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Psicologia em Estudo ISSN: 1413-7372 [email protected] Universidade Estadual de Maringá Brasil Osmo, Alan; Kupermann, Daniel Confusão de línguas, trauma e hospitalidade em Sándor Ferenczi Psicologia em Estudo, vol. 17, núm. 2, junio, 2012, pp. 329-339 Universidade Estadual de Maringá Maringá, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=287124798015 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Confusão de Linguas Sandor Ferenczi (1)

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  • Psicologia em EstudoISSN: [email protected] Estadual de MaringBrasil

    Osmo, Alan; Kupermann, DanielConfuso de lnguas, trauma e hospitalidade em Sndor FerencziPsicologia em Estudo, vol. 17, nm. 2, junio, 2012, pp. 329-339

    Universidade Estadual de MaringMaring, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=287124798015

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    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

  • Psicologia em Estudo, Maring, v. 17, n. 2, p. 329-339, abr./jun. 2012

    CONFUSO DE LNGUAS, TRAUMA E HOSPITALIDADE EM SNDOR FERENCZI1

    Alan Osmo* Daniel Kupermann#

    RESUMO. Neste trabalho discutimos as ideias de confuso de lnguas, de trauma e de hospitalidade no campo psicanaltico. Para Ferenczi, a relao adulto-criana marcada por uma confuso decorrente de uma diferena de lnguas, de forma que muitas vezes um no entende o outro. Nesse contexto, possvel a emergncia do trauma patognico. A experincia analtica, ao invs de levar o acontecimento traumtico a domnios psquicos melhores, pode reproduzir e at agravar o que foi vivido como catastrfico na infncia. Neste sentido, o princpio de hospitalidade na clnica analtica de suma importncia para se evitar uma possvel reproduo do trauma entre analista e analisando. Neste artigo utilizamos como referncia principal a obra de Sndor Ferenczi, estabelecendo relaes em alguns pontos com textos de Jacques Derrida e de Walter Benjamin, que discutem a origem da confuso de lnguas e o problema da possibilidade da traduo. Palavras-chave: Ferenczi, Sandor; trauma psquico; hospitalidade.

    CONFUSION OF TONGUES, TRAUMA AND HOSPITALITY IN SNDOR FERENCZI

    ABSTRACT. In this paper, we discuss the ideas of confusion of tongues, trauma and hospitality in the field of psychoanalysis. For Ferenczi, the adult-child relationship is marked by a sort of confusion due to a difference of tongues (languages), which makes that often one does not understand the other. In this context, it is possible the emergence of the pathogenic trauma. The analytic experience can, instead of bringing the traumatic event to better psychic layers, produce again or even aggravate what was experienced as trauma in the childhood. In this sense, the principle of hospitality presents itself as crucial in order to prevent a possible reproduction of the trauma between analyst and analysand. In this article we used as main reference the work of Sandor Ferenczi, establishing relations at some points with texts from Jacques Derrida and Walter Benjamin, which discuss the origin of the confusion of tongues and the problem of the possibility of translation. Key words: Ferenczi, Sandor; psychic trauma; hospitality.

    CONFUSIN DE LENGUAS, TRAUMA Y HOSPITALIDAD EN SNDOR FERENCZI

    RESUMEN. En este trabajo se discuten los conceptos de confusin de lenguas, trauma y hospitalidad en el campo del psicoanlisis. Para Ferenczi, la relacin adulto-nio est marcada por una confusin debido a una diferencia de lenguas, lo que hace que a menudo uno no entienda al otro. En este contexto, es posible la aparicin del trauma patgeno. La experiencia analtica puede, en lugar de llevar el acontecimiento traumtico a un mejor plano psquico, reproducir e incluso empeorar lo que se vivi como un trauma en la infancia. En este sentido, el principio de la hospitalidad se presenta como crucial en la clnica psicoanaltica con el fin de evitar la posible reproduccin del trauma entre analista y analizando. En este artculo, hemos utilizado como principal referencia la obra de Sndor Ferenczi, estableciendo relaciones en algunos puntos con textos de Jacques Derrida y de Walter Benjamin, que discuten el origen de la confusin de lenguas y el problema de la posibilidad de traduccin. Palabras-clave: Ferenczi, Sandor; trauma psiquico; hospitalidad.

    1 Apoio: Fapesp.

    *

    Psiclogo, formado pela Universidade de So Paulo. # Professor doutor do Departamento de Psicologia Clnica do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo (USP),

    psicanalista membro da Formao Freudiana do Rio de Janeiro.

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    BABEL E A CONFUSO DE LNGUAS

    Em Torres de Babel, o filsofo Jacques Derrida realiza uma leitura do mito bblico. Para Derrida (2006), essa histria conta, entre outras coisas, a origem da confuso de lnguas, a multiplicidade dos idiomas, a tarefa necessria e impossvel da traduo, sua necessidade como impossibilidade (pp. 20-21).

    Gnesis 11 narra sobre um tempo em que todos os povos falavam uma s lngua. A grande famlia semtica tinha o projeto, ento, de edificar uma cidade e uma torre que se ergueria aos cus. Eles queriam dar a si mesmos um nome, de modo que no fossem espalhados pela Terra. Deus reage a esse projeto: Eis que o povo um, e todos tm uma mesma lngua; e isto o que comeam a fazer (...). Eia, desamos e confundamos ali a sua lngua, para que no entenda um a lngua do outro (Gensis 11, 6-7).

