelas chuvas. Ningum nasce adulto ou velho, mas sempre criana, que se tornaadulto e velho.
Foram perguntas como essas que os primeiros filsofos fizeram e para elas
buscaram respostas.
Sem dvida, a religio, as tradies e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suasexplicaes j no satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudana, dapermanncia, da repetio, da desapario e do ressurgimento de
todos os seres. Haviam perdido fora explicativa, no convenciam nem
satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.
O nascimento da Filosofia
Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do sculo VIIe incio do sculo VI antes de Cristo, nas colnias gregas da sia Menor (particularmente as queformavam uma regio denominada Jnia),
na cidade de Mileto. E o primeiro filsofo foi Tales de Mileto.
Alm de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia tambmpossui um contedo preciso ao nascer: uma cosmologia. A palavra cosmologia composta deduas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavralogos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofianasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde,
cosmologia.
Apesar da segurana desses dados, existe um problema que, durante sculos, vem ocupando oshistoriadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que um fato especificamente grego -nasceu por si mesma ou dependeu de contribuies da
sabedoria oriental (egpcios, assrios, persas, caldeus, babilnios) e da sabedoria de civilizaesque antecederam grega, na regio que, antes de ser a Grcia ou a Hlade, abrigara ascivilizaes de Creta, Minos, Tirento e Micenas.
Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformaes que os gregos
operaram na sabedoria oriental (egpcia, persa, caldia e
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Marilena Chau
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babilnica). Assim, filsofos como Plato e Aristteles afirmavam a origem
oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo comerciante e navegante,
descobriram, atravs das viagens, a agrimensura dos egpcios (usada para medir as terras, apsas cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilnios (usada para prever grandes guerras,subida e queda de reis, catstrofes como peste, fome, furaces), as genealogias dos persas(usadas para dar continuidade s linhagens e dinastias dos governantes), os mistrios religiososorientais
referentes aos rituais de purificao da alma (para livr-la da reencarnao
contnua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformaesque os gregos impuseram a esses conhecimentos.
Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas cincias: a
aritmtica e a geometria; da astrologia, fizeram surgir tambm duas cincias: a astronomia e ameteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais uma outra
cincia: a histria; dos mistrios religiosos de purificao da alma, fizeram surgir as teoriasfilosficas sobre a natureza e o destino da alma humana.
Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto , da cosmologia,de sorte que a Filosofia s teria podido nascer graas as saber oriental.
Essa idia de uma filiao oriental da Filosofia foi muito defendida oito sculos depois de seunascimento (durante os sculos II e III depois de Cristo), no
perodo do Imprio Romano. Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como
Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusbio de Cesaria e Clemente de Alexandria.
Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia gregatornara-se, em toda a Antigidade clssica, e para os poderosos da poca, os romanos, a formasuperior ou mais elevada do pensamento e da
moral.
Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma origemoriental, dizendo que o pensamento de filsofos importantes, como
Plato, tinha surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moiss, de
modo que havia uma ligao entre a Filosofia grega e a Bblia.
Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevadose perfeitos, no eram superstio, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que osfilsofos gregos estavam filiados a correntes de
pensamento mstico e oriental e, dessa maneira, estariam prximos do
cristianismo, que uma religio oriental.
No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada orientalista, e muitos,
sobretudo no sculo XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o milagregrego.
Com a palavra milagre queriam dizer vrias coisas:
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Convite Filosofia
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? que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grcia, sem que nada
anterior a preparasse;
? que a Filosofia grega foi um acontecimento espontneo, nico e sem par, como prprio de ummilagre;
? que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a
eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar aFilosofia, como foram os nicos a criar as cincias e a dar s artes uma elevao que nenhumoutro povo conseguiu, nem antes e nem depois
deles.
Nem oriental, nem milagre
Desde o final do sculo XIX da nossa era e durante o sculo XX, estudos
histricos, arqueolgicos, lingsticos, literrios e artsticos corrigiram os exageros das duas teses,isto , tanto a reduo da Filosofia sua origem oriental, quanto o milagre grego .
Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dvidas com asabedoria dos orientais, no s porque as viagens colocaram os
gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos
(sobretudo os egpcios, persas, babilnios, assrios e caldeus), mas tambm
porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesodo,encontraram nos mitos e nas religies dos povos orientais, bem como
nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia
grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filsofos.
Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dana,msica, poesia, utenslios domsticos e de trabalho, formas de habitao, formas de parentesco eformas de organizao tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturasmais avanadas do Oriente e
com a herana deixada pelas culturas que antecederam a grega, nas regies onde ela seimplantou.
Esses mesmos estudos apontaram, porm, que, se nos afastarmos dos exageros da idia de ummilagre grego, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregosimprimiram mudanas de qualidade to profundas no que receberam do Oriente e das culturasprecedentes, que at pareceria terem criado sua prpria cultura a partir de si mesmos. Dessasmudanas, podemos mencionar quatro que nos daro uma idia da originalidade grega:
1. Com relao aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micnicos,minicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesodo, vemos
que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do incio do mundo;humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade
a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituies humanas (como o trabalho,as leis, a moral);
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2. Com relao aos conhecimentos: os gregos transformaram em cincia (isto , numconhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoriaprtica para o uso direto na vida.
Assim, transformaram em matemtica (aritmtica, geometria, harmonia) o que
eram expedientes prticos para medir, contar e calcular; transformaram em
astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros)
aquilo que eram prticas de adivinhao e previso do futuro; transformaram em medicina(conhecimento racional sobre o corpo humano, a sade e a doena)
aquilo que eram prticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenas. Eassim por diante;
3. Com relao organizao social e poltica: os gregos no inventaram apenas a cincia ou aFilosofia, mas inventaram tambm a poltica. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam epraticavam a autoridade e o governo. Mas, por que no inventaram a poltica propriamente dita?
Nas sociedades orientais e no-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridadeabsoluta da vontade pessoal e arbitrria de um s homem ou de um
pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ningum e
sem justificar suas decises para ningum.
Os gregos inventaram a poltica (palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidadeorganizada por leis e instituies) porque instituram prticas pelas quais as decises eramtomadas a partir de discusses e debates pblicos e eram adotadas ou revogadas por voto emassemblias pblicas; porque
estabeleceram instituies pblicas (tribunais, assemblias, separao entre
autoridade do chefe da famlia e autoridade pblica, entre autoridade poltico-militar e autoridadereligiosa) e sobretudo porque criaram a idia da lei e da justia como expresses da vontadecoletiva pblica e no como imposio da
vontade de um s ou de um grupo, em nome de divindades.
Os gregos criaram a poltica porque separaram o poder poltico e duas outras
formas tradicionais de autoridade: a do chefe de famlia e a do sacerdote ou
mago;
4. Com relao ao pensamento: diante da herana recebida, os gregos inventaram a idiaocidental da razo como um pensamento sistemtico que segue regras,
normas e leis de valor universal (isto , vlidas em todos os tempos e lugares.
Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 + 2 sero sempre 4; o
tringulo sempre ter trs lados; o Sol sempre ser maior do que a Terra, mesmo que ele pareamenor do que ela, etc.).
Mito e Filosofia
Resolvido esse problema, agora temos um outro que tambm tem ocupado muito
os estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu
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Convite Filosofia
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realizando uma transformao gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma
ruptura radical com os mitos?
O que um mito?
Um mito uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, doshomens, das plantas, dos animais, do fogo, da gua, dos ventos, do bem e do mal, da sade e dadoena, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raas, das guerras, do poder, etc.).
A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar,falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear,designar). Para os gregos, mito um discurso
pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a
narrativa, porque confiam naquele que narra; uma narrativa feita em pblico, baseada,portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato deque ele ou testemunhou diretamente o que est
narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos
narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem ele? Por que tem autoridade?
Acredita-se que o poeta um escolhido dos deuses, que lhe mostram os
acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisaspara que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - sagrada porque vem de umarevelao divina. O mito , pois, incontestvel e
inquestionvel.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?
De trs maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a me das coisas e dos seres, isto , tudo o que existe decorre de relaessexuais entre foras divinas pessoais. Essas relaes geram os demais deuses: os tits (seressemi-humanos e semidivinos), os heris (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusacom um humano), os humanos, os
metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-mido,
claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc.
A narrao da origem , assim, uma genealogia, isto , narrativa da gerao dos seres, dascoisas, das qualidades, por outros seres, que so seus pais ou
antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mtica.
