Candido Ou o Otimismo - Voltaire

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no maislutando por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a

    um novo nvel."

  • CNDIDO, OU O OTIMISMOfranois-marie arouet (1694-1778), que assumiu posteriormente o nome de voltaire, foi filho de notrio eestudou em uma escola jesuta de Paris. O pai queria que ele se formasse em direito, mas o jovem j tinha decididoseguir uma carreira literria. Ao ser apresentado ao meio intelectual parisiense, no demorou a se notabilizar comoautor de stiras e odes reputao no muito invejvel, pois a suspeita de ser o autor de uma stira sobre oregente o levou a cumprir pena na Bastilha. Sua libertao, em 1718, coincidiu com a representao em Paris de suaprimeira tragdia, dipo, com grande sucesso, seguida da publicao do poema que escrevera na priso, o piconacionalista La Henriade (1723), que, aos olhos de seus contemporneos, colocava-o ao lado de Homero e Virglio.Aps uma segunda temporada na Bastilha, Voltaire passa dois anos e meio (1726-28) na Inglaterra, retornando Frana entusiasmado com a cena intelectual e com o sistema de governo mais tolerante que ali encontrara. Esseentusiasmo e sua denncia do sistema francs de governo so apresentados em suas Letters concerning the Englishnation (1733), que chegaram a ser publicadas em francs no ano seguinte como Lettres philosophiques, com suavenda sendo no entanto totalmente proibida na Frana.

    Os quinze anos seguintes Voltaire passou no stio de sua amiga Madame du Chtelet, onde escreveu suas maispopulares tragdias, o Zadig, uma espirituosa novela oriental, e comeou a trabalhar em Le sicle de Louis XIV.Com a morte de Madame du Chatlet, em 1749, Voltaire se viu forado a passar uma longa temporada na corte deFrederico, o Grande, com quem vinha se correspondendo j havia muitos anos. Ali, pde completar sua maisimportante obra histrica, os Essai sur les moeurs et lesprit des nations [Ensaio sobre os costumes e o esprito dasnaes] e comear o seu Dictionnaire philosophique. Os desentendimentos com Frederico levaram Voltaire a deixara Prssia em 1753. Mas ele no estava seguro na Frana. Aps vagar por dois anos, estabelece-se prximo aGenebra, conseguindo por fim um lar em Ferney. Foi em seus ltimos e mais brilhantes vinte anos de sua vida queele escreveu Cndido, seus dilogos e novos contos, alm de publicar seu muito lido Dicionrio filosfico (1764) emedio de bolso, ao mesmo tempo em que conduzia seus incessantes e vigorosos ataques contra o quedenominava a infmia todas as manifestaes de tirania e perseguio empreendidas por uma privilegiadaortodoxia na Igreja e no Estado. Morre aos 84 anos, aps uma visita triunfal a Paris, de onde estivera exilado portanto tempo.mrio laranjeira professor aposentado da Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas da Universidade deSo Paulo e tradutor de obras de filosofia, literatura e ensastica francesa. Em 1997, ganhou o prmio Jabuti pelatraduo de Poetas de Frana hoje. Atuou como professor visitante em Toulouse, Rennes e Bordeaux, na Frana, evive em So Paulo.michael wood nasceu em Lincoln, em 1936, onde se formou em gramtica. Estudou francs e alemo no St. JohnsCollege, em Cambridge, e deu aulas de ingls e literatura comparada na Columbia University, em Nova York, e naExeter University. Atualmente, professor de ingls na cadeira Straut, em Princeton. Entre os seus livros, figuram:Stendhal, America in the movies, The magicians doubts, Franz Kafka e The road to Delphi. membro da RoyalSociety of Literature e da American Academy of Arts and Sciences.theo cuffe estudou em Dublin e na Sorbonne. De Saint-Exupry, traduziu The little prince e Letter to a hostage, ede Voltaire, Micromgas and other short fictions, todos para a Penguin.

  • SumrioIntroduo Michael WoodCNDIDO, OU O OTIMISMONotasCronologia

  • Introduomichael wood

    Avisamos aos novos leitores que esta introduo deixa explcitos os detalhes doenredo.

    o melhor dos mundos possveisA palavra otimismo, usada pela primeira vez em forma impressa em 1737,representa uma posio filosfica, a afirmao de que, apesar dos erros e dasaparncias, a criao divina to boa quanto pode ser, e o subttulo de Voltairevisa justamente a essa doutrina. Mas o jovem heri do livro um otimistatambm no sentido moderno. Cndido olha para o lado ensolarado quandopode, e nenhum momento de desnimo capaz de impedir que sua alegria inataretorne. Voltaire no lhe facilita a vida. Cndido habita um mundoestranhamente repleto de desastre, guerra e terremoto, estupro reiterado e apersistente explorao do fraco e do inocente pelo rbido e forte. Ele sofre muitoe, atencioso e bom, nota as catstrofes alheias. Desespera-se ao ver em Surinameum escravo que perdeu um brao num acidente num engenho de acar e umaperna como castigo por ter tentado fugir. O escravo muito franco a essepreo que vs comeis acar na Europa (captulo 19) e apresenta uma dascondenaes mais impressionantes e inventivas do livro das prticas desumanas.Os missionrios holandeses ensinaram aos escravos africanos convertidos quetodos ns, negros e brancos, somos filhos de Ado e, portanto, membros damesma famlia. Ora, haveis de concordar, diz o escravo, que no se podetratar os parentes de maneira mais horrvel. nesse ponto o nico lugar nolivro, parte o subttulo que se emprega a palavra otimismo. Aabominao da escravido, exclama Cndido, levaria at mesmo seu mestrePangloss a renunciar doutrina do otimismo. Cacambo, o criado de Cndido,no conhece a palavra. O que otimismo?, pergunta. Cndido responde que a fria de sustentar que tudo est bem quando se est mal. Olha para onegro e chora.

