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CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ
FACULDADE CEARENSE
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL
ANGÉLICA MARIA DE ARAÚJO MONTE
“ADOÇÃO À BRASILEIRA: EXPERIÊNCIAS DE FILHOS ADOTIVOS.”
FORTALEZA
2014
ANGÉLICA MARIA DE ARAUJO
ADOÇÃO À BRASILEIRA
Monografia apresentada ao curso de Graduação em Serviço Social pela Faculdade Cearense – FAC como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Francis Emmanuele Alves Mesquita
Fortaleza
2014
ANGÉLICA MARIA DE ARAÚJO MONTE
“ADOÇÃO À BRASILEIRA: EXPERIÊNCIAS DE FILHOS ADOTIVOS.”
Monografia como pré-requisito para
obtenção do título de Bacharelado
em Serviço Social, outorgado pela
Faculdade Cearense – FaC, tendo
sido aprovada pela banca
examinadora compostapelas
professoras.
Data de aprovação: ____/ ____/____
Banca Examinadora
_________________________________________
Profª Ms. Francis Emmanuelle Alves Vasconcelos (Orientadora)
_________________________________________________
Profª Ms. Priscilla Nottingham de Lima
_________________________________________________
Profª Ms. Silvania Maria Pereira Cavalcante
Dedico aos meus pais, aos meus
Antonio Sancho e Antonia Isaias
e aos meus filhos Daniel e
Rafael, por serem minha
inspiração de vida!
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus e à Nossa Senhora, que
sempre estiveram à frente da minha vida, possibilitando-me alcançar todos os
meus objetivos.
Aos meus filhos Daniel e Rafael, que são minha razão de viver, de
lutar e de crescer como mãe e como ser humano;
Aos meus pais Antonio Sancho e D. Toinha e aos meus irmãos:
Sancho Filho, Júlio, Celeste, Jesus, Davi, Daniel, Ângelo e Taciana, que são
meu maior exemplo de vida, que me ajudaram, me amparam e me dão força.
Ao meu Anjo da Guarda que me iluminou, me guiou pelo caminho da
humildade e da dedicação, da perseverança, da força, da fé e quando nem eu
acreditava em mim ele acreditou.
Agradeço também às minhas amigas Ana Paula, Larissa, Marcela,
Mayara, Samara e Rebeca por terem ajudado na construção desse trabalho e
me acompanhado ao longo destes 4 anos.
As minhas técnicas de Estágio Claudia Guilherme e Fabíola Costa,
por todos os ensinamentos na prática de nossa profissão, agradecer também à
Alexandra Torres, Maria Concebida Uchoa, Leticia Vasconcelos, Assistentes
Sociais, por me mostrarem o que é o fazer profissional, com ética, integridade,
profissionalismo e dedicação, e tenho muito orgulho de poder ser colega de
pessoas tão iluminadas.
Aos professores da Fac pelos ensinamentos transmitidos.
Agradeço à Prof.ª Orientadora Francis Emmanuelle, que é um Anjo
que Deus colocou em minha vida, pela paciente e dedicada orientação e pela
sua competência.
Às professoras Priscila e Silvana, componentes da banca
examinadora, pelo exemplo de vida, de profissional, que tenho todo orgulho do
mundo de ter conhecido e ter sido aluna e orgulho maior de ser futura colega.
RESUMO
A presente monografia tem como tema a “Adoção à Brasileira”, que trata da adoção ilegal de crianças, que, à margem da lei, tem como objetivo principal compreender os impactos sofridos por esses filhos adotivos, buscar saber quando e como se deu esta adoção, como foi a recepção junto à família, se o adotando sofreu algum tipo de preconceito por parte de algum amigo ou familiar, de cunho qualitativo, utilizando-se do método de entrevista com auxílio de um roteiro semi-estruturado, sendo esta aplicada junto a seis filhos adotivos, residentes na cidade de Fortaleza, nascidos no estado do Ceará, maiores de dezoito anos, adotados à brasileira. Após todo esse processo, foi possível compreender que a maioria dos entrevistados não sofreu nenhum tipo de preconceito, mas os que passaram por algum tipo carregam até os dias atuais marcas indeléveis das agruras vividas no passado. Dado o exposto, conclui-se que se faz necessário um acompanhamento por parte dos órgãos competentes, composto por equipe multidisciplinar, junto a estas famílias, que buscam pela adoção realizar o sonho de construir uma família, buscando acima de tudo o bem-estar e a integridade física e psicológica das crianças e dos adolescentes, sendo estes filhos adotivos.
Palavras chave: Adoção, Família, Preconceito.
ABSTRACT
This monograph has as its theme the "Adoption a Brasileira", which deals with the illegal adoption of children, i.e. the margin of the law, has as its main objective to understand the impacts suffered by these adopted children, seeks to know when and how did this adoption, as was the reception with the family, if the adopting suffered some kind of bias on the part of some friend or family member, qualitative oriented, using the method of interview with the aid of a semi structured script, these being applied along the six adopted children, residents in the city of Fortaleza, State of Ceará, born more than eighteen years, adopted the Brazilian. After this whole process was possible to understand that most of the respondents did not suffer any kind of bias, but those who have undergone some kind carry until the present day indelible marks of the hardships experienced in the past. Given above we conclude that it is necessary to follow-up on the part of the competent bodies composed of a multidisciplinary team, with these families who seek the adoption realize the dream of building a family, seeking above all the well-being and physical and psychological integrity of children and adolescents, being these adopted children.
Key words: Adoption, Family, Prejudice.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS: AMB - Associação dos Magistrados Brasileiros CNA- Cadastro Nacional de Adoção CF – Constituição Federal CNA – Cadastro Nacional de Adoção CNJ- Conselho Nacional de Justiça ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente FAC - Faculdade Cearense NCC- Novo Código Civil NLA – Nova Lei de Adoção
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 12
2 CAPÍTULO I – FAMÍLIAS E A ADOÇÃO ..................................................... 16
2.1 A história da adoção ................................................................................... 20
3 CAPÍTULO II – PERCURSOS METODOLÓGICOS ..................................... 34
3.1 Percalços da pesquisa ............................................................................... 38
3.2 Perfis bibliográficos dos entrevistados ....................................................... 40
4 CAPÍTULO III –“ADOÇÃO À BRASILEIRA”:A experiência de vida dos
filhos Adotivos ............................................................................................... 42
4.1 Laços de sangue e/ou laços de amor: a família na concepção dos filhos
adotados........................................................................................................... 42
4.2 “Mães verdadeiras” e “mães de criação”: as mães representadas pelos
filhos adotivos ................................................................................................... 46
4.3 A adoção .................................................................................................... 49
4.4 A descoberta da adoção ............................................................................. 50
4.5 Das cegonhas: os contextos de adoção ..................................................... 52
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 55
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 58
APÊNDICES .................................................................................................... 61
12
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como tema a “adoção à brasileira” que trata da
adoção de crianças realizada de forma ilegal. As crianças são adotadas por
casais, mas não seguem os trâmites legais: são crianças adotadas na
irregularidade. É chamada à brasileira, pois é um tipo de adoção que passa à
margem da legalidade e que faz referência a uma cultura comum aos
brasileiros de burlar os mecanismos da lei para acelerar os processos, no caso,
de adoção.
O estudo irá focalizar nos relatos dos filhos adotivos, hoje já adultos,
tendo por base suas histórias de vida. Buscar-se-á entender os impactos
sociais gerados pela adoção e quais são eles; analisar se sofreram algum tipo
de preconceito por serem filhos adotivos; como se deu essa adoção, como e
quando souberam da sua adoção e qual sua reação; como foi a recepção deles
nas famílias adotantes.
Com isso, foi elaborada uma entrevista com roteiro semi-estruturado
e definida uma amostra de 6 (seis) pessoas. A pesquisadora foi a campo
buscar filhos adotivos maiores de 18 anos para que fosse possível a
compreensão de todas as suas histórias e vivências de acordo com a
subjetividade de cada um; entender como se deu este processo de adoção na
visão do adotado e quais suas percepções.
A aproximação com o tema se deu a partir da experiência da
pesquisadora como filha adotiva, em uma família de oito irmãos. Ela passou a
ter o interesse de conhecer melhor este processo, ressaltando que também foi
adotada através da “adoção à brasileira”, sem cadastro no Juizado da Infância
e da Juventude, na fila de espera e demais trâmites a serem seguidos no
processo adotivo. Mesmo assim, foi registrada como filha do casal, apesar de
ter sido uma criança, que surgiu de forma inesperada na vida dessa família.
O contexto da adoção da pesquisadora foi a seguinte: uma prima
distante, filha de uma irmã já falecida do pai da criança, morava em Parnaíba –
PI e a mesma não conseguia ter filhos, já havia adotado um menino, mas como
vivia da pesca de camarão, necessitava de outra criança (um menino), para
13
ajudar a pescar camarões. Em sua residência, a situação financeira era muito
precária. Veio para Fortaleza no segundo semestre de 1979 e iniciou sua
busca para adotar esta criança, com isso, conheceu uma freira de caridade que
fazia esta ponte. Na época, essa freira atuava em alguns hospitais (públicos e
particulares) dentre estes, o que a pesquisadora nasceu; a freira informou que
havia uma criança que ia nascer em dezembro, a prima da pesquisadora teve
que voltar à sua cidade de origem, Parnaíba, e lá informou que a criança (um
menino) havia nascido prematuro e por isso havia ficado em Fortaleza. Quando
a pesquisadora nasceu, a referida freira ligou para a mãe (adotiva), pois o
telefone de referência era o da casa dos pais dela, pois a prima informou que
residia na casa dos pais (adotivos) da pesquisadora, ela informava que a
criança deveria ser retirada da maternidade antes que fosse entregue à outra
família, como todos os meus irmãos (adotivos) já eram adultos, a mãe recorreu
à vizinhança para conseguir roupas, fraldas, mamadeiras, enfim, tudo que ela
iria precisar, logo, a mãe (adotiva) foi buscar a criança junto com uma das
irmãs, que acompanhou todo o processo juntamente com a prima, pois a
mesma não sabia andar por Fortaleza.
A família possuía na época e ainda possui sete filhos (5 homens e 2
mulheres), todos mais velhos. Na época, todos adolescentes ou adultos. O pai,
a princípio, foi totalmente contra por ser um homem muito correto, sempre
procurou fazer tudo dentro da lei, e para ele adotar uma criança por meios
ilegais era inaceitável, mas segundo ele: “ela me conquistou com um sorriso,
daí fiquei”.
E a prima, sobrinha do pai da pesquisadora, adotou outra criança
por intermédio desta mesma freira, agora um menino, nascido em outro
hospital também de Fortaleza, gêmeo, sendo que sua irmã foi adotada por um
casal na Alemanha.
Até o momento, a pesquisadora não conhece seus pais biológicos, o
que se sabe é apenas o nome da mãe biológica que, por acaso, a freira deixou
escapar. Sabe-se também que ela tinha entre 13 e 14 anos e havia sido
abandonada pelo seu namorado (pai biológico da pesquisadora), e que o avô
biológico não aceitaria a gravidez, por isso ela esteve em Fortaleza escondida
com a avó biológica até dar à luz.
14
Pôde-se, a partir da história de vida da pesquisadora, problematizar
alguns dados: as famílias geralmente procuram a ”adoção à brasileira” para
que as crianças ou adolescentes sirvam como mão-de-obra na família. Pode-se
perceber também, a partir desse caso, que as mulheres historicamente são
responsabilizadas pela concepção e pelo abandono dos filhos e não os
homens. Logo, as relações de gênero perpassam a questão da adoção à
brasileira desde tempos remotos.
Como estudante, o interesse da pesquisadora surgiu após trabalho
acadêmico, foi feita uma visita ao abrigo. A partir desse momento, pôde-se
observar que muitas das crianças que lá estavam à espera de adoção eram
negras e já para adoção, considerada, tardia, pois esta é relacionada a
crianças maiores de três anos. Nessa mesma época, observou-se que muitos
artistas estavam adotando crianças negras tanto nacionais quanto
internacionais e isso chamou a atenção, o que levava essas pessoas a
adotarem essas crianças, benesse, compaixão? Enfim, queria-se entender as
motivações, começou-se, então, a coletar material como recorte de revistas e
jornais, assistir reportagens relacionadas ao assunto, e ir buscando na mídia o
que se falava em geral sobre adoção, ao buscar os filmes que falam sobre
adoção, percebeu-se que na listagem que se pesquisou o gênero do filme, ora
era drama ora era comédia, e dois, em particular, terror Caso 39 e A Órfã e, no
caso dos dois filmes, a adoção era associada a algo ruim, que as crianças em
questão trariam situações terríveis àquela família que adotou. Como a mídia
tem um poder de influenciar opiniões, isso acarreta o aumento da dificuldade
para adoção em si, principalmente, a adoção tardia.
Vale também ressaltar que há um perfil preferencial para adoção, a
criança deve ser do sexo feminino, branca, loura, de olhos claros e bebê até
um ano. A relação, que é entregue aos pais, que entram na fila de adoção,
parece uma lista de compras, porque constam itens como querem a criança,
com algum tipo de doença (tratável ou não), com alguma síndrome. Mas,
quando o filho é biológico, pode ser que esta criança possa também nascer
com algum tipo de doença como surdez ou má formação e não há como optar.
Nesse caso, o casal iria se desfazer dessa criança? Provavelmente, não. Então
por que no caso da adoção existe essa escolha?