    Assim, a construo da cidade interrompida: Deus dispersa os homens sobre a terra, clamando seu nome: Babel.

    Acerca da multiplicidade de sentidos contida no nome Babel, Derrida retoma o artigo Babel, presente no Dicionrio Filosfico de Voltaire:

    No sei por que dito na Gnese que Babel significa confuso; pois Ba significa pai nas lnguas orientais, e Bel significa Deus; Babel significa a cidade de Deus, a cidade santa. Os antigos davam esse nome a todas as suas capitais. Mas incontestvel que Babel quer dizer confuso, seja porque os arquitetos foram confundidos aps terem erguido sua obra at oitenta e um mil ps judeus, seja porque as lnguas se confundiram; e desde esse tempo que os alemes no entendem mais os chineses (Voltaire, 1764, citado por Derrida, 2006, pp. 12-13).

    Babel, como diz Derrida (2006), alm de ser um nome prprio, portanto intraduzvel, quer dizer confuso em ao menos dois sentidos: o da confuso de lnguas e o do estado de confuso dos arquitetos diante da estrutura interrompida; mas Babel quer dizer ainda o nome do pai, ou mais precisamente, o nome de Deus como nome do pai: Dando seu nome, dando todos os nomes, o pai estaria na origem da linguagem e esse poder pertenceria de direito a Deus o pai. E o nome de Deus o pai seria o nome dessa origem das lnguas (p.14). Mas tambm Deus, que ao mesmo tempo desune as lnguas, semeando a confuso entre os homens, ou seja, que aparece na origem da

    multiplicidade dos idiomas. Consequentemente, como afirma Derrida, Deus impe e interdiz ao mesmo tempo a traduo (p.18).

    De que Deus pune os homens ao fazer isso? Para Derrida (2006), o projeto de construo da cidade e da torre que se ergueria aos cus, pela grande famlia semtica, tinha como pretenso impor ao universo seus recm-fundados imprio e lngua. Eles queriam com essa construo fazer a si um nome, assegurando assim uma genealogia nica e universal (p.17). Deus interrompe esse projeto impondo seu nome; as lnguas, ento, se dispersam, se confundem, se multiplicam.

    A partir do ensaio de Derrida, podemos pensar a confuso de lnguas como algo que aparece inevitvel desde a instaurao de uma origem das lnguas; mas tambm como o que vai exigir a tarefa de traduo, ainda que obrigando ao tradutor uma certa renncia.2

    Esta leitura do mito bblico de Babel nos pareceu um ponto de partida interessante para introduzir este artigo, no qual procuramos discutir as ideias de confuso de lnguas, de trauma e de hospitalidade no terreno da psicanlise. O percurso adotado parte da reflexo acerca da relao do adulto com a criana em um contexto traumtico, avana problematizando a relao do analista com o analisando na situao analtica e o que nesta pode reproduzir e at agravar o que foi vivido como trauma na infncia; e, por fim, conclui referindo-se relao entre o beb e o ambiente que o acolhe, na qual a dimenso da hospitalidade aparece como fundamental. Utilizamos como referncia principal a obra do psicanalista hngaro Sndor Ferenczi, estabelecendo relaes, em alguns pontos, com textos de Jacques Derrida e de Walter Benjamin que discutem a origem da confuso de lnguas e o problema da possibilidade da traduo.

    CONFUSO DE LNGUAS EM FERENCZI

    A ideia de confuso de lnguas abordada por Ferenczi em um polmico texto intitulado Confuso de lngua entre os adultos e a criana (A linguagem

    2 Em sua traduo do texto Die Aufgabe des Ubersetzers de

    Walter Benjamin (1923/2008), Susana K. Lages explicita que h uma ambiguidade de sentidos no termo Aufgabe, que poderia ser tanto entendido como tarefa, quanto por renncia.

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    da Ternura e da Paixo), de 1933. importante situ-la em relao noo de trauma, que tem grande relevncia na obra do autor, no que diz respeito a aspectos tanto tericos quanto clnicos (Ferenczi os via como indissociveis). Tentaremos, mais adiante, esboar uma diferenciao entre confuso de lnguas e trauma, apesar de o autor no chegar a realiz-la explicitamente.

    No texto mencionado, Ferenczi (1933/1992) conta como habitualmente aconteceria uma seduo incestuosa de uma criana por parte de um adulto:

    Um adulto e uma criana amam-se; a criana tem fantasias ldicas, como desempenhar um papel maternal em relao ao adulto. O jogo pode assumir uma forma ertica, mas conserva-se, porm, sempre no nvel da ternura. No o que se passa com os adultos se tiverem tendncias psicopatolgicas... Confundem as brincadeiras infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidade sexual, e deixam-se arrastar para a prtica de atos sexuais sem pensar nas consequncias (pp.101-102).

    Os casos em que se pratica uma violncia sexual contra a criana tm como pano de fundo uma confuso decorrente de uma diferena de lnguas entre o adulto e a criana: de um lado h o jogo que acontece ao nvel da ternura e, do outro, os desejos de um adulto que atingiu a maturidade sexual. A seduo incestuosa acontece quando o adulto confunde a ternura infantil com amor sensual.

    Para ilustrar o problema da confuso de lnguas de outra forma, podemos evocar o que Ferenczi (1933/1992) chama de punio passional:

    Os delitos que a criana comete, de brincadeira, s passam a ter um carter de realidade pelas punies passionais que recebem de adultos furiosos, rugindo de clera, o que acarreta numa criana, no culpada at ento, todas as consequncias da depresso (p.104).