    A famosa ridicularizao voltairiana da doutrina segundo a qual tudo esttimo no melhor dos mundos possveis ataca mais sutilmente (pelo menos) trsoutras hipteses mais insidiosas: a de que podemos transcender totalmente onosso egosmo ou provincianismo; a de que vivel um saldo final do equilbriodo bem e do mal no mundo; a de que as filosofias humanas tm relevncia nocomportamento humano. O otimismo est comprometido com todos essesempreendimentos, e, embora o nosso sentido moderno seja anacrnico e aamarga definio de Cndido no passe de um reflexo de seu desespero, essessignificados diferentes no deixam de se relacionar, como diria o escravomutilado; e o que nos interessa a sua relao mtua e com o significado maisantigo e oficial da palavra. De fato, quase no vemos otimismo em Cndido, ano ser na forma de uma vasta e mordaz farsa dele, e preciso esforo deimaginao para enxergar que a doutrina no , ou no tem de ser, puramaluquice provinciana.

  • Theodore Besterman define o otimismo como a teoria de que tudo quantoexiste e acontece para o bem.1 Para o bem j enviesa ligeiramente oargumento. Um significado de tudo est bem simplesmente que tudo comodeve ser, que as coisas no podiam ser diferentes, e, nesse sentido, Voltaire notem nenhuma discrepncia significativa com o otimismo. Simplesmente oconsidera tautolgico e redundante. Pensando nos otimistas ingleses como HenrySt. John Bolingbroke, o conde de Shaftesbury e Alexander Pope, ele escreveu noDicionrio filosfico (1764): seu Tudo est bem significa to somente que tudo controlado por leis imutveis. Quem no sabe disso?.2 O melhor dos mundospossveis reduz-se ao nico mundo possvel, nunca houve outra opo. O livre-arbtrio no se subordina ao destino, mas decerto acaba conspirando com ele.

    Mas essa no a afirmao mais interessante do otimismo. A ideia de que tudoest bem implica uma perspectiva bem para quem? e pode oferecer umcorretivo til para as limitaes de viso. O mundo no necessariamente umlugar ruim porque as coisas para mim vo mal. O prprio Voltaire aceitou essaopinio no comeo de sua carreira. O que ruim em relao a voc bom noarranjo geral,3 escreveu em Elementos da filosofia de Newton (1738). E,naturalmente, as ideias crists de um Deus benevolente e de uma quedaafortunada so otimistas neste sentido: em ltima instncia, tudo para o bemmesmo que exista unicamente um vale de labor e lgrimas por onde prosseguir.Podemos pensar nos versos de Alexander Pope no Ensaio sobre o homem (1734):

    All Nature is but art, unknown to theeAll chance, direction, which thou canst not see;All discord, harmony not understood;All partial evil, universal good*4Quando Cndido cita Pangloss dizendo que os males do mundo so sombras

    numa bela pintura, tambm cita o filsofo alemo Gottfried Wilhelm Leibniz, umimportante defensor do otimismo do sculo xviii, que asseverava que as sombrasrealam as cores.5 Esse no um argumento desprezvel, ainda que tenhamosmais afinidade com a proposio de Martinho, o severo companheiro deCndido, que acha que tais sombras so manchas horrveis (captulo 22). Oque afastou Voltaire dessa forma mais complexa de otimismo no foi a recusa desua lgica nem a convico de sua falsidade, mas a percepo de sua crueldadepotencial e a certeza de que a afirmao, mesmo que verdadeira, no podia sertestada e, pior, era impossvel articul-la sem incorrer numa espcie decumplicidade com o inaceitvel, na adeso excessivamente entusiasta ideia deque certos horrores, alm de inevitveis, so necessrios. Eu respeito o meuDeus, escreveu Voltaire no Poema sobre o desastre de Lisboa, mas amo ouniverso. E escreveu em outra parte, pensando em Pope: Um esquisito bemgeral! composto de pedra, gota, todos os crimes, todo sofrimento, morte edanao.6 Em Voltaires politics [A poltica de Voltaire], Peter Gay chega a dizerque a objeo de Voltaire ao qualquer coisa que est certa no era ao seu

  • otimismo complacente, e sim ao seu pessimismo semicomplacente,semidesesperado []. O ataque de Voltaire ao otimismo era um ataque aopessimismo em nome de uma filosofia da atividade.7 Em outras palavras,Voltaire considerava o pessimismo simplesmente fcil demais. A palavrapessimismo, convm acrescentar, s passou a ser usada em 1794 e parece ter sidocunhada por Coleridge, posto que o arcabouo mental j existisse claramentedesde muito antes, e Voltaire sabia que no gostava dele.

