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CENTRO DE LlTERATURA E CULTURA PORTUGUESA E BRASILEIRA

FACULDADE DE CIENCIAS HUMANAS

ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL

I'V

AS CONFISSOES DE SANTO AGOSTINHO 1600 ANos DEPOIS: PRESEN<;A E ACTUALIDADE

UNIVERSIDADE CATOLICA EDITORA

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© Universidade Cat6lica Editora

Lisboa, 2001

Edit;af) preparada pela Editorial Verbo

Composit;ao: Fotocompografica, ida.

Impressao: Rolo & Filhos - Mafra, em Fevereiro de 2002

Dep6sito legal n,o 177031102

, . Indice

Apresenta<;:ao ......................................................................................... . 9

Les Confessions comme priere biblique Goulvcn Madec ..................................................... . 11

As Confissiies de Santo Agostinho e a vida de todos nos Lucio Craveiro da Silva .. ..... .............. ....... ......... .... ...... .... .... ....... ....... 21

Structure theologique de la priere de louauge Confession I, 1, 1 Marcel Neusch ...... ..... ........ ......... ....... ...... ... ..... .... ........... ..... 27

o cor inquietum como chave hermeneutica das Confissoes Henrique de Noronha Galvao .................................. . 39

Lasting Effects of Augustine's Ascents at Milan: Confessiones VII, lX, 13 - XXI, 27

Frederick Van Fleteren .......................................................... . 57 Creatio et formatio dans les Confessions

Mane-Anne Vannier ................................. ................. ....................... 69

Conversao, autobiografia e confissao: os precedentes patristicos Isidro Pereira Lamelas ... ....... ..... ..... .............. ....... ...... ...... ... 79

Narrativas hihlicas da cria~ao e Confissiies de Santo Agostinho Amundo dos Santos Vaz ................................ ....................... 121

Tempo ed eternita nel lihro XI delle Confessioni

Alessandro Ghisalberti ..................................................................... .

The Unfathomahility of sincerity. On the Seriousness of Augustine's Confessions

M. Burcht Pranger ............................................................ .

Coerencias pensantes e aporias vividas da questao do tempo nas Confissiies de Santo Agostinho

Carlos H. do C. Silva .................................................................... .

Narrativa - Reflexao - Medita~ao.

o problema do tempo na estrutura global das Confessiones Norbert Fischer ...... " ..................................................................... .

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Erzahlung - Reflexion - Meditation. Das Zeitproblem im Gesamtaufbau der Confessiones

Norbert Fischer ................................................. .

A confer~ncia Tempo e Ser de Heidegger, e a concep'rao agostiniana do tempo

............. 267

J M. Costa Macedo ......................... ................................................. 281

A presen~a das Confissiies de Santo Agostinho na literatura e cultura portuguesa

Joao Francisco Marques ............................... .............................. 293

A espiritualidade das Confissiies de Santo Agostinho. Linhas de uma proposta

Vittorino Grossi ................ 319 A receps:ao de Santo Agostinho em Lutera enos escritos

confessionais luteranos Arnlf Villa res .............. , ................................. _ ........................... _.. .... 349

A recep~ao de Santo Agostinho na Antropologia Filosofica Joaguim de Sousa Teixeira ................. ...................... ......................... 359

A leitura heideggeriana do livro X das Confissiies de Agostinho Manuela Brito Martins ............................ _._............................. 377

A intersubjectividade com Deus como forma hist6rica, intramundana Mario Andre P. Verissimo

A presen~a do Livro XI das Confissiies em Temps et Rticit, de Paul Ricoeur

Fernanda Henriques ..................... , .................................................. .

As Confissiies de Santo Agostinho como genero Iiterario Jose J6lio Esteves Pinheiro ........................................ . ................ .

A poetica do acto de coufessar ou a actualidade das Confissiies Joaquim Cardozo Duarte ................................................... .

Fun~ao do Jesejo no itinerario da Existencia para a Transcendencia, nas Confissiies de Santo Agostinho

Cassiano Rein1ao ..... ". ,_ .............................................. _, .................. .

Teixeira de Pascoaes a volta de Santo Agostinho Arnalda de Pinho ..... ", ................................................................ _ .. .

o mal em J oao Cassiano e em Agostinho Hclnlut Kohlenbcrger .................................................................. .

Johannes Cassianus und Augustinus iiber das Bose Helmut Kohlenberger ......... _ ........................... _ ..................... .

A presen~a de Santo Agostinho na Filosofia Medieval Portuguesa Maria de Lourdes Sirgado Ganho ................. _, ................................ .

A no~ao de Tutoria nas Confissiies Maria de Jesus Lorena Brito .............................................................. .

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407

427

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491

501

515

Presen~ de Santo Agostinho na Logique tk fa Philosophie, de Eric Weil Luis Manuel Bemando ..................................................................... . 523

o Ser e os seres nas Confissiies de Santo Agostinho Manuel Barbosa da Costa Freitas ............ ,_ " .................... . 537

o aeterna ueritas et vera caritas et eara aeternitas (Conf. VII, 10, 16): ontologie ou metaphysique du vrai!

Don1inique Doucet ................................................................. . 553

Las Con/esiones y la Paideia Integral del Homhre Santiago Sierra Rubio, O.S.A. . ......................................................... . 575

Ordem e Seculo nas Confissiies de Aurelio Agostinho

Mendo Castro Henriques .... ..... .......... ...... ....... .... ......... .... .... .... 597

A confissao verbal a 102 da filosofia da Iinguagem de Santo Agostinho Maria Leonar L. O. Xavier ................................... ..

Pecado, desejo e arnor. Breves considerac;oes

acerca do pensamento de Santo Agostinho

613

Michel Renaud ........................................... . ........ 627 T ransfigurac;oes da existencia e simb6lica sacramental,

nas Confissiies de Santo Agostinho Jose Jacinto Ferreira de Farias ......................... ................................ 635

Fazendo memoria, hoje, da «memoria de Deus» segundo Agostinho Jorge Cautinho ..................................................................... .

Las Confessiones: entre N eoplatonismo y Cristianismo Luis Marin de S::m Martin, O.S.A. ............................................ .

Pro portio hahens medium duoque extrema. A media aritmetica e a media harmonica nas Confissiies, de Santo Agostinho

Fernando Afonso Andrade Lemos

Da cisao extrema, no maniqueismo, a identidade como relac;3.0, em Confissiies X

Jose Maria Silva Rosa ....................................................................... .

o acto de confessar (breve medita~o) AIUeriCO Pereira ................................................................................ .

A mUsica como realidade e como metafora, nas Confissiies Artur Morao ............................................................. .

Semantica de «esparro», nas Confissoes Pedro Correia ........................................................... .

Le Confessiones: un autobiografia sui generis, patrimonio della letteratura universale

Maria Grazia Mara ................................................................. .

Confissoes de Santo Agostinho - memoria e perdio Joaquim Cerqueira Gon~alves ........................................................ .

647

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José Rosa
Highlight
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da hllmanidade, tal como a RCllllblic(] de Plata'a, E 'j d V' 'I r a ~IICI (/ e lrgt io, a Diuilla Comedfa de Dante au as LlIsfadas de Camoes.

Pocler-se-tJ percler todos os outros t,'at',l,Ios 't S \.- escn os por anto Agostinho

- bastava-lhc as COIl/iSSOCS para garantir lim lugar impar na cultura humana.

A quem as escrevesse ...

Bibliografia

SAN AGUSTIN, Las Cor{cs5ioIlCS, texto bilingua, Obras Completas, II, 8 .. 1

ed., BAC, Madrid, 1991; SANTO AGOSTINHO, COlljis5<ics, tradu,ao do

original latina por J. Oliveira Santos e A. Ambrbsio de Pin"l 1')·\ Ad L,'v . " _. '-"' rana

Apostolado cia Imprensa, Braga. 1990; BAYARD, Jean-Pierre, SYl1lbolislIIC IlJa­

(""lliqlle tra~iti""Il('/, I, IIv., ed. Edimaf, Paris, 1981; BERNARDINO, Angelo

dl, Patroi<~~I" III, 3.' ed., BAC, Madrid, 1993; CHABOCHE, Fran,ois-Xavier

Vida (' AJisterio do.\" ]\.ltlllleros. Hemus, S.Paulo, 1979; CHEVALIER, Jean:

GHEERBRANT, Alain, Dictiomtaire des SYlllboles, Seghers, Paris, [974; GHY­

KA, Matila C, El NJIIIlCYO de Oro, 1, II V., 2 .. 1 ed., Fed. Poseidon, Barcelona

1978; HAMMAN. A., Santo Agosrirllw C SCII Tempo. ed. Paulin as, S. Paulo'

1 Y8Y; JOUVEN, Georges, L 'architecture ({jc/icc, Tra(f5 lhIrlfloJliqllcs, Col. J.rchi~ tecture et svmboles sacn~s Dervv-Livres 1),l'l'S 19Q 5' JOUVEN G ' ' , • , , • • < ., 0, , • eorges u'i

lIombrcs wflies, Esotcn'sHic aritlullo/tlgiqllc, col. architecture et svmbole~'-- sa~ft?s' Dervy-Livres, Paris, [990; OROZ RETA, Jose, Sail AglIst;,'" Universidad~ Pontificia de Salamanca, Biblimheca Salmanricensi1, Estudios 110, Salamanca,

1988; SAN AGUSTIN, La Triflidl.1d, edi~ao bilingue, 4 .. 1 ed. corrigidJ e 111C­

[horada, gAC, Madrid, 1985; THmAUD, Robert-Jagues, Dietiollll"ile de i'vlyt,

/ill/OgIC ct de SylJlboliqJlc ro/llaillf, editions Dervy, Paris, 1988.

DA CISAO EXTREMA, NO MANIQUEisMO, A IDENTIDADE COMO RELA<;:AO, EM CONFISSOES X

JOSE MARIA SILVA ROSA

Universicbde Cu6lica Portl1gue~a (lisboa)

'i. .. et ecce intus eras et ego fans et ibi te quaercbam et in lSGl tonnosa. quae fecisri. dcformis inruebam.

mecum eras, et teCum nail cram.

ca mc tenl'bant longe a tc quac si in te nOll essent, non essellt,»

(COI~(tssi(lm's, X. xxvii, 3H)

«E eis que til cstav3.S dentro e eu Hi fora a procurar-tc ( ... ). Tu estavas co­

migo e ell nao estava contigo. Retinharn-rne lange de ti aquelas coisas que

nao seriam. se em ti nao fossem.» A anamnese de louvor gue coroa a longa odisseiJ. pela interioridade, que e

todo 0 livro X de COI!fisstlCS, e 0 verdadeiro centro do opus augm/illiilf11lfJI e

condensa admirave1mcnte 0 drama de um homem a proem"a de 5i l11eS1110, pri­

meiro lit pOI' Jlfa em processo de desidentifica~ao e afastamento de si e de Deus

(aJJersio) I e, depois, progressivamente, caindo em si proprio, despcrtando para

a intima ellidellria cogitante (sdo wc roxitarc; si efli1l1Illlo,. SHill), contemplando, tJ­nalmcnte, no m3is intima e acima de si 2, a reahdade de Deus, absoluta e per­

feita relat;:ao (COflllffSio). o percurso existencial agostiniano, a sua odisscia pelo 1113.r desta vida 3, po­

de sintetizar-se, nJ propria interpreta~ao rctrospectiva de Agostinho, como a

t Cf Marcel Ncusch, Augllstin, 1m CiltIHill dt ((l1!!'crsioJl. crill' illtrl)dlJrtitlll <lIIX Confessions, Paris.

Desdee de Brouwer. 1986. 2 Clf~ffSsi()IIt'S, lII, vi, 1 !: "Mas til eras nuis inrcrior do que 0 intimo de mim mcsmo e l1lais subli-

me do que 0 mais sublime de 111illl meslllo.»

:, Cf. De DC<1IiI lIi/d, l.

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JOS~' MAlVA SILVA ROS,-l

passagem cia dcsordem para a ordem (ontologiea, gnosiologica e etiea), ou, por

outras palavras, como purificavao cia melnoria, csclarecimento dOl inteligencia e

tortaleeimento da vontade_ Ordenar,;:3.o e, pois, a palavra-chave que abre as

portas para a compreensao da sua evolur,;:ao intelecrual e espirituaL Por OUtro

lado, na supera<;ao do materialisnlO e do maniqucismo, 0 conteudo desta orde_

nayao advem da compreensao de que a realidade e essencialmente relar;ao; i.e.,

de que tudo, desde as coisas criadas 4 ate Deus '\ passando peb interioridade do hOl11em 6, tem lima estrutura rebeionaL

o maniqueismo, como se sabe, foi a grande tentar;ao do jovem Agostinho,

na medida em que Ihe prometia resolver os problemas que mais atormentavam

a sua consciencia: a existencia do mal no mundo (em todas as suas exprcssoes

fisicas e morais, passivas e activa5) e 0 desejo de saber. Agostinho reconheee que a etiologia da alJcrsio em 51 se devera, acima de tucio, a estes espinhos cra­

vados na Sua carne c na sua inteligencia. Ora, a gnose maniqueia apresentava_

-se-lhe a um tempo s6 COmo a solur,;:ao exclusiva e simuldnea a estes proble­

mas. Foi, pois, na espcranya de que ela 1hes trouxesse lllz que aderill ;l seita.

E de [leto, trollxe-1he alguma luz. Mas foi artificial, ilusoria e enganadora, co­

mo a chan13 da candeia que qucima os insectos que borboletciam ;1 SUa volta e nela se precipitam. flla autcm [redidi. Vac!} lIae!7

No que respeita a questao cia identidade e da relavao 0 maniquelsmo acaba

por inviabilizar ambas: nao ha ipseidade humana (em virtude cia doutrina das

dUdS almas) nem rebvao no ser (dualis1l1o luetafisico). 0 Agostinho convertido

a relibriao crista sempre combated esta doutrina, de modo particular em COIJ­

jiS5t1CS, cuja narrativa anatreptica dessa passagem da ciesordem a ordem e ela

pr6pria constituinte de uma identidade narrativa e relacional. Deste modo, as

questoes do mesmo e do otItro, cia identidade e da rela<;:ao, da eonsciencia e eLa

intencionalidade constituirao a trama mais intima de C01~fissi5es H.

.j Cf.Marie-Anne Vannier, "Saint Augustin et la creation», in CollatmU'a Augllstillirlal/a. j\le/llIrgl's T J. !iall Bapc/. Imtitut Hi~torique Augtlstillien, Pans, 1986, pp. 349-371,

5 Monnente em Dc Tn'lIil<1tc. M;lS j~ nos escritos de juventl1de. {' ral1lbem em COIif/SS(lCS, Agosti­

nho feflecte ~obre Deus enquanto rr!lm;ao {' al1lor n;nitario. Cf Olivier du Roy, L'illtcl!({!cl!rc de Itl foi ell la Tn'l1ire sclorr saint AII,~ljStil1. Gl'IIcs(' de slIlilcoingie selOiI fa Trillitejllsqll'i'/I 391, Etudes Atl­gustiniennes, Paris, 1%6.