    Esta citao se refere a casos em que a criana pratica inocentemente um delito e punida excessivamente por um adulto sem controle. Apenas a partir de ento apareceria nela o sentimento de culpa, algo que seria prprio do adulto.

    Tanto nos casos de seduo incestuosa quanto nos de punio passional, discutidos por Ferenczi, parece que h um confronto entre duas lnguas que teriam qualidades distintas, uma confuso promovida por conta de uma dissimetria entre o

    mundo do adulto e o mundo da criana. Como escreve Ferenczi (1928/1992a), o que escapa precisamente aos pais o que para as crianas o bvio; e o que as crianas no percebem claro como o dia para os pais (p.8). Ferenczi d o nome de lngua da paixo ao que seria prprio da onipotncia narcsica do adulto, e o de lngua da ternura ao que seria da ordem da iluso de onipotncia ldica infantil.3 Sobre a diferena da natureza entre elas, importante salientar que o prprio autor, no ps-escrito do referido texto, diz que um problema que continua em suspenso.

    Pinheiro (1995), ao comentar esse tema, assinala alguns pontos importantes. O adulto da paixo aquele que perde seus limites. A palavra paixo seria empregada por Ferenczi em um sentido de exagero ou de abuso, tpico do psictico. No que essa paixo seja propriedade exclusiva de psicticos, pois ela pode estar presente em qualquer adulto em algum momento de sua relao com a criana: trata-se de um comportamento efetivo, de fato apaixonado, desmesurado, louco (p. 71).

    Do outro lado h a ternura, que no conhece o exagero da desmesura. Ela deve ser entendida no como ausncia de sexualidade, mas como anterior sexualidade sob o primado genital. A lngua da ternura, que a prpria da criana, a lngua do ldico. Sobre isto escreve Ferenczi (1930/1992b): O que a criana deseja, de fato, mesmo no que diz respeito s coisas sexuais, somente o jogo e a ternura, e no a manifestao violenta da paixo (p.64).

    A ideia de confuso de lnguas parece colocar em jogo o problema da multiplicidade de lnguas. Muitas vezes os adultos e as crianas no falam a mesma lngua, eles so estrangeiros entre si.

    O TRAUMA E SUAS CONSEQUNCIAS

    importante, neste contexto, aprofundarmos uma das problemticas centrais em Ferenczi: o trauma patognico4. Esse tipo de trauma acontece em dois

    3 O termo alemo Sprache pode ser traduzido tanto por

    lngua quanto por linguagem. Neste trabalho, optamos pela traduo por lngua.

    4 O conceito de trauma compreendido de diferentes

    maneiras na psicanlise, conforme a abordagem terica de cada autor. Alguns autores privilegiam uma dimenso estruturante do trauma, constitutiva da subjetividade e inevitvel, devido necessria insero do sujeito no campo da cultura e da linguagem (cf. Lacan, 1953/1998; cf.

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    tempos. Podemos chamar o primeiro momento de choque. Trata-se de um acontecimento em que se age de forma esmagadora sobre o sujeito, de maneira que ele no pode oferecer resistncia. importante procurar no restringir esse acontecimento a um determinado tipo de experincia, apesar de o prprio Ferenczi se referir muitas vezes a experincias de seduo incestuosa, de punio passional, ou de abandono.

    O choque sobrevm sempre sem preparao, ele tem o carter de algo sbito e equivale aniquilao do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas defesa do si mesmo (Ferenczi, 1934/1992c, p.109). Diante do grande desprazer gerado, uma possibilidade de escape oferecida pela autodestruio: uma desorientao psquica, gerada pela destruio do que mantm a coeso das formaes psquicas em uma entidade. Isto gera uma suspenso de toda a espcie de atividade psquica, a includa tambm a percepo.

    Durante esse estado de paralisia sensorial aceitar-se- sem resistncia toda impresso mecnica e psquica e nenhum trao mnmico subsistir dessas impresses, de sorte que as origens do choque se tornaro inacessveis memria. Contra uma impresso que no percebida no h defesa possvel (Ferenczi, 1934/1992c, p.113).

    No obstante, como escreve Ferenczi (1932/1990), aps o choque a vtima ainda pode ser socorrida. A criana est confusa, ela nada pode dizer sobre o que aconteceu. Por conta disso ela vai buscar junto a algum de confiana algum sentido, ou ao menos um testemunho. a ento que pode ocorrer o segundo momento do trauma: o desmentido.

    importante ressaltar esse ponto, pois um dos aspectos fundamentais da teoria do trauma de Ferenczi (1934/1992c) que o comportamento dos adultos em relao criana que sofreu o traumatismo faz parte do modo de ao psquica do trauma (p.111). As possveis reaes dos adultos, no sentido de produzir o traumtico na criana, seriam: dar provas de

    Laplanche, 1988); porm a maioria dos comentadores de Ferenczi privilegiam o estatuto desestruturante do trauma, que produz efeitos catastrficos para a subjetividade (cf. Haynal, 1995; cf. Kupermann, 2006; cf. Sabourin, 1988). Neste caso, considera-se o trauma vinculado s vicissitudes da histria de vida e das relaes estabelecidas pelo sujeito com o ambiente em que vive. Nesse artigo, utilizamos o termo trauma patognico, como aparece na obra ferencziana, para evitar uma possvel confuso com a concepo de trauma estruturante.

    incompreenso; punir a criana; exigir dela um herosmo da qual ela ainda no capaz; ou reagir com um silncio mortfero.