    A primeira arremetida do livro contra o otimismo atinge a doutrina em suaforma mais crassa e cmoda: uma combinao de ignorncia com complacnciaque afirma que tudo vai bem em toda parte porque eu estou timo no cantinhode mundo que por acaso conheo. Aqui, boa parte da graa depende daspardias de Voltaire da argumentao desleixada, das conexes deliberadamentefrouxas entre as clusulas e de um senso extravagantemente restritivo do que omundo. O baro de Thunder-ten-tronckh um dos senhores mais poderosos daWestflia, pois o seu castelo tinha uma porta e janelas (captulo 1). Asofisticao relativa da residncia do baro para Voltaire, a Westflia omodelo consumado do atraso o resultado, no a causa, de sua grandeza,mas a linguagem de Voltaire insinua maliciosamente o contrrio. E,naturalmente, uma vez que a Westflia o mundo, esse h de ser o melhor castelodo mundo. Cndido tambm se pauta por tal estilo lamentvel de infernciaquando pensa que Pangloss o maior filsofo da provncia e,consequentemente, de toda a terra. Voltaire tomou uma frase grandiosa de Popee a reduziu trivialidade. Tudo que est certo passa a ser em Cndido gostodas coisas tal como so porque elas me convm e porque eu no conheo nadamelhor.

    Essa posio no s egosta como dependente de condies que escapam aocontrole, e se torna rapidamente insustentvel com a expulso de Cndido docastelo, com a runa moral e fsica de Pangloss e com a invaso do castelo pelosblgaros. Irredutvel, Pangloss desenvolve argumentos mais complicados, aindaque profundamente confusos, quando comea suas viagens com Cndido: seColombo no tivesse trazido a sfilis do Novo Mundo, no teramos chocolate noVelho; se as doenas particulares constituem o bem geral, quanto mais doenasparticulares houver, tanto mais tudo estar bem. Nas afirmaes absurdas dePangloss, temos a primeira aluso quilo que s no fim do livro fica totalmenteclaro: Pangloss faz questo do seu sistema no por acreditar nele, mas porque oseu sistema. No lhe interessa abjurar, diz, e nessa declarao Voltaire nos ofereceuma astuciosa definio de filosofia: nunca ter de dizer que voc est errado.Continuo sendo da minha primeira opinio, diz Pangloss nas ltimas pginas(captulo 28), pois afinal sou filsofo. E Voltaire, num momentoinusitadamente informativo, conta-nos que Pangloss mantm suas opinies,embora no acredite nelas (captulo 30).

    Cndido tambm filsofo no sentido de que gosta de conversar sobre ideias

  • filosficas, mas acima de tudo jovem, e sua juventude lhe permite atitudes nomuito distantes do provincianismo inicial de sua Westflia natal. Ele no complacente e no pode permanecer ignorante, mas acha difcil acreditar que omundo seja um lugar ruim quando sua vida vai bem. Voltaire insisteimplacavelmente nesse ponto, to rigoroso com seu simptico heri quanto comqualquer outro personagem, mas tambm interessado na energia do egosmo,desde que combinado com a curiosidade e a compaixo. Ficamos sabendo que avantagem de Cndido sobre Martinho ter esperana, que ele continuavaesperando ver a srta. Cunegunda, e Martinho no tinha nada a esperar(captulo 20). No entanto, assim como esperana, Cndido possui ouro ediamantes e tambm tem bom apetite. Na furtiva frase seguinte, a srta.Cunegunda fica espremida entre o dinheiro e a comida como apenas uma partedaquilo que constitui o melhor dos mundos possveis: quando pensava no quelhe restava nos bolsos e quando falava de Cunegunda, principalmente no fim darefeio, inclinava-se ento para o sistema de Pangloss. E quando Cndido dizmais uma vez, Pangloss tinha razo: tudo est bem (captulo 27), significaapenas que ele acredita que o almejado fim de sua viagem est prximo. Voltaireraciocina de modo ligeiramente diferente quando faz Cndido afirmar, recusandoum prato delicioso, que est muito infeliz para comer, mas todas as piadas tm omesmo tema: a felicidade e a infelicidade so contingentes, locais e materiais; ootimismo filosfico e a melancolia convencional so posturas. Decerto hegosmo no reiterado recurso de Cndido ao sistema de Pangloss; mas h umasade moral fundamental em sua incapacidade de ficar muito tempo infeliz,mesmo quando sua inteligncia diz que deve ficar.

    o pior dos mundos possveisFalar no melhor dos mundos possveis, como fazem repetidamente Pangloss eCndido, no s esposar o otimismo que venho descrevendo como compararmundos explicitamente e dizer implicitamente que um mundo existe. Se aqui omelhor dos mundos possveis, diz