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Para os meus queridos filhos Amo-vos. Amo-vos com todas as minhas forças e peço-vos desculpa por nos ter posto nesta situação mas não me posso dar ao luxo de arrepender, nem por mim, nem por vocês. Preciso de estar certo de que deixar-vos para trás por agora foi e é a única solução que me permitirá recuperar-vos e lutar dignamente para vos dar a vida que merecem, a vida que todos merecemos. Mas, apesar disso, não posso ignorar a vossa necessidade de uma explicação, recuso-me a permitir que vocês sintam que foram abandonados sem motivo, ou que a culpa de alguma maneira é vossa, porque não é, se algo de bom nasceu de toda esta situação, foram vocês. Tudo começou há trinta anos atrás, quando andávamos ambos, eu e a vossa mãe, no liceu, eu em pintura e ela em arquitetura. Já há muito que a admirava de longe, passando pelos corredores, a mulher que sabia ser a mais bonita que eu alguma vez vira, ela andava e os meus olhos seguiam-na avidamente, sonhadores de um dia conseguir cruzar o meu caminho com o dela. E consegui, alguns meses mais tarde, realmente passar a fazer parte da vida daquela que era a minha maior musa, a que me fazia sonhar acordado e me mantinha desperto a noite toda, vagueando com aquele seu ar magistral que exibia, de quem é belo e sabe que o é. Assim, devido a amigos que na altura louvei a Deus ter, consegui criar uma amizade a princípio muito tímida, com diálogos muito pouco desenvolvidos devido à minha gaguez nervosa, que depois, pouco a pouco, foi desvanecendo, dando lugar a uma relação que era linda, tudo aquilo com que eu sempre sonhara e muito mais. Apoiávamo-nos mutuamente e conhecíamos cada capricho, cada desejo um do outro melhor do que os nossos próprios. E fomos assim durante muitos anos, até que, inevitavelmente, a vontade de partilhar toda uma vida acabou por dar forma à ideia de casamento, que foi melhor aceite pelas nossas famílias do que poderíamos alguma vez desejar. Tudo era perfeito, já éramos a família 1

Conto UMAR

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Violência doméstica

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Page 1: Conto UMAR

Para os meus queridos filhos

Amo-vos.

Amo-vos com todas as minhas forças e peço-vos desculpa por nos ter posto nesta situação mas não me posso dar ao luxo de arrepender, nem por mim, nem por vocês. Preciso de estar certo de que deixar-vos para trás por agora foi e é a única solução que me permitirá recuperar-vos e lutar dignamente para vos dar a vida que merecem, a vida que todos merecemos. Mas, apesar disso, não posso ignorar a vossa necessidade de uma explicação, recuso-me a permitir que vocês sintam que foram abandonados sem motivo, ou que a culpa de alguma maneira é vossa, porque não é, se algo de bom nasceu de toda esta situação, foram vocês.

Tudo começou há trinta anos atrás, quando andávamos ambos, eu e a vossa mãe, no liceu, eu em pintura e ela em arquitetura. Já há muito que a admirava de longe, passando pelos corredores, a mulher que sabia ser a mais bonita que eu alguma vez vira, ela andava e os meus olhos seguiam-na avidamente, sonhadores de um dia conseguir cruzar o meu caminho com o dela. E consegui, alguns meses mais tarde, realmente passar a fazer parte da vida daquela que era a minha maior musa, a que me fazia sonhar acordado e me mantinha desperto a noite toda, vagueando com aquele seu ar magistral que exibia, de quem é belo e sabe que o é. Assim, devido a amigos que na altura louvei a Deus ter, consegui criar uma amizade a princípio muito tímida, com diálogos muito pouco desenvolvidos devido à minha gaguez nervosa, que depois, pouco a pouco, foi desvanecendo, dando lugar a uma relação que era linda, tudo aquilo com que eu sempre sonhara e muito mais. Apoiávamo-nos mutuamente e conhecíamos cada capricho, cada desejo um do outro melhor do que os nossos próprios. E fomos assim durante muitos anos, até que, inevitavelmente, a vontade de partilhar toda uma vida acabou por dar forma à ideia de casamento, que foi melhor aceite pelas nossas famílias do que poderíamos alguma vez desejar. Tudo era perfeito, já éramos a família um do outro e aquele dia mágico, quando chegou, superou todas as nossas expetativas, tal como todos os outros momentos na nossa relação. Tivemos a festa de sonho da tua mãe, tudo exuberante, imensos convidados, uma igreja enorme, mas para mim, o mais importante não era isso, podíamos ter casado com dez pessoas numa capela ao lado de casa, não interessava, não podia estar mais feliz por poder oficializar o meu amor eterno por ela.