(, MeSl1lO psicologicamt'mt', 0 hClle lIiwrc inclula st'mpre 0 deicite do circunl6quio com os amigos.

o ideal de vida filos6fica (otiul!l piti/()soph'lIIril) e reiibriosa e cenobitico e Ilullca en.'ll1itico. Para 0

tema da ;nnizade em Agustinho. cf. Mary McNamara, Fricllds awl Fricndsflip for Saillt AII~~lIstilJ(', AlbaHollse, Nt'\v York, 1964.

7 COI!fc.lsioncs, IIi, vi. [1.

R C( Paul Ricoeur, Temps ct reeit I; Temps Cl rddr 1Il. u telnps r!l{Ollle, Paris, Seuil. 1983, 19H5 (rt's­pectiv.)

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AS CONF!SSOES VI::' SANW :1COSTlNHO - AClAS DU COJ\'CRESSO INTERJ\'/ICIONAL

Por conseguinte, c0l1vir:1 pres tar alguma aten<;~ao ao modo como 0 mani­

queismo coloca e resolve estes problemas, para melhor se p~~er compreend_cr

como 0 livro X de C01!iiss(lCS representa llIll momento deciSIvo na afirmayao

da natureza relacional e intencional da interioridade humana.

I - Da cisao extrema, no maniqueismo

No que respeita ao tcmJ da rda~ao, 0 rnaniqueismo assenta numJ protllIl­

da contradiyao entre 0 dogma central - 0 dualismo substancial e metafisico,

segundo 0 qual Bem e Mal, Luz e Trevas, Espirito e Materia sao natu_rezas

eternas, igualmente poderosas, absollltamente diferentes, e, portanto, nao se

odem misturar nem rclacionar (plano de jure) -, e a afirma~ao de que as p 11 "d 1 mesmas se misturaranl efeetivamente') numa Bata 1a onglOarn, e que resu-

tou uma mistura cosnlica de Luz e Trevas, luta e 11listura essas que continuarn

e se prolongam em todos os dominios da rcalidade: individual, social e hi~tori­

co; fisi16gico, psicologico, gnosio16gico, noetico, etico, politico, instituelOnal,

e assinl por diante.

A ' 0 esquema relaeional do maniqUelSnlO e 0 da luta, da ClS30, da SSI111,

idelltidade separada e quebrada 11), cuja conseqllencia antropo16giea e a dOlltri­

na da existeneia em nos de duas ahllas em guerra, clonde 0 na~ haver nem

identidade nem ipscidade verdadciras, porglle a identidadc esta quebrada ab

illitio. Ja na critic a a astrologia arLIspicia e a gnose maniqueia, para qu~n1 a verdadeira identidade da alma estava no alto, no Reino da Luz, AgostInho

confessa como entao era incapaz de dizcr 'fui eu' quanto ao mal cometido,

acusando scmpre uma outra ahlU estranha que inelutavelmente 0 compelia a

9 COIifCSsitlIlCS, VII, ii, 3. «Era-11K ba~tante, Senhur, contra aqt1eks engan:ldt~~ :nganadores C pl1ra­

dares mudos. (. .. ) aquilo quc ja ha ll111ito tempo. ainda em Cartagu, Nebr.ldto costumava propor (, .. ): 'Que te podcria fazer aquela especie de genre da~ treva~ que us MalllCJueus costu11lam opar como massa adversa, se [l] cum ela 1],10 tivesst'~ querido 1utar?'. Ora, Sl' respondessem que te po­deria causar algllllla coisa de mal, ttl serias violii.vel e corruptive!' Se, ao inves, dissessem que em

nada essas coisa~ te poderiam prejlldicar, !laO havt'fia causa para lutar, c lutar d~ tall1l~do que Ulna certa parte de ti c um tell membro Oll a gerayjo da ttla propna ~~lbst.5.nC1'l _~: 1ll1stur;.m~l

com os podt'res advcrms e com J.S naturezas criadas por ri. e ,s~ conompena l' mud~~.a p~ra PlOt: na proporyao em que da fi:Jicidade sc transfonnasse em nllsena, e carecesse de auxtilO COlli que

pudesse ser libertada c pllr:ificada; t' que esta parte era a ahna: em socorro da ,:u;1.1 ve~o a Ukl. pa~ iavra, livre, para ela que era servi\, pura, para ela lIlanchada, Illtegra, par.: e!~ COlTUpLI, mas t,nl1

b ' I 'p' 'orruptivel pO"lllc formada de uma s6 e meS11la ~llbstanCla. E d,este modo, 5e emeapronac, •. A I os ManiqUCllS disscssem qUl' tu, 0 qut' quer que tu sljas, isto e. CJu~.a rua. sUh,r;ll1Cl<l, p,eb qua ~u es, c incorruptivel, rucio i<;so sena [.11so c execr()vel; sc, pelo contrar~o, d"sessem que e COffUptl­vel i~so meslllO tambem seria filho e abomin5.vel, desde a prunelra palavra,,,

, d d ' t··o C[ Simone Petre-10 Cisao que rell10nta ao proprio DellS, e deor 0 com a esquema gnos IC. .

ment. LI.' Dinl separe: Irs origilrrs du grlostirislIlc. Paris, Cerf, 1984,

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JOSE ;\LclRJA SIU'A kUSA

pecar II. Todavia, esta sua incapacidade era apenas um caso particular de uma

tI-actura oIltol6gica mais profunda, in-eparavel, que existe no ser, no tempo e em todos os entes.

Logo a abrir COI!f/SStlcS II, antes de iniciar a narrativa da desordem mani­

queia, mas tendo-a ja em vista, Agostinho afirma: (IQuero recordar as minhas

defornlidades passadas e as i11lundicies carnais da minha alma') 12. 0 Contexto

da 'con6ss:10' e cbramente etico-religioso. No en tanto, algumas expressoes

lItilizadas indica111-Ilos que Agostinho Ihe da um alcance onto16gico - «at.lsta­

VJ-me para longe de ti (ct ibafll lot/gills (1 tc) c tu deixavas, e arremessavas-Ille, e

eu derramava-me, e dispersava-me (ct ~[lil/1dcbar Cf df[flllcbtlfJI et eiJJJllicballl), C011-

tinuJva a afastar-mc de ti atras de varias e varias estcreis sementes de dor (ill

plum ct pl/Jm srerilia scmi/Ill dolO/"//IJ/) C0111 UIll orglilhoso abatimento e um desas­

sO'isegado ClI1sa~:o», mas «tu clamaste de longe (dall/asci de lougil/quo)) \J

tropos que £lllcm e re£luem ao longo da obra, ate ao ammm do livro X: Cd /lIC

tCfI{'ballt lOIl<-t?c a Ie, qllae si ill te IlOtI essel/f, 11011 ('ssellt H.

Toda esta paveia de metaforas sobre defect;:ao para 0 mcnos ser (mil/us esse) 15

II Cm!(rssitlllcs, IV, iii. 4: "Par isso eu, .\C111 cmbu.'ire, n;"i.() ccssaV:l de cOllsultar aqudes elllbu,,-teiros ,\

que cham am astrologos, ~)~rqlle qU;JSC n~o llsavam de nenllLlIll sacrificio e nao dirigial1l nenhu­mas preces a nenllllll1 espmto pm causa da ,Hiivillha~ao. ( ... ) N,1 verdade, Senhor, l' bom confe<;­sar-~e e (h~er:. TCIIl (oIII1!<lixiio de lIIilll, (lU,1 <1 lIlil/fla dilll<l, [1"fqIlC pcqllri (olllra Ii, e nao abusJr da tLla md:llgenClJ para ter liberd,lde de peear, nlJS fCcordar as palavras do Senhor: /.;'i$ quI' esl,is ClI­

milo;. lIat> po/tcs ,1 p('(ar, para '11/(' IlIlda de piM I/.' IIro/llefa. T ada essa s,1I1idade tentam ell'S destrui-la

ao dizerelll: '~ caU"':l inevita~el d~ pcclres Yelll-tl' do Cell'; c: 'Foi VellUS que rez isto, ou SawT­no O.ll _Marte, para (lue, enhm, tlque sem culpa 0 homem, e a came, e 0 Sallb'lH', e a sobcrb ... podndao, devem~o ser culpaJo 0 criador e orden,nior do een e dos astrm." V, x, 18: (~~i t'llI Ro­

Ill.a, jUnt;lva-Ille . ,Hlueles santos enganado~ e etlganadore~: n3.o :lpen;]s ao, ~ellS Ollvmres, a cujo

n.l1Tne!:o pertenC1:1 aquele em easa de quem estivera dur:mte a doenp e a conv:llesceIll,:a, mas a.mda aqude'i a qut';l1 c~lam~m deitos. Ainda Ille parccia que nJO somos nos que peC:llnos, llIas s,lm que pc("a em nos Hao sel, que Olltra llatun..·Zl, e compr3zia-Il1l' que 0 meu orgulho flea,<;c de to,r~ d:l culpa, e, quando eu hzesse aigLl1!ll1l:tl, I1JO confe\sar que eu 0 tinha feito ( ... ); pelt) COll­

trano, gostava de me dt'~culpar e acmar nao sei 0 que que estava comigo e nao era t'Ll. E, COtl­

tud.u .. eu e:a lim todo c contra lllim me dividira a minha impiedade, e esse pecado era tanto mJlS mCllravt'] quanto eu jul.gava Ido ser pecador, e era Ulll.! execr,ivcl iniquidade :llltt'S querer que tll, Deus OI1lIllpotente, fosse, venCido em ll1im para Illinha pt'rdi~ao, do que l'U por ti para mmha ~alv;H;ao."

I~ COI!/i'ssiPlu:s, 11, 1, 1: Hecordari lIolo transactas foeditates meas et canuies corruptiones animae llle'H.'»

I., VI!, x. 16. Sobrl' a quesrao da 'lolljura', cf G11!fi'ssi(JIICS, 1I[, vi, 11: XII, xi, 12; XIII, i, I; Pierre Courcelle, Rcrhcrcllc$ .l"lIr Irs COII,ti.·:,SioIlS de 5<1i", '1,(""""",,_ E't.,.J-, A

" ~ c c c ugustiniennes, Paris, 1950, pp. -I79-4R2.

14 COI!(cssi(lIlCS, X, xxvii, 38: "Rerinilam-me lange de ti aqudJ~ ("oisas 4ue nao seriam, se 1.'111 ti nan fossem .• ,

15 Emilie Zum Br~Ill.l, "Le dilemll1e de l'etre l't dlJ neant chez saint Augmtin des preIllien dialo­gues aux «Conks~lOnS"»' in R{'[/Jerrilf.\· .11U;IIStilJifllI1CS () (ll)69), pp. 3-102.

700

AS CONFISS()ES DE S .. lj\··1O .--lCOST/SHO - .--lCL1S DO C();\'C;JU~SS() ll\nl'.RJ\'.~CJON.,~L

po de ser agrupada no tona da rc,gio dissimilitlldillis e na panlho/a do jllllO pnidigo j("

tendo a seu quiasma no termo silllcs(l.'re 17, que se revelava a Agostinho muito

fecllndo na compreensao cia sua alicnat;:ao e fuga de si mesma e de Deus. Na

retrospecyao moral agostiniana, 0 verbo silw:sccri? tem um alcancc decisivo. Si­

lfll.'s{(l significa int;:ar, deitar muitos renovos, 11luitos rebcntos, como acontece

nUI11J terra nao tratada, onde nascem a esmo ervas daninh05, 01..1 numa oliveira

n50 podada, em que os intUlleros rebentos da cepa enfraquecem a [lrvore.

Analogamellte, Agostinho confessa que se tornara silvestre, inculto, infecllndo,

daninho. 0 substJl1tivo Siflll1, entre outras accpt;.:oes, signitlca Jlorcstrl. Illata, lIIa­

deira, l1Iateria, traduzindo directamente J VAll do grego, e Agostinho aphca-o <1

si mesmo e0111 0 sentido de tcr-se derramado e diluido IUS coisas materiais, i.e.,

ter-se tornado maniqueu Itl, assacando responsabilidades dircctamente a imagina­

~ao 1'). Enconu'ava-se de tal modo enredado nos Hames materiais que dificilmcnte

podia esperar encontl'ar a verdade 20. 0 livro VII de COI!fissdcs naITa 0 diticil rc­

gresso dessa 'regiao IOl1!jrlnql..la' como um retorno, quer do dllalismo malliqucu,

onde nilo hft relat;:ao por can~ncia, quer do henorlsmo orgulhoso e auto-suficicntc

do neoplatonismo plotinlano, onde nao ha rela~ao por excesso 21, pois at a ITJCUl­

fa Uno - Mtlltiplo e apenas uma ql1cda de consciencia. Entre l1l1S e outros,

Agostinho procllrari um terceiro processo global de rcla\.1o: recupcrar a dimensao

1(, Lc 15, 13: .. Et nOli POSt lll11ltm dies, congn:garis omnibus, adulescelltim filius pen.'we prof~nm est ill rq..,rionc!1l 10nginCjuam (ElS" Xl!Jpal' IHlKrCll'), et ibi dissipallit Sllb~taJl[i:J.m S\I;Jlll uiuendo lu­XUriDSl'.\,; COI!fi.'ssi(JIICY, VII, x, 16: «e descobri que ell t:~t:JV<1 longt: de ti, llllllla regjJ.\) Jt: dis<;l'­melhan';':;l (el il1l1(,1I1 l(JIt~(' lIIe ('sse a Ie ill regiolle dissilllilii/ldillis (",)" (ct: RCPll/Jlim. 574 <1),

17 COJ!(essiolJcs, II, i, 1: "OlltrorJ desejei ardentementc saciar-Ille de baixczas durante :I minha ,Jdo­le~n~Ilcia e ollsei el11brenlur-ll1e .. (CI .Ii/HeSlerI' {WSIIS S/IJIJ. .. )".

Ig Porque os Maniqueus jogaval11 com 0 durio ~igIlificado de: VAll nutl'ria Oll bosqul'/lenho, para identitlcarem a crucifixao hist6rica de Cristo (que todos pel1sar;\1Il ter sido de Cri\to ... ) com ~l

cruciflxao c6~miea da 1nz aprision~llh I1J materia. Dizemos (que todos pellS;Jram ser de Cri<;to"

pOTguc, no Lir'n> dos !Hisltrios. Manes dizia que nJo fi)[a Jesus l) crucificado no Gbltz;ota, l1las 0

Messia, de Israel, 0 Filho de Marj;) (ou, segundo outrJ~ versoes, Simao de Cirene, elll]lJalltO Je­

SllS, escondido, ria do lop'o),

I') L,in'sllt/a 7, 2.5: "Ill hac tota illlJ!,.,'1nul11 siiua ( ... ).» ~I) COlifcs.'iorl(,s, X, xxxv, 56: "Nesta ,elva (5itH") tao ill1l'nsa, ehcia dt: arlll:ldilhas e de perigos .. i> (cf

So/i/aqllia, 1\, xiv, 26)

21 Endre von Ivanb, Plat(l Ciln"Sli<1lllls. La recrptioll (riliqlle du pllllOllislllt' [he:.: Ics Nres dt' /'L:~lisc, PJ­ris, PUF, 1990, p. 77: "Ainsi iCOlll a negatividade do tll1itoJ se trouve barn~e toute possiblhtc elL, fonner un concept ;)uthenrique de la creature, qui demeure ce qu'e1Je est essentielkment, 11}(~111l'

dans]a tr:1i1stiguration par grace, pour la raisol1 meme qu'elle n'est pas Dieu "Iui-ml'llll''', et de­

I1K'ure ail15i de toute etemite un em.:' distI11ct ;\ cote de Dietl. Dans Ia pt'r~pectivt' IH~O­

-platollicielllll', r0tJ"t' fini cst commc stlspcndu entre une essentielle divinite (qu'il est au fond de son etrt:) et title essenticie resistcnce au divill (dans sa Tealite finie de creaturt:). La divmisatioll de ]a creatun: (dans son ctre prerendtilIlent "authentique") conduit J. eprouver l't'tat de creature

eOrIune lIJauvais en soi, contraire ilDieu et separe de lui. Pour Ie neo-platonimte. il n'exi,te pas: "Dieu" - et "la cn~atllre de Dietl", Illai, seulelllent: "Dietl" - et ce qui en est "dechu".i>

701

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relacional cia realidade, nao regredindo do 'dais' 11lmiquell (dualismo) para se fi­xar no 'um' (Uno, monismo) de Plotino, mas avanyando para 0 'tres' (Trindade)

da religiao crista, mantendo a Unidade nesse processo.