15
Nesse direcionamento, o trabalho foi dividido em três capítulos, o
primeiro tratará sobre família, adoção e seu histórico e a evolução da legislação
brasileira. No segundo capítulo, trará o percurso metodológico e, no terceiro
capítulo, tratará da adoção à brasileira na percepção dos sujeitos, que
vivenciaram tal situação, consequentemente, serão apresentados os resultados
da pesquisa realizada com os adotados mencionados e, por fim, as
considerações finais, referência bibliográfica e os apêndices.
16
2 CAPÍTULO I – FAMÍLIAS E A ADOÇÃO
Historicamente, quando se refere à família, tende-se a pensar a
formação familiar através do núcleo: pai, mãe e filhos, sendo estes tidos
excepcionalmente como frutos dos laços biológicos dos primeiros. Contudo, a
família, sendo uma criação humana, como tal é mutável. Observam-se, ao
longo dos anos, as mudanças ocorridas na família, principalmente, em que as
funções eram bem definidas: o pai mantinha o sustento da casa, sendo o
provedor, e a mãe era responsável pelos afazeres domésticos e a criação dos
filhos, havendo assim um grupo conjugal bem definido.
A tendência à naturalização da família, tanto no nível do senso comum quanto a própria reflexão científica, que leva à identificação do grupo conjugal como forma básica e elementar de toda família e à percepção do parentesco e da divisão de papeis como fenômenos naturais, criou, durante muito tempo, obstáculos de difícil transposição para sua análise. (AZEVEDO e GUERRA, 2000, p 50).
Ainda, segundo as autoras, pode-se ler em Azevedo e Guerra:
[...] a família, tal como a conhecemos atualmente em nossa sociedade não é uma instituição natural e assume configurações diversificadas em torno de uma atividade de base biológica, a reprodução. Com isso podemos constatar que, a família foi criada pelo homem, para atender seus interesses, relatando a família em estágios a principio essa divisão de tarefas que vemos não existia, no primeiro adultos e crianças trabalhavam juntos nos chãos de fábrica para aumentar a renda desta unidade familiar, ou seja, tratava-se de uma unidade de produção. (AZEVEDO; GUERRA ,2000, p.51).
Portanto, a família, como se tende a associar o modelo nuclear e
afetivo, nem sempre existiu. Os casais reproduziam a vida, ou seja, os filhos,
para conservar seus bens, para que o patrimônio se mantivesse dentro dos
clãs. Ocorriam casamentos arranjados para que as fortunas continuassem com
seus descendentes, daí também a rejeição histórica à adoção, já que muito
mais do que hoje este “filho” vindo de origem tida como duvidosa teria direito a
estes bens também.
A família moderna:
trouxe consigo um novo conjunto de atitudes em relação às crianças. Ao descrever as formas de intimidade entre pais e filhos – e principalmente a supervalorização do amor materno – na família emergente, ele indica que a análise da família deve se preocupar não apenas com as dimensões dessa instituição, mas também com as qualidades emocionais das relações familiares, remetendo nesse sentido para uma teoria psicológica da família. (ARIES, 1979)
17
Aqui a família já muda de figura, já passa a ser o núcleo de afeto,
carinho e proteção que, em tese, deveria compor todas as famílias, mas que,
na realidade, nem sempre é com o que se depara e houve uma evolução com
o passar do tempo e das mudanças da sociedade. Com isso, percebe-se que a
família tem sofrido variações através dos tempos não só correlacionadas pelo
vínculo sanguíneo, mas, pelas pessoas, que convivem no mesmo lar. A família
contemporânea convive com vários desafios, que fazem parte do seu cotidiano,
como a violência, o desemprego, a pobreza, as drogas dentre outras
complicações.
Devido a toda essa evolução também se pode observar que a
família, no molde tido como tradicional (o modelo nuclear), não é a única
existente, hoje existem várias configurações familiares, como as comandadas
pelas mães, em que a mulher ocupa a posição de única provedora da casa, ou
aquelas comandadas somente pelos pais, pelos avós, que criam os netos e se
tornam pais, as formadas por casais homoafetivos, ou seja, o núcleo familiar,
como dito anteriormente, está transformando-se, modificando-se, adaptando-
se, neste último caso, o de casais homoafetivos se vê um número considerável
de adoções, trazendo assim uma nova esperança para essas crianças que
esperam tão ansiosamente por uma família.
Já, para essas crianças, se recai o peso de terem sidas rejeitadas,
digam-se enjeitadas, pela própria família de origem e pela própria denominação
“filho adotivo”, que gera um novo estigma. Essa situação pode vir a gerar
revoltas e traumas, pois, com a ajuda negativa da falta de meios para
localizarem seus pais biológicos, esta ideia permanece na cabeça dos filhos
adotivos, o que se pôde sentir na fala de alguns dos entrevistados.
Com isso, pode-se citar ainda Goffman, em que o mesmo frisa que
“Um estigma é então, na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e
estereótipo, embora se proponha a modificação desse conceito, em parte
porque há importantes atributos que em quase toda a sociedade levam ao
descrédito.” (p.13).
“Eu te perdôo se tu deixar eu criar aquela bichinha, ou seja,
bichinha, né?!”
18
O depoimento acima é o de Amora, uma das interlocutoras
entrevistadas. Durante a entrevista, ela conta que sua mãe adotiva pediu ao
seu pai adotivo para ficar com a mesma após descobrir a traição do marido.
Aqui se pode observar uma expressão bem comum, que leva essas crianças a
se sentirem diminuídas, o estigma sofrido, que, infelizmente, é muito comum
em nossa cultura. Essa ligação pode ser feita a partir do depoimento de outras
pessoas entrevistadas, pois há dois pontos que se tornam cruciais na vida
dessas pessoas, neste caso de ouvir este tipo de termo, e qual a intenção
dessa mãe ao ficar com essa criança. Pois poderia ser um tipo de
compensação por ter sido traída. Entretanto o que pode ter levado a se utilizar
dessa expressão? Como alguém, que, supostamente, quer assumir o papel de
mãe, trata a criança dessa forma? A não ser que o papel a ser assumido não
será realmente o de mãe.
Acredita-se que a relação mãe e filho seja de suma importância no
núcleo familiar, bem como já foi dito, pois a mãe é, em teoria, responsável por
moldar este ser social e esse relacionamento é construído e fortalecido por
esse vínculo, embora a maternidade não seja um instinto inato à mulher, pois
não é toda mulher que possui o sonho de ser mãe, inclusive nem de constituir
família, pois, muitas mulheres, na atualidade, priorizam seu trabalho, sua
carreira. Atualmente, não só mulheres, mas casais também não pensam em se
tornarem pais. A divisão de funções passou a não mais existir, a mulher
simplesmente como dona de casa, prenda do lar, e o homem, o único provedor
da casa acaba e as despesas passam a ser divididas entre os casais e, muitas
vezes, os demais membros da família também possuem renda.
A maternidade não é inata ao ser mulher. As mulheres são
condicionadas e treinadas para isso, inclusive era inimaginável a mulher ser
algo mais que isso, de acordo com Malinowski: “[...] que a relação autoritária de
dependência, sobre qual se desenvolve o complexo edipiano, não é
absolutamente algo natural, mas é historicamente determinada pelas formas
concretas assumidas pelas relações sociais e culturais de cada civilização
individual.” (p.38)
19
No decorrer da pesquisa, pôde-se observar que tanto as mães
“abandonantes” quanto as “crianças abandonadas” carregam consigo um
estigma muito forte. Para essas mães, a denominação de irresponsáveis, de
fracas por não terem ficado com seus filhos, de relapsas ao entregá-los a
outros. Pode-se observar nas leituras realizadas que não se para para pensar:
o que as levou a cometer essa atitude tão extrema, é mais fácil pensar que
abandonaram e pronto!
A palavra “abandono” carrega conotações de, uma rejeição emocional como se a entrega do filho fosse uma escolha consciente das mães em questão. Hoje pesquisadores enfatizam o quanto a mulher que consente dar seu filho em adoção foi ela mesma, “abandonada” – pelo companheiro, pelos pais, pela sociedade. (Fonseca, 2012. P 17)
Fica claro que muitas dessas mães não tiveram opções a não ser
entregar seus filhos. Muitas, ainda adolescentes, trabalhavam como
domésticas em casas de família, sendo que muitos desses filhos eram de
relações com o senhor da casa.
O pré-conceito é uma forma de alienação moral, pois estreita as possibilidades do individuo de apropriar de motivações que enriqueçam a sua personalidade: Impede a autonomia do homem ao deformar e, consequentemente, estreitar a margem real de alternativa do individuo. (HELLER, 1972, p 59)
Isso faz pensar que essas mães não foram “responsáveis” pela
doação dos filhos, elas, simplesmente, não tiveram escolha, por terem muitos
filhos, ou por já viverem de favor na casa dos outros, deve-se dizer que essas
mulheres não tiveram opção de ficar com seus filhos, de vê-los crescer,
simplesmente, foram arrancados dessas mães, muitas vezes pelo próprio pai
(das crianças).
Eu fico assim, assim, eu não, não, eu não gosto, não é que eu não goste dela, eu só acho que tudo o que aconteceu comigo foi culpa dela, porque ela, assim, me deu pra qualquer um, como se eu fosse uma mercadoria. Por exemplo, uma pessoa que tem quinze filhos, ele não vai tratar bem uma criança que tá chegando. Pra quê que uma pessoa de quinze filhos vai querer mais uma criança se não de empregada dos outros filhos? É, não tem sentindo, eu não vejo sentido ela dar uma criança pra quem tem 15 filhos, enquanto ela
20
tinha dado prum casal que não podia ter filhos, ela foi lá e tomou, só por isso. (Liz)
Para a sociedade, torna-se muito mais fácil culpar essa mulher pelo
“erro” cometido de ter um filho, de ter “se entregado a alguém” e essa criança
ser fruto dessa entrega, até hoje, a mulher, muitas vezes, se sente culpada
pelo que vem a acontecer com a criança, inclusive em caso de violência,
infelizmente, vive-se em uma sociedade machista, em que o homem antes não
era responsabilizado pelo abandono desse filho, embora hoje existam
campanhas que obrigam os pais a assumirem os filhos como filhos verdadeiros
e não só no âmbito financeiro, em uma das entrevistas, o que marcou muito a
pesquisadora foi que: “esta pessoa foi adotada para ser empregada doméstica,
dos pais e irmãos, e que, com o passar dos anos, meu pai passou a me olhar
com outros olhos, tinha que fugir dele”.
Não se pode deixar de ressaltar que a criança também é
estigmatizada como enjeitada, como rejeitada pela mãe, ou seja, se nem a mãe
quis, boa coisa não deve ser. E, muitas vezes, essa criança passa a ser
rejeitada pelos irmãos e pelos demais membros da família, como se vê no
depoimento abaixo de uma das entrevistadas:
Entrava no meu quarto, chutava minha cama, queira me bater, me chamava de dondoca, tinha uma raiva assim que até hoje eu não entendo aquela raiva que ele tinha de mim, uns dizem que é porque como a família tinha minha guarda, ele achava que eu tinha direito a alguma das casas, que eu tinha direito a alguma herança, algum bem.” Amora sobre a relação com um de seus irmãos, ou seja, esse seu irmão só a via como mais uma para dividir a herança. (Amora)
A partir desse novo enfoque, várias questões surgiram: quais os
motivos levaram a família a adotar? Por que a escolha por essa determinada
criança? Quais foram as circunstâncias envolvidas no processo de adoção?
Essa criança foi esperada e planejada? Houve escolha de cor, sexo, raça,
doença curável ou não? Ou simplesmente surgiu inesperadamente nessa
família? Neste caso, houve empecilhos, conflitos no relacionamento do casal?
Houve a aceitação de ambas as partes, dificuldades financeiras, emocionais?
Junto aos demais familiares, avós, tios, possíveis irmãos mais velhos, como foi
recebida essa criança?
2.1 A História da Adoção
21
A etimologia da palavra adoção “[...] vem do latim ad-optare, isto é,
aceitar escolher; é a possibilidade de instituir uma família, atribuindo a condição
de filho às crianças biologicamente geradas por outros.” (DICIONÁRIO
AURELIO).
Outro conceito nos confere a Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), que criou a Cartilha Adoção Passo a Passo acerca das
crianças que vivem em abrigos:
A adoção é um procedimento legal que consiste em transferir todos os direitos e deveres de pais biológicos para uma família substituta, conferindo para crianças/adolescentes todos os direitos e deveres de filho, somente e quando forem esgotados todos os recursos para que a convivência com a família original seja mantida (AMB, 2007).
As famílias, que se dispõem a adotar, devem estar acima de tudo,
preparadas para receberem essas crianças, devem dar todo suporte
emocional, bem como aos filhos biológicos. Não é difícil de se observar, ao
tratar um filho principalmente de adoção tardia, o uso de meias palavras ao
repreendê-lo (a), esses pais devem lembrar que essas crianças têm sua
própria personalidade, vontades, expectativas e que nem sempre seguem o
que os pais querem, por exemplo, pais que queriam seguir determinada
carreira e por num motivo ou outro não realizaram, transferem aos filhos toda
essa carga emocional e essa cobrança, e assumem esse fato perante a
sociedade, formalizando essa adoção.
[...] é importante enfatizar que os desafios da adoção não devem ser vistos com temor, mas com muita coragem e perseverança por aqueles que pretendem tornarem-se pais adotivos, que sejam realmente adultos, capazes de amar e de se dedicar com generosidade e lucidez, sem ilusões românticas e piegas, pais que sejam capazes de construir uma casa aberta, capazes de se comprometer com o mundo e com ideais que transcendem os desejos egoístas e mesquinhos. (Andrei in Freire,2001)
Contudo, crianças são devolvidas aos abrigos por não terem
atendido às expectativas dos pais. Pergunta-se então: qual a noção que essas
pessoas têm ao adotarem uma criança, e simplesmente, quando ela cresce e
não atende as expectativas, começa a dar trabalho, ou seja, não era bem
aquilo que se esperava?