Os anos foram-se passando e cada vez nos amávamos mais e mais! Certa tarde, a vossa mãe chegou a casa, depois de ter ido a uma simples consulta de rotina e contou-me aquela que seria a melhor coisa que podia ter ouvido naquela altura: estava grávida de vocês! Senti-me o homem mais sortudo do mundo naquele momento. Tinha a mulher que amava ao meu lado e agora esse amor ia dar frutos, os nossos frutos, os nossos filhos.

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Continuámos, agora mais felizes que nunca, a viver a vida ideal com que sempre tínhamos sonhado até que, nove meses depois, nasceram os nossos rebentos. Um rapaz e uma rapariga, tal como ela sempre quisera. Vimo-vos dar os primeiros passos, dizer as primeiras palavras, usar o bacio pela primeira vez, ir para a escola. Aprenderam a ler, a escrever, e, sobretudo, aprenderam a apoiar-se um no outro, sempre, e isso é o mais importante. Eram, mais uma vez, um sonho concretizado, o nosso maior orgulho.

Agora a nossa família estava completa! Agora sim, podíamos dizer que estávamos completa e totalmente felizes e nada poderia estragar essa mesma felicidade. Assim pensava eu…até há dois anos atrás…

Nessa altura, como já não estavam tão dependentes de nós e a mãe queria retomar a sua atividade como arquiteta, a qual tinha ficado em stand-by para se dedicar à família, começou a trabalhar, inicialmente por conta própria e posteriormente num gabinete conceituado.

Com este novo trabalho, a vossa mãe começou a chegar tarde a casa e sem paciência para estar connosco. Qualquer coisa que não lhe agradava era motivo para discussão. Desvalorizei a situação, tentei acompanhar e compreender, pois conheço bem a pressão existente no mundo laboral. Pensei que pelo facto de ter estado alguns anos afastada do mercado de trabalho, sentia a necessidade de se empenhar o mais que podia e por isso estava sob stress. Também tentei acompanhar-vos o melhor possível para que não sentissem o que se estava a passar.

Estávamos na primavera e a vossa mãe estava a fazer um bolo quando, de repente, reparou que já não tínhamos ovos, então pediu-me para ir até à mercearia comprar meia-dúzia. Eu fui, mas já não havia ovos na mercearia então voltei a casa e disse-lho. Ela ficou mesmo muito zangada e deu-me um estalo. Fiquei perplexo, não sabia o que pensar. Nunca tinha acontecido antes! Não consegui reagir e ela apressou-se a pedir desculpa e a dizer que não voltaria a acontecer. Claro que a desculpei! Decerto não teria sido intencional e além disso, tinha sido apenas uma bofetada. Eu era homem suficiente para aguentar uma bofetada. O problema é que não foi só aquele estalo. Dias depois, voltou a acontecer, desta vez porque me tinha esquecido de estender a roupa como ela pedira. Mais uma vez perdoei-a sem hesitar.