Observando mais de perto 0 conteudo, a mjtologia fundadora do mani­

queismo, podcmos conduir que COl~f/ssiJcs e os outros escritos anti-maniqueus

se confirmam internamente. No livro III naITa-J10S 0 seu primeiro cont<lcto

com a seita: caira nas maos de uns homens que, em brilhalltes bandejas, Ihc

serviam fabulas segundo as quais era melhor anlar a sol e a luz, que fercm os

olhos carnais 22, do que a luz inteligivel que esclarece a alma. E com isto servi­

ran1-lhe tambem os cinco elementos do reino das trevas, com os seus emeo

aorros e rcspectivos habirantes 23. E ele acreditoll! 2-1 Anrepunha a autoridade

de Manes a dos filosofos porque a rinha na eonta de santo, se bem que cle,

desavergonhadamente, tivesse ousado ensina-las sem as conhecer, julgando-se

habitado pelo Espirito Santo 25. Par i550 Agostinho, entao Li por fora, habitava

nos olhos da carne, ruminava 0 que por eles tinha devorado e acreditava na­

queles que acusavam as cristaos de acreditarem num Deus limitado por forma corporea, com unhas, cabelos, etc. :lJ" 0 que era mentira.

2~ C(lI!/i:ssiollf$, !Il, vi, 10: ~\E cram e~tas as balldeja5 Uermla) em que me servi,1111, em vez de ti, :l milll que tinha lome de ti, 0 sol e a IUd ( • .,j. E serVi.1m-llle ainda, naqudas b:mdejas, t;mt'L<;i.1S csplendicbs (p/l!Il1tusmatll sp/endidll), com as qu:tis j:i era mdhor .1m~lr este sol, real, pdo menos para este<; OUIOS,

, do qll,e. aql1elas c~isas f.llsa, para 0 espirito engmado pelns olh05» (cf Dc Bcmll lIitil, 1, 4). -.~ CQI!~SS/oIlf'S. IIJ, VI, 11: "OS venos, a poesia. e Medei:! a voar eram, sem dllvida, mais {[tl'is do que

os ClilCO elementos variegad:nllt'ntc disf,mi".1dos par GiUS:, dm cinco anum de trevas (qllinqlle ill/1m IC­

IIf'branmr), que de fOml.1 .11guma existem e lll.1tam quem ere nell's,)) 2~ Cm!/i.'_~siolll:s, lJI, vi, 11:_ «llla autem credidi. Vae!, uacb\ Pierre Courcelle, RedlcRilcs ... , p. 63: quando

Agmtmho aprest'llta tals cren~;l' como lUll «tisSl1 (1"absunlites C.,) il parait me-me ,e contrcdire sur Ie degrc de conviction qui fut Ie SielL>! Nao nos parece que st' contracliga: Agostinho mmca I1l'gou a sua cren\a verdadell~ no manigueismo. ° gue acontcce e que 0 espatlto COIll de confi.'ssa e 'ie aClJ­~a 'i 5i mesll10 - ((0 Aurelia Ag{lSlill/lO, WI/IV ]1l1dl'st!' am,ditl1r 1II1I]IIilo?!» - 0 leva a cruzar aos nl\,t'is naIT.l~i~os de mna fomu gue pode conduzir a cquivocos (cr, par exemplo, CPI!fcssi(lflrs, VII, 1, [, a

_ proposJto de nUllca rer concebido DellS com a figura de Ul1l corvo hlllllano), b Cr. Confessiows, V, v, 9. 1(' Cf C(lI!fessit1//cs,.lII, vii, 12. E a questao da exegese e das rej;J(':ol's entre Antigo e 0 Novo Te<;tJ­

mento, Os Mamquem, incapazes de leitura aleg6rica au simb6lica, ou de verem a AT com a figura do Novo, eram tambem illcapazes de compreender a poligamia dos patriaru", o~ sacrificios dm ani­malS, ~ doutnlla cia cria\ao do hotlll'l11 .1 imagem e semelhanp de Deus, a circunci~ao, a respeito pe.ll~ sabado, ,is genealD6>1a5 de Cristo (cf. Contra hl1lStlUlI, IlL IV; X, 1: XVIII, 2; XIX, 6; XXII, J). DlZl.111l gue os cristaos llsavam escrituras deturpadas. Ell'S, sim, tinhalll as verdadeiras Escrituras, sem interpolal,-'oes (mas nunca as mostrava1l1, d. COI!/cssioIlCS, V, 11,21; para a literatma apbcrifa neote';­t.lmentlna a.ceitt' pelos Maniquells, cf Pio de Luis, in Obms Completl1s d!' Sail A,~HStill, vol. 31, BAC, Madnd, 1993 ... , pp. 811-812, 11.34). Repare-se pon~m na confi.lsao, pelo menos 1)0 /111IIIi­I]lIdslllO de A,(!OSlill!l(l: contra 0 que considerava ser uma visao anrropom6rfica de Deus, reivindicava com ~s Maniqueus um~ cOllCepl,-'ao cosmobiomorfi.ca (Deus como LJI'::, Sol, LIlli, presente nos figo.<;, lla~ 1~ltug"Js, ,nas mei:tllClaS, nas cabaps, n:l~ videiras, isto e, U111 Deus r/w((Js(l, em (~.yodll, csqlleddo, 11111-tCl1a/tzl1do; d. COI!ti:5siolles, II, x, [7; Dc quantitatl' IIniJIIIIC, 33, 71) que, afinaJ. nao era mais piedosa do que a qut' criticava.

702

AS CONFISSOES DE SANTO ACOSTIl\'HO - /ICTAS DO C()~\'GRESSO INTENI\'/IC10~\'AL

Mas a prerensao de uma concepC;:Jo de Deus e da alma que (mao fosse pue­

ril e menrirosJ», tinha 0 seu correlato numa concep\,30 ontologica indiferen­

ciada, sem rdevancia nem rela\,30, ji que tlldo s6 era conccbive! em termos

puramentc materiais '27. Ja outrora, em Dc PrJ/c/Jro ef apto, obra dos seus 26

anos, «revolvera no pensamento apenas materia» 2H. E 0 seu espirito, errante

pelo cOIporeo 2(), nao consegu-ia entao ({imaginar outra substancia alem da que

os nossos olhos constantemente VeelTl» 3(1. Imaginava toda a realidade como

material e, apcsar do espectro poder ir da materia bruta e impensavel ate J. ma­

teria subti1 e ignea, como nos estoicos 31, isso nao implicava, pein menos no

espirito de Agostinho, uma graduayJo da realidade oude coubcsse uma visao rela­

cional diferenciadora. Era ainda a imaginac;ao a d-istribuir as coisas por diferentes

lugares. A isto meSlllO alude ao refenr que tambcm J massa de ar que cstJ. pOl' ci­

ma da terra nao inlpede que a luz do sol a perpasse, sem a rasgar ou cortar, mas

n C1H!fcssimlcs, V, x, 19: "Parecia-me muito ign6bil erer que ru tinhas fJgura de corpo hU11lano e que eras delimitado peIo perfil corporal do" nossos membros. E porque, qucrendo pemar no meu Deus, nao sabia pensar scnao e111 massas corp6reas - pais nada me parecia existir que nao Fosse Jssil1P>; IV, ii, 3: "Com efeito, nao sabia al11ar-te, nao sabia pem,lr senao em ttllgores (or­

poreos» (cf. CmJtrIl [:alls/lIIl1, 22. 8). 2H Agostinho contessa que nes<;es volumes havia apenas )hrocs purmnellfc II1l1lcriais (cf COI!jessiolll's,

IV, x, 27). Takeshi Kato , num mteressante texto, «Meiodia interior. Sur le traite De lJJi/chro C/ ,Iptm) , RI'P!II' dcs El1Idcs A1Iglistillil'lHll's 12 (1966/3-4), pp. 229-240, sustenta a tese de que 0 ma­niqueislllo - mais que 0 estoicismo -, toi a fonte fundamental deste tratado; Olivier du Roy, L'intcll(~clI((' de lafoi., p,42. "Etonam syncretisme de manicheisme, de neo-pythagorisme et de

stolcisme cicer-omc diffilS.)). 29 Cm!fcssioues, IV, x, 24: (<C,.) et ibat animus per formas corporea~.')

30 C)I!fcssiOIlCS, VII, i: III, vii, 12: «Nesciebam enim aliud, llere quod esU 31 COI:/i.'ssioIlCS, V, x, 20: «E da! pemar tambcm que existia uma especie de 5lIbsdncia do mal (mali

SIJbstllmia) ide-ntica, e qUl' tinha a sua massa negra e infon11e, quer fosse espessa (lIIolfllJ tcn"a//I ct

dd;mllclfI Sitlt" crassal11), J que se chamava terra, que1" tenue c subtil, C01110 0 corpo do ar: substan­cia que se imagina C0l110 uma mente maligna que rJsteja atraves da terra» Ragnar Holte, !3,catiW­d(' ct Sa;(!CSSC, Sailll Al/gliStill e/ Ie prob/CIIII' dl' la Jin dc /'lwlIIlI/(' dam III plli/osophic {lIIeiellll!', Etudes Augustiniennes, Pari'i, 1962, p. 98: «Pour Augustin ],histoire de 1a philosophie, quelque'i sieeles .1preS Platon, se prcsentera essentiellment (onune line lune incessante pour ou contre Ie mate­rialisme. Augustin regarde manifestell1ent Ie matcrialisme ontologique dl's sto"lcil'llS comme une manitestation de l'aveugkment universd de I'hlll1lanite a l'cgard des rcalites spirituc!les, conse­quence de \'.1sst~ettissement au sensible.,) Pnrem, nalguns textO'i, ~<Agostinho lIlostra-se tolerante quanta a intcrprcta~'6es materialistas do lllunclo espirituai» (cf. Carlos Silva, «A doun-ina ditcren­cial dos gralls de pl'rfei\ao segundo Santo Agostinho)), in Didi1$kalill 26 (1996/1), p_ l35). Em 110SS0 entender, contudo, nao se trata tanto de uma interpret;u;-ao materialista do !lIundo espiri­tual quanta de uma transfigurJ<;ao espiritual do lllundo sensiveL V,g., CtJI!/cssioIlCS, X, xxvii, 38: "Chamaste, e damastc, e tOmpeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a rninha ce­gueira; exalaste a teu perfume, e eu rcspirei e suspiro por ti; saboreei-te, t' tenho tome e sede;

tocaste-me, e inflamei-me 110 desejo da tua paz.,)

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lOSE .H:lRl.-l SILI-'A RO.'lA

enchendo-a. Do I1ll'SI1l0 modo, pensava que todas as coisas eram pcnetradas por Deus, que assim as governava 32.

Importa real\,ar que Agostinho, ainda ::mtes de abandonar de todo 0 l1lani_

qUelS1110 e 0 materialismo, ja come~ara a considerar que deveria haver LIma 01'­

dem hierarquica na propria realidadc material. E, paradoxalmente, foi 0 pro­

pno maniquelsmo que fez relampejar a visao de LIma ordem relacional no

proprio reino da materia, em virtude cia organizat;:ao hierarquica dos cinco an­

eros das demonios. Este principia de visao diferenciada fai scm duvida poten­

ciado pel a contacto com Ambrosio .1\ como vemos testel1lunluda logo no

mlclO da Dc Beata l/i[1-1: foi COIll a ajuda «do nosso sacerdate» qlle COl1lpreen_

dell que mao se deve de forma alguma conceber Deus Como corporeo, I1elll a

alma, que e a rcalidade 111a1s proxima de Deus)) .H. Mas e indiscuttvd que 0 tlla-

.1~ CPl~(C~SiOIlCS, VII, i, 1: ({Assim talllbem eu julgava que lldO S(l 0 corpo do Cl:Ll, e do Jr, e do nur

mas tambcm 0 da terra, tc eram acessiveis e pendr,iveis por todas as panes, das maiores as l1lai~ pcql1l'n~lS, para rcceber a tua presen(;a que, com invisivel inspira<;:io, governa, interior e exte­riormcnte. todas as coisas que cria,te ((l{W/lll ill.'pirati,,"c illlrillsc[JIs 1'1 cXlrill.I'£'(IIS adlllillisrrarc ollmia qual' OTlISIJ). Assilll 0 supunha eu, porque nio podia conceber DUtra coiSJ; mas era tjlso.lJ Em VII, xiv, 20, confessa que nan gostava dc parte da CriJO;30 e que por i~so se Ian<;ara 11<1 teoria das

duas subsrancias: "Nao c~t:io no sell perfeito juizo aqllcle~ a qucm desagrada a16'1.1111a coisa cia tua Cl;a~J.o, tJl C0l110 ell lldO estava ao deSa6'Tadarem-llle muitas coisas que fizestl', E porque a minha almJ nao se atrevia J que Ihl' desagradasse 0 mel! Deus. eb nao qlleria que fmse tell tudo <juall­

to l11e desagradava_ E da] qLle tenha caido l1a tcoria das duas subs6ncias (ii'rrll ill Opilli()Ill'11I dlWfllll1

slIbsta11ti,lrlllI1), e 11aO tinha repomo, e dizia eoi~as despropositadas. E, voltando dai, e1a tillha cria­do para si llle~lJla mIl Deus pelos intillitos cspayos de todas os lugares, C tinlll julgado gue es'lC

eras tu, e tinha-o coloCJdo no Sell coray30, e tinha-~e tomado de novo templo do seu idolo.» JJ E~te influxo de Ambr(lsio e, a mll tempo, exegctico e filas6fico (mas mais exegetico que filoso­

fico). COl!(rssi(11IC5, V, xiv, 1..J-: «E, enquanto abria 0 coyayao para apreender com quanta e1o­

qucncia se exprimia, da memll ll1aneira entraVJ nell', emborJ gradualrnente, com qUJnta verda­de 0 flZiJ. Em primeiro lugar, eO!11\:"y:lra j5 J parect'r-me que e~sas mesmas coi~JS cram defensaveis, e considerava que a te catolicJ, em favor da qual tinh,l julgado que mda se podia dizer (Ol1tr,! os ataquc~ dos Maniqucus (prtl qlll1 niltil pOS5e diri adl/CrS11S oppHgllillltes IIlallirhms ]111-

raHcr,lIIl), se podia afirmar sem acmhamcmo, sobrctudo depois de ter ouvido cxplicar Ull1 ou DU­

tro passo obscuro do Antigo Testamento, ClUa interpretaO;30 literal me matava (llbi mm ad IiUt'-