Segundo Marisol Melo, psicóloga do abrigo Tia Júlia, as adoções de
crianças acima de três anos de idade são consideradas tardias, os pais
precisam estar emocionalmente preparados para acolher meninos com a idade
22
um pouco avançada. Segundo ela, “Adotar bebês é mais ‘fácil’ porque você já
vai educando, ele vai crescendo com você, mas as crianças acima de três anos
já podem ter passado um tempo com os pais biológicos ou em abrigos”. Pensa-
se, no entanto, que os casais ou pessoas que querem adotar não poderiam
escolher o perfil da criança, assim como na gestação, a mãe não tem como
escolher esse perfil.
Segundo a mesma psicóloga, por melhor que o abrigo seja, é difícil
dar atenção específica a cada criança. “Em um abrigo, a criança não é tão
estimulada – na questão da aprendizagem e da fala. Ter um pai e uma mãe é
muito diferente”. Melo afirma que os futuros responsáveis devem conversar
sobre o que a criança já passou e ajudá-la a superar o trauma, caso exista,
ainda de acordo com Melo: “Algumas podem ter sofrido maus tratos, outras são
abandonadas devido à difícil situação financeira e até afetiva. Aconselha-se
que aqueles que desejam adotar crianças, leiam livros relacionados ao tema
ou, caso precisem, procurem um psicólogo para auxiliar no dia a dia”.
A adoção é uma prática milenar, cujos primeiros registros remontam
à Antiguidade. Hebreus, gregos e romanos já praticavam esse acolhimento a
crianças desabrigadas, como se fossem seus filhos a fim de perpetuar sua
história doméstica, sua linhagem.
Nos tempos primitivos prevalecia o aspecto religioso. Perseguiam-se fins que reclamavam por consideração especial do adotado como filho. No entanto adoção não produzia a conversão de um estranho em descendente. Serviu ainda, em alguns povos, para outros fins. Dentre eles: o de legitimar o filho natural; para fundar laços de caráter patrimonial; para manutenção do culto doméstico e para transmissão do patrimônio; dentre outros. Parece que o fator sucessório e o culto doméstico dominavam o conceito de adoção. Por essa razão, alguns testamentos. A grande diferença estava na forma: a adoção era ato bilateral e irrevogável. Nota-se certa afinidade entre adoção e a sucessão mortis causa. Não são excludentes tais categorias, pois adoção era meio de alcançar parentesco em linha reta, à margem da natureza. A função primordial da descendência é de um ponto de vista biológico e jurídico, assegurar a continuidade. Os filhos representam a continuação dos pais. A adoção consiste na criação de um parentesco civil equivalente ao de filho e que resguarda essa continuidade. (SILVA FILHO, 1997, p.45).
Para os povos citados, a adoção teria unicamente como finalidade a
responsabilidade dos filhos, os cultos fúnebres de seus antecedentes e a
função de manter as tradições, ou seja, tratava-se daquele que encomendaria
o seu ancestral morto aos espíritos.
23
Na Idade Média, a adoção não se tratava de um costume muito
comum. Esse motivo se dava pela rígida casta social da época, em que já nos
deparávamos com a distinção de classes, ou seja, pensar que um indivíduo
oriundo de classes sociais menos favorecidas se fizesse presente junto à
família de um senhor feudal, como artesãos e plebeus. (FERRAZ, 2013)
“Neste período, havia uma forte influência da igreja baseada na ideia
do matrimônio” (FERRAZ, 2013), assim sendo, os dogmas católicos não
permitiam que fosse reconhecido como parente o filho de outrem, visto que se
baseava na relação do sacramento do matrimônio, que se tratava de uma
união indissociável entre homem e mulher, e também buscava evitar a o
reconhecimento dos filhos frutos de adultério ou incesto. Para a igreja católica,
a adoção também não era bem aceita, pois os bens de senhores feudais, que
não possuíam filhos, ficariam para a mesma, e não teria quem herdasse estes
bens pós- morte do dono das terras.
No Brasil, do início do século XVI, há referências muito vagas sobre
a adoção de crianças. Sabe-se que eram abandonadas nas rodas dos
expostos1. Belém (2002) afirma que, nos séculos XVIII e XIX, a Roda dos
expostos do Rio de Janeiro recebeu cerca de 42.200 crianças, que
permaneciam sob a responsabilidade da Santa Casa até os três (três) meses.
É interessante ressaltar, que ao longo das décadas, arranjos alternativos foram se constituindo no sentido de atender às crianças das classes menos favorecidas. Uma das instituições brasileiras mais duradoura de atendimento à infância, que teve início antes da criação das creches foi a roda dos expostos ou roda dos excluídos Esse nome provém do dispositivo onde se colocava os bebês abandonados e era composto por uma forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória e fixado nas janelas da instituição ou nas casas de misericórdia.” (PASCOAL E MACHADO, P. 82.2009)
1A roda dos expostos ou roda dos enjeitados consistia num mecanismo utilizado para abandonar
(expor na linguagem da época) recém-nascidos que ficavam ao cuidado de instituições de caridade.
Mecanismo, em forma de tambor ou portinhola giratória, embutido numa parede, era construído de tal
forma que aquele que expunha a criança não era visto por aquele que recebia. Esse modelo de
acolhimento ganhou inúmeros adeptos por toda a Europa, principalmente a católica, a partir do século
XVI.
24
Ao longo dos anos essas rodas foram sendo extintas, já que a
adoção passou a ser tratada diretamente entre os pais adotantes e biológicos.
Antes dos anos 1980, não se conseguia resgatar muito dessas histórias que,
neste período, era muito mais fácil registrarem uma criança como sua, sem
muitas perguntas ou exigências de documentos. “A adoção instituída pela
primeira vez no código cível de 1916, continuava a ser durante toda a primeira
parte do século XX, um procedimento administrativo que podia ser realizado
um cartório de registro civil.” (Abreu, 2002).
Com objetivo de buscar informações sobre a adoção da
pesquisadora, como uma fonte documental de onde se pudesse pesquisar
sobre os registros da adoção à brasileira aqui em Fortaleza, a pesquisadora em
questão foi pessoalmente ao hospital, em que nascera e lá foi informada de
que os registros são incinerados ao completar 10 (dez) anos, então se pôde,
mais uma vez, comprovar que, no período referente a essas décadas, é
praticamente impossível achar qualquer pista que possa levar à origem
biológica de uma criança adotada.
Outro entrave muito comum é o dos pais adotivos que relutam em
contar detalhes e/ou a verdadeira história da adoção, por medo de perder o(a)
25
filho(a) ou o risco de responder processo judicial, haja vista ser hoje uma
prática ilícita.
Com isso, observa-se que “de 80 a 90% das crianças não passavam
por tribunais, sendo assim não eram registradas pelas autoridades oficiais”
(ABREU, 2002). Com isso, muitos adotados fazem realmente papel de
detetives para poder ter algum fragmento de sua história, embora durante as
entrevistas não se tenha observado um real interesse por parte dos adotados
em conhecer seus pais biológicos.
No período que vai de 1950 a 1980, aproximadamente, muitas mães
eram obrigadas a deixar seus filhos, isso era sua única opção, já que, muitas
vezes, tratava-se de jovens que trabalhavam em casas de família e, ao saber
da gestação, as patroas não aceitavam e as mesmas se encarregavam de
“doar” essas crianças, ou seja, elas mesmas eram “abandonadas” pelos pais
da criança, que ao saberem da gestação, ou eram indiferentes, ou
simplesmente sumiam, por sua própria família ou por quem lhe acolhera e pela
sociedade.
O Código Civil brasileiro de 19162 era muito voltado para atender
os interesses do casal, que desejava adotar do que da própria criança.
Primeiramente, buscava-se a criança para o casal e não o contrário. Após
1957, esse código foi alterado e uma das maiores alterações foi a redução para
30 anos, para quem queira adotar, buscando amparar o grande número de
crianças desamparadas que existiam. Isso reitera a ideia de que o bem estar
da criança não era levado em conta, ou seja, não se pensava em filhos que
precisam de pais, de proteção, lar, abrigo, carinho, mas sim no casal que não
podia gerá-los.
No Brasil, o Código Civil Brasileiro de 1916 disciplinou a adoção com base nos princípios romanos, como instituição destinada a proporcionar a continuidade da família, dando aos casais estéreis os filhos que a natureza lhes negara. Regulamentava a adoção em seus arts. 368 a 378 que era
2No Brasil, o Código Civil Brasileiro de 1916 disciplinou a adoção com base nos princípios romanos,
como instituição destinada a proporcionar a continuidade da família, dando aos casais estéreis os filhos
que a natureza lhes negara. Regulamentava a adoção em seus arts. 368 a 378 que era chamada de adoção
simples pelas consequências que gerava. Nessa estrutura, a adoção se dava através de escritura pública,
sem interferência judicial. O filho adotivo não rompia o vínculo com sua família biológica, podendo,
inclusive, perseverar com o nome originário, bem como com os direitos e deveres alimentícios face aos
pais co-sanguíneos (CHAVES, 1995).
26
chamada de adoção simples pelas consequências que gerava. Nessa estrutura, a adoção se dava através de escritura pública, sem interferência judicial. O filho adotivo não rompia o vínculo com sua família biológica, podendo, inclusive, perseverar com o nome originário, bem como com os direitos e deveres alimentícios face aos pais co-sanguíneos (CHAVES, 1995, p.30).
As adoções, neste período, ocorriam entre os que detinham o pátrio
poder e detivesse parentesco civil, ocorrendo essa negociação livremente
dentro dos cartórios. Dessa forma, pode-se perceber o qual frágil era o ato de
adotar, frágil, no sentido que qualquer um podia legalmente ter uma criança
para si, não havendo acompanhamento se após a adoção de como caminhava
essa relação de pais e filhos.
Duas eram as adoções admitidas em nosso direito anterior: a simples, regida pelo código civil de 1e Lei n. 3.133.57, e a plena, regulada pela lei. 8.069.90. arts. 39 a 52. A adoção simples, ou restrita, era concernente ao vínculo de filiação que se estabelece entre o adotante e o adotado, que pode ser pessoa maior. [...] “A principio era dado o direito de adotar uma criança que comprovasse que não poderia ter filhos biológicos, com a alteração da lei nº 3.133 de 08 de maio de 1957, passou a ser permitida a adoção por pessoas de 30 anos de idade, buscando, com isso, não remediar a esterilidade e sim facilitar a adoção possibilitando assim uma nova oportunidade de mais pessoas estarem sendo adotadas, melhorando assim sua condição de vida.” (DINIZ, 2010, p 523/524).
A Constituição Federal Brasileira de 1988 é tida como um grande
marco no que concerne à adoção no Brasil, pois ela, até então, tinha a
finalidade de atender os interesses dos casais adotantes. Com a referida
Constituição, a adoção tornou-se pública a partir do momento que os
interesses da criança e do adolescente passaram a ser reforçados e
assegurados legalmente, ficando bem claro que é de responsabilidade das
autoridades competentes acompanharem essa relação, o núcleo familiar e o
desenvolvimento dessa criança ou desse adolescente, no “art. 6.º, ao garantir
os direitos sociais, referência à maternidade e à infância como direitos
essenciais de uma pessoa em desenvolvimento. Contudo, é no art. 227, § 5.º e
6.ºda CF/88, que os princípios basilares assecuratórios à criança e ao
adolescente no que tange à adoção são especificados. Tais princípios referem-
se, entre outros, à vigilância pelo Poder Público, das condições para a
concretização da colocação da criança ou do adolescente em família substituta
na modalidade da adoção, objetivando, consequentemente, entre outros, evitar
o comércio de infanto-juvenis. Além disso, o legislador constitucional, em
27
conformidade com a tendência universal, proíbe expressamente qualquer
espécie de diferenciações face à filiação adotiva, no que diz respeito aos
direitos alimentícios, sucessórios, ao nome, etc., salvo os empecilhos
matrimoniais” (DELMANTO, 1991).
Não deveria ser necessário constar em uma Lei para ser cumprida,
isso deveria ser lógico e primordial como vida, saúde, alimentação educação,
respeito e estar a salvo de qualquer situação, que colocasse a criança em
situação de vulnerabilidade, adulto responsável por essa criança, um dia não
foi também uma criança, não precisou de alguém responsável para garantir
tudo isso, trata-se de uma obrigação, uma criança pequena não tem como
proporcionar sua alimentação, hoje ainda se ouve de muitos pais, alegando
que sustentam os filhos, sendo que isso é uma obrigação, um dever dos pais e
um direito dos filhos, sendo biológicos ou não.
Art.227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (ARTIGO 227, § 6º, da CF1988)
O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) pode ser
considerado uma lei específica e inovadora no âmbito da proteção à criança e
ao adolescente. O Brasil, tendo como principio a integralidade da proteção, que
é defendia pela Organização das Nações Unidas e tem seu fundamento na
Declaração Universal dos Direitos da Criança, trata esse assunto como fator
primordial o interesse do adotado, agindo através de ação protetiva, colocando
a criança sob a proteção e os cuidados de uma família substituta e assumindo
os mesmos direitos dos filhos biológicos.
O ECA vem reforçar a proteção ao interesse do adotado, buscando,
antes de tudo, a garantia desses direitos, já que a tipificação “menor” soava
como punição, tendo estes sua liberdade cerceada, é de suma importância
lembrar que o ECA é uma conquista, embora tardia dos movimentos sociais,
uma construção histórica, já que havia sido pensado tantas leis punitivas a
esses “menores de idade”.