    De qualquer forma, essa atitude dos pais ou dos adultos cuidadores a de que no aconteceu nada, desautorizando a verso da criana. As aluses da criana acabam sendo ignoradas ou tratadas como irrelevantes e, diante disso, a criana cede e deixa de poder sustentar sua prpria opinio a tal respeito (Ferenczi, 1932/1990, p.58). Ser justamente o desmentido que tornar o trauma patognico: O pior realmente a negao, a afirmao de que no aconteceu nada, de que no houve sofrimento ou at mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumtica dos pensamentos ou dos movimentos, lemos em Ferenczi (1931/1992d, p.79).

    Por outro lado, Ferenczi (1931/1992d) observa: Tem-se mesmo a impresso de que esses choques graves so superados, sem amnsia nem sequelas neurticas, se a me estiver presente, com toda a sua compreenso, sua ternura e, o que mais raro, uma total sinceridade (pp.79-80). Neste caso, em que a reao do adulto no o desmentido, mas sim, a compreenso e o acolhimento, o trauma patognico no acontece.

    Assim, para acontecer o trauma so necessrios os dois momentos: o do choque e o do desmentido. Mas como possvel saber se eles ocorreram?

    Para Ferenczi, o acontecimento traumtico permanece inacessvel memria de quem o vivenciou. So visveis apenas as cicatrizes deixadas por ele no psiquismo. Nesse sentido, para nos aprofundarmos na noo de trauma em Ferenczi, convm nos determos um pouco no que seriam as suas consequncias para o sujeito.

    A defesa psquica utilizada diante do traumatismo a clivagem narcsica. Uma das partes da personalidade que foi clivada sobrevive em segredo e esfora-se constantemente por manifestar-se (Ferenczi, 1930/1992b, p. 65). A metfora utilizada por Ferenczi para ilustrar esse mecanismo a de que em uma parte do corpo se abrigariam as parcelas de um gmeo que foi inibido. A outra parte, a que foi poupada, assumiria o trabalho de adaptao realidade.

    Tudo se passa como se, em decorrncia do processo traumtico, a relao de objeto, tornada impossvel, fosse bruscamente transformada em uma

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    relao narcsica. Ferenczi (1934/1992c) assim se refere um homem abandonado pelos deuses:

    Se at aqui esteve privado de amor, inclusive martirizado, desprende agora um fragmento de si mesmo que, sob a forma de pessoa dispensadora de cuidados, prestimosa..., sente piedade da parte restante e atormentada da pessoa, cuida dela, decide por ela... Ela a prpria bondade e inteligncia, um anjo da guarda, por assim dizer. Esse anjo v desde fora a criana que sofre, ou que foi morta... percorre o mundo inteiro em busca de ajuda, imagina coisas para a criana que nada pode salvar (p.117).

    Tem-se aqui o mesmo mecanismo do qual a criana abandonada lana mo que Ferenczi (1931/1992d) descreve em Anlises de crianas com adultos. Uma parte de sua prpria personalidade comea a desempenhar o papel da me ou do pai com a outra parte, de forma a tornar o abandono nulo ou sem efeito (p.76); ou seja, um fragmento passa a desempenhar um papel de instncia autoperceptiva que quer acudir em ajuda.

    Essa clivagem marca tambm a diviso da subjetividade em uma parte sensvel, brutalmente destruda, e uma parte que sabe tudo mas nada sente (Ferenczi, 1931/1992d, p.77). Cabe destacar, como consequncia desse processo, a relao que se passa a ter com o corpo. Este fica anestesiado, entregue. O sujeito passa a v-lo como se estivesse do lado de fora, como se todo o sofrimento e dor fosse infligido a outro ser (Ferenczi, 1932/1990).

    Outra consequncia importante do trauma patognico a identificao com o agressor. Ferenczi (1933/1992) vai levantar a hiptese de que, diante de uma experincia de violncia ou seduo, a criana, que tem a personalidade ainda fracamente desenvolvida, reage ao brusco desprazer, no pela defesa, mas pela identificao ansiosa e a introjeo daquele que a ameaa e agride (p.103). Ela se converte em um ser que obedece mecanicamente ou que se fixa em uma atitude obstinada.

    Diante da fora e autoridade esmagadora dos adultos, as crianas sentem-se inibidas por um medo intenso. Esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se automaticamente vontade do agressor, a adivinhar

    o menor dos seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmas (Ferenczi, 1933/1992, p.102) e, por fim, a identificarem-se com ele. Nesta identificao, o agressor desaparece enquanto realidade exterior e torna-se intrapsquico (p.102), e, atravs da alucinao negativa, a agresso deixa de existir enquanto acontecimento real.

    Segundo Pinheiro (1995), a identificao com o agressor, para Ferenczi, remete a uma imagem de invaso no ego da criana. O agressor usurpa o espao egico e toma posse deste lugar como se assumisse a fala da criana ou ocupasse seu espao psquico (p.83); ele torna-se o posseiro desse ego, ignorando o seu verdadeiro dono.