1"1/111 j/([iper..rlll, (lccitiriJm).» Para e'ita intlucncia que 0 levou a compreender que ,'a letra mata mOl, 0

Espirito vivifica~ (2 Cor, 3.6). cf. Piem .. Courcelle, RecilcrciJcs .. _, pp.96-j03. \~ Dc Beata llit!!, 1, 4; CtH!/i.'s.<:1mu's. VJ, iv, 5-(1. Estt' 'ieria 0 bdo lllais filosOflco de Ambrosio que,

todavia, nao d;lVa grande importancia J. tilosotla e, nalgumas passagens (por exemplo. Dl' fidc, I,

5.13; IV, 8; 1)[' lrl[(/rnatiorl[" IX, H9, 1l]JlId Pierre Courcelle, Recherches.,., p. 94) "armo!l~e par­fms les invectlve'i d'un Pierre Damiani. Ambroise est I'une des sources les plus sllres d!..'~ "ami­-dialecticicl1s" du Xle et du Xlie sit-'ele ( ... ).» Todavi,\, conhccia Filon de Alexandria, Origenes, Plotino, Porfirio, pelo que era illlpm~ivel nao utl!izar esquemas destcs autores, que assil1l chega­vam a Agastinho, A ajuda de Ambr6sio reveia-,e esse!1ciJJ no desJtar m m1S das calunias dos

Maniql1eu~ Contra os livras divinos (cf. CtJ/!fessiol1es, VI, iii, 4), a tal POnto que Agostinho, ainda ,em qualquer ideia do que fosse a «spirit,dis st!iJsramil/», ji se cnvergonhava de ter /adrado talltos anos contr~ a Cmlwli[(/ - cf Julien Ries, (,La Bible chez saint Augustin et chez les manicheens~, Re1'1le des Etudes AuglJstil1iemlcs 7.9 (1961/3; 196313-4), pp. 231-243; 201-115, rcspectlVamente,

7()4

AS CONFISSC1ES DE SA,\' /0 ACOSTL\'H() - :lCL~S DO CO;VG/V-:SSO /'\Tfl<.l\.K'/OXAL

terialismo e 0 mamqueislllo so progresslvamentc toram sendo vellcidos JS. 0 li­

vro VII de CO/!f1sstJcs re6rista, alias, certas hesitat;:oes, olldc Agostinho diz que

contlllUava a ser para si nIcsmo lllll Jutentico viveiro de amargnras (plallttlrill1/1

al1lariHldiIJis) J(,. Havia nele 11ll1a proflmda resistencia pre-reHexiva, illvoluntaria,

a possibilidade de existencia de qualqucr realidade nao material.

E certo gue ja ouvira dizer que 0 mal nao devia ser imputado J matelia,

criatura de Deus, Illas sim ao livre arbitrio, Mas se toi Deus que nos criou com

vontade, como e passive! que sejamos capazes de pecar? Donde vel1l entao

que quelraIllos 0 mal e nao 0 bem? Sera boa a nossa vontade? Se (oi 0 diabo

que nos enou, dondc c que ele procedc? Njo pode ser de si mesmo, porque

isso selia cair de novo nos dais principios. E se 0 demonio e criatura de Deus

e pela sua vontade perversa pecou, qual a origem dessa vontade m3. COIll que

sc mudou eIll diabo, tendo sido criado anjo perfetto por mIl cliadar bom?-"17

Verificamos com que dificllldade Agostinho deixa de ver 0 pee ado como

um acontccimento, pravocado por um3 natureza material exterior, para passar a

encara-lo como Lll11a decisao da vontacie, isto e, como cometimento de uma faI­

ta, E se elll Olleras obras antimJniqllcias Agostinho aparece a desvincular-se pole­

micamente da visao dualista que perfilhara 31"l, em CO/~fissacs, para alt?m dos mUI­

tos elementos para a compreensao da carencia relacionai maniqueia, confessa 0

que fora 0 seu maniqueismo J ,), 0 que nJS outras obras 'er~1I11 des', em COI!f1SSllcS

'fui eu'. Contra a ausencja de identidade, que nao lhe permitia en tao dizer 'fui

eu que pc-quei', a descoberta de mIl minimo de ipseidadc etica (quill 1101/ alia 111-1-

tum gerttis [fllCbraml1l de I1IC pcrcabaf) que pudesse ser rebcionada (aCl/sar11-1, ap(lllta­

da) foi para de uma iutada de ar libertadOl' -4(). Ele bem se esfon;:-ava entao por

afastar do olhar do sen espirito (Ill! ade melitis IIIC([e) todas CSSJS im3-gens, {(sed t/olI

35 Nas COl1ft'ssiollcs, VI, iv, 5; VII, i, 1, diz qllc ~l' \<alegravJ por cncontrJr esta dout1;nJ na fe da 1l0'i\;J

mae espiritual, a vossa ib'TcjJ. CuiJlica», mas no Dc Bcata lIila rdert" com maior cnfase os platonicm, Provavdmeme ambas as coisa~ sao venbdeirJs porque Ambr6sio di-Ihe tambbl1 U!I1 eri~t:ianislllo

neoplatonizado que, verosimilml"llte, taIllbem atingiu M6nica (cf Dc B('a/a IJita, 2, H). 3(, COl?fessiorlt's, VII, iii, 5. 37 Este e um mistcrio que sempre f:iscinou e atomlentou Ago~tillho. No lJc eluirare Dei, XII, 6, a pelr

do conheciJo esquema da pervcrsao da vontade (d~kctit) lIoiwltatis, tendencia d,l vontade para 0 lIii(l­

-ser por ter sido fi."ir;l de Ilihi/o) hcsita ainda, dizendo: «Se qlliserlllm ,aber qual foi ;\ cau>J da m;i vontade (, .. ), depoi~ de lIllla profil1ldJ reflexJo, nada nos oeOITt' (5i /J('/J(' in/uC<1l1/lIr, nihil ownrll)>>, ar­rematando com 0 51 18, 13: «Quem comprcl'llde 0 pecado? (dcli(/a wirll quis illlclhgir?)>> (XII, 7)

jg Proces.<;o polbnico de desvineula<;:io que Continua particulannente obras !la, anti-Jrianas. Cf. Ro­

land Teske, "Augustine, Maxi!1111S and Jmaglnation~, in AlIlustrlli<1lw 43 (1')93/1-2), pp.27--l-l. 3') Neste sentido, Ct!r!/i.'ssi{ltll's tem 1llll vJlor acrescido rdativamente ~s outra, obras a.!ltimaniqul'iils.

Em todas ebs at;lcl 05 prillclpios t'stmturais do maniqueismn, mas em Cor!ji.'ssiol1Cs h;"i lIIlla auto­critica que mastra positivarnellte 0 contc1ido do 5('11 maniquel'illlo.

41) Ct!r!jcSSit)'ICS, IX, iv, 1U.

70S

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JOSE AfAR/A SILVA ROSA

potcrmll!» 41. E logo elas se impunham de novo, em tropel, pois concebia apena.'; a

sllbstancia que vemos por meio dos olhos corporais. Vivia obsidiado, afogado,

oprimido pela materia, incapaz de respirar a pureza e a simplicidade cia verdade 42.

A imagina~ao fautasista impunha-Ihe 111lla visao ondc Deus, a alma, e tuda l11ais

eram sempre representados a imagem da COlsa corp6rea 43.

Santo Agastinho, alem disso, acresccnta algo muito importante para deter_

1ninar a peculiaridade do sell materialismo. A nlOntante da incapacidade de

conceber alga que 11aa Fosse material, refere Agastinho uma outra incapacida_

de dande aquela deriva: a de conceber algo que naa fosse ern termos exclusi_

vamente espaciais. Se quisenllos, e a concepc;ao panteista do 'Todo' a determi_

na-lo. Agostinho est~l fechado para a diferen~~a ontol6gica para que 0 esfon;o

uottieo de Platao e Arist6tcles apontara +1, IlaO sem alguma violencia sobre a

imagil1a\"ao ontoteoeosmol6gica de certas correntes filos6ficas coevas, que

-II Cm!{t'ssiollcs) V, xiv, 25: <cApliyuei eIltao, com todas as ton;:as, 0 mcu espirito a vcr Sl' era de algum modo possivel, com alguns arWllllCIltOS seguros, convencer os Maniqm.'us de filsirJade. Ora, 51..' pu­de'ise conceher Ulna subscincia cspilitua] (si P05S(,11J spitiralelll substantiall! n:l!itarc), illlcdiatamente todas aqudas invem,'ocs serialll dl..'~fi:ita~ l' expuL'ias do meu espirito: mas nao podia (scd 11011 I'ot('mm)~.

~2 COI!fcssi(1/1CS, V, xi, 21: «Mas a mim, complet<llllellte tolhido e sulocado ((<1pllllll 1'1 t!(f(JratwlI), co­

mo que me esma~av:l1n aquelas duas m')ssas, il1la~jnando-as eu coisas materiais ((0.l;lla1l1(1II mO/(,5

iliac), sob nuo peso, otcgando pela brisa limpida e simples tb tua verdaJe, nao podia re~pirar

(respimrr IWII jlorcram)". 43 COI~fcssioll(,S, VII, i, 1: ~Dl''ite modo, embora nao te cOllcebe~se ~ob ;J forma de tun corpo huma­

no, era todavia levado J conccber Jigullla coisa de corp6reo espalhado pelos espac,:os, quer ima­nente ao mundo, quer difilSO para :.Ilem do mundo, pdo infinito, e que fosse justameme isso 0

im.:orruptivcl, C 0 inviolavel, C' 0 imut,lvd que I..'U antepunha ao corruptivel, e ao vioLlve\, e ao

mutavl..'!.." Alias, 56 quando conseguc [rear a imaginac,:ao (cf. Epislllia 7, 2, 4-5), essa £'lculdade

espantosamente rica e complexa. e que poue ultrapa.,sar diticuldades 1l0urros dOlllinios. Poderia­mas a'isim f3lar C0111 toda :J. leh,ritimidade de llma (olIlwrsii,J da im'w'n,l(iio de cujo proces'io os livtos

X (da memoria psicoh)bTica a memoria ontological e XI (do tempo :i.eternidade) de C01!/rssiOilfs sao LUll relato impressioname. Jean-Marie Le Blond, U.'5 colli/crsiolls ...• 1950, p. 250, assinala que "Ie dilcllll1le fa rela(;ao, em Deus. entre tempo e ctemidade, a proposito da cria\"30j, cependam, ne l'impressiane pas, et sous sa rigucur apparente it devoile l'itlUSiOll d'une imagination qui !le se liberc pas du temps et continue J "vokter dans Ie paS'it~ et J'avenir" l COI!fessimlcs, XI, xi, 13].

Aussi sa rcponse, paradoxale, est-elle lll1C invitation a purifier Ie, schemes telllporel~.» E de assi­naJar que nos sellS reproches aos Maniqueus ~ que CI11 Cot!fis50CS ~ao COlltra si mesnlO -, surge

semprc a critica :i fantasia l' a fcrtilidade da iIllagina~'ao (cf. Collfra H1I/SIIIIII. 2, 3.5; .Eflle~to Buo­miuti, II Cristiallesilllo rommlO w/l'Afrim rvmana, Bari, 1928, p. 356 ss).

4~ Cf Repllillim, 509 a-b; .Mcfajisi«l, /\', 9, 1074 b 33-35: «alm)V apa j'OEL, ELTTEP EGTl Til KP6.­TWTOV, Kat. EGTlV ~ VOllGlS' ]!O~o"E(tlS V(·rr10"LS .. » E ,c Agostinho leu Arist6teles (cf COI!frssioIU'S, IV, xvi, 2R-29), i~so apenas 0 tez afundar mais no erro de reduzir (} divino a UTlla categoria. Co­mo so podia imaginar a sllhstallcia material, assim comprel'ndia Deus como corpo. Nao deixa de

ser llluito curioso 0 modo como a leitura das Calc,I;Mias de Aristoteles 0 confimlOll no matcria­liSlllO. E certo, pod:m, que 0 pcnsamcnto cia sub-;t;l.Ilcia em Aristoteles nos conduz a aporias. Ao limite, a subst5.ncia pode ser pensadJ. ou naa ter;) que se pedir socorro a imaginayao? Scja como for, «em .f<llso 0 qIH' pmSml(1 de 1/6s, em 11H'llfiralJ), nao se cansa de cofifcssar Agostinho.

706

AS CONflSSOE) DE SAi\"/O !lCOSrJI\/HO - AeTAS DO COl\iGRESSO Il'-lTfRI\i.'lCIO,VAL

a gnose e 0 mamqueisl110 haviam travestido miticamente, e que a concupis­

cencia astrol6gica do jovem e<;corpiao £izera toda sua 43. Donde: 0 que nao se

pudesse conceber no espa.;:o era necessariamente 'nada', e nao apenas vazio,

o vacuo e eertamente uma forma de 'nada'. mas e 'algo' enquanto "nada es­

pac;oso" ClpatiosWII llihi0 46 , na medida em que pode ser preenchido. Da imp os­

sibilidade de conceber algo inextensamente Agostinho c conduzido logica­

mente ao materialismo. Todavia, se nao incluisse neste U111verso corp6reo 0 proprio Deus, Agosti­

nho nem estaria longe de algumas cOIlcep<;6es eristas, dos primeiros seculos,

que defendiam a matcrialidade da alma, e que encontraram Cllunentes repre­

sentantes nos seculos III a v. De facto, desde cedo que, para fugir a impiedade,

muitos cristaos haviam considerado impassivel que a alm3 fosse puramente es­

piritual. Tal estatuto, de pretenso recorte evangelico, era reservado exclusiva­

mente para Deus. E se a doutrina da corporeidade da alma poder5. ter sido in­

duzida nalguns circllios de cristaos, em contacto com 0 cstoicismo .17, n5.o

45 Cf. COlifcssi(1I1CS, 111, iii, 5; IV, iil-iv; VII. vi, tl-l 0; Dc Cillitlltc Dci, V. 1-7; X, <), Durante muiro

tempo fora a astrologia - essa 5<1C/ih:~i/ CIIrltJsil<ls -, que 0 orient,lra 11<1 l'ia.~el/1 (cf. Dc Beald lIilil,

4). Com a entrada nos Maniquclls rejeita porem os sacrificios divinatorios, mas njo a astrologia, que COllStitula lIl1l Gl.pituln ftmdalllental do saber maniqucu. Vindiciano e Nebridio com os seus comdhos e admoe~tay6e~ rlmito cOlltribuiram para 0 abandono dcssa curiosidade. mas apellas 0

exemplo do pai de Finnino (cf C(1/!li:ssioIlCS, VII, \'i, R; Episwl<1 138, 1. 3; diferenya de de'itino entre de, Finllino, rico e livre, e 0 filho de um servo do seu pai, tendo ambos exactal1lente 0

mesmo horoscopo) e qLle 0 decidira. Assinale-se ainda que Agostinho nan somentc collSulrava astr610gos. mas chegou tambem a dar colIslillas (cf. David Pingree. «Astrologia, astronomia», in A1tt;HStiIllIS-1.£xi/cOIl, cols.4H2-490).