Observando que as pessoas apaixonadas esto sempre cheias de ansiedade e de
plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para
seduzi-la e tambm serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto , o
nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido):
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Houve uma grande festa entre os deuses. To dos foram convidados, menos a
deusa Penria, sempre miservel e faminta. Quando a festa acabou, Penria veio, comeu osrestos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relao sexual, nasceu Eros (ouCupido), que, como sua me, est sempre faminto,
sedento e miservel, mas, como seu pai, tem mil astcias para se satisfazer e se fazer amado.Por isso, quando Eros fere algum com sua flecha, esse algum se apaixona e logo se sentefaminto e sedento de amor, inventa astcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilhoe semimorto, ora rico e cheio de vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliana entre os deuses que faz surgir alguma coisa nomundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as foras divinas, ou uma aliana entreelas para provocar alguma coisa no mundo dos
homens.
O poeta Homero, na Ilada, que narra a guerra de Tria, explica por que, em certas batalhas, ostroianos eram vitoriosos e, em outras, a vitria cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos,alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficavacom um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos -vencer uma batalha.
A causa da guerra, alis, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para oprncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. Asoutras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau,e isso deu incio guerra entre os
humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses do a quem os desobedece ou a quemos obedece.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens,
o fogo essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar osalimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricarinstrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.
Um tit, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma
centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarradonum rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fgado) e os homenstambm. Qual foi o castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma
caixa que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aoshumanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saramtodas as desgraas, doenas, pestes, guerras e,
sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianas e relaessexuais entre foras sobrenaturais que governam o mundo e o destino
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Convite Filosofia
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dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo so genealogias, diz-se
que so cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer ecrescer) e do substantivo genos (nascimento, gnese, descendncia, gnero, espcie). Gonia,portanto, quer dizer: gerao, nascimento a partir da concepo sexual e do parto. Cosmos, comoj vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia a narrativa sobre onascimento e a organizao do mundo, a partir de foras geradoras (pai e me) divinas.
Teogonia uma palavra composta de gonia e thes, que, em grego, significa: as coisas divinas, osseres divinos, os deuses. A teogonia , portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seuspais e antepassados.
Qual a pergunta dos estudiosos? a seguinte: A Filosofia, ao nascer, , como j dissemos, umacosmologia, uma explicao racional sobre a origem do mundo e
sobre as causas das transformaes e repeties das coisas; para isso, ela nasce de umatransformao gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos?
Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do sculo XIX e comeo do sculo XX,
quando reinava um grande otimismo sobre os poderes cientficos e capacidades
tcnicas do homem. Dizia-se, ento, que a Filosofia nasceu por uma ruptura
radical com os mitos, sendo a primeira explicao cientfica da realidade
produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados do sculo XX, quando os estudos dosantroplogos e dos historiadores mostraram a importncia dos mitos na
organizao social e cultural das sociedades e como os mitos esto
profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade.
Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que aFilosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos prprios mitos, como umaracionalizao deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a
Filosofia, percebendo as contradies e limitaes dos mitos, foi reformulando e racionalizandoas narrativas mticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicao inteiramente nova ediferente.
Quais so as diferenas entre Filosofia e mito? Podemos apontar trs como as
mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longnquoe fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo
existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao contrrio, se preocupa em
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explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto , na totalidade do tempo), ascoisas so como so;
2. O mito narrava a origem atravs de genealogias e rivalidades ou alianas entre foras divinassobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrrio, explica a produo natural dascoisas por elementos e causas naturais e
impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em cu, mar e terra. O
mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) emarinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia
explica o surgimento desses seres por composio, combinao e separao dos
quatro elementos - mido, seco, quente e frio, ou gua, terra, fogo e ar.
3. O mito no se importava com contradies, com o fabuloso e o
incompreensvel, no s porque esses eram traos prprios da narrativa mtica, como tambmporque a confiana e a crena no mito vinham da autoridade
religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrrio, no admite contradies,
fabulao e coisas incompreensveis, mas exige que a explicao seja coerente, lgica eracional; alm disso, a autoridade da explicao no vem da pessoa do filsofo, mas da razo,que a mesma em todos os seres humanos.
Condies histricas para o surgimento da Filosofia
Resolvido esse problema, temos ainda um ltimo a solucionar: O que tornou
possvel o surgimento da Filosofia na Grcia no final do sculo VII e no incio do sculo VI antesde Cristo? Quais as condies materiais, isto , econmicas, sociais, polticas e histricas quepermitiram o surgimento da Filosofia?