    Para preservar o adulto idealizado que a agrediu, a criana se dispe a clivar-se e a tornar-se culpada de algo que ela no conhece, de algo em que no percebeu nenhum mal (Pinheiro, 1995, p.73). mais suportvel para a criana tornar-se, ela prpria, a culpada, j que perder seu objeto idealizado neste momento equivale ao risco de aniquilamento ou despedaamento psquico.

    Por fim, cabe destacar o que Ferenczi (1933/1992) denomina progresso traumtica. Esta descrita como uma prematurao patolgica de parte da personalidade, que acontece tal como a maturidade apressada de um fruto bichado (p.104). Trata-se da ecloso surpreendente e sbita, como ao toque de uma varinha mgica, de faculdades novas (p.104), que estavam aguardando tranquilamente o momento de expressar-se. Sob a presso do trauma, a criana passa a manifestar os gestos mimetizados de um adulto.

    possvel remeter-nos aqui a um sonho que Ferenczi (1931/1992d) diz acontecer com relativa frequncia, ao qual deu o nome de sonho do beb sbio. Neste sonho, uma criana recm-nascida ou um beb comea a falar de sbito, aconselhando sabiamente os pais e outros adultos, podendo se transformar em uma espcie de psiquiatra diante dos adultos e, como tal, ser obrigada a resolver os conflitos familiares e a carregar sobre seus ombros o fardo dos outros membros da famlia; porm isso tudo acontece custa dos interesses prprios da criana, que perde sua espontaneidade.

    A consequncia, para o sujeito, dessa aquisio precoce de um saber e de uma maturidade prpria dos adultos um comprometimento da capacidade

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    de afetar e ser afetado pelo outro, que se faz acompanhar de uma dificuldade de expressar afetos de amor e de dio e de uma diminuio da potncia para se afirmar de modo singular (Kupermann, 2006).

    Algo que chama a ateno a partir do que foi exposto que, para Ferenczi, em decorrncia do trauma patognico, no h, como se poderia esperar diante de uma ideia de adoecimento psquico, algum tipo de paralisao ou regresso a formas de funcionamento mais arcaicas, mas sim, uma relativa adaptao realidade. Diz o autor que toda adaptao tem lugar numa pessoa que se tornou malevel pela dissociao devida ao terror (Ferenczi, 1932/1990, p.50). Um sofrimento que assim superado torna a pessoa mais prudente e mais paciente, porm isso pode acarretar uma restrio considervel da qualidade emocional da vida: fica-se com a maior parte do interesse suspenso no outro mundo, e o fragmento restante apenas forte para viver uma vida de rotina (Ferenczi, 1932/1990, p.66).

    O DESMENTIDO TRAUMTICO E A TRADUO POSSVEL

    Vimos anteriormente que a confuso de lnguas se impe a ns como uma espcie de pano de fundo na relao entre os sujeitos e como destino explcito quando pensamos na relao adulto-criana. Se, recuperando a narrativa de Babel, pensarmos a confuso de lnguas como inevitvel a partir da multiplicidade das lnguas, como fica a questo do trauma?

    O trauma patognico no poderia ser simplesmente a confuso de lnguas, pois, se assim fosse, qualquer relao em que ela se evidenciasse seria potencialmente traumtica e acarretaria consequncias patolgicas ao sujeito. O que, ento, distingue o trauma? E como, em meio confuso, se evitar um trauma? Para buscar esclarecer essas questes, a noo de desmentido torna-se essencial.

    Vimos anteriormente que para ocorrer o trauma so necessrios dois momentos, Assim, ele pode ser evitado em seu aspecto patognico desde que no haja o desmentido por parte da pessoa de confiana qual se recorre em busca de sentido para a violao.

    Sabourin (1988) ressalta que, caso sua reao seja o desmentido, so dois desmentidos que operam ao mesmo tempo: o desmentido pelo adulto da histria factual, ou seja, do que aconteceu, e o desmentido da autonomia do pensamento da criana.

    A esse respeito, Pinheiro (1995) aponta que a criana deposita uma confiana cega no adulto. Essa confiana se v ameaada quando o adulto no corresponde s suas expectativas, ou seja, as de algum que ir escut-la, acreditar nela e ajud-la a representar o que aconteceu. Diante desse desmentido a criana fica confusa: Ser o adulto ou ser ela que no merece confiana? (p.82).

    Segundo esta autora, a criana s pode ter uma palavra prpria quando esta intermediada pela sua relao com o adulto. A princpio, ela toma palavras emprestadas do adulto e dirige a ele sua palavra para obter uma confirmao. Este vaivm condio imprescindvel para que a criana conquiste sua prpria palavra. , portanto, por intermdio do adulto ... que a fala da criana pode ou no ter sua existncia autorizada (Pinheiro, 1995, p.74). Com o desmentido produzida uma incompatibilidade simblica. O desmentido assume o tom de uma verdade absoluta e, com isso, o que a criana fala passa a ser considerado como uma mentira absoluta.

    Negando-se a autonomia do pensamento da criana e a sua palavra prpria, impe-se uma lngua que tem um carter nico, universal, algo que podemos associar ao projeto de construo da torre, na narrativa de Babel, que tinha como pretenso impor ao universo um imprio e uma lngua.

    Como contraposio concepo de desmentido traumtico, recorremos a um ensaio de Walter Benjamin (1923/2008) sobre a tarefa do tradutor, no qual a questo da multiplicidade das lnguas pensada de outra maneira que no a da simples confuso e distncia entre elas. Enquanto, com o desmentido, h uma sobreposio ou uma dominao de uma lngua sobre outra a partir de uma pretenso de se tornar absoluta, total, Benjamin vai pensar em uma possvel complementaridade das lnguas.