.;~ COI!fcssioIlCS, VII. i, 1: "Porque tudo aquilo que eu privava de r:tis espa<;os parecia-mt' ser 0 nada, mas 0 nada absoluto, nem mesmo 0 vazio, como quando se tira tlIIl corpo de tim tugar e fica 0

lugar esvaziado de qllalqlltT corpo, seja de cia ttTrJ., da :'tgua, do ar ou do d:u. Illas todavia bet tim lugar v<lzio, como se fosse um 'nad;l espa\oso' (splltioSIIIIl l1ihi!).»

47 Cf. Michcl Spannem, PC/1lIllIlCI!(C dll Sloiris11Ic. Dc ZCIIOII a A111lrau.y, Editions J. Ducolot, Gem­bloux, 1973, pp. 146 ss; Ernest Fortin, Christimlismc ct wfrllrc plli/osopiIiqlJ{" all (inqlliclllf sihlc. Ll

qllcrelle de I'rllllc IHllHaillc CII OridCIII, Paris, Etudes Augustiniennes, 1951), pp. 43-74 (cap. I, «Les Adversaires de la Spiritualite de l'Ame. La doctrine de Faustus de Riez»). 0 auror, a partir da Epi.llHla 3 do bispo Fau~to de Riez. apresenta-nos LIma exposiyao desenvolvida sabre a doutrina da corporeidade da ,11ma nest,) epOC.1 (tambclll defendida por CassiaJlo). Repare-sc que 0 pro­blema era 0 mesillo de Agostinho, ja nao aplicado a toda a realidade, 1l1,IS SOlllcnte :1 alma: (p.46) ((Pour etablir la materialite de l'ame. rauteur s'est contente dc dire (ju'el1e etait insCf(!t'

dans nos membres et liee a nos entrailles, dc tdle sorte qu'au meml..' titre que Ie corps ou die est enfermee, die est quantitative, et donc carporelle.» Note-se que a argumentac,:ao, centrada I1J.

diferenp entre ('sscflcii/ e tJpm!(ocs rI,l allllr!, procmava suporte biblico. De tacto, apesar de em Cl 1, 16 ser uito que Deus criou todos os seres, uisivc1s {' ill!!is{pcis, nao se pode concluir da! que a~ il/vis/tlds sejal1l illroypal"CIIs. Ullla coisa e a invisibilidade, outra a incorporeidaue. 0 ar, por exem­pIo, e invisivel e, no enranto, material. Pode bem acontecer, destc modo, que a alma invisivd

seja um corpo, mais subtil que os Olltros. mas da mesma natureza.

707

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JOSE .HARIA .sILVA ROSt:!

deixa de ser uma ironia que os partidarios da sua espirituahdade, entre des

Agostinho, sejam aClIsados de terem transigido com a sabedoria paga.

POI-em, a gcogrJ.fia mltica ainda tinha nde bastante for<;3 e determlnava-lhe

o imaginavel. E apcsar de ji ter visto a contradic;ao resultante da sua COIlCepc;:aO

simultaneamcnte cspiritual c cspacial de Deus 4K (0 [eino da Trevas, material,

infinito, localizava-se a Sui; 0 reino da Luz, espiritual, infinite, fkava a Norte),

ainda nao encontrara uma alternativa clara: continuava a representar tudo espa­

cialmente 49.

Para a superat;:ao progressiva de tal esquema ontol6gico dualista, ca[{:'nte de

relayao, contribuiram os film' platollicoy/1I1/ que Ihe vieram parar as maos. Mas

nao devemos esquecer a sua experiencia profissional de todos os dias: rhetar.

o mester de Agostinho era ensinar a gramatica, a retorica, a dialectica; 0 seu

pensamente estava habituado a declinar, classificar, ordenar, hicrarquizar. NaG

tem sido dado suficientc importancia, em nosso entendcr, ao contribute da re­

tOriCd para a mpera<;:ao do dualismo materialista, mas e indubitavel que a refle­

X;tO sobre a linguagem (v.g., sobre os graus dos adjectivos 50) contribuiu par­

ciaimente pan rcnovar a sua concepyao de realidade. Talvez se possa

~~ A qual e a cOlldi(':ao de possibiJidade do combate se realiz:J.ra in ilfo temporc, J1Jeio pOl' que se misturaram Hel11 e Mal. E i,to era atlnnar que Dem estava sujeito as violayoes da matbia, por­

tanto, corruptivel. material. E ainda neste cicio que Agostinho se enreda quando salienta a difi­

cuI dade ern imaglllar algutll ser que !lao material. 4') De tacto, apesar de contra a lIlitologia maniqueia acredit;lr ja que Deu~ nao pode ser viol;lvel -

Conti·ssio!l('s. VI[, i. 1: " ... e, com todo a Il1CU seT, acreditava que ttl es incorruprivcl. e inviolavel, e lI;H1tavel (ct If inwmlplibilCI1I cl illtiio/ahi/clI! ct ill[(ltillila/Jilc/ll totis medlilis aedel),lIIl)" -. de sell ta­Iante so podia imaginar Deus como uma imema mole infinitamente distellSa. e nao lUll ser espi­

ritual. ~o Cf. Herni-lrcllee Marrou, Saill/ Augustill .... p.2-t(I. Em COI!fi'ssioll(,s, VII, iv, 6, atlrma que:

(6endo ent30 absolutamente verdadeiro e certo que a im:orruptivel sc cleve antepor ao corrupti­

veL ral como eu j:i bzia, podia ji, com 0 pemamcnto. Jtingir alguma coisa que fos~e lllclhor do que a men Deus. se tu nao tosses inc()ITuptivd. POT ism. ali onde eu vi.! que 0 incorruptive1 de­

ve ser prefericlo ao COITuptivel, ai te devia eu procurar e dai aperceber-me onde esta a nut, isto 2. don de tem origem a propria corrup~a(), pela qual a tua substancia de modo algum pode ser violada.» Porem, este pensamcnto em tonna de siloglSlllO, cl~ja condusao e retirada por reductio ad ,1/JSllrdlltIJ e no qual Anselmo de Cantua ria l1luito deve ter meditado ate a fonnula do PfflS/O­.1;;011, e 1ll,lis um dm lugares em que 0 plano narrativo e elCtua] se cruza com 0 hipot(,tico. Se 10-

glcamcnte entao chegoll iquela conciusao, Bao sou be como dar-Ihe seguimel1to. nelll tearico l1em pr:itico: «( ... ) ibi te quaerere debebam atqne inde aduertere ( ... ).» Dc qnalquer modo, a Itn­guagern ia trazendo cada vez 1l1ais a luz as inconp;tuencias da posiyJ.o dc Agostinho. Se na 01'­

clem da narrayao Agostinho ja identifica essa realidade com 0 Deus revelado em Jesus Crist~, nav <leOllteela asslm lla ordcm da de'icoberta, C01110 expressarncnte rdert'. Isto e tambern mll 51-

llal da probidade subjcctiva da ({)I!/iSStIO (,) proposito da dimensJ.o ordenadora da linguagcIll, cf. ])1.' Mdint'. II. 12-13,35-38; quanto a forr,:a gua~e divinJ da gramatica, cf Dc ordinL', II, 17,45; para mlla abordagem geral da problematica, cf. Jose Oroz Rct:!, "El lengu;-ue en los primeros es­

critos de San Agustin», in La Ciudad dc Dios 2U2 [l9Wi/JJ, pp. 111-12:4).

708

;"\S CONF1SSc)ES D[ 5:L\'1D .rICOSTlNHU - .'1CT.-lS DO CO,\'GIU~SSO [Y1FRNACIO;\'AL

perguntar, enta~, por que razao Agostinho, tendo sido gmml'llati{//s e rhcr(lr du­

rante varios anos, nao se deu conta disso mais cedo_ Em nosso entender, du­

rante esse tempo, Agostinho nUllca atribuira relev~lneia olltologica a lingua­

gem. Neste sentido, 0 Jovem retor da dedicatoria a HiCrio situa-sc

naturalmente na 1inha da sofistica e da retorica forenscs greco-latinas. A lingua­

gem e simplesmente um mcio de persuadir, de convcncer, de veneer, de lou­

var, sobretudo se dat se esperarem proventos pes50ais. So depois do encontro

dos platonicos, mas sobretudo apos a sua convcrsao a Sabedoria Criadora, ao

Verbo Encarnado, come<;ou a compreender 0 alcance ontol6gico da Palavra 51.

Seja C01110 for, J palavr<l, para a gual e da qual sempre vivcra, predispusera-o

para uma concepc;:ao de SCI' relevado, hicrarquizado, nao so segundo graus, mas

tambem Seb'11ndo naturczas 3:::.

Por outro !ado, apesar dt.' progressivamcnte comeyar a vislumbrar as incoc­

rencias do sell materialismo, ainda nao tinha dado conta de si, do acto de

consciencia pdo qual raciocinava e distinguia 0 vcrdadeiro do £11so. Como f;l­

ra depois para combater os cepticos, ainda tcntou volrar-se para a alma 5-". Mas

foi em van: nao se dava conta de que 0 acto por que considerava tudo mate­

rial, nao podia ser material; na~ notava que a natureza daquilo por que forma­

va imagens do scr corp6reo nao podia ser corporco. Literalmente, Agostinho

ainda nao 'caira em si', 11aO se Ihe tomara evidente a interioridade 54 e estava

completalllcnte fechado a uma visao rclacional da realidade. Precisava de outra

luz, mas nao podia pcnsar que ela estivesse na religiao crista, porque a opinido que tinha sobre ela nao era cxacta:;"i.

51 Jo 1, 1-1-; Cf Marie-AnJlt' VaTlnieL ((Saint Augustin et lJ creJtiotl», ... , pp. 3-1-IJ 55.

52 C(lI~rcssi(Jllrs, VII, iv, 6.

53 COI!fessiolicS. IV, xv. 24: "E voltci-me parJ a natureza do espirito (('I wllllcrii Ill/' ad anillli 11<11111'<1111), mas a ideia errada que tinha accrca das coisas espiritl1ais nao llle deixavJ ver ,1 verciade. Entrava­-Ille pelos olhas dentro a forp da vtTuauc, nus ell desviava a minha mente palpit;mre do mcor­p()rt'o para as figuras e as cores t' para as gr:mdez:ls tlsicas e. jii que nao podi:] vc-las no espirito. julgava nilo poder VeI' 0 llle~mo espirito.»

54 C11!/cssioIlCS, VII, i, 2: <INa vcnlade, 0 meu corJ\-ao seguia atTav(>, daqucl'ls imagens (ycr lilffS illlil­

gilles il!<11 cor 111(,11111). ,Itraves das quais costumam 'i('guir os nlt'us olhos, e l1e111 via qut' esta mesma reflexao (11('[ lIidel"II1J haw calldl'lII intCllti,J//CIII) com que ell ti.}fIll:rv<I :Iquelas mesnus imagem mio era da mesilla natureza (/1(1/1 l'SS(' I,lie ,liiqllid): toddvi~l ela nao as formaria ~e IlJO Fosse uma coi~a gralldios,j (llisi esse/ l!Iil.~1I1I1I1 aliqll;ri)>.

55 Cf. COI!tt'ssillll(,S, V, x. 11). 0 Agostinho maniqucu consideraGl <l Igreja Cat61ica defensor,1 do

lllonarguianis11lo. doutrina diarnetralmente opmta ao dualisllIo mbstancial do manigueismo. Se~ gundo Lope Cillerue!o (Obr<lS C01lJp/c/!lS de Sail A,~lIstin, VI[( vol., J3AC, Madrid. 19Rfi, p.63, 11.1) J passagem da Epislltl'l ! I, 1, onde Agosrinho st' dirige a Nebridio acerca da Trindadl', rnostra que «Agustin no sc h<l libcrtado alm del sabeliani~mo lllod;llistl.)) (Cr Gustave 13ardy, «Monarchianisme,,_ in /Jiai(lllllllirc dc ThC%xie Cat/wlique, t,10.". Libr,liril' lcto\lzey et Aile, Pa­

ris, 1')29, cols. 21Y3-22()l); P.-Th. Camelot, "Mollarchi,Hli~ll1l'», in Car/w/icislllt', lIier. :1ujollrd­'hili, DClllain, t,().", Librairie Letouzey et Aile, Pari~. s.d .. cok 536-5-1-3).

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JOSE MARIA S[U"A ROSA

II - As insuficiencias da rela~ao 16gica

Se a linguagern, nas suas dimensoes l6gico-gramaticais, por um bdo, pode

ter sido UI11 tactor positivo na recnperayilo de uma visao diferenciada e relacio­

nal de realidade, por outro, um estrito quadro categorial - foss em as catcgorias

entendidas como universais 16gicos e linguisticos, quais esguemds de apropria<;:ao

mental do real, ou estmturayoes ontol6gicas desse meSl110 real -, de modo es­

pecial a categoria da substancia, revelou-se totalmente inapropliado, pelo menos

enquanto Agostinho nao descobriu aqueloutra instancia onto16gica do verbo

impresso, por via do discipulado do Mcstre interior, como acima frisamos.

Como sabemos, Agostinho diz que, quando tinha 20 anos, leu e rdeu a

obra as Dez Carcgorias, de Arist6tcles. Poderiamos, pais, conduir que Agosti­

nho tinha a sua disposi<;:ao um O(~11/1011 decisivo para unla tal visao graduada da

realidade. Curiosamente, porem, a doutrina aristotelica das categorias, da subs­

rinda e dos acidentes, scdimentou-o ainda mais firmemente no materialismo,

cmIlO de pr6prio testemunha. E provavel que a isso fosse induzido pela her­

rneneutica est6ica das Cat[gorias, presente nos textos dos manuais por onde es­

tudava 5(,. Seja como for, na sua leitura retrospectiva Agostinho diz que nada

lhe aproveitara ter lido c compreendido a obra de Arist6teles, bem pelo con­

trario, pois a categoria da 'substancia' apcnas 0 conflrmou no materialislllo,

concebendo Deus como COfpl/5 lllcidw/l ct immellsllm e sujeito (slIbicctIlS) univer­

sal de todos os acidentes 57:

«E que me aproveitava tel" lido sozinho e compreendido pelos

meus vinte anos, quando me chegou as maos uma obra de Arist6teles

a que se da 0 titulo de Dcz Catcgorias - a Cl~O nome eu ficava de

boc3 aberta, suspenso de nao sei que de grandiose e divino, quando

UIll retor de Cartago, meu professor, e Olltros que cram tidos por sa­

bios, as citavam com as bochechas estalando de vaidade? ( ... ) Que me

aproveitava isto, uma vez que ate me prejudicava, procurando en

cOlllpreender~te a ti, meu Deus, maravilhosamente simples e incomu­

tavel - considerando tudo 0 que cxiste absolutamcnte incluido na-

;it, Cf. Hcnri-lrcnee Marrou, Saint AUJ;JlsliJl 1'1 III Fill dl' 1(/ Culfllrc AmiqJlc, Boccard, Paris, 1938; Aime Solignac, "Doxograhies et manuds dans la fonll3.tion philosophique de saint Allb'1.lstin)), in

Reclierchcs AHglI:;tilliclll1L':; 1 (1958), pp. 113-14R; Gerard Verberke, «Augustin et Ie Stoi'cismel!, in

Rcchcrc!l(':; AU.1,;llSlillil'llIIfS 1 (1958), pp. 67-89; M:lUriee Te'ltard, Saint Augustin el Cicf.~oll L Ci([­

roll dmls III (ol'lllatiofl cl dall:; {'Orrwre dc :;lIilll Arrgrr:;lilf; II. IVpertoirc des Tcxtes, 2 vols., Etudes All­gustinienn~s, Paris, 1958; -, "Cicero)), in AH,1,;Hstinfls-l£xikml, I vol., Schwabe Co.AG, Basel,

1986-1994, cols. 913-930. :;7 COI~t('s.<ioflI'5 IV, ",-vi, 2R.29.31.