Podemos apontar como principais condies histricas para o surgimento da
Filosofia na Grcia:
? as viagens martimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziamhabitados por deuses, tits e heris eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e queas regies dos mares que os mitos diziam
habitados por monstros e seres fabulosos no possuam nem monstros nem seres
fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificao do
mundo, que passou, assim, a exigir uma explicao sobre sua origem, explicao que o mito jno podia oferecer;
? a inveno do calendrio, que uma forma de calcular o tempo segundo as estaes do ano, ashoras do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade deabstrao nova, ou uma percepo do tempo como
algo natural e no como um poder divino incompreensvel;
? a inveno da moeda, que permitiu uma forma de troca que no se realiza atravs das coisasconcretas ou dos objetos concretos trocados por semelhana, mas uma troca abstrata, uma trocafeita pelo clculo do valor semelhante das
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Convite Filosofia
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coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstrao e de generalizao;
? o surgimento da vida urbana, com predomnio do comrcio e do artesanato, dandodesenvolvimento a tcnicas de fabricao e de troca, e diminuindo o
prestgio das famlias da aristocracia proprietria de terras, por quem e para quem os mitosforam criados; alm disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisavaencontrar pontos de poder e de prestgio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras ede sangue (as linhagens constitudas pelas famlias), fez com que se procurasse o prestgio pelopatrocnio e estmulo s artes, s tcnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a
Filosofia poderia surgir;
? a inveno da escrita alfabtica, que, como a do calendrio e a da moeda, revela ocrescimento da capacidade de abstrao e de generalizao, uma vez que a escrita alfabtica oufontica, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hierglifos dos egpcios ou osideogramas dos chineses -, supe que no se represente uma imagem da coisa que est sendodita, mas a idia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
? a inveno da poltica, que introduz trs aspectos novos e decisivos para o nascimento daFilosofia:
1. A idia da lei como expresso da vontade de uma coletividade humana que decide por simesma o que melhor para si e como ela definir suas relaes
internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servir de modelo para a Filosofiapropor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.
2. O surgimento de um espao pblico, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso,diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusasligadas memria (a deusa Mnemosy ne, me das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminaomisteriosa ou uma revelao
sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decises dos deuses que eles
deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto , a cidade poltica, surge a palavra como direito de cada cidado deemitir em pblico sua opinio, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisoproposta por ele, de tal modo que surge o discurso poltico como a palavra humanacompartilhada, como dilogo, discusso e deliberao
humana, isto , como deciso racional e exposio dos motivos ou das razes
para fazer ou no fazer alguma coisa.
A poltica, valorizando o humano, o pensamento, a discusso, a persuaso e a
deciso racional , valorizou o pensamento racional e criou condies para que surgisse o discursoou a palavra filosfica.
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3. A poltica estimula um pensamento e um discurso que no procuram ser formulados por seitassecretas dos iniciados em mistrios sagrados, mas que
procuram, ao contrrio, ser pblicos, ensinados, transmitidos, comunicados e
discutidos. A idia de um pensamento que todos podem compreender e discutir,
que todos podem comunicar e transmitir, fundamental para a Filosofia.
Principais caractersticas da Filosofia nascente
O pensamento filosfico em seu nascimento tinha como traos principais:
? tendncia racionalidade, isto , a razo e somente a razo, com seus
princpios e regras, o critrio da explicao de alguma coisa;
? tendncia a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto , colocado um problema,sua soluo submetida anlise, crtica, discusso e
demonstrao, nunca sendo aceita como uma verdade, se no for provado
racionalmente que verdadeira;
? exigncia de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto , o filsofo aquele que justifica suas idias provando que segue regras universais do pensamento. Para osgregos, uma lei universal do pensamento que a
contradio indica erro ou falsidade. Uma contradio acontece quando afirmo e nego a mesmacoisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: Pedro um menino
e no um menino, A noite escura e clara, O infinito no tem limites e limitado). Assim,quando uma contradio aparecer numa exposio filosfica, ela deve ser considerada falsa;
? recusa de explicaes preestabelecidas e, portanto, exigncia de que, para cada problema, sejainvestigada e encontrada a soluo prpria exigida por ele;
? tendncia generalizao, isto , mostrar que uma explicao tem validade
para muitas coisas diferentes porque, sob a variao percebida pelos rgos de nossos sentidos, opensamento descobre semelhanas e identidades.
Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo diferente da
neblina, que diferente do vapor de uma chaleira, que diferente da chuva, que diferente dacorrenteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmoelemento (a gua), passando por diferentes estados e
formas (lquido, slido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensao, liquefao,evaporao).
Reunindo semelhanas, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparecepara nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamentogeneraliza porque abstrai (isto , separa e rene os traos semelhantes), ou seja, realiza umasntese.
E o contrrio tambm ocorre. Muitas vezes nossos rgos dos sentidos nos fazem perceber coisasdiferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento
demonstrar que se trata de uma coisa diferente sob a aparncia da semelhana.
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No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeiranacional e saram s ruas para exigir o impedimento do presidente da Repblica.
Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para
aparecer na televiso com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as ForasArmadas brasileiras, para persuadir jovens a servi -las, contrataram jovens caras-pintadas paraaparecer como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, vrias empresas,pretendendo vender seus produtos aos jovens,
contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos.
Aparentemente, teramos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e
conscientes, de cara pintada, smbolo da esperana do Pas. No entanto, o
pensamento pode mostrar que, sob a aparncia da semelhana percebida, esto
diferenas, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento poltico
espontneo, os segundos fizeram propaganda poltica para um candidato (e
receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Foras Armadas a aparecer comodivertidas e juvenis, e os ltimos, mediante remunerao, estavam
transferindo para produtos industriais (roupas, calados, vdeos, margarinas, discos, iogurtes) umsmbolo poltico inteiramente despolitizado e sem nenhuma relao com sua origem.
Separando as diferenas, o pensamento realiza, nesse caso, uma anlise.
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Captulo 3
Campos de investigao da Filosofia
Os perodos da Filosofia grega
A Filosofia ter, no correr dos sculos, um conjunto de preocupaes, indagaes e interessesque lhe vieram de seu nascimento na Grcia.
Assim, antes de vermos que campos so esses, examinemos brevemente os
contedos que a Filosofia possua na Grcia. Para isso, de vemos, primeiro,
conhecer os perodos principais da Filosofia grega, pois tais perodos definiram os campos dainvestigao filosfica na Antigidade.
A histria da Grcia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases ou pocas:
1. a da Grcia homrica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero, em seus doisgrandes poemas, Ilada e Odissia;
2. a da Grcia arcaica ou dos sete sbios, do sculo VII ao sculo V antes de Cristo, quando osgregos criam cidades como Atenas, Esparta, Tebas, Megara,
Samos, etc., e predomina a economia urbana, baseada no artesanato e no
comrcio;
3. a da Grcia clssica, nos sculos V e IV antes de Cristo, quando a democracia se desenvolve, avida intelectual e artstica entra no apogeu e Atenas domina a Grcia com seu imprio comerciale militar;
4. e, finalmente, a poca helenstica, a partir do final do sculo IV antes de Cristo, quando aGrcia passa para o poderio do imprio de Alexandre da
Macednia, e, depois, para as mos do Imprio Romano, terminando a histria de sua existnciaindependente.
Os perodos da Filosofia no correspondem exatamente a essas pocas, j que ela no existe naGrcia homrica e s aparece nos meados da Grcia arcaica.
Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da
sociedade gregas; portanto, durante a Grcia clssica.
Os quatro grandes perodos da Filosofia grega, nos quais seu contedo muda e se enriquece, so:
1. Perodo pr-socrtico ou cosmolgico, do final do sculo VII ao final do sculo V a.C., quandoa Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do
mundo e as causas das transformaes na Natureza.
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2. Perodo socrtico ou antropolgico, do final do sculo V e todo o sculo IV
a.C., quando a Filosofia investiga as questes humanas, isto , a tica, a poltica e as tcnicas (emgrego, ntropos quer dizer homem; por isso o perodo recebeu o nome de antropolgico).
3. Perodo sistemtico, do final do sculo IV ao final do sculo III a.C., quando a Filosofia buscareunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia, interessando-sesobretudo em mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosfico, desde que as leis dopensamento e de suas
demonstraes estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critrios da
verdade e da cincia.
4. Perodo helenstico ou greco-romano, do final do sculo III a.C. at o sculo VI depois deCristo. Nesse longo perodo, que j alcana Roma e o pensamento
dos primeiros Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa sobretudo com as questes da tica, doconhecimento humano e das relaes entre o homem e a Natureza e
de ambos com Deus.
Filos