No entanto, cerca de três meses depois, eu cheguei a casa mais cedo e, como vocês tinham ficado em casa dos tios, decidi preparar um jantar romântico apenas para nós os dois. A vossa mãe chegou e começou a gritar, dizendo que a única razão pela qual eu tinha preparado aquilo era porque tinha uma amante, tinha andado a traí-la aquele tempo todo e agora só me queria redimir. Eu tentei explicar-lhe que a amava e era incapaz de a trair de forma alguma. Ela não me ouviu e a verdade é que me agrediu com vários objetos e até me feriu o braço com uma faca. Quase fiquei inconsciente e tive mesmo de ir para o hospital. Lá perguntaram-me o que tinha acontecido e, apesar de ter tentado esconder aquilo que se tinha passado dizendo que me tinha magoado no trabalho, a verdade é que os médicos descobriram e deram-me o contacto

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de uma instituição de apoio à vítima. Inicialmente, não queria ligar. Não queria que pensassem que era fraco, não queria desiludir os meus pais, os meus sogros, não queria que os meus filhos pensassem que eu não era um bom pai, que não amava a sua mãe.

Voltei para casa e lá estava a vossa mãe, sentada no sofá. Assim que se apercebeu que eu estava em casa, levantou-se e começou a ofender-me. Desta vez atacou-me não física, mas sim verbalmente. Foi a gota de água. Dirigi-me ao quarto, guardei alguma roupa e saí. Estava apavorado, sozinho, não tinha para onde ir. Então não tinha outra hipótese a não ser contactar a instituição cujo contacto me tinham dado no hospital.

A dor, a humilhação, tudo naquele momento não passavam de imagens que iam surgindo à minha frente, roçando levemente à superfície de mim mesmo, mas sem me atingirem realmente. Não me conseguia permitir sentir tudo aquilo, não enquanto não soubesse que estava realmente seguro e que podia simplesmente encarar as emoções que me tentavam apanhar e de que escapava tão precariamente.

Mas trataram do meu caso e ofereceram-me um lugar numa casa abrigo, local onde me encontro neste momento, onde me estou a recompor, a aprender a lidar com o que me aconteceu e aceitar isso como mais uma prova que tenho de superar, desta vez não apenas por mim, mas também e principalmente por vocês. Não posso revelar-vos o lugar onde me encontro, mas quero pedir-vos para não contarem isto a ninguém. É algo de que não me orgulho e não estou pronto para me expor assim, de repente. Escrevo-vos porque não queria que pensassem que simplesmente vos deixei, sem mais nem menos. Era incapaz de o fazer. Vocês são tudo para mim e tinham o direito de saber toda a verdade.

Mas com esta carta não queria apenas narrar-vos a minha versão da história, que vale apenas como isso, uma versão da história. Queria sim que percebessem o ponto de desespero a que cheguei para ter de tomar as medidas que tomei, e pedir-vos que me prometessem que nunca, mas nunca, vão compactuar com atitudes deste género. Nunca é só uma vez, sem querer, inocente. As situações vão-se sempre agravando, destruindo-vos por dentro até chegar ao exterior, até não se conseguirem erguer mais, até se perderem a vocês próprios e ao rumo que queriam para a vossa vida.

NINGUÉM tem o direito de vos fazer duvidar de vocês próprios e de vos expor a este tipo de situação, ninguém merece que ofusquem a vossa luz interior que se rebaixem, que sofram para alimentar as necessidades de outros. Têm de se defender, de lutar e de marcar a vossa posição por vocês e para vocês, e, se algum dia se encontrarem envolvidos em qualquer tipo de relação tóxica, nunca se deixem pensar que estão sozinhos, não se isolem, não se culpem, e, mais importante que tudo, procurem ajuda, informem-se, existe sempre uma solução, uma saída.

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Não dei exatamente o que se passou. O motivo pelo qual um casal que se amava, acabou por se separar e desta forma. Ainda amo a vossa mãe, mas para que não nos viéssemos a destruir um ao outro, esta foi a única alternativa que encontrei.

Só queria que soubessem a verdade e que percebessem que não tive mesmo outra escolha. Esta era o único caminho possível, pedir ajuda e deixar que me ajudassem. Espero que compreendam. Amo-vos com todo o meu coração.

P.S: Como não trouxe nenhuma fotografia vossa comigo, decidi desenhar alguns dos melhores momentos que passámos e recriar o primeiro desenho que fizeram para mim. Espero que gostem e que vos relembre os bons momentos que passámos juntos. Em “breve” voltaremos a estar juntos.

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O vosso querido Pai