710

AS CONFISSOES DE SA;\"m AGOST/NHO - ACTAS DO COXCf(ESSO 1\·TbRNAClON:1L

queles dez predicamentos - como se tambcm tu estivesses sllbordina­

do a tua grandeza ou beleza, de modo que estes existissem em ti, co­

mo nl1ma especie de supone, como sucede com 0 corpo, quando a

tua grandeza e a tua belezJ es tu meSIllO, ao passo que a corpo nao e grande nern belo pelo facto de ser corpo, porque, cmbora men os

grande e menos belo, todavia continuaria a scr corpo? Era, pois, falsidade

o que de ti eu pensava, nao verdlde, e fantasias cia minha Iniseria, nao

firrneza da tua beatitude. ( ... ) Mas que me aprovcitava J mim que jl1lgava

que tu, Senhor, Deus, Vcrdade, es unl corpo luminoso e infinito e eu

uma parcela desse corpo? Que enonne perversidade! Mas eu era assim c­

nao tenho vergonha de te confessar, meu Deus, as tllas miselic6rdias para

comigo e de te invocar, porgue nao me cnvergonhei ent30 de professar

diante dos h0111ens as minhas blasfemias e ladrar contra ti).

E certo que tal interpretac,::ao das categorias po de nao estar correcta, mas

esse e um problema que nao temos de deslindar aqui. E incontornavcl, contu­

do, que a categoria da rcl(l({lO e, entre todas, a mais desvalorizada por Atist6te­

les, sllrgindo como 0 acidente mais afastado da substincia 5il, como lima 'coisa

minima' (C/1S minimum), para retomar a interpretaylo de Sao Tomas, seguida

por Rodolphe Caschi: 50. Seja como for, se por U11l lado Agostinho esd. a 113[­

rar a sua compreensao de outrora, quando jovem estudante, em Cartago, por

outro nao parece crer que 0 quadro categorial aristotelico 0 ,~ude muito quan~

to a questao de DeLIS, ainda no momento em que escreve a obra COI!/Issocs.

Mas entenda~se as catcgorias como se quiser - 16gicas, ontol6gicas, esquemas,

figuras, slmbolos, conceitos universais, etc. -, a verda de c que este tipo de

pensamento que tende a arrum<lr a realidade em 'gavetas', ou a sua perccp<;ao

e estrutura<;ao mental, !laO ajudou Agostinho. Alem do mais. a omissao ou a

hesitayao aristotelica acerCJ do estatuto ontol6gico do genero (YEVOS-) e da es­

pecie (EL8os-) abriu canlinho a reduyao do real a esqucmas 16gicos, formalS e

abstractos, quais 'arranjos florais' tardios e escolaTes, e ao esquccimento do

misterio e da profunda pregnancia do universal concreto, isto e, da singulari­

dade, ja mesmo quando parecia defende-la no debate com Platao w.

5g Cf Ml'r4isi((/, N, 2. 1098 b.

5') 51111111111 Theolo,viae, q. 90a ~; Qf lviillill/al Things. S{rulics OIl 111(' /\Jotiol1 (~{ Relation. StJndtord, Standford UnivcTSity Press, 1 ()99.

~IlJoJguim Cerql1cir:l Gonplves. "Filosofia e Rela<;ao»), in Bih/os 56 (1980), p. 189: "A filosofia aristotCliea !laO deixa de proVOCIT um grave dilema: com inevitiveis conseql1eneias 110 rema Ja

re1a<;ao: se se imiste na ~iII/Jstallcia prilllfira, Ido se ve Illgar e razao para :I categoria da rela~ao; 5C

se fixa na :;lIbslal/cia scglll/ria, como a sua gnosiologia parece exigir, a n:Ia\-;'o, nessc casa, sub~i.'>tir;l apenas J nivel logico, para 1130 dizer gramatical."

711

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lOSt. .IIARI:"1 SiLl":! nos:!

Deste modo, ral como a substfmcia condtlzira Agostinho a unu VIsao ma­

terlalist.1 cia natureza divinJ, assim tal1lbl'J11 0 esqucma categorial nao fora, nem

era, apropriado para a comprcel1s:'io da natureza da alma. 0 Agostinho de

COl!flSSZies recusa pcnsar Deus, J alma humclna c estrutura da realidade, scja a

partir de uma vislo cilldida ab illilio, scja exclusivamcnte a partir de paradigmas

identitativos (logico-catcgoriais ou gramaticais), eomo em Aristote1es enos es­

toicos, ou ainda ontologieos e henol6gieos, como no neoplatonismo de Ploti­

no e Porfirio.

Insista-se Jinda, no que concenlC a questao cia alma, na importancia da vi­

sao relacional que Agostillho conquista, semprc como que no fio da n.1valha.

Ao sair do maniqueisJ110 e da doutrlna das duas almJs que impossibilitava urn

l1lillilllllllJ de ipscidadc respolls,lvcl, bem assim depois de llltrapassar 0 aeademis-

1110 ceptico, fora decisivo recuperar a solidez de uma ipseidade psicologica,

gnosiologica c ctiea: rogittl; scio IIle rosifarc; scio l1le r/illerc; si milll .{t111or SUIII; Q.;o

('ralll qlli lIoicbmlJ, (~O era/II qui l/o/eiu1fn, t:go eralll f,1, erc. Todavia. se a descaber­

ta da natureza espiritual e inteligivel da alma. C0111 a ncoplatonismo. dava 11m

a1cancc ol1tologico a identicbde da alma, ta111bem acabava por a diluir l1uma

mesmidade luetafisica, pois ultimamente tudo e Uno, e as diterenc;:as sao meras

ilusoes Oll pontos de vista parcials. Outrossim, 0 solidez do cogito agostiniano

esta longe da auto-suficiencia de m11a substancia exclmivamente pensantC', fun­

damento inconcllsso, qual posiylo evidente, lmediata e salipsista, ,1 maneira

cartesiana. Em suma: nem 0 dllalismo, nem 0 monismo; nem exclusivamente

a 'outro', nem somente 0 'mcsnlo', mas 0 'mcsmo c ° outro em relat;ao', 1111-

m.1 pericorese garantida pela memoria e llIarcada pela temporalidade. A idC'nti­

dade espiritual que Agostinho descobre c toda constitllida a partir cia relac;:ao.

Mas naa a 'relac;:ao' do quadro predicamental abstracto das Cl1tcgorias, ja que «a

abordagem crista da reia(iio e in'edutlvel ao espirito que tal wtegoria ]ogrou na

especulayJo grega) (,2. Comrariamente as narr.1tivas casmog6nicas dos poctas

gregos c as especulac;oes fisicas dos pre-socraticos ou IObric.1s dos pos-socraticas

- com excepyJo para 0 Platao do Tilllell -, para as quais a 111ultiplicidade e a

existellcia em rel.1\-.1o atestava uma condiyao dcsgarr;-tda e em qucda, no livro

do Genesis 1, 31, e dito que «Deus viu tudo 0 que tinha teito e tudo era muito

bonl». Esta vislo aprofimda-se quer no quadro do DellS da historia da

<>1 Ctlr!Frssiollcs, ViiI, x. 22; 1)c Bcata Ililtl, 2, 7: (i- Scisne, inquJ!ll. saltcll1 te- uiuere? - Scio, itl­quit,); «Scis ergo habere te uitam, siquidem uillen: lKIllO nisi llita pote-st.,,; Cf. So/ifoquia. II, I, 1;

Dr Li/Jero arIJilril), ii, 3, 7; cf Mariano BrJS,1 Diez, ,.El cOl1tl'nido de "cogito" agustiniano», ill AII.~IIStilll/s 21 (1')76), pp. 277-285; Floy Andrews Doull, «Si rnilll jailor, SIII1I", in AU,\ZlIstiIIlIS 31 (19S()), pp. 86-\>3.

(,~ jOJqui11l Cerqueira GOllyalvcs, «Filosotla e Rela~ao), p. IH5.

712

:IS CONF1SS()f's DE .:;/1\,70 .--IC()STISHO - AC!:-IS DO CO;\GUESSO l;\TtR~\' . .JC·rOx.-1L

Aliaw;a veterotestamentaria l]uer, sobretudo, nas afirmJ\"oes neotestamentarias

de que «0 Verbo fez-se carne c habitou entre 1109) e «Deus eamon, pelo que

{(quem nao ama nao conhece a Dcus). A relac;:ao no ambito cia revela\:ao crista

e acima de- tudo um horizollte de diferellciac;:ao positiva e concreta dos seres,

Ulll dinamismo opcnnte, criativo. ag~lpieo.

Por antro !ado, aquela viSJO relacional da alma human a e cIa mesma rc­

contlgurada e eonstruida peio acto de se contessar narrativamente. Cot!fiss()cs,

entre outras coisas, e a recriayao de lima identidade espiritual que se aprofunda

nanativJmente, que se 'illventa' retrospectivamente nos primciros 9 livros. Ate

ao livro IX, 0 processo de identifieat;:ao estfi dependente sobrctudo dc umJ

nalTativa atltobiogrJf.lca ct~O pressuposto fundamental c a pennant-ncia no

tempo bJ, qllC'stJO amplamente discutida no livro XI.

E se j;l nos primciros 9 livros a identidadc c sobretudo umJ rela~ao C0111 0

tempo perdido, agora recuperado-transfigurado peb narrativa, e se 0 'Quem?'

da aCyao nos aparcee ill fieri, inclusive .10 nivd do relato alltobiografico, e so­

bretudo no livro X que Agostinho rejeita a pretensao idemitiria (a /JIcsltlidadc,

para utilizar a tem1inologia de Paul Rieoeur) que £.1.ria da ainu llm sl~eito an­

terior a relayao. Ora, a identidadc L~ constitl1ida n.1 relayao e a rday.1o e (jue

determina 0 processo de idcntificayao e pennite cscapar ao 'de-stino' e a deter­

mina<;ao da 11IltHra (<<nascido para ser tah), para sc recuperar criativamcnte em

conscicllcia e liberd.1de, lUlU vez que a natureza e para scr difercnciada, reali­

zada, constntida. A identidade e, pois, sindidvel, mas J rcbc;ao e diferenciado­

ra e ineoercivel. Par isso, no livro X de Cm!f/ss()cs, superada a cisao maniqueia

e 0 monismo ncoplatonico, a ques6.o da identidade e retomada noutro nivel,

cstrllturando-sc, nao ja nUl1l plano de anatreptica dramatiza<;ao moral do pass.1-

do, em busca de Ul11 tempo perdido, mas no prcscnte cia ir/tclilio, ;lberta ao fu­

turo e a eternidadc (De Chlitate Dcr), onde se constr6i a idenridade e a novidade

na propria rela<;ao. Este WIllO estf! desde logo tra\ado na pericorese/apostrofe

com que abre 0 livro: (,Que tc eonhc\a, 0 conhecedor de mim, que te conhe­

<;a, tal como sou eonhecido por ri.» (,.j

III - Interrogatio Inea intentio Inea ...

o esqllenla aqui aprescntado acompanha pari passu a estmtura tenOlueno­

logica da memoria psieo16g1ca. no livro X de COI!f/S50cs, ~10 111eS1110 tempo que

('.' A estc prop()sito, (f Paul Ricol.'llf, S"i-lIlh1JC ((11111111' 11/1 {wlrc. Paris, Sellil. 1990, p. 12. I,~ COI!frss i01Jl's. X, I, 1: «Cognoscam te. cognitor !HellS. cognoscllll sicllt et cognitlls stllll".

713

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JOSE MARL:! SILVA ROSA

sublinha OS 'lugares' fundamentais da topografia psiquica que Agostinho des­

creve neste livr~. Com efeito, trata-se aqui de lima teo ria (/1is.1o) dos lugares da

alIna, ou de uma descriyao fenomeno16gica da memoria, dos seus processos e

contetldos, onde, subre a interioridade, se intersectam em quiasnla 0 melho r

da especulac,:ao grcga e a concep\ao crista.

Tu autem eras interior illtil1lo meo et superior .summo meo (Om/.IfI, J'/, II)

Ab

Coglloscam te, ognitor meus, cognascum sicut cogni!llS slim (Om/., X,I, /)

. eriorihllS adsupero

Ubi ergo to' inuelli, ul discercm Ie, /lisi ill Ie supra me? (C"IIf. x, XXI J)

Como Agostinho muitas vezes nos recorda, a razao primeira e llltima desta

delllanda de si mesma e de Deus, desiderates intimamente coerdenados, 11a li­nha do chamado socratismo cristao 6S, era ser verdadeiramente feliz, enl perfei­

ta continuidade, alias, com a especulayao teleologica do helenismo tardio, co­

mo bem salientou Ragnar Holte. E este 0 lllotor de arranque da especulayao

filosofica de Santo Agostinho,

A orientayao esta desde logo deternlinada pelas expressoes «das eoisas exte­

riores para as superiores» (ab exterioribus ad Itltenora) e «(das coisas inferiores para

a superiores» (ab ilifcriorihus ad slIpcriora), ate porque a bllsea ((la por fora),

quanto a que5tao que mais 0 preocupava, fora infrutifera. Foi entio que Agos-

(,5 Pierre Cource!lc, Cmmais-toi toi mcmc: de Soaate a sainf Bcmard, 1. vals., Paris, Etudes Augusti­nienncs, 1974

714

/15 CONFlSSC)ES DE S:II\'10 AGOSTINHO - ACI;lS DO CONGRESSO INTt:"Ri\'AClONAL

tinho deeidiu dlfigir-se a 5i mesmo (,(,. E quer na pcrgllnta dirigida aos qllJtro

elementos da criayao: terra, ar, agua, togo, quer 11a inf1exao para si mesmo, e

em toda a subscqllente procura peb interiOlidade, fica desde logo patente 0

caracter intencional cia consciencla: illtcrrogatio mea inrcllfio I1Ica ct respollsio co­

rtlm species comnl. No proprio acto em que da conta de si como existeneia in­

terrogativa., a consciencia descobre-se em relayao, vector oriclltado para. Assirn,