28
Segundo o ECA (1990), “A adoção é medida excepcional e
irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de
manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma
do parágrafo único do art. 25 desta Lei.”
A criança só poderá ser entregue à adoção após todas as tentativas
de mantê-la junto da família ou parentes co-sanguíneos forem esgotadas, já
que se prima que essa criança deverá permanecer no laço familiar. O ECA
também descreve as exigências necessárias para adoção, dando a este
adotado a ciência de seus direitos e deveres, e aos pais também o que se é
permitido aos mesmos.
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.§ 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária. (BRASIL: ECA, 1990)
Fica claro que o filho adotivo tem os mesmos direitos que os
biológicos, sem exceção ou discriminação, ou seja,
[...] filhos adotados de iguais direitos e deveres, não mais importando sua origem. Malogrou qualquer sentido o conceito de reconhecimento nas relações familiares que se reduziu no requisito fundamental da maioria das ordenações do direito de família. Por conseqüência relativizou-se o papel fundado da origem biológica. (ELIAS, 1999)
A Lei nº 12.010, que entrou em vigor desde novembro de 2009, mais
conhecida como a nova Lei de Adoção, instituiu a Nova Lei Nacional de
Adoção, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil, a
Consolidação das Leis do Trabalho e a Lei de Investigação de Paternidade,
que estabelece uma série de mudanças significativas.
A lei busca o sistemático aperfeiçoamento da garantia de direitos à
criança e ao adolescente, enfatizando a convivência familiar, já contida no
ECA, com prioridade nas ações e no acompanhamento por parte do poder
público, voltada à orientação, à promoção e ao apoio à família natural, a qual é
indicado que a criança e o adolescente devem permanecer, salvo total falta de
condições de esse permanecer nessa família. Neste caso, a criança é colocada
sob adoção, tutela ou guarda do Estado até que seja recolocada em outra
29
família, como reforça nos incisos § 4º e 5º contidos no artigo 8º da nova Lei de
Adoção:
Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal. § 5
o A
assistência referida no § 4o deste artigo deverá ser também prestada
a gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção.
Sobre a nova lei de adoção, pensa-se que a mesma se torna falha.
Pelo que se pôde observar muitas crianças perderam a oportunidade de serem
adotadas pelo fato que devem ser esgotadas todas as tentativas de
permanência dessa criança na família. Até que as autoridades competentes
cheguem à conclusão de que o ambiente familiar é inadequado para a criança
ou adolescente, já se passaram anos e essa criança perde a oportunidade de
ter uma família e os pais perdem também de ter seus tão sonhados filhos.
Para embasar esse argumento, pode-se citar o recente caso do
menino Bernardo Boldrini, que era publicamente maltratado pelo pai e pela
madrasta, a situação agravou-se tanto que a criança (Bernardo) chegou a
procurar o Ministério Público, pedindo por socorro e inclusive sua avó materna,
que já havia pedido a guarda do mesmo, tendo esta negada com alegação de
que o pai mudaria de comportamento, vindo a terminar com a trágica morte da
criança, esse caso pode ser citado como uma falha na lei, descaso das
autoridades, por esse motivo, vê-se que as leis buscam atender principalmente
o interesse da criança, o seu bem estar. Após o fato ocorrido, a Lei da
Palmada13. 010/2014passou a se chamar Lei Menino Bernardo.
Ainda de acordo com a Lei da Adoção: “A partir de agora, a cada
seis meses, a Justiça terá de avaliar a situação de cada criança em abrigo.
Elas só vão poder ficar em instituição por no máximo dois anos. Parentes
próximos e pessoas com algum tipo de relação com o menor terão prioridade
na hora de adotar. A idade mínima para ser um pai ou mãe adotiva baixou de
21 para 18 anos.” (NLA)
Ou seja, em tese deve haver um apoio por parte das autoridades
competentes (governo, instituições) para garantir a assistência a essas
crianças, estejam elas em instituições, e já com essas famílias, devendo haver
um acompanhamento com uma equipe multidisciplinar, que faça o
30
acompanhamento. Mas, para muitos, a sensação que dá é que burocratizou
mais e aumentou o tempo de adoção.
Para adentrar no tema “adoção à brasileira”, é necessário
compreender seu significado. Trata-se de assumir uma criança sendo esta
entregue pelos pais biológicos ou não, como sua, sem passar pelos trâmites
legais, registrando-a como filho, burlando assim os processos legais de
adoção, eles desconhecem o programa da justiça e depois buscam o juizado
para “oficializar” a adoção (Elias, 1994).
Esta prática não se confunde com adoção legal, que á definitiva e traz em si direitos e deveres (entre pais e filhos) regulamentados por lei. [“...] friso que se trata de uma prática muito comum no Brasil, completamente à margem da lei, mas totalmente integrada aos nossos costumes e valores – em especial nas classes populares” (DOMINGOS ABREU, p.114.)
A adoção irregular no Brasil, popularmente conhecida como “adoção
à Brasileira”, constitui o ato de pais registrarem filhos de outrem como seus
filhos biológicos, utilizando documentos falsos oriundos da maternidade ou
hospitais tanto públicos quanto particulares. Vale ressaltar que, nas décadas de
1950 a 1980, não existia tanta exigência como a declaração atual de nascido
vivo para que fosse levado ao cartório com a digital da mãe e do pezinho do
bebê, fato que era comum no início do século XVI e nos anos seguintes, que
muitas crianças eram abandonadas nas rodas dos expostos (já explicado
anteriormente seu funcionamento) e esses casais viam a possibilidade de
realizar seu sonho de serem pais fugindo assim da burocracia do processo
legal de adoção, lembrando que muitos desses casais buscavam essas
crianças para serem empregadas da casa ou servir como companhia.3
4Documentos que são forjados pela maternidade como se aquela mãe fosse a parturiente, com os dados da
mesma ao invés da mãe biológica, ou seja, aquela mulher nunca esteve grávida e toma para si filho de outra, assumindo o parto como seu, existem, dentro das maternidades, funcionários que “ facilitam” esse
processo.
5. DECLARAÇÃO DE NASCISDO VIVO: A maternidade fornecerá um documento chamado
declaração de nascido vivo. Munido deste documento, o pai deve dirigir-se ao cartório de referência da
região. Este é o cartório de referência para os primeiros 15 dias de vida. Após esta data, qualquer cartório
fará o registro
6. DOCUMENTOS NECESSÁRIOS: Certidão de casamento ou certidão de nascimento do pai e da mãe,
Identidade dos pais, CPF do pai e da mãe, Declaração de nascido vivo fornecida pela maternidade.
31
Declaração de nascido vivo, fornecida pela maternidade onde
constam os dados da gestação, a digital da mãe e a impressão do pé da
criança.
Os pais adotivos podiam simplesmente chegar ao cartório (tal como quaisquer outros pais) e, com o apoio de duas testemunhas, registrar como filho biológico. Esse procedimento, conhecido como ‘adoção a brasileira’, era tecnicamente ilegal tendo como pena de dois a seis anos de reclusão, conforme artigo 242 do código penal. Mas, no próprio artigo, havia um Pará grafo sobre circunstância de atenuantes – quando o ‘crime’era praticado ‘por motivo de conhecimento de nobreza’ -, o que reflete a tolerância generalizada pela pratica.” (REVISTA ESTUDO FEMINISTA)
E reforça a ideia de que a adoção é um processo lento e burocrático,
e com a adoção à brasileira tudo se torna mais “fácil para as crianças”
principalmente para os pais, que diminuiria o tempo de espera para ambos,
mas deve-se lembrar de que adoção não é sinônimo de benesse e que há um
fila de pais, que aguardam ansiosamente por essas crianças, o que acaba os
desanimando e rendendo-se também à adoção à brasileira, fora o perfil de pais
que buscam normalmente essa adoção. Segundo Abreu (?), “[...] os brasileiros
32
estão longe de se deixar guiar por aquilo que o Direito consagrou quando o
assunto é adoção.”
Propaga-se assim um mercado negro em que há uma ligação direta
dos pais adotivos com os “atravessadores” dessas crianças, ou até um contato
direto com as famílias biológica/adotante, crescendo o risco de ameaças,
chantagens aos pais adotivos, já que a doção por esse método se trata de
crime previsto no artigo penal 242. “É crime contra o estado de Filiação, com
pena de reclusão de dois a seis anos, dar parto alheio como próprio; registrar
como seu filho de outrem” (Albuquerque, 2003). Pode-se adotar também a
expressão pouco conhecida “adoção simulada”, empregada pelo Supremo
Tribunal Federal ao se referir a casais que registram filho alheio, recém-
nascido, como próprio, com a intenção de dar-lhe um lar, de comum acordo
com a mãe e não com a intenção de tomar-lhe o filho. Embora tal fato constitua
“crime de falsidade ideológica na esfera criminal, mas absolvidos são os casais
pela inexistência de dolo” (MOREIRA, 2011).
Existe um perfil específico desses casais que recorrem a esse tipo
de adoção e das crianças a serem adotadas, sendo elas compostas de recém–
nascidos, meninas, branca, louras e de olhos claros, e não se verifica essa
forma espúria de colocação em lar alternativo na forma tardia, lembrando que,
via de regra, esses são a maioria, as características desses casais, que
adotam, são geralmente as mesmas, segundo (FELIPE, 2006):
classe média; faixa etária entre 40 e 50 anos; com problemas de infertilidade, residem em local que não pertencem à circunscrição do cartório de registro civil onde o registro foi lavrado impropriamente; expõem necessidades iminentes do jovem (inserção em plano de saúde, hospitalização, acesso a recursos médicos, etc).
No artigo Adoções no Brasil do autor Domingos Abreu, pode-se ver
um relato de uma mãe adotiva que deixa bem claro essa prática:
Eu sempre quis ter um filho. Eu não encontrei nenhuma relação que me deixasse segura para ter um filho. Um dia uma amiga disse: porque você não adota uma criança? Eu disse: ‘vou pensar nessa possibilidade. ’ Ela disse: ‘a minha avó conhece uma senhora, que de vez em quando, o pessoal já sabe que ela cuida de nenê, aí dá um para ela criar. ’ Liguei para essa senhora. Disse que eu queria uma menina. Quando foi sábado, minha empregada disse que ela tinha ligado. Aí, eu liguei pra lá, e ela disse que sexta à noite, uma menina de quatro quilos, não sei, nem me lembro mais quantos centímetros. Ela tava lá na casa dela. Aí eu peguei e fui ver. Aí foi facílimo. Eu abri um catálogo, procurei o nome dos cartórios. ‘Você faz registro de nascimento? O que é que precisa? ’ ‘Identidade, CPF, não precisa
33
mais de certidão de casamento e o documento da maternidade. ’ ‘E pra quem teve em casa? ’ ‘Você traz o documento da parteira. ’ ‘Mas a parteira não sabe ler nem escrever. ’ ‘Pois então você traz duas testemunhas. ’ Quem fez a certidão foi uma mocinha mesmo, dessas atendentes que estavam na bancada, como quem vai fazer um negócio qualquer. E eu acho que foi uma decisão acertada eu não ter adotado no juizado. Se eu tivesse adotado no Juizado, ia acabar perdendo tempo e dinheiro. Dessa forma não, simplifiquei muita coisa.
Pode-se ver, claramente, a facilidade e a praticidade, que chegam a
ser assustadoras nesse depoimento, como era, diga-se ainda, é “simples”
adotar uma criança. Durante a pesquisa, pôde-se observar a repetição do
termo negócio, mas indaga-se negócio não seria para mercadoria?
Após todas as leituras, filmes, recortes e artigos referentes a este
modelo de adoção, aguçou-se mais ainda o interesse de desvelar toda a
vivência dessas pessoas, como até os dias de hoje se deu seu modo de vida,
suas experiências pessoais, as expectativas, a ideia sobre família, sobre futuro,
se o fato de serem adotados realmente interferiu de algum modo em sua vida.
34
3 CAPÍTULO II - PERCURSO METODOLÓGICO
Esta pesquisa é de tipo qualitativa. Segundo Minayo:
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências social, com um nível de realidade que não se pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1993, p 21)
O que permitiu um maior aprofundamento sobre o processo de
adoção à Brasileira, buscando um maior entendimento sobre o tema em
questão. Também se compreende que a pesquisa qualitativa iria além do
porque em si das questões referentes à adoção, mas o compreender a fundo
as motivações pessoais, os sentimentos envolvidos mais profundamente de
cada relação, observando cada particularidade, cada significado na fala do
entrevistado.
A pesquisa teve inicialmente caráter exploratório, que antecedeu a
construção do projeto, buscando uma maior aproximação com o objeto de
estudo, “A fase exploratória de uma pesquisa é, sem dúvida, um de seus
momentos mais importantes” (MINAYO, 1993, p. 31), pois ao seu término, o
pesquisador terá definido seu objeto de pesquisa, construindo assim o marco
teórico, o método de coleta de dados, definindo também o grupo a ser
pesquisado e, por fim, estabelecendo a melhor forma para entrar em campo, já
que o tema em questão se trata de algo muito delicado.
Percebe-se que o fato de a pesquisadora ser filha adotiva, a
princípio, parecia ser um grande desafio e até um obstáculo. Contudo, a partir
das entrevistas sente-se que, na verdade, aquela característica era um trunfo
positivo para ela, pois os interlocutores se identificavam mais, havia uma
empatia entre eles e ela. Além disso, a entrevista se desenrolava quase como
uma conversa informal, distanciando-se daquelas entrevistas “limpas e secas”.