    Benjamin (1923/2008) sugere que uma lngua se encontra em constante transformao. At mesmo as palavras que j se fixaram em um texto

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    tm sua maturao pstuma, de forma que o tom e a significao se alteram ao longo do tempo. Uma lngua tomada isoladamente permanece incompleta; aquilo que nela se quer dizer encontra-se oculto. Em todas as lnguas e em todas as suas construes resta, alm do comunicvel, um elemento no comunicvel. No obstante, as lnguas no seriam estranhas umas s outras, sendo a priori e abstraindo de todas as ligaes histricas - afins naquilo que querem dizer (p.70). Essa afinidade entre as lnguas repousaria sobre o fato de que em cada uma delas, tomada como um todo, uma s e a mesma coisa designada (p.72). Em sua pluralidade, as lnguas se complementariam a partir da totalidade de suas intenes. Para Benjamin (1923/2008), a traduo tenderia a expressar o mais ntimo relacionamento das lnguas entre si, ainda que ela seja apenas um modo provisrio de lidar com a estranheza das lnguas (p.73). Uma soluo definitiva para essa estranheza permanece vedada aos homens.

    Comentando Benjamin, Derrida (2006) ressalta que, em cada lngua, visa-se algo que tambm visado em outras lnguas, mas nenhuma delas pode atingi-lo separadamente. Dessa maneira, possvel dizer que cada lngua est como que atrofiada em sua solido, magra, parada no seu crescimento, enferma (p.67). Seria a partir da traduo - ou seja, da suplementaridade lingustica pela qual uma lngua d a outra o que lhe falta - que o cruzamento das lnguas assegura o crescimento das lnguas.

    Propomos, neste trabalho, que o desmentido aquilo que diferencia o trauma da confuso de lnguas. Neste sentido, o trauma patognico pode ser evitado em meio confuso de lnguas, j que as lnguas, por mais estranhas que sejam entre si, podem se aproximar e se complementar sem que uma subjugue a outra. Trabalharemos, em seguida, essa questo a partir dos efeitos de significncia almejados pela clnica psicanaltica.

    CONFUSO DE LNGUAS ENTRE OS ANALISTAS E O ANALISANDO

    Vimos anteriormente, acompanhando Ferenczi, a confuso de lnguas presente na relao entre adulto e criana a partir das ideias de lngua da ternura e lngua da paixo. Em uma das anotaes de seu Dirio

    Clnico5, Ferenczi (1932/1990) parece estar atento tambm ao que poderamos chamar de confuso de lnguas na relao do analista com o analisando. Diz a nota: Quem louco, ns ou os pacientes? (As crianas ou os adultos?) (p.129). Depreende-se dessa indagao uma segunda questo, que pode ser posta da seguinte maneira: pode a experincia psicanaltica ser traumatizante para o analisando?

    Nesse comentrio Ferenczi (1932/1990) realiza uma (auto)crtica implacvel em relao ao mtodo teraputico da psicanlise, que teria se tornado cada vez mais impessoal, alertando para uma situao muito confortvel, na qual o analista pode se acomodar. Muitas vezes o analista no percebe que uma grande parcela da resistncia transferencial artificialmente provocada por seu comportamento, que consiste em flutuar como uma divindade acima do paciente rebaixado ao nvel de criana. O analista pode se deixar ficar por um longo tempo nessa posio de superioridade na qual amado sem reciprocidade, numa situao semelhante da megalomania infantil:

    De um modo inteiramente inconsciente, o mdico pode assim colocar-se, com toda a inocncia consciente, em situao infantil em face do seu paciente. Uma parte do comportamento de um tal analista pode, com razo, ser qualificada de louca pelo paciente. Certas teorias do mdico (ideias delirantes) no podem ser abaladas; se, no entanto, o paciente fizer isso, um mau aluno, recebe uma nota baixa, est opondo resistncia (pp.131-132).

    Muitas vezes o saber do analista pode assumir, aos olhos do paciente, um carter delirante; um saber excessivo, que quer se colocar como verdadeiro, em contraposio a outro saber, o do analisando. Para Ferenczi (1932/1990), na prpria loucura haveria um saber, j que o louco possui um olhar agudo para as paixes humanas. Em sua situao particular, ele estaria em uma posio de conhecer um pouco dessa parte da realidade imaterial que nos inacessvel a ns materialistas (p.67).

    5 O Dirio Clnico, escrito por Ferenczi (1932/1990) no

    ltimo ano de sua vida, foi publicado apenas na dcada de 1980, ou seja, muito depois da sua morte. Nesse Dirio, que tem um carter inteiramente espontneo, Ferenczi expressa ideias originais no campo terico da psicanlise, profundos questionamentos ao dispositivo clnico tradicional, bem como divergncias em relao ao prprio Freud.

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    Ento na clnica no seria inevitvel a confuso de lnguas quando o analista, imerso em um discurso terico, dispe-se a receber algum para anlise? Um dos grandes riscos presentes nessa situao o da reproduo do desmentido: desmentido da realidade do que narrado pelo analisando e desmentido de uma lngua que lhe seria prpria.