(irei talllbem alem desta forya da minha natureza, ascendendo por degraus (gra­

dilms asccrulc/ls) dtc aqucle que me OiOlU) (,7

o primciro patamar da interioridade, limite inferior da alma Oll «portas cia

carnc» (ji.Jrcs {(lrllis /1/cac), como Agostinho Ihe chama, c a scnsibilidade (SCI1SIIS)

cujas imagens dependem da pcrecpyao imediata e se esvanecem se esta per­

ccpc,:ao cessa. A mutabilidade destes contctldos revela que nao e isso 0 que

proeura. Sublinhe-se que neste proeesso a identidade de 'quem' prOCllra, pa­

ra ja reduz-se jllstamente ao 'quem?' que rcsistc e persistc no tempo, scndo

problematicos todos e quaisqncr outros contetldos e marc as exteriores que ate

al serviam para identificar 0 sujeito. 0 transito para 0 segundo patamar da me­

moria, nesta ascensao '(por degraus), condu-lo as «pianicies» e aos (vastos paLl-

cios da memori,}» (mcllloria illIllRil/!lfII). Eneontranl-se aqui

cessos c cavern as sem numero, todas as lmagens

arm3zenadas, ('m re­

recordadas, j;i llaO

dependentes da percepyJo irnediata, mas prontas para se aprescntarcm assi111

que 0 espirito as mande compareeer. Estas imagens, apesar da maior estabilida­

de que as caractenza em relayao as da percepc,:ao imediata, entraraIll igualmen­

te pelos senti dos, tendo sido depoi5 sujeitas a muitas modifi.ca~oes e composi­

c;oes lla memoria imaginal, de tal modo que, por vezcs, quase pareee que se

inlagina coisas nunca vistas. Contudo, apesar dessa faculdade de composic,:ao

quase infinita, tuclo isso veio pdo «ministerio do humenl cxterior». Por outro

lado, 'quem' procura nao pode tical' neste degrau, por mais espantosa e fasci­

nante que seja aqui a forp da memoria, pois a questao dccisiva pennallece por

responder: ja(tlls ertUII 'l)se mihi f/Wglll1 quaestio et il1tcn-ogaballl (lIIilllam IlIcam ... M1

Na memoria, outrossim, estao presentes tambcm realidadcs e nao so repre­

sentayoes de realidades: os numeros da mate-matiea, os objectos e as proporyoes

da geometria, as regras gramaticais c musicais, as categorias, os princlpios e as

operayocs 16gicas ... EIll sllma: as realidades e as rela\~oes inteligivcis que, tendo

sido conhecidas c descobertas atraves do ministcrio dos hom ens (ensino das ar­

tcs liberais), tem um scr proprio que Ilao depende dos sentidos exteriores nem

hi, C{ll!{essitlIlCS. X, vi, 10: «Et direxi me ad me et dixi lllihi: tl1 'luis L's?" (,7 C(I!!{essi(lllcs. X, viii, 12. (,H Ctll!(cssiul!cs. IV, iv, I).

715

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JOSE .\f::IR1A SIlJ-'A NOSA

do discipulado da razjo alheia, pois cada alma descobre-as em si l1leSl11a quan­

do as compreende e lhes da assentimcllto (//IenlOria J//II/I['rorull1). Mas apcsar da

estabilidade que estas verda des (1ptlblieas) apresentam, nem por isso s.1ciarn a al­

ma, que muitas vezes atc sc enganou a sen respeito. Se a verdade que Agosti­

nho proeura nao exclui as verda des cia eiene-ia, estas tambem nao Ihe bastam

por si sos, porque nao e apenas a inteligencia que procura, e 0 'quem'todo que

procura: 0 corpo, os sentidos, as atectos, a memoria, a illteligencia, a vontJde,

o COraftlo .. , A sua existencia e toda interrogayao, donde que a verdade cleva ser

cordial, existencial, beatificante.

A etiologia lllais profunda da existencia-em-relac;ao (ess[' aiD encontra-a

Agostinho na afinna<;ao biblica de que toda rl reaJldade foi criada par Deus: «0

que e que existe a nao ser porque tu existes? Por cOllseguinte, tu disscste e to­ram feitos e no teu Verbo os fizeste) 69. Esta visao coloca Agostinho definitiva­

mente no horizonte de uma ontologia e uma antropologia rehcionais, pOl'que

se toda a cria<;ao e relayao, de entre todas as criaturas so 0 h0111el11 e propria­

mente illwg(J Dei. Quando no principio de CO/~fiss6cs Agostinho diz Iecisti nos

ad fc 711 esta a reconhccer lima tensao ontologica constitutiva da realidade hu­

mana (ad te). Nesta releiwra cia categoria da rebyao. 0 movimento deixa de fi­

car anexado a carencia grega (a uma cn)rica, como em Plado e Aristoteles), on­

de sc associavam estreitamente eros e morte, e passa a estar adstrito a dinamica

da concriayao, da gratuidade cia «gape, da cxuberancia da vida e da diferencia­

c;:ao do real.

A afinl1J<;:ao de que 0 homem foj criado pam e recollhecida, cxistencial e

psicologicamente, na figura da inquietac;:ao e e dai que colhe toda a sua legiti­

midade fenomenologica. A fenomcllologia da existencia rc1acional releva, con­

tudo, de llma ontologia relacional. Por esta razao de fundo e que cada grau da

memoria psico10gica, fenomenologicamente verdadeiro, n1as ontologicamcnte

insuficiente, obriga a urn ressalto de nivel, colocando 0 'quem' sob 0 signo da

itinedncia e busea 71.

Na aporesc que estrutura interionnente esta busca de si c de DeLIS - por­

que quanto mais se vai conhecendo mais cresce a consciencia do quanta sc ig-

(,'! C(JI!fr'ssiolles, XI, v, 7: (Quid enim est. nisi quia tu cs? ergo dixisti 'et facta sum' Jtque in uerbo tuo fecisti ea» (cf Gn 1, SI 32, 6; Jo 1, 3-4),

71, COI!f"l'.lSiol1es, I. i. 1: «",Quia Iccisri 1105 ad Ic t't inquietum est cor nostrum, donec rcquiescat in

te." 71 Cf. j<:an-Marie Turpin, iil'Ego d'Augustin, Siglle de 1J transcendance", in S'ailll AII,{;JlstilJ, Le,

Dossiers H. L'Age d'Ho1l1me, s,L [IYtli:l]. pp,327-331.

716

T AS CONFISSOES OF S..JJ\'YD ACOST/;\'HO - AeTAS DO COSGRE\SO f:\TER.:\'AClONAL

nora - a memona dos afectos (11ICfIlOril1 q[fcctiolll//I!) e um momento bastante

signiticativo. Efectivamcntc c natural que, quando me recordo de ter saborea­

do um alimemo doce, par exemplo, nao consiga 'sabord-lo' peIa mem6ria

exactamente C01110 quando 0 estava a comer de facto, t1ma vcz que e uma rea­

lidade fisica exterior, que flea na lllemoIia qual seja ({O estomago do espirito)l,

de modo que saeIIl de Ii para ser 'nullinados' e ji nao tem 0 meSTllO sabOL

POn?lll, quando recordo os afectos proprios da alma (me do, tristeza, desejo.

alegria .. ) selia de esperar que se senti sse e rccuperasse exactamcnte a vividez

original dessas l110yoes, vista que a1 as realidades em causa nao sao tI5ic<1s, nem

exteriorcs. mas coincidem com 0 proplio espirito. Todavia, nao e 1550 0 que

acomece: «(quem as discute, isto e, quem as recorda, nao sentc, na boca do

pensamento (ill ore cogitatiollis) , a do~:ura da alegIia e a amargura da tristeZ3)) 72.

Parece que 0 espirito C demaslado cstreito para se conter a si mCSlllO. Caem

peb base todas as ilusoes de mIla autoposiyao dara, in1cdiata e evidente do su­

jeito, pOl'que a consciencia llaO se idcntifica nem coincide com os conteudos,

o que remete para lml3. simbolica da transccndencia adentro da interioridade.

Mas est;] nao eoincidcncia de si consigo, patente na aporetica dos afectos,

val agudizar-se no momento seguinte 7], na memoria da memoria e I11cnloria

do csquecimento (mclI1on'a me1lloriae, memoria obliuiollis). EtectlV;]l1lelltc, «lem­

bro-me de me ter lcmbrado, assim como, posterion11ente, se me recordar de

que agora pude rememorar estas coisas, hei-de recorda-Io certamente pela for­

~:a da nH~moria)), «Nomeio a memoria e rcconheyo 0 que Ilomeio. E onde 0

reconheyo senao na propria me11loria? Acaso tambfm ela esta presente a si

meSI113 por meio da sua image11l e nao por si mcsnu?)) «(E, quando nomeio 0

esquccimento e, do meSl110 Inodo, reconhcyo 0 que nomeio, como 0 reco­

nheceria, sc nao me lembrasse dele?)) 74. A sequencia de interroga<;oes, para

alem de qualquer retorica, torn a patente a perplexidade de Agostinho pcrante

a problema. Tacteia por um bdo, investiga pelo outro, mas e incapaz de se

captar a si mesmo, num unjco ictus, Ao mesnlO tempo, tem conseie-ncia do pc-

72 CllI!/cssioIlCS, X, x, 22: "Cur igitur ill ore cogit:ltionis non sentitur a disput;lllte. hoc est a n:mi­

niscl..'lltl..', laetiti:le dulcedo ue! :llllaritudo mae,tiriat'?», 7-' No proces~o argumcmativo as nlveis cia narrayao f(.'cruzal1l-se Illuit:ls vt:ze<;, nus isso tem ;1 ver

COIll 0 modo C01110 Agostinho comp6e: ,lVall(a tim pouca. ,intt'tiza todo 0 percllPio teito desde o inkio. preparJ 0 momento seguintc e aval1<;:a dt' novo. H;I neste estilo como que um eco da, ondas do mar. que va~ e vem, recuando e avaI1<;ando de novo lllllas sobre ,I~ outras.

74 C.all/i.',\siOlICS, X, xiii, 2(): «Ergo 0 ct 1l1t'minisse me memini, ~icut postea, ql10ci haec remini.sci

nlll~c potui. si recorchbor. Lltique per uim llJemoriac recordabor.!> xv, 23: "Nomino 1llt'1ll0riJlll c[ a[.,'Tlosco quod nomino, !.'t ubi ap;nosco nisi ill ipsa memoda? TlLUIl et ipq per imagin!.'111 suam sibi <ldest ac nOll per se ipsam?": xvi, 24: «Quid, cum obJiuionem nomino atqut' itidt'11l agnosco

quod nomino, llncle ;'gnoscerem. nisi meminissem?",

717

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JOSE i\L1IHA SIlYA ROSA

ngo que carre, pais e possive] perder-se nestes intlndos caminhos da alma 75.

Agostinho sabe, par experiencia propria, quao facil c perder-se neste mar inte­

rior e ficar preso nas teias da subjectividadc imanente. Neste sentido, par para­

doxal que pare<;a, e na interioridade que se encontra a 'exterioridadc' mais pe­

rigosa e mais difieil de eomhater. Fiear-se apenas por uma 'ciencia espiritual'

da interioridade e permanecer ainda e s6 no ambito do imanente subjectivo,

por 111ais qnc a consciencia de si se tenha alargado ate outros mundos e 'eus'

escondidos (como nos exercicios espirituais do estoicismo e do cpicuris1l1o 76).

Esta e a via oculta que, prometendo a transccndencia, mais dela nos aL1.sta 77.

A interioridade e uma rela<;ao: os gralls da mem6ria apenas se dizem interiores

ou exteriorcs a partir da posi<;ao relativa que estabclccem entre si, de tal modo

que, em rela<;ao ao illferior illtinw /fleG et SIlPCriM SII/lII/1O 111('0 toda a interioridade

e ainda e semprc exterior.

Agostinho esra, pais, Huma ellcruzilhada; melhor, e de a cncruzilhada.

ProcurOll l5. por fora, procurou por dentro, c cis que nem fora nem dcntro

encontrou. A lembran<;a do esquecimellto, de modo especial, trollXC consigo

llma grande estranheza, porque 0 esquecimento e ausenCla e pnva<;ao da me­

moria. Ora, quando lcmbramos 0 csquecimento, 0 que e que csta presente?

N ao po de ser nem 0 esguecimento, nelll memoria, como tais. Mas «quem po­

derJ. indagar isto? Quem compreendera como is to e?) 71'\.

(Eu, pcb minha parte, Senhor, illguieto-me com isto, inquieto­

-me em 111im mesmo: tomei-me uma terra de dificuldade.'i e- de mUlto

7'. C[)I!/rs."iolll'S, x. xvii, 26: "Percorro toda, e,ras coi~as, esvoa.:;o par aqui e par ali (per 11<11'( (>llIIli<1 diswrro CillO/ito /Wf iIlIlC), e t,llllbcm entro ncb atl> an (undo quanta posso, c t:lll parte algullla es­t;} 0 limite (eljinis IJlIsqllam): tao grande e 0 poder da memoria, tao b>randt: e 0 poder da vida no hOl11em que vive lllortalmentcJ).

7(, cr. Pierre Hadar, QII'f.lf-[c qlle III philosopfn'c amiquc?, Paris, GalliH1:lrd. 1995, pp . .l()9 ss. 77 A este prop6sito, pode ler-se C0111 muito proveito Serge Boulgakov. La /rlmihe SI1/IS dedill. Lau­

sanne, L'Age d'Homme, J990, pp. 33 ss. 78 Agostinho nunca aceitou a anamnesc pbtonica, que supunha J precxistcncia e transmigrarao das

almas, senao no sentido do "connaissance par Ie manque». tipico do p}tl/ollisIHil mstiio. Endre von iv:inka, P/tlfo Chris/it/uris ... , pp.197-19~L di-Ia tim moda insuperavel, ,linda que a refercllcia ao i3allqlll'lc seja discutfvel. «Augustin ne pense Ie mains du lllonde ( ... ) :1 la "prescience" lIocliqllC,

qui pOLlsse l'esprit dam b "dialectique ascend:ll1te", ;1 la mantee conceptudle jusqu'a la "cime" de I'ld~e J'LIll etre embrassanr toute chose, Oll d'un "Bien" au-deLl. de l'ctre (R.ep .. 5U<) b), ou de l'Un du Panllhlidc, mais il se mcur sur la ligne decrite par Ie Ballqllr'f, b ligne de I'etlort ven. Ie Dim supreme; ce qu'il vise par Ia "prescience'" c'e,t l'idee fimdamentale du B,lIIqucl, telle que ]a fonnule G. Kruger, Ie "s,woir ;1 p,lrtir dl! manque", "qui est Ie t~jt dll desir, lequd connait dans b privation ce qui lui manque". Dans la rhristianisatiol1 radicale qu'Augustin tait opcrcr;1. eette pcnsb:, i1 s'agit l;\ d'une evidence. l11ais c'est allssi ce qui donne a sa pensee, ;1 l'oppose de b version platonicienne, sa notc particuliere, son Clract(Te rJ.diCilcment chretien.» E e'itc esque­ma qut' esdarecc 0 desejo de feJicidade, no livro X (xx, 29 - xxii. 34).

718

AS CONFISSOES Df' SANW AGOST!l\'110 - ACJAS DO CONGRESSO Il\TfRNACIO.!\lAL

suor. Com efeito, nao estJmos a explorar as regioes do d~u, ncm me­

dimos as distancias dos ~lstros, nem indagan10s os pontos de equilibrio

da terra. Sou eu que me lembro, eu, espirito. Assim, nao e de admirar

que esteja longe de mim tudo aquilo que eu nao sou. Mas 0 que e que esta mais proximo de mim do que eu proprio? E, no entanto, cis

que nao abarco a capacidade da minha memoria, embora cu, fora de­

la, nao me possa dizer a miln mesmo) 79.

Uma lcitura 'nlOdema' da primeira afinnaC;ao do livro X - coglloscal1l fe,

cogllitor mel/5J

cogllGsrmn simt ct cogflit1l5 511t11 - poderia pretender que a intencio~

nalidade que csta em causa e sobretudo de ordem cognoscente. Foi a partir do

paradlgma da consciencia e do conhecimento, COll1 deito, que a Modernidade

rcligiosa e filosofica releu Agostinho, desde Lutero ate Husserl, passando por

Descartes. Mas Agostinho de modo nenhum reduz 0 seu ser a cOIlSciencia, ate

porque a consciencia humana e l1111 abis1110 - abyssus hWllafwt' C0tlsrientiac p,() -,

insistindo ele l1luitas vt'zes na idcia do fundo de ignorancia que pesa sobre nos

meSlllOS. De certo modo, sobe-se as arrecuas ou de costas: 0 que se vai alcan­

c;ando abre para um misterio que a questao inicial nao abarcava, pelo que a

propria capacidade de questionar vai ela propria crescendo. SOlllOS muito mais

do que aquilo que a cada mom en to tC1110S conscicncia de ser, peIo que, a que

vamos conhecendo de nos, revela-nos em prirnciro lugar a nossa ignorancia.

S6 em Deus, porque nos criou e onde coincide ser e conhecer, pode existir

perfeito conhecimento do que SOI11OS. Oa nossa pane, essa ignorancia, e certo,

traduz-se tambem em desejo de conhecer. Mas a intencionalidade nao e tanto

cognoscente, e nesse sentido e ate fnlste, como se ve, porque 0 conhecimento

tem aqui lim alcance decisivamente etico: Jazcr a Ilcrdadc B1• A intencionalidade

agostiniana e fundamentalmentc etica. 0 conhecirnento pdo conhecimento

e-lhe estranho. Conhece-se a verdade para agir beln, para nos lrnlOS conver­

tendo, para nos tornannos bons.

Este aspecto de llaO redw;:ao do ser a conSCienCla e de reafinnayao da pri­

mazia da relayiio etica como hOlizonte originario e, alias, um dos topic os fun­

dan1entais do pensamento contemporaneo pos-husserliano, que superoll a

79 COIifcssiOIlI'S, X, xvi, 25. 811 Cmljcssioncs, X. ii, 2: «Et tibi quidem, domine, CUlm 'oclllis nuda' cst abyssus humanae cons­

cientiae ... »

Hi Cmifcssiollcs. X, i, 1: (<'Ecce enim ueritatem dilexisti', qlloniam 'qui facit' eam, 'uenit ad lucem'". Retollla aqui 0 Evangelho de Joao (3, 21): "Qui autem facit ucritatem L1enit ad lucen1I). (6 8E TTOLroV T~V ciM9nav EPXETGl TIpOS' TO 4>WS').

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JOSE AlA/ILl SfLV .. 1 ROS.4

equac;ao 11loclerna ser=consciencia. Neste sentido, 0 pensamento contempora_

neo, apesar cbs l11uitas e inegavcis divergencias com 0 autor de COI!fis5ilcs, po­

de ser (e tem sido) uma cxcdentc isagoge a vlsao relacional de Agostinho, des­

de a ontologia tenomcnologica, de Heidegger, 3S fenomenologias existenciais

(Arendt, Sartre, Camus, Marcel) a fenomenologia da presenya, como e111 Levi­

nas, que, aque-m da identidade substanre, i11Siste 11a afirmaC;ao da existencia co­

mo rela~:ao originiria COll1 0 rosto do outro, como processo de identificac;:ao

erica (ser respons:lvel por), OU 111eS1110 aiJlda no percurso da henneneutica, dcs­

de a Verdadc c JHhodo, de Gadamer, ao Soi-nlClIlc c(J/lIme /1/1 I1l1frc, de Ricoeur.

Nesta procura hi momentos cm quc Agostillho experimenta, ou pdo me­

nos exprime, uma especie de pal/vI' saccI', horror sagrado ante 0 poder e ° abis­

mo da memoria. «Grande e 0 poder da memoria, um nao sei que de horrt'ndo

(/lcsdo quid h01TClIdulII), 0 meLI Deus, LInn profunda e infinita llluitiplicidade; e

ism e 0 espirito, isto sou eu 111eS1110. Que sou ell entao, men Deus? Que natu­reza sou?)!Q

Sublinhe-se esta interrogac;:ao: Agostinho ainda n3.o sabe quem c, apesar de

toda a fenol11enologia dJ memoria psicologica. Ainda que tenha descoberto

uma imensa multiplicidade de conteudos, nao se identifica com eles: sao ape­

nas marcas, vestigios, simbolos a decifrar e cuja insuficicncia e manifesta. POl'

exclusao, pareee que a rela<;:3.o nao se esgota nem cumpre na memoria psi colo­

giea e, por iS5O, aponta, como uma seta, para lIma alteridade que nem esta fo­

ra, a mancira das coisas, nem dentro, a maneira das reprcsentac;:oes, das ideias,

dos afectos, mas aeimJ. transcendentc.

«Que £lrei, pais, 0 meu Deus, tll, minha verdadeira vida? Irei

tam bern alem desta 111inha for<;:a que se cha1na nlcmbria, irei alem dela

a £1m de chegar ate ti, minha dace luz. Que me dizes? Eis que eu. Sll­

bindo pdo men espirito ate junto de ti, que estas acima de mim, irei

alem dessa minha for<;a que se chama memoria, querendo alcanyar-tc

pelo modo como podes ser alcan<;:ado, e prender-me a ti pdo modo

como e possivel ~l[ender-me a ti.)) H3

Agostinho propoe um ressalto do plano da nlemoriJ psicologica. para uma

lllC1110ria ontol6gica. que n:1o e ji um COlltelldo mas Ullla rela~3.o origin,-lriJ

COnI a transcendencia, antes da propria conscicncia e que, par isso, a possibili-

,~~ COI!!L'ssioJlcs, X. xvii, 10: "M:lgn:l uis CSt mCJl)ori:lc, llt'scio qllid hOlTcndum, dellS mens, profim­da er infinita lllultiplicita~; ct hoc animus est. et hoc ego ip<;e ~um. quid ergo Stllll, dellS meus? quae narura sum>,)

83 cO/!r('s~i(lll(,s, X, xvii, 26.

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T tao «(Mas onde estis na minha memona, Senhor. onde C que neb cstis? Que

habitaculo £lbricaste para ti? Que <;antu;lrio edificaste para ti?)) H·I

E a inrenogac;:ao, linglugem por exceh~ncia da douta igllorancia, que per­

mite Agostinho avanc;:ar, roillper com 0 cielo das represcntJ<;:oes psicologicas e

Inentais. Da1 que .1 solu<;ao da aporese, a abcrtura a transcenciencia, nao seja

expressa num enunciado declarativo, mas ainda intenogativamente fonnubda,

invertendo toda a 10glca cia procura e a propria logica da rela<;30. «Onde C

que, entao, ell tc cncontrei para te aprendcr, senao ('1/1 ti, acima de 1nim?») (Ubi

('~~o te illll(,lIi, ur disccrcin ff, l1isi ill fe slIpra IIIC?) N5 Por ontras palavras, nao c­Deus que esta na memoria, mas a memoria que csta a ser mantida, continua­

mente recriada, por Deus. A cada momento, a iclentidacle biograllca, a ipseida­

de psicologica, a rcla~ao espiritual e sustenrada por llln acto criador que st'

mantem, um _fiat cterno, Ullla Palavra que continua a ser (ljta, uma rela~-;'io

substancial que continlla no Filho, no Verbo por quem todas as coisas sao 0

que sao, e continuam a ser, a pfrsistir, pm-que 0 ser e um acto de manitestac;:ao.

'Nao te procllrariamos se 11aO tivessemos sido il encontrados·. Por iS5O, como

dissemos, 1110 s6 a logica da bllsca, como a propria logica da reb<;:ao se inverte:

somos SCI' para porque ha uma Rela<;ao Absoluta (remissao para a ordem trinita­

ria) que nos antccede. Na intcrioridade, Agostinho dcscobre 0 Outro-Excesso H("

uma Alteridade que abrasa todas as eseorias de intimismo, de eudcmonico e

interesseiro desejo, ou ate 111e51110 de espiritual COl1solac;:ao H7. E este 0 misterio

maior da nossa 'vi5itac;ao': fomos visitados ainda no 'seio da nossa mae' HI' e

ontologiea1nente agraciados por tIm aIllor infinito, por uma abundancia HaO

invejosa, por uma bondadc impensavd que nos precedeu. IntclTogando,

balbueiando, salmodiando, Agostinho remete para a experiencia ontologica

fundamental, que e a de prccedeneia do dom e cia gra<;:a. Nao nos demos a nos

meSlllOS 0 ser, expericncia irrecusavel que po de sef ocasiao de revolta ou de

louvor. E Agos[inho coniessa 0 louvor:

«(Tarde te alllei, belcza tao antiga e tao nova, tarde te amei! Eels

H~ Cl!!f;-,s~i(llh's, X, xxv, 36: "Sed ubi Hunes in memoria mea. domllle, ubi illic manes? quaie cllbik

fabricasti tibi? qUJ.ie sanctu:mum aeditlcmi tibe" K5 Cll!!(cssi(l!ICS, X. xxvi, J7. ~(. Cf. Michel Corbin. Ll Trini/(! ('II I'E,,[()s de Dim, P,l1-i~. Cere jl)97. ~7 0 que coioca Agostinh() no horizonte d.l T l'ologia Negativa, como \alienta Victor Lmsky, em

«Le~ clements de «Theologil' negative» dans la pemee de ,aint Allgustin~. in AHXHstinw Ma.~i5rcr. 1., pp. 575-581.J;1 m1lll texto dl'juventllde (Dc Ordillc, II, 16,44) Agostinho dizia: " ... nun dico

de summo Ilia 1 )co, quid scitur melitIS nesciendo». H~ Jr 1. 5: "Antes mesmo de te h)rmar no ventre materna, Cll te conheci.» ConlO C sabido, Agmti­

nho pellS:lVa com a Bibli:l na mao. de modo paniclliar com os Profetas e {l~ Salmos.

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JOSE: ;\j!lRIA SILVA ROSA

que estavas dentro de mim e eu fora, e 31 te proem-ava, e eu, scm be­

leza, preeipitava-lUc ncssas coisas belas que tu fizeste. Tu cstavas (0-

migo e ell nao estava contigo. Retinham-me lange de ti aql1elas coisas

que nao serialn, sc em ti nao fossenl. Chamaste, e clamaste, e rompes_

te a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e a£lstaste a minha cegueira;

exalaste 0 teu perfume, e eu respirei c suspiro por ti; saboreei-te, e tc­

nho fome e sede; tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz.) iN

Esta ora\ao-poema e 0 aWIllCl1 do periplo anamnetieo pela interioridade.

E 0 ponto de chegada de Agostinho, mas nao e UJlla conclusao nem se deduz

do percurso. Ter compreendido interrogativamcnte (e a interrogay3o nao e

uma Of3\J.O? Quem illtcrroj!tl nao ro<...f.;a duas vezes?) que Deus nao esta na me­

moria, nelIl a eIa se pode confillar, mas que a memoria e que est} em Deus,

leva-o a prorrolllper em louv~r. A linguagenl do louvor, tal como a da pro­

messa e a do perdio, e uma linguagenl performativa, que realiza aquilo que

diz, que }l1Z a JJerdade. Neste cimo ja nao ha pesquisas, explica\oes, dcscri~oes, fenornenologias, mas tao-so uma ardente exclama\ao, um acto linguistico.

E porque transborda de urn mem01ial de reconciliac;ao, este hino eVOCJ ao

IneSl1lo tempo 11l1la experiencia eucaristica (no sentido de agradecimento de lou­

vor) onde verdadeiramente 0 Verbo se faz carne e 0 corpo se faz verbo _

vinculo substancial, relayao olltologica, transfigura\ao da existencia, narrativa do nOIllC novo.

W) COI!lcssioIlCS, X, xxvii, 38: ((Sera te amaui. pulchritudo tam anriqua et tJm nOlla, sero te amaui! ct eCCe intus erJS et ego foris et ibi te quaerebam et in ist;] fonnos<i, quae [eci~ti, deformis inrue­bam. mecum eras, et tecum non cram. ea me tenebant lange a te, quae 5i in te non I'S~ent, non essellt. uocasti et clamasti et rupisti surditatem meam, coruscasti, sp!enduisti et filgJsti cJecitatem meam, fi-agrasti, et duxi spiritum et anhelo tibi, gustaui et esurio et sitio, tetigisti me, et exarsi in pacem tuam)).

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o ACTO DE CONFESSAR (BREVE MEDITA<;:AO)

AMERIca PEREIRA

Universid::J.de Cat6lica Portuguesa (LisbOJ)

A contlssao e llilla epifania de vida, da vida, da vida do homem. Uma re­

vela<;ao. Mas nao uma revelar;ao qualquer: e lUll acto de comullica\J.o de n1vel

ontologieo, lllll acto centrifugo, acto de amor, acto de produ\3.o e, no que

aporta de absoluta llovidade, acto criad01-. Trata-se de um feno11leno auto­

-manifest<ll1te, sempre exemplar: viver e ja e e sempre confessar-se. Trata-se de

uma auto-poiese, de lim gerar-sc a 5i me5l110, num acto que se confunde COIll

a pr6prl;l vida e que c como que 0 tItero proprio do ser-se hOlnem - 0 e011-

fessar-se homem. Scr-se homem e contessar-sc homem e confessar-sc homcm

e scr-sc bomelll.

A confissio nao e pois uma revela\;lo ma1s ou mcnos escandalosa de um

intimo mais ou menos obsceno, numa degrada\ao em fun<;ao psicologica e so­

cial c politica de um acto fundador cia propria cxistcncia e ontologia humanas;

confessar-se c a graya caritativa do cOllumicar-se numa lingnagern que e 011tO­

logia em acto de auto-produr;ao, melhor, auto-cria\ao. Confessar-se e ser-se;

ser-se por demro e para fora: e uma obla<;ao em pennanente acto peb qual i11-

teriOlwente a aInu se diIata e se intensifiea e exterionnente 0 COlpO comunica

em acto, se c0111unica em acto. testemunho desse pano sem fim quc e a vida.

A confiss30 e assim um acto ptlblico, Ullla ptlblica forma, uma l11cmoria

publica, comUlll. A confissao e a publicar;ao da memoria, memoria que se t,1Z

publicando-se, lUll drama de vida que se escreve no acto ptlblico em que se

confessa, em que se expande e comunica. E e sCIIlpre assim: mesmo qucm fo­

ge do lllundo e dos outros homells, assina ilusoJiamente mn falso ultimo acto

de dranu, de que nao cOllseguc evadir-se e, sem querer, confessa-sc neSSd

llleSI1ld fuga. Ontologicamente, cada acto humano e cada acto de e do homern

e urna sua confissao. 0 hom em e co1?fcssionalmcllte.

E e-o elll consciencla. Que pode um inconsciente confessar? 0 <lcto de

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