Inicialmente, como já referido, o intuito era o de realizar uma
pesquisa acerca da adoção interracial. Chamava a atenção o fato de muitos
artistas estarem adotando crianças negras. Com isso, começou-se a reunir
material que tratasse sobre o assunto, adoção interracial. Com isso,
primeiramente, foi-se pesquisar sobre adoção, como se dá esse processo,
35
foram lidos alguns artigos, e a pesquisadora passou a ter contato com
blogueiros como o Blog4 de Apoio à Adoção da Jussara Jatobá, a fanpage5
Adoção no facebook6com mais de 7.000 seguidores e páginas na internet que
falam sobre adoção. A partir daí, o interesse sobre o assunto foi só
aumentando, mas havia a preocupação de como conseguiria uma família, que
recebesse a pesquisadora para que ela pudesse acompanhar o dia a dia da
mesma e os impactos sofridos por essas crianças, caso houvesse. Isso causou
muita inquietação, pois não se queria mudar de tema, queria-se permanecer na
adoção, juntamente com a orientadora, a pesquisadora buscou uma melhor
solução, continuar no foco adoção, mas sendo esta à brasileira e buscando
tratar com os filhos adotivos adultos.
Abaixo, há depoimento da blogueira Jussara Jatobá:
Fui atrás, busquei, lutei e amei. Sempre tive mil dúvidas pairando na minha cabeça, entretanto, de uma coisa nunca tive dúvida: eu sempre quis ser mãe! Eu não fui mãe por fluxograma ou obrigação, fui mãe por que sempre quis isso pra mim. Hoje sou a mãe feliz de dois meninos, (23 e 20 anos) e uma menina, (22 anos). Para mim, resume-se assim: primeiro sinto que sou mãe... depois bem depois vem o restante dos meus sentimentos! Todo o meu carinho a todas mães e papais, e aos futuros, um forte abraço. (Jussara Jatobá/BlogdaJussara).
Para iniciar o projeto, reuniram-se matérias de revistas, filmes,
reportagens, que tratavam desse assunto. Marconi e Lakatos (2008): “[...]
serve-se de fontes de dados coletados por outras pessoas, podendo constituir-
se de material já elaborado ou não. Dessa forma, divide-se em pesquisa
documental (ou de fontes primárias) e pesquisa bibliográfica (ou de fontes
secundárias). (p. 43)
Ainda segundo Minayo: ”A fase exploratória se alicerça em muitos
esforços: Pesquisa bibliográfica (disciplinada, crítica, ampla); De articulação
criativa e humildade” (p. 33) Após essa fase, iniciou-se o levantamento
bibliográfico através dos autores que tratavam sobre os temas, tais como,
4Um blog ou blogue
: (contração do termo inglês web log, "diário da rede") é um site cuja estrutura
permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes são, em geral,
organizados de forma cronológica inversa, tendo como foco a temática proposta do blog, podendo ser
escritos por um número variável de pessoas, de acordo com a política do blog. 5Fan Page: Página do Facebook destinada a empresas ou marcas. Alguns autores defendem que as
fanpages sejam o equivalente a “comunidade de consumidores ou fãs” das marcas.
6 Disponível em< https://www.facebook.com/groups/apoioaadocao/> Acessado em: 05/12/2014
Disponível em: <http://blogdajussarajatoba.blogspot.com.br/ acessado em: 05/12/2014
36
Domingos Abreu, que trata sobre o tema adoção no Ceará e no Brasil.
Também ocorria que, uma colega que estagiava no fórum trouxe material que
tratava de adoção (recortes, folhetos, etc), começou-se a pesquisar em alguns
sites na internet. A princípio, não se utilizou sites científicos, acompanhava-se
os blogs, as fanpages, trabalhos já publicados sobre adoção em todos os seus
aspectos, que tratavam do assunto e, posteriormente, viram-se os artigos
(Mães Abandonantes e os Segredos da Adoção), fornecidos pela orientadora, e
assim o aprofundamento no assunto foi iniciado.
São descritos como de fonte primária aqueles considerados de
primeira mão, englobando o material coletado, servindo para futuras fontes de
pesquisa, podendo ser encontrados em arquivos públicos ou particulares, por
sua vez, fontes secundárias tratam-se daquela direcionada especificamente
para pesquisa a ser realizada, ou seja, a bibliografia já publicada sobre o
assunto em questão, esse material pode ser de qualquer fonte conhecida,
livros, revistas, artigos, filmes, novelas, etc.
Esse levantamento bibliográfico preliminar pode ser entendido como um estudo exploratório, posto que tem a finalidade de proporcionar a familiaridade do aluno com a área de estudo na qual está interessado, bem como sua delimitação. Essa familiaridade é essencial para que o problema seja formulado de maneira clara e precisa.” (GIL, 2009, P. 60).
A pesquisa bibliográfica, basicamente, foi baseada em autores de
referência que tratam sobre o assunto, não necessariamente direcionados ao
Serviço Social, mas livros que tratam de construção de trabalhos científicos,
monografias, dissertações de mestrado e doutorado, buscou-se na biblioteca
da faculdade até conseguir informações suficientes para a pesquisa, e estão
citadas ao longo do capítulo metodológico.
Ainda segundo Marconi e Lakatos (2008), “a pesquisa bibliográfica
possui oito fases distintas: escolha do tema, elaboração do plano de trabalho,
identificação, localização, compilação, fichamento, análise, interpretação e
redação” (p.44)
Para isso, a pesquisadora foi a campo, conheceu filhos adotivos que
passaram por este processo de adoção à brasileira, conhecendo a fundo suas
histórias de vida e os desafios enfrentados pelos mesmos, utilizando-se da
técnica de entrevista, com perguntas previamente elaboradas, num roteiro
37
semi-estruturado, voltadas direta e cuidadosamente para a situação em
questão como foi dito acima, por tratar-se de um assunto que para alguns,
embora dispostos a falar, não deixa de ser delicado e, muitas vezes, doloroso.
De acordo com o autor, o roteiro semi-estruturado: “o pesquisador
organiza um conjunto de questões (roteiro) sobre o tema que está sendo
estudado, mas permite e até incentiva que o entrevistado fale livremente sobre
assuntos que vão surgindo como desdobramentos do tema principal.” (Gil,
2009 p.72)
Na pesquisa, serão investigados alguns casos, já que a
pesquisadora tem o intuito de saber quais desafios enfrentados, se os mesmos
existirem, se os casos estudados têm semelhanças, em todo o seu contexto, a
razão pela qual essas “crianças”, agora adultos, foram adotadas e o que
passou, nesse processo de adaptação, a nova família. Segundo Bertucci
(2008):
entrevista consiste em uma indagação direta, realizada no mínimo entre duas pessoas, com o objetivo de conhecer a perspectiva do entrevistado sobre um ou diversos assuntos. De natureza subjetiva [...] As entrevistas podem ser estruturadas ou padronizadas, quando o pesquisador segue um rígido roteiro de questões previamente estabelecidas, geralmente aplicadas a um número maior de pessoas, visando possibilitar a comparação entre as respostas obtidas. O roteiro pode conter perguntas abertas ou fechadas, mas quando são questões fechadas, esse instrumento quase se confunde com o questionário. (p.63)
Para tal, foram realizadas entrevistas com filhos adotivos, hoje
adultos, ou seja, maiores de 18 anos, na cidade de Fortaleza - CE, para obter
informações sobre sua adoção e possíveis impactos causados aos mesmos,
oriundos dessa ação. A pesquisadora elaborou um roteiro prévio a ser seguido,
no decorrer das entrevistas, e assim se poderá entender a razão dessa
organização prévia como: “O motivo da padronização é obter, dos
entrevistados, respostas às mesmas perguntas, permitindo que todas sejam
comparadas com o mesmo conjunto de perguntas, e que as diferenças devem
refletir diferenças entre os respondentes e não diferenças nas perguntas”.
(MARCONI e LAKATOS 2003 P.197), Apud (Lodi, 1974, p.16)
O roteiro foi estruturado inicialmente buscando conhecer os dados
pessoais dos entrevistados, mas sem identificá-los, tais como: idade, gênero,
38
escolaridade, etc. Foi dividido em três blocos de perguntas: dados pessoais,
família e adoção. Ao todo foi composto por 31 perguntas.
As entrevistas foram realizadas em hora e local marcados pela
pesquisadora e seus entrevistados, algumas vezes, nas residências dos
mesmos em outras em local neutro a pedido dos entrevistados, realizadas
somente com os mesmos sem a presença de outros, alguns entrevistados
preferiram o ambiente onde dormem, outros na sala, mas sem a presença dos
demais familiares, foi utilizada também a biblioteca da faculdade FAC, com
autorização prévia, e, no horário, não havia ninguém, buscou-se deixá-los mais
à vontade possível, sempre que se iniciava uma entrevista, perguntava-se se
o(a) mesmo(a) gostaria de começar contando sua história ou se queria que se
seguisse o roteiro da entrevista. Alguns contaram suas vidas, outros seguiram
o questionário, o que, em alguns momentos, a pesquisadora se frustrou um
pouco, pois as respostas eram bem objetivas, por mais que a pesquisadora
tentasse colher mais informações não houve muita mudança nas respostas.
Dois dos entrevistados foram indicados pela orientadora, os demais
trabalham na mesma empresa que a pesquisadora, embora isso
particularmente não tenha sido fácil, por conhecê-los há alguns anos, a
pesquisadora teve muito receio de convidá-los, pois não sabia qual seria a
reação dos mesmos, se não seria um assunto doloroso em ser tocado,
principalmente, no caso de Cesar pela maneira como o mesmo foi “achado”,
mas para surpresa, nenhum se opôs, pelo contrário, o convite foi aceito de
pronto por todos.
3.1 Percalços da pesquisa
Como dito acima, o primeiro receio foi o de fazer o convite aos
entrevistados, porque não se havia certeza de como a pesquisadora seria
recebida pelos mesmos, por já conhecer a maioria, não sabia como seria tocar
nesse assunto, pois anteriormente já se havia conversado muito
superficialmente, daí do conhecimento de que esses colegas eram filhos
adotivos, pelo fato da pesquisadora também ser adotada e, antes da pesquisa,
tratava-se de um assunto muito delicado, ao pensar no tema adoção, a
pesquisadora já imaginava como seria esse começo. Se fosse a um abrigo,
39
não se teria muitas certezas, só se saberia que iria ser doloroso, mas com o
passar do tempo e das pesquisas surgiu uma fascinação pelo assunto.
O primeiro tema a ser estudado era adoção étnico-racial, mas para
trabalhar com crianças, a pesquisadora foi informada pela orientadora que teria
que passar por uma comissão de ética e esse fato dependeria de muito tempo
até a solicitação ser analisada, logo não se teria certeza se o estudo seria
aprovado ou não, com isso, continuou-se no tema adoção, mas deste ponto
seguiu a “adoção à brasileira”, e seria tratado com adultos, com os adotados,
neste ponto, ter-se-ia dois entrevistados sugeridos pela orientadora, então se
marcaram as entrevistas. A primeira se deu na casa da entrevistada 7Amora,
que durou cerca de 1 hora e 40 minutos. Foi uma experiência muito rica e o
privilégio de conhecer o primeiro alguém que estava na mesma situação da
pesquisadora ou que se pode dizer que viveu algo parecido, ou seja, adotada à
brasileira. A segunda foi marcada nas dependências da faculdade e os demais
eram os colegas que trabalhavam na mesma empresa que a pesquisadora.
Infelizmente, não foram possíveis mais entrevistados, pois não é tão fácil tocar
em um assunto tão delicado. A pesquisadora se deparou diversas vezes com a
frase “tenho um parente, mas ele (a) não toca nesse assunto”.
A princípio, entrevistar adultos não era o foco principal, mas sim
acompanhar o cotidiano de uma família com crianças (negras) adotadas
(legalmente), mas a pesquisadora passou a ver a outra ideia com outros olhos,
e a cada entrevista o assunto foi se tornando cada vez mais fascinante, a cada
relato, vidas estavam sendo abertas para a pesquisadora, revelações, e cada
vez, uma sensação diferente surgia.
Por exemplo, na entrevista de Amora, ela ficou livre para contar
todos os detalhes de sua vida, inclusive citando endereços, nomes, datas. Já
nas entrevistas de Cesar e Lucas 8, seguiu-se o roteiro, mas os mesmos foram
bem objetivos, mas causando surpresa à pesquisadora, pois no caso de Lucas
o mesmo foi recebido de braços abertos por toda sua família sem exceção.
Para a pesquisadora, era fato que todos teriam algo traumático ou marcante
negativamente, isso, porque na visão e na experiência próprias da
pesquisadora não era possível ninguém sair “ileso” à adoção, o que
7 NOME FICTÍCIO 8 NOMES FICTÍCIOS
40
particularmente trouxe grande satisfação, pois aquela pessoa não havia
passado por nada de ruim e que para si era bem tranquilo tocar no assunto. O
fato de não se estenderem muito em suas respostas pode ser explicado pelo
fato de, além de ser um tema espinhoso de conversar, homens culturalmente
não tem muita facilidade em falar dos próprios sentimentos, principalmente pelo
fato de a pesquisadora ser uma mulher, o que dificulta ainda mais esse
processo de “abertura”.
Já, Cesar também não havia passado na sua família por algum tipo
de situação ruim, mas, na época da entrevista, sua mãe estava adoentada, e
seu amor e sua preocupação eram visíveis.