    A esse respeito, Sabourin (1988) alerta para os perigos de o analista fazer uso de uma teoria ou de uma fantasia para ridicularizar a realidade psquica do analisando. Quando isso acontece, a psicanlise agrava o desmentido da experincia infantil que j havia ocorrido por responsabilidade dos adultos. Desse modo, se o desmentido de um adulto o decisivo no fenmeno traumtico, consequentemente, o desmentido pelo psicanalista o que pode provocar passagens ao ato muito graves, por uma reproduo pior do que o traumatismo original (p.154).

    A fim de que o desmentido no se repita na situao analtica, fundamental que haja confiana na relao entre analista e analisando, possibilitando-se assim um contraste entre o presente e o que foi vivido no passado. A crtica de Ferenczi (1933/1992) se dirige a uma psicanlise puramente intelectual, insensvel e pedaggica:

    A situao analtica, essa fria reserva, a hipocrisia profissional e a antipatia a respeito do paciente que se dissimula por trs dela, e que o doente sente com todos os seus membros, no difere essencialmente do estado de coisas que outrora, ou seja, na infncia, o fez adoecer. (p.100).

    O paradoxal que o risco de uma anlise assim realizada justamente o de produzir um bom aluno, algum que aceita docilmente as interpretaes do analista e que incapaz de critic-lo. Em vez de contradizer o analista, de acus-lo de fracasso ou de cometer erros, os pacientes identificam-se com ele (Ferenczi, 1933/1992, p. 98), assim como haviam se identificado anteriormente com o agressor da sua infncia.

    O saber excessivo - e delirante - do analista , assim, um dos principais fatores que contribuem para a reproduo do desmentido na clnica. O analista acaba por se esquecer de reconhecer que h limites em seu saber, assim como de que h uma insuficincia em sua ajuda, algo que Ferenczi (1932/1990) chama de

    falha analtica. Em contraposio a uma atitude de hipocrisia profissional, Ferenczi (1928/1992e) valoriza a modstia do analista. Para isso importante que este consiga reconhecer seus erros, de forma que o analisando possa confiar em sua sinceridade e franqueza. O fanatismo da interpretao seria algo extremamente nocivo, promovendo o esquecimento de que a tcnica da interpretao apenas um dos meios para se conhecer o estado psquico do analisando, e no o objetivo principal da anlise. Como a interpretao se restringe a certos detalhes, seria indispensvel a compreenso do conjunto do texto, uma vez que o mais importante a considerao da situao analtica como um todo (Ferenczi, 1924/1993).

    Nesse sentido, uma das preocupaes constantes de Ferenczi recai sobre a formao do analista, j que, assim como adultos, devido a pulses mal-controladas, acabam por conduzir uma educao que deixa de respeitar os movimentos prprios da criana, tambm os analistas podem, no processo teraputico, ter reaes excessivas - seja no sentido de exigncias de frustrao muito rgidas, seja no de uma permissividade desmesurada (Ferenczi, 1930/1992b).

    Como consequncia de a anlise didtica adotada nas instituies de formao, na poca, ter durao menor e no ter atingido grande profundidade, se comparada com uma anlise teraputica, criava-se a situao absurda de os pacientes serem mais bem analisados que os analistas (Ferenczi, 1933/1992). Era fundamental, nesse sentido, que os analistas pudessem reconhecer seus prprios afetos, uma vez que, alerta Ferenczi (1932/1990),

    No se deve descartar a ideia de que o hbito dos analistas de sempre procurar obstculos na resistncia dos pacientes, de um modo paranide, de certa forma delirante, seja praticado injustamente, com fins de projeo ou para negar seus prprios complexos (p.59).

    A CLNICA PSICANALTICA E A TICA DA HOSPITALIDADE

    A partir da teoria do trauma apresentada por Ferenczi, pode-se destacar a hospitalidade como um dos princpios fundamentais para uma tica do cuidado na psicanlise (Kupermann, 2009). A hospitalidade na clnica implica a possibilidade de reconhecer o analisando como um estrangeiro que

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    possui uma lngua estranha ao analista. Desse modo, possvel que se evite, na situao analtica, a reproduo do desmentido; ou seja, a lngua do analisando no desautorizada por outra que queira se colocar como legtima enunciadora da verdade, como lngua total.

    guisa de ilustrao da relao existente entre a hospitalidade e o uso da linguagem, podemos retomar aqui, acompanhando Derrida (2003), o caso de Scrates condenado morte, acusado de no reconhecer os deuses, de introduzir novos cultos e de corromper a juventude, tal como foi descrito por Plato em Apologia de Scrates. Scrates anuncia que, contra os mentirosos que o acusam, vai dizer somente o justo e o verdadeiro:

    Mas no, por Zeus, Atenienses, no ouvireis discursos como o deles, aprimorados em nomes e verbos, em estilo florido; sero expresses espontneas, nos termos que me ocorrerem.... a mesma linguagem que habitualmente emprego na praa, junto das bancas... Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me assim completamente estrangeiro linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dvida me desculpareis o sotaque e o linguajar de minha criao; peo-vos nesta ocasio a mesma tolerncia, que de justia a meu ver, para a minha linguagem (Plato, citado por Derrida, 2003, p.17).

    Segundo Derrida (2003), Scrates acusado em uma lngua que no fala (ou diz no falar), e deve defender-se nessa lngua, a do direito e dos juzes; ele , portanto, estrangeiro ao discurso de tribunal. Scrates pede para ser tratado como estrangeiro, como se dissesse:

    se eu fosse estrangeiro, vs aceitareis com mais tolerncia que eu no fale como vs, que eu tenha meu idioma, minha maneira to pouco tcnica, to pouco jurdica de falar, uma maneira que ao mesmo tempo a mais popular e a mais filosfica (Derrida, 2003, p.19).

    Do mesmo modo, o estrangeiro, que desajeitado ao falar a lngua do local, sempre se arrisca a ficar sem defesa diante da jurisdio do pas que o acolhe ou o expulsa:

    Ele deve pedir hospitalidade numa lngua que, por definio, no a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o

    rei, o senhor, o poder, a nao, o Estado, o pai, etc. Estes lhe impem a traduo em sua prpria lngua, e esta a primeira violncia (Derrida, 2003, p.15).

    Neste sentido, Derrida (2003) questiona se, para podermos oferecer hospitalidade a algum, devemos pedir que ele nos compreenda, que fale nossa lngua, em todos os sentidos desse termo, pois (e esse o paradoxo que se impe), se o estrangeiro j falasse nossa lngua, com tudo o que isso implica, se ns j compartilhssemos tudo o que se compartilha com uma lngua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propsito dele, em asilo e em hospitalidade? ( p.15).

    Nos ensaios A adaptao da famlia criana e A criana mal-acolhida e sua pulso de morte Ferenczi aborda o tema da hospitalidade sob outra tica: a de que o outro a ser recebido no seio da casa o recm-nascido.

    A hospitalidade para com o infans, o beb que no fala, tem uma particularidade, pois ela deve ser sempre uma hospitalidade absoluta ou incondicional. Ela pressupe a exigncia de oferecer a quem chega uma acolhida sem condies. Para Derrida (2003), a hospitalidade absoluta implica que abramos nossa casa ao outro desconhecido, que lhe cedamos lugar, que o deixemos (...) chegar e ter um lugar no lugar que ofereo a ele, sem exigir dele reciprocidade (p. 24).

    Ferenczi vai dar grande importncia ao papel do ambiente e da famlia na constituio da subjetividade da criana. O recm-nascido j se encontraria fisiologicamente preparado para a transio que se opera no nascimento; mas para que essa transio acontea da forma mais suave possvel, ser indispensvel o acolhimento proporcionado pela adaptao que a famlia tem de realizar a fim de tornar bem-vindo esse novo hspede:

    No incio da vida, intra e extra-uterina, os rgos desenvolvem-se com uma abundncia e uma rapidez surpreendentes mas s em condies particularmente favorveis de proteo do embrio e da criana. A criana deve ser levada, por um prodigioso dispndio de amor, de ternura e de cuidados, a perdoar aos pais por terem-na posto no mundo sem lhe perguntar qual era sua inteno (Ferenczi, 1929/1992f, p.50).

    O beb encontrar-se-ia muito prximo de um estado de no-ser individual, para o qual corre o risco

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    de deslizar, caso no encontre o dispndio de amor, de ternura e de cuidados acima referido. nesse estado que estaria, para Ferenczi (1931/1992d), a gnese do sentimento de autodestruio, uma vez que a criana que se sente abandonada perde todo o seu prazer de viver e volta sua pulso de morte contra si mesma.

    O olhar de Ferenczi, nesse momento da sua obra, recai no mais em uma pressuposta experincia individual do sujeito pulsional, mas na percepo de uma indiscernibilidade entre o beb e o ambiente que o acolhe. Isso o leva a conferir ao fenmeno traumtico um olhar genealgico (e no originrio), interessado na compreenso do campo de foras da produo do patolgico.

    Por conta da indiscernibilidade entre beb e ambiente, Ferenczi (1929/1992f) afirma:

    A fora vital que resiste s dificuldades da vida no , portanto, muito forte no nascimento; segundo parece, ela s se refora aps a imunizao progressiva contra os atentados fsicos e psquicos, por meio de um tratamento e de uma educao conduzidos com tato (p.50).

    Fundamental para essa fora vital a criana poder usufruir a irresponsabilidade da infncia, estado que traria a marca da iluso de onipotncia e da alegria de existir, por meio da qual ela constitui os impulsos positivos de vida e a possibilidade de brincar, de simbolizar e introjetar suas experincias de satisfao (Kupermann, 2009); porm a fora vital pode ficar seriamente comprometida quando a criana mal-acolhida em seu ambiente (Ferenczi, 1929f/1992), ou, como melhor sugere o ttulo em alemo do ensaio de Ferenczi - A criana mal-acolhida (Das unwillkommene Kind) e sua pulso de morte-, quando a criana uma hspede no bem-vinda em sua famlia. Caso isso acontea, as consequncias para o sujeito podem ser que ele perca precocemente o gosto pela vida e que os menores acontecimentos sejam o bastante para suscitar uma paixo mortfera. O psicanalista, ao receber analisandos com essas caractersticas, deve estar atento para que possam desfrutar, talvez pela primeira vez em sua vida, da alegria criadora do brincar infantil, favorecendo, desse modo, a emergncia de impulsos vitais positivos, fonte da continuidade do ser e do desejar e de razes para se continuar existindo.

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    Recebido em 20/10/2011 Aceito em 27/05/2012

    Endereo para correspondncia: Alan Osmo. Avenida Professor Mello Moraes, 1721, bloco F, sala 28, Cidade Universitria, CEP 05508-030, So Paulo-SP, Brasil. E-mail: [email protected].