Liz9 foi a única que durante sua entrevista se emocionou, o que,
para pesquisadora, manter os sentimentos sob controle foi particularmente um
desafio, logrando êxito e mantendo seus sentimentos e sua própria história de
vida. Vale ressaltar que, no início, a orientadora da pesquisa observou que a
fala era muito carregada de valores próprios, como o estigma de filha legítima
versus filha adotiva, que era por diversas vezes repetida, como se o fato de ser
adotiva não tivesse valor algum, isso se dava também pelo fato da ter, por toda
sua vida, reforçado a sua realidade “de não ser filha”, de ser menos que os
outros, de em dados momentos não ser ninguém.
Ali os sentimentos eram perfeitamente compreendidos e revividos
em cada fala, em cada expressão, para a pesquisadora também foi reviver um
pouco de sua história.
3.2 Perfil bibliográfico dos entrevistados
Os nomes citados são fictícios para proteger a identidade dos
mesmos, os nomes foram escolhidos aleatoriamente, mas foram escolhidos por
a pesquisadora acreditar que combinaria com cada entrevistado, como Lucas
por ser o mais novo, e ser o nome de um sobrinho da pesquisadora.
Amora, 29 anos, brasileira, natural de Fortaleza, Ceará, branca,
cursando nível superior, casada, sem filhos, mora com o companheiro e foi
9 NOME FICTÍCIO
41
entregue a uma tia-avó para ser criada, retida da mãe biológica por maus
tratos.
Cesar, 37 anos, brasileiro, natural do Ceará, afro-descendente,
ensino médio completo, sem filhos, solteiro, católico, auxiliar administrativo,
mora com os pais e um irmão e foi encontrado em uma caixa de sapatos com
dez dias de nascido, na porta da universidade por uma vizinha.
Lucia, 30 anos, brasileira, natural do Ceará, parda, nível superior
completo, católica, sem filhos, telefonista, mora com os pais, a família não sabe
que a mesma tem ciência que é filha adotiva.
Lucas, 22 anos, solteiro, traços indígenas, superior incompleto, sem
religião definida, sem filhos, nascido em Itapajé, no Ceará, mora com os pais e
foi encontrado na porta da casa dos pais de madrugada.
Liz, 40 anos, solteira, parda, nível superior incompleto, sem filhos,
natural de Russas/CE, sem religião definida, mora só, entregue pela mãe para
adoção mais de uma vez até permanecer na família que a adotou.
Monica, 40 anos, brasileira, natural do Ceará, branca, nível superior
completo, 02 filhas, solteira, mora com a mãe e os irmãos, colocada na porta
da casa de sua família adotiva, foi registrada como mais nova que o irmão
caçula, em uma família de 10 irmãos.
No capítulo seguinte, ver-se-á parte do depoimento dos mesmos, em
que foi captada a percepção dos mesmos à cerca dos pontos que se
consideram principais nas indagações da pesquisa, que são família de criação
e biológica na percepção dos sujeitos, bem como mãe de criação e adoção em
si.
42
4 CAPÍTULO III - ADOÇÃO À BRASILEIRA: experiências de vida de filhos
adotivos
Após concluir a fase de análise da forma como esses adotados
adaptaram-se às suas famílias, tomando de cada caso características próprias
ao longo de suas histórias, sofrendo influências a partir de cada criação, cada
maneira de ser, bem com os personagens envolvidos no processo, variadas
configurações familiares foram observadas como a questão social do
abandono, a vontade de serem pais que fizeram casais independentes de qual
maneira adotar essas crianças, passando inclusive “por cima” das leis vigentes.
Visto isso, objetivando compreender melhor esse processo de ser
filhos de pais não biológicos, bem como os obstáculos enfrentados a partir da
consolidação da realidade dessa situação de pais e filhos, dentre os quais
estão os preconceitos, o medo de serem descobertos (pais), apesar disso,
viver com o medo de ter seu filho(a) retirado(a) da família, dos filhos de não
serem considerados parte desta, procede-se as entrevistas com esses filhos,
sendo estes de diferentes etnias, classes sociais, escolaridade e idade.
É necessário ressaltar que as demais informações pessoais são
verdadeiras, a fim de ilustrar o perfil dos entrevistados, assim como seus
relatos, todos colhidos pessoalmente.
Antes da aplicação das perguntas propriamente ditas, relativas à
entrevista, todos se mostraram bastante abertos e receptivos ao tema, embora
se deva reconhecer que, a pesquisadora, a cada convite para entrevista, sentia
certo receio de trazer algo de ruim para esses entrevistados, tanto em forma de
lembranças como marcas físicas, mas para a surpresa da pesquisadora, os
entrevistados foram mais além das perguntas, a maioria narrou com riqueza de
detalhes o tema posto em discussão.
No tópico a seguir, estará contida parte das entrevistas na visão dos
filhos adotivos, ressaltando que todas as falas estão exatamente como os
entrevistados repassaram, fazendo assim um apanhado sobre suas
percepções sobre os tópicos questionados.
4.1 Laços de sangue e / ou laços de amor: a família na concepção dos filhos
adotados
43
Com o advento da família nuclear, cada um tinha sua função
específica: ao pai cabia a autoridade máxima e ser o provedor da casa; a mãe
seria responsável pela criação dos filhos e tinha como atributo também ser uma
exímia dona de casa, uma mãe zelosa e uma boa esposa. Nesse período,
tanto as crianças quanto as mulheres tinham cada um seu papel bem definido,
porém com o passar do tempo e o desenvolvimento da sociedade capitalista,
surge a necessidade de adaptar-se a estas mudanças, e hoje a sociedade se
depara com vários tipos de família, que têm em seu núcleo outra composição
que não a tradicional. Portanto, hoje se vê famílias que são comandadas por
mães, ou somente o pai, avós (famílias avoengas), tios e o crescimento das
famílias compostas por casais homoafetivos, que têm que conviver com o
preconceito e o julgamento, primeiro de tudo por ser um casal e por criarem
uma ou mais crianças. Atualmente, com a evolução das leis há uma maior
proteção à criança, à mulher e ao idoso, hoje há uma busca maior pela
reconstrução dos vínculos familiares, do amor, da atenção, da proteção dos
pais ou de quem está as criando, deve ser dada uma maior credibilidade ao
que é dito pelas crianças.
Áries mostrou como família moderna trouxe consigo um novo conjunto de atitudes em relação às crianças. Ao descrever as formas de intimidade entre pais e filhos – e principalmente a supervalorização do amor materno – na família emergente, ele indica que a análise da família deve se preocupar não apenas com as dimensões dessa instituição, mas também com as qualidades emocionais, das relações familiares, remetendo nesse sentido para uma psicologia da família.” (ARIES, p.52)
No que tange à compreensão de família por parte dos
interlocutores: “É tudo que ser humano tem que ter. É o alicerce, a sua
estrutura, é porto seguro. Mas tudo isso com o seu ponto de vista, é claro.”
(Cesar).
Vê-se na fala do Cesar, as palavras “alicerce, estrutura e porto
seguro” para se referir à família.
Assim, é, eu vou pegar mais por base pela questão do curso de psicologia, mas também, relação crítica, em relação a isso, eu acho, primeiramente assim, a questão mesmo da família nuclear, né, que surgiu, vamos dizer assim, há pouco tempo, que seria o pai, a mãe, é, o filho e a filha, mas assim, eu creio que a família é quando você se reúne com certas pessoas ou somente com uma pessoa e tem aquele, aquela questão do cuidado, da convivência diária e do cuidado. Então, aquela ajuda mútua, né, um ao outro, e assim, eu acho que o que defende realmente o que é família é aquela
44
convivência diária ou tem aquela família que é separado, o pai é separado e que se vêem uma vez por ano, de quinze em quinze dias, né, mas eu acho que pra mim, família, família mesmo é aquela convivência diária, onde você tem aquela questão da convivência, aquele lado positivo e o negativo. (Lucas)
No depoimento de Lucia, particularmente, sua compreensão sobre
família soa muito formal, acadêmica e engessada. “São laços de sangue e/ou
de amor mais presentes na vida do indivíduo”. (Lucia).
Já na entrevista de Liz, dá para observar que sua fala é carregada do
sentimento de mágoa, sentimentos, que até hoje estão vivos em sua memória,
e a mesma se emocionou muito durante a entrevista, chorou boa parte dela,
seu relato de vida é muito impactante, e foi muito significativo.
Família pra mim são os meus sobrinhos. Assim, pra mim, eu nunca tive, assim, eu não sei se é porque eu não passei por esse momento assim de família, eu sempre fui criada pra ser a empregada deles, entendeu? Então, pra mim, assim, família pra mim é só os meus sobrinhos e, assim, aquela união, o amor que você tem por eles, mas assim, da, de irmãos, de pai e mãe eu não consegui.( Liz)
Percebe-se uma explosão do conceito de família, tendo em vista que
são diversas as configurações familiares existentes e são poucos os conceitos
para dar conta da complexidade e tipos delas. Na fala acima, as próprias
noções de família são confrontadas, pois se tende a pensar família dentro de
um ambiente doméstico e físico que é a casa, e a partir de uma convivência
diária entre seus entes familiares. No entanto, a partir das definições dadas por
Liz para família, os conceitos não se encaixam. Família vai além, pois não cabe
nas nossas definições que, apesar de múltiplas, constituem-se rígidas.
No caso de Liz, como ela transitou por várias famílias, o que é
família para ela fica até confuso, posto que a própria família dela não a
compreendeu como parte integrante da família. Ela é tida apenas como uma
ajudante dos filhos dos irmãos, fato que a machuca. “A família para mim
quando bem estruturada ela é a base de tudo.” (Monica).
Para Lépore e Rossato (2009. P. 43), acolhimento familiar é:
[...] uma medida protetiva, aplicável única e exclusivamente pelo juiz da Vara da Infância e da Juventude, nos casos em que for necessária e provisória, a retirada da criança ou adolescente de sua família de origem (natural ou extensa), e entregue aos cuidados de uma família acolhedora que pode ter a supervisão pedagógica e direcional de uma entidade de atendimento que é responsável pela execução do programa.
45
Aparecem também, nas compreensões de família dos entrevistados,
as figuras de diversos entes, que extrapolam o contexto nuclear da família (pais
e mães). Então, tios, tias, avós, irmãos aparecem nesse cenário familiar
construído pelos interlocutores:
Sei assim, é, na minha família, eu também tenho um tio que ele é adotado por parte de mãe, então assim, ele sempre foi muito bem tratado e muito bem criado, ninguém nunca teve preconceito, pelo ao contrário, como ele é o mais novo, então assim, era todo mundo em cima dele, então aquela questão mesmo do cuidado, do irmão mais velho a, a, em relação a todos, das meninas, porque são três mulheres na família da minha avó, e quatro homens, com ele, né, então assim, aquele cuidado, aquele carinho, ainda hoje é assim, né, e comigo foi do mesmo jeito. É, o que a minha mãe me conta, né, eu cheguei, então foi aquela festa, aquela alegria, aquela ligação pro meu avô, a ligação pra minha avó, todos foram pro interior pra me conhecer e desde em diante, eles sempre me trataram como qualquer outro da família. (Lucas)
Uma figura também central aparece nos relatos dos interlocutores:
os irmãos. Sinaliza no sentido de que família, além de um laço afetivo, é
também um laço patrimonial, posto que a presença de uma criança “ilegítima”
significaria uma ameaça à herança que antes caberia apenas aos filhos
oriundos dos pais biológicos.
Pode-se ver no depoimento de Lucas que há famílias, que mesmo
não esperando por aquela criança, a recebem de braços abertos.
Para Ribeiro (2012)
O conceito de família não pode ser limitado por Lei, porque o legislador não opera no espaço do desejo ou afeto. Não é criação do estado ou da Igreja. Tampouco é uma invenção do Direito. A família pertence, ao contrário, à ordem do reconhecimento. São as pessoas no exercício de sua autonomia e capacidade de adaptação, que foram e manipularam o conceito de família.
Ou seja, o conceito de família é formulado de acordo com o que a
sociedade vai ditando, e com as mudanças estruturais que vão ocorrendo, o
que é aceito ou repudiado se dará de acordo com o interesse daqueles que
ditam as regras, mas deve-se questionar, quem ou o que determinou, se deve
ser de uma forma ou de outra, mas onde está escrito isso? Visto que família é
uma construção que deve possuir alicerces seguro, sólidos, visto
principalmente pelo lado da garantia de direitos e deveres. Seria, pelo
contrário, obrigação desta sociedade fornecer a proteção e o suporte a quem
precisa.
46
Durante um trabalho acadêmico, a pesquisadora teve a
oportunidade de visitar um abrigo, e, conheceu o espaço e teve acesso às
crianças, o abrigo tem como regra que as crianças mais velhas sejam
“apresentadas” primeiramente para que sejam conhecidas antes dos bebês,
que são o interesse maior dos pais e que têm uma maior chance, nem que por
pena, de serem adotadas. Sempre que esse pensamento ocorre, são feitos os
seguintes questionamentos: o que passa na cabeça dessas crianças? O que
elas diriam se pudessem ter um contato maior com esses aspirantes a pais?
4.2 “Mães verdadeiras” e “mães de criação”: as mães representadas pelos
filhos adotivos
Uma fala muito recorrente em todas as entrevistas realizadas para
fins desta pesquisa foi a referência às “mães verdadeiras” ou às “mães
legítimas”, que seriam as biológicas, ou seja, que geraram a criança, e as
“mães de criação”, que são aquelas que educaram, proveram financeiramente,
enfim, arcaram com a adoção.
Quanto à mãe biológica, a entrevistada Amora afirma:
Quando foi um dia, a empregada lá de casa disse que ali era minha mãe, devia ter uns sete ou oito anos, não me lembro, eu tinha aquela revolta daquela mulher que sempre chegava lá me abordando. (Amora)
Percebe-se um sentimento de revolta pela “mãe abandonante”. Tende-se culturalmente responsabilizar apenas a mulher que abandona o filho.
[...] minha mãe faleceu em 97, essa que me criou já tinha seus 60 e poucos anos então eu era de ir para as novenas com ela, da novena para o colégio, eu estudei em colégio de freira que, depois eu estudei no centro naquele patronato, então ela tinha aquela proteção, aquele cuidado de mãe, mas não tinha aquele amor, aquele negócio de abraçar, de beijar, aí eu fiz minha primeira eucaristia, quando eu vejo as fotos sinto aquela saudade, mas não sinto aquela de mãe.” (Amora sobre sua mãe adotiva)
A ligação entre mãe e filho tornou-se o ponto mais delicado das
entrevistas. Nos encontros que aconteceram com mães, que doaram seus
filhos, emergia um discurso que deixava transparecer que seus filhos estavam
sendo ‘mais bem criados’ pelas famílias adotantes. (Abreu, 2000).
47
O que se deve compreender dessa frase é que, as mães se sentem
menos culpadas, pois crer nisso, ameniza a dor, o peso dessas mães por
terem dado seus filhos, mesmo sendo por vontade própria ou desespero ou
que tenham sido obrigadas. É tanta situação que envolve essa entrega, a ação
de dar sua criança. Acredita-se que elas tenham essa idéia, tentando até
justificar o porquê, tentando não ser julgada e condenada por quem
desconhece sua história por essa atitude mal interpretada, quando se
aprofunda no assunto, vê-se como é complicada e complexa cada situação, e
que realmente acaba se tornando muito fácil associar a essa mãe o estigma de
irresponsável, de desnaturada, como se não bastasse todo o sofrimento
passado por essa mãe (nos casos em que a mãe não tinha intenção de dar seu
filho).
Quanto às mães de criação, geralmente, são retratadas sob outro
prisma, o da figura do amor, da acolhida, do carinho. Elas são a referência e as
biológicas, a anti-referência: “É tudo em minha vida. Devo tudo o que sou a
essa mulher.” (Cesar)
A mãe de Cesar sofre de uma grande doença nos pulmões, oriunda
do tabagismo. Sua dedicação e seu cuidado com ela sensibilizam quem o
conhece, isso reforça essa relação que foi construída ao longo dos anos,
independente da quantidade de filhos que a mesma já possuía e de sua
deficiência física, suas limitações. Vale ressaltar que Cesar é o único filho que
dedica atenção e cuidados necessários à sua mãe. Esse exemplo remete
contradizer o senso comum de que filhos adotivos são sinônimos de problemas
futuros, porque carregam um DNA desconhecido.
Olha, pai e mãe é aquele que se preocupa, aqueles que se preocupam, né? Então, o exemplo que eu tenho lá em casa é que meu pai sempre se preocupa comigo, sempre se preocupou em relação aos estudos, a questão das minhas amizades, pra onde eu vou, minha mãe do mesmo jeito, e eu acho interessante a questão que, por exemplo, quando eu quero alguma coisa ou material, ou pra sair pra algum canto ou algo desejado, eu, é, peço os dois, porque o consentimento de um não, não dá certo, não, não dá certo, não rola. Então, acho que o pai e a mãe é aquele que se preocupa, aquele que cuida, né, porque se for pela questão mesmo da adoção, eu tenho um pai, eu tive, não sei, né, não sei se ainda estão vivos, o pai e a mãe biológicos e, mas, não, eu não acredito mesmo que seja um pai, né, porque eu acho que pai mesmo é aquele que preocupa, aquele que cuida, aquele que tá presente, eu acho que é mais ou menos assim.” Lucas
48
“Figura feminina mais importante na vida e na família do indivíduo.” Lucia
“Para mim, se resume em um tudo, desde ao peito ao primeiro olhar, mãe um amor incondicional.” (Monica)
Aqui se vê a primeira ideia do que seria, em teoria, a relação entre
mãe e filho, o que, nos depoimentos, ficou bem claro que nem todos passaram
por essa experiência, infelizmente, muitos levaram para si toda essa carga, que
se pode dizer negativa, alguns usarão seus pais biológicos como exemplos
para exatamente agirem de forma contrária com seus filhos ou simplesmente
não os terão, como, no depoimento de Liz, que afirma categoricamente que:
Ela, assim, ela quis demais de mim e eu não pude dar. Pra mim, assim, eu não consigo vê-la como amiga, eu não consigo vê-la como mãe, eu não consigo, assim, sei lá, é uma coisa estranha, eu não tenho, assim, como é que se diz [...]
A relação deve ser construída, conquistada, recíproca, não é por que
deu luz a uma criança, que se pode agir da maneira que acha ser de direito.
Abandona e reaparece, anos depois, e simplesmente “acha que posso como
num passe de mágica” apagar toda dor, todo sofrimento. Nesse caso, para a
pesquisadora, essa mulher abriu mão de todo e qualquer direito, analisando o
depoimento de Liz, até para ser mãe deve-se respeitar e se fazer respeitar.
Afirma ainda:
Eu me traumatizei tanto que nunca tive vontade de ter filhos, nunca na minha vida, nunca passou pela minha cabeça ter filhos, nunca vou querer engravidar e nunca vou querer ter filhos, mas eu tenho vontade de adotar, eu só não quero é ter mesmo. (Liz)
Isso nada mais prova as marcas psicológicas que o abandono pode
causar. De todas as entrevistas, essa foi a mais marcante, mais impactante,
pois se pode ver bem toda a dor e o sofrimento que esse tipo de situação pode
causar. Ao observar as reações da entrevistada, ficam nítidos a dor e o
sofrimento vividos pela mesma, o que faz a pesquisadora entender que muitas
ações da entrevistada que, a princípio, são tidas como manias bobas ou
exageros como o fato de morar só, não ter relacionamento, inclusive o fato de
ter anulado o casamento no mesmo dia em que o enlace ocorreu, podem ser
justificadas pelos seus traumas.
49
Para o adotado é muito complicado essa denominação de “mãe
verdadeira”. O que é mãe verdadeira? Para a pesquisadora, mãe verdadeira é
aquela que, independente de seu filho ser biológico ou adotado, cuida, protege
e ama incondicionalmente seu filho.
Nessa ênfase que é dada à questão da mãe biológica, fica ausente a
figura do pai biológico. A mulher, mais uma vez aqui, é, muitas vezes,
unicamente, responsabilizada pelo abandono dessas crianças. Diante disso:
onde fica a figura e a responsabilidade do homem?
4.3 Adoção
De acordo com Liberati apud SOUSA (2001):
A adoção não a admite ter “pena” nem “dó” ou “compaixão”, a adoção como entendemos nos dias de hoje, não se presta para resolver problemas de casais em conflito, de esterilidade, de transferência, de afetividade pelo falecimento de um filho, de solidão e etc. Ela é muito mais que isso; é a entrega de amor e dedicação a uma criança que, por algum motivo, ficou privada de sua família. Na adoção, o que interessa é a criança e suas necessidades: a adoção deve ser vivida privilegiando o interesse da criança (2003, p.20).
O autor sintetiza exatamente o que adoção deve ser: ela deve
representar uma nova vida, um recomeço para essas crianças, que estas não
devem ser punidas pelo “erro” ou egoísmo, tanto de quem gera, quanto de
quem adota, pois se trata de vidas, de seres humanos, providos de ideais, de
projetos, e que o fato de ser filho(a) não dá o direito a ninguém de destratar,
que deve ser entendido como direito desse cidadão de ter sua segurança e
seus futuro garantidos, que os pais devem por obrigação, já que assumiram
esse compromisso, de garantir tudo que possa proporcionar o melhor a essa
criança, lazer, saúde, educação não por obrigação porque está na lei, mas por
amor de pais, mães que são por essas crianças. Antes de adotar, deve-se
pensar nesses compromissos, que devem ser levados para o resto da vida, o
mesmo pensamento que se deve ter na hora de ter um filho biológico.
Quanto às compreensões de adoção pelos interlocutores:
É um ato de amor que se tem por uma criança que não tem família, que foi retirada ou abandonada pela mãe. Mas nem todos os “filhos adotados” aceitam essa situação. Faz dos seus “verdadeiros pais”, reféns da sua tola revolta e destruição. (Cesar)
50
Sou agradecido a Deus e à minha família que tenho hoje. Eu acho que se eu não fosse adotado por eles, não sei o que seria de mim hoje ou em que situação eu estaria. (Cesar)
Eu não sei se existe mais de dois tipos de adoção, mas existe aquela adoção que, não sei se, se chama de adoção que é aquela que aconteceu comigo, né? Eu fui deixado na casa dos meus pais, mas eu acho que o nome adoção mesmo, a gente pode se referir a questão mesmo, ou dum casal, ou dum pai, ou duma mãe, ou independente do casal homossexual ou não, escolher uma criança, ou, uma pessoa, às vezes um adolescente pra, pra, pra ter ali como cuidado com ele, eu acho... É eu acho que adoção seria mais ou menos isso, essa questão mesmo da legalidade, né, do papel de, de registrar a criança, o adolescente ou o filho adulto como seu parente, né, sob seus cuidados. Acho que adoção se encaixa melhor nisso. (Lucas)
10
Cuidado. Seja com pessoas ou com bichos, adoção é um ato de amor, de querer doar o seu amor a alguém que esteja precisando. (Lucia)
Diversas culturas vêm ao logo do tempo modificando sua postura
diante do tema adoção, que está diretamente relacionada ao contexto sócio-
político, econômico e religioso, no entanto, estereótipos e pré-conceitos, que
ainda existem, que acabam interferindo e prejudicando a relação humana.
Não, eu nunca sofri preconceito. [...] eles sempre perguntavam se eu realmente era filho deles e porque eu era moreno e eles não, porque eles são brancos e baixinhos... e eu sou muito diferente deles... hoje as pessoas perguntam também, NE?... Curiosas, e eu falo normalmente que eu sou adotado [...]” (Lucas)
Também se desconstruiu a hipótese de que o preconceito perpassa
todas as histórias de vida dos interlocutores.
4.4. A descoberta da adoção
Também em todos os relatos colhidos na fala dos entrevistados,
identifica-se a descoberta da adoção e dos sentimentos envolvidos a partir
dessa descoberta: “fiquei sabendo mais ou menos aos oito anos de idade [...]
mas minha mãe sempre dizia que eu era filho dela, mas filho do coração.”
(Lucas). “Ser filha adotiva para mim é maravilhoso, não sofri nenhuma
diferença com os filhos legítimos acho que até tive muito mais do que todos.
Sou amada e paparicada é muito bom.” (Monica).
10 Foi utilizado nome fictício para preservar a identidade do entrevistado.
51
É impressionante a diferença entre os depoimentos de Monica e de
Liz. Enquanto Monica diz que ser filha adotiva é muito bom, que é muito
amada, e percebe-se como a criação influencia muito na percepção de família.
Nos depoimentos, é possível observar dois mundos distintos, o de ser bem
cuidada, protegida, amada e, em contrapartida, Liz carrega consigo todo o
peso de uma vida de rejeição e maus tratos.
Durante a entrevista, Liz se emocionou bastante, chorou durante boa
parte do tempo e fica nítido o sentimento que carrega as marcas deixadas, que
ainda estão vivas, isso reforça o quanto se deve preservar a integridade física,
mental e psicológica, como são construídas as relações. Quando adultos, há
um reflexo de tudo que foi vivenciado no passado, nas futuras relações com o
companheiro e com os filhos. Exatamente isso que se deve repensar, pois as
crianças não são mercadorias, não podem simplesmente serem entregues,
retomadas, devolvidas e abandonadas.
Adotar é muito mais que um ato de criar e educar ou de um
procedimento jurídico burocrático. Adotar significa também criar laços, vínculos,
que durarão por toda a vida, construídos ao longo da convivência. Trata-se de
uma questão de responsabilidade, consciência e comprometimento com o
próximo.
O que chama a atenção é que, para muitos, a descoberta da adoção
não tenha sido uma experiência traumática: “[...] nenhum momento isso foi
impactante negativamente pra mim, eu nunca sofri nada por conta disso [...]”.
(Lucas).
Essas falas fazem com que se desconstruam as hipóteses iniciais de
pesquisa, de que a adoção, a descoberta dela é algo traumático.
Além disso, nem todos os interlocutores nutriam a curiosidade de
conhecer os pais biológicos. Para Monica, por exemplo, querer buscar seu
histórico de vida era quebrar uma confiança estabelecida com os pais
adotantes.
Para Lucas:
Olha, eu tenho curiosidade, assim, pra saber com que eu pareço fisicamente... eu queria saber se eu tenho sangue indígena, mas por curiosidade... mesmo tempo eu tenho medo, porque assim... a gente vai, entra em contato e, eu posso me magoar, criar expectativas e aquelas outras pessoas não me darem a mínima, ou pelo contrário. Vai que realmente elas se interessam por mim e realmente querem
52
entrar na minha vida e eu não sei se estou preparado para isso, se isso é legal, tem mais pessoas para dar atenção, sabe? Lucas
Liz conhecia seus pais biológicos, mas não queria mais contato com
os mesmos.
Alguns preferem ficar sem conhecer: “[...] em nenhum momento tive
revolta ou rejeição com minha família, mas eu queria muito conhecer minha
família biológica... mas deixa como está, é melhor assim, sou bem resolvido
quanto a isso”. (Cesar)
A denominação ser “filho de criação” remete a uma cultura em que
crianças eram criadas em outras famílias com o objetivo de apenas servir de
mão-de-obra para a família adotante. Alguns relatos sinalizam isso: “Cale a sua
boca, porque você aqui na minha casa não tem nada, nem o lençol que você
dorme é seu!” (Liz)
4.5 Das cegonhas11: os contextos de adoção
Tenta-se também entender os contextos de adoção dos
interlocutores, ou seja, como eles surgiram na vida das famílias adotantes.
Foi uma hora da manhã, meus pais moravam no interior de Itapajé, e eu fui colocado na porta da casa deles, eles tavam dormindo, então escutaram a campainha e um choro de criança, então quando eles abriram a porta, eu tava numa cestinha de recém-nascido, eu ainda tava com o cordão umbilical e um pouco sujo de sangue. Então, eles me trouxeram pra dentro, me levaram pra dentro de casa [...] (Lucas)
Vizinhos me entregaram à minha família adotiva e eles então me registraram. (Lucia)
Era uma senhora que morava na minha rua, e ela tinha, assim, não que ela me maltratasse, mas ela me deixava sozinha pra ir pras festas, e também não tinha dinheiro pra leite pra mingau. Aí teve uma vez que os vizinhos derrubaram a porta dela pra poder me tirar de lá, de noite, se acabando de chorar. Aí a minha irmã, metida do jeito que é, disse que da próxima vez ela ia tomar a menina, né? Aí primeiro ela deu pra um casal, um casal de jovens que não podia ter filhos, aí eles ainda ficaram dois meses e Ela [...] Aí nesse meio tempo ela tinha me dado pra esse casal, aí eu passei dois meses com eles, aí depois ela foi lá, aí assim, ela foi pra São Paulo, aí não deu certo lá, aí ela voltou de novo, aí ela tomou deles dois. Aí, aí depois, aí aconteceu de novo, dessa vez foi o Conselho Tutelar, né, que esteve lá, porque foi chamado na época, por conta disso, assim, não era maus tratos, me deixava com fome, trancada, abandono... Aí, e eles, aí levaram, aí tanto é que quando me pegaram, eu ainda era paciente do IPREDE, porque ainda não tinha um cartão nas mãos. Era o olho
11 Cegonhas são aves. Elas representam culturalmente a chegada de um filho.
53
e o couro. Aí, meu pai tem até a foto, tinha a foto, aquelas de binóculozinho de quando eu cheguei lá. E, aí depois a Deusa e pediu pra me cuidar, aí ela pegou e disse que ia pensar, aí deu a Deusa pra poder ir pra São Paulo, aí meu pai disse que não ia deixar minha irmã criar porque minha irmã namorava um homem casado e ela já estava grávida, e o meu pai disse que quem ia criar era ele, aí pegou e tomou dela. Aí, ela com pouco tempo ela foi lá tomar de novo, do mesmo que jeito que fez com o primeiro casal, aí, ela morava aqui na Aerolândia, aí meu pai disse que não dava, que eu não era mercadoria, aí meu pai bateu o pé no chão e disse que fosse na justiça, e essa justiça ficou assim por sete anos, aí quando eu tinha sete anos de idade, teve uma audiência, meu pai foi, e foi determinado que eu ia continuar com o meu pai, que ela não podia me ver. (Liz sobre como chegou a sua família adotiva)
Liz foi dada quando tinha 8 (oito) meses pela mãe a um casal,
depois tomada de volta pela mãe biológica, entregue à família que a adotou,
sua mãe tentou tomar a criança novamente e ela não foi entregue à mãe
biológica pelo pai adotivo “aí meu pai disse que não dava que eu não era
mercadoria”. Antes disso, passou pelo Iprede12 pois chegou a um alto grau de
desnutrição, foi criada por essa família composta por quinze filhos, tendo sido
criada para ser empregada dos mesmos. Segundo ela, sofria muitas
humilhações por parte dos irmãos e da sua madrasta (que casou com seu pai
após falecimento da mãe) “Ah, ela não é filha do meu pai, num sei o quê, ela é
enjeitada”. Quando sua mãe (adotiva) faleceu, Liz tinha um ano e meio, o pai
dela, no começo, era uma referência de pai, amoroso, carinhoso, porém após
completar seus 11 anos passou a olhá-la com outros olhos (como mulher).
Segundo ela, chegou a ter de fugir do pai, “pulava o muro”, porque, para ele,
como ela não era filha biológica não era pecado, foi crescendo e passou a
morar com uma das irmãs, mesmo trabalhando, não tinha direito a ter seu
dinheiro, saiu de casa “... Aí quando eu fui crescendo, que eu saí de casa, né,
pra ir morar só. Quando eu saí de casa, só sai com a roupa do corpo, né?”, não
teve sequer direito a estudar, só veio fazer isso quando se tornou adulta,
durante sua entrevista, Liz emocionou-se bastante, lembrando de tudo que
passou. Hoje mora só, tem seu emprego, cursa Serviço Social, mas quem a
conhece sabe que sua infância foi muito sofrida e isso acarreta uma série de
12O IPREDE fundado em 1986 como Instituto de Prevenção da Desnutrição e da Excepcionalidade,
começou sua trajetória histórica em consonância com a necessidade de prevenir e tratar crianças com
desnutrição infantil até a atualidade de investimento na primeira infância, passando a denominar-se
Instituto da Primeira Infância.
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fatores que a tornam uma pessoa muito sofrida, foi muito doloroso ouvir seu
depoimento.
Mesmo passando por tudo isso, Liz tem um carinho muito grande
pelo pai adotivo, pode-se ver no depoimento dela, que surge um novo conceito
de família, quando questionada para ela o que é família, ela responde “Família
pra mim são os meus sobrinhos.”.
Nossas noções do que é ser pai ficam confrontadas com essa
realidade de Liz, já que ela compreende que o pai, que a abusou sexualmente,
é um pai. Há essa forte identificação afetiva com o pai, apesar do contexto de
abuso sexual. Talvez a falta de um paradigma e de uma referência de pai e
mãe, faça com que ela enxergue como algo difuso.
[...] me colocaram na porta, dentro de uma caixa de sapato” Monica
Fui encontrado em uma caixa de sapatos com dez dias de nascido, na porta da universidade há 37 anos, por uma vizinha. Ela me levou pra sua casa, mas não pretendia ficar comigo. A minha irmã, que era criança na época, me viu e pediu a minha mãe para me adotar.(Cesar)
Findadas as rodas dos expostos, as quais já foram referidas
anteriormente, surge nova cena como crianças encontradas em caixas de
sapatos na porta dos pais, como se percebe nos relatos acima.
55
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A monografia consistiu num processo de auto-reflexividade intenso
para a pesquisadora. Ao passo que se pesquisava sobre adoção e também se
ouvia os relatos dos interlocutores, o processo de adoção e as experiências
pelas quais a pesquisadora passou iam se descortinando para ela.
A construção da monografia foi uma grande descoberta, tanto no
desvelamento das histórias que eram relatadas, que, por sua vez, levavam ao
desvendamento da sua própria história de vida, quanto das leituras, que se
fazia desconstruir muitas idéias incorporadas sobre adoção.
Sendo um tema atual, a adoção ainda passa por diversos entraves
burocráticos e isso abre precedentes para a adoção realizada de forma ilegal.
Viu-se através da pesquisa, então, que os filhos adotivos chegaram às suas
famílias de maneiras inusitadas.
Os dados encontrados no campo da pesquisa conduziram a
desconstruir algumas hipóteses formuladas inicialmente, tais como: acreditar
que o preconceito de ser filho adotivo permeava a vida de todos os filhos
adotivos e que todos eles teriam o interesse de buscar saber sobre os pais
biológicos. Também a hipótese inicial de que o processo de descoberta da
adoção fosse conflituoso e de difícil aceitação por parte dos filhos, pois na
verdade, para muitos, era algo comum.
A pesquisa possibilitou a constatação, nas diversas situações, que
há uma peculiaridade nessas adoções, que essas crianças, hoje adultos, que
sofreram algum tipo de preconceito ou discriminação, são oriundas de um
período histórico (décadas de 70,80 e 90), que não havia tanto cuidado, tanta
proteção com a integridade física e psicológica das mesmas. Através disso e
da facilidade, que se tinha para tomar para si o filho ou a filha de outrem,
observa-se que as intenções não eram tão nobres assim.
Vale ressaltar que essa realidade não se apresenta em todos os
casos e dialogando com os autores, vê-se que muito desse modo de agir era
reforçado pela cultura paternalista, em que o pai era autoridade máxima na
casa e responsável pelo sustento da família e a mãe, por sua vez, pela
educação dentre elas a social dos filhos, seguindo o que regia a sociedade de
56
cada época, ressaltando que ela é mutável, dinâmica, por seus costumes e
valores.
O que se pode concluir através dos dados coletados é que, dos
entrevistados, a maior parte não sofreu nem sofre por ser filho adotivo, pelo
contrário, não há cicatrizes em suas histórias de vida, mas os sujeitos que
tiveram essas marcas tão profundas e indeléveis, como na história de Liz, que
carrega profundas marcas, as fazem ter verdadeira aversão por sua mãe
biológica e certas reservas a sua família.
Embora as leis tenham mudado e evoluído para uma maior proteção
da criança e do adolescente, ainda existem falhas que proporcionam que as
adoções ilegais ainda ocorram, o que acarreta o aumento do número de
crianças em abrigos, principalmente as com idade acima de três anos, e
comprova também que esse fato ocorre pela morosidade da justiça brasileira
que tem por obrigação defender o direito incondicional dessas crianças e
desses pais, que almejam tanto terem seus filhos.
Essas crianças bem como suas mães (biológicas) sofrem ainda hoje,
no mundo atual, o estigma, que carregam cada um dentro de sua realidade,
bem menos do que era visto há anos atrás, mas ainda o possuem.
Fez compreender também a intenção desses pais ao adotarem
dessa forma, “à brasileira”, nem sempre tão nobres, mas, em muitos casos,
não se pode julgar esses pais como criminosos, reforçando que, esse fato
ocorre porque em nossa sociedade não dá a devida importância ao futuro de
nossas crianças, preocupa-se tanto com o mundo que se deixa para os filhos,
mas quais são os filhos que se está deixando para esse mundo? Adultos, que
irão reproduzir esse perfil, para isso, é preciso um maior acompanhamento
profissional, no caso do Serviço Social, que tem por fundamento a garantia
intransigente dos direitos, devendo acompanhar, de forma ética, a criança,
buscando a proteção, a segurança e se os direitos das crianças estão
realmente sendo assegurados. É necessário dar maior atenção aos casos, às
denúncias e observar com mais vigor, para que não ocorram mais casos como
do menino Bernardo, que chegou a pedir ajuda ao Ministério Público, passando
inclusive por uma Assistente Social e, ao seu pedido não foi dada a devida
importância, culminado, infelizmente, na morte do menino.
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Aos casais ou pessoas que pensam em adotar, que realmente
assumam o compromisso de ser pai e mãe, que cuidem, protejam, e garantam
tudo que a criança ou o adolescente precisa para viver com todos os seus
direitos garantidos, não só por lei.
Mas o intuito da pesquisa era realmente compreender como os filhos
adotivos levaram suas vidas adiante e, que, apesar de todos os possíveis
momentos ruins e do estigma do abandono por sua genitora, encontraram em
seu caminho famílias que cumprem seu papel.
Mais do que respostas às perguntas de partida das quais se propôs
responder, quis-se suscitar outras, que pudessem vir a serem perguntas de
outras pesquisas.
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Curitiba: Juruá, 1999.
61
APÊNDICES
APÊNDICE A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido -TCLE
O Sr. está sendo convidado a participar da pesquisa, que tem o objetivo
de realizar pesquisa por meio de entrevista, para monografia “ADOÇÃO À
BRASILEIRA” para conclusão do curso de bacharelado em Serviço Social.
Dessa forma, pedimos a sua colaboração nesta pesquisa, respondendo
a uma entrevista semi-estruturada sobre o tema acima proposto que poderá ser
gravado se o Sr. concordar. Garantimos que a pesquisa não trará nenhuma
forma de prejuízo, dano ou transtorno no decorrer das entrevistas. Todas as
informações obtidas neste estudo serão mantidas em sigilo e sua identidade
não será revelada. Vale ressaltar, que sua participação é voluntária e o Sr.
poderá a qualquer momento deixar de participar desta, sem qualquer prejuízo
ou dano. Comprometemo-nos a utilizar os dados coletados somente para
pesquisa e os resultados poderão ser veiculados através de artigos científicos,
revistas especializadas ou encontros científicos e congressos, sempre
resguardando sua identificação.
Todos os participantes poderão receber quaisquer esclarecimentos
acerca da pesquisa e, ressaltando novamente, terão liberdade para não
participarem quando assim não acharem mais conveniente. Contatos com a
graduanda Angélica Maria de Araújo Monte e com a orientadora Francis
Emannuelle Alves Vasconcelos
Este termo está elaborado em duas vias sendo uma para o sujeito
participante da pesquisa e outro para o arquivo do pesquisador.
Eu,_______________________________________________________
__ tendo sido esclarecido a respeito da pesquisa, aceito participar da mesma.
Fortaleza, ______ de _____________ de ________.
_____________________________
_____________________________
Assinatura do participante Assinatura do pesquisador
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APÊNDICE B – ROTEIRO DE ENTREVISTAS
DADOS PESSOAIS
Idade
Você estudou?
Escolaridade
Tem religião? Se sim, qual?
Cor
Gênero
Filhos
Estado civil
Trabalha? Se sim, qual a sua função? Renda?
Configuração familiar (quem mora com você?)
FAMÍLIA
O que é família na sua concepção?
O que é pai?
O que é mãe?
ADOÇÃO
Como e quando você soube?
Como se deu sua adoção?
Qual foi sua reação ao saber da adoção?
Em sua família, como se deu sua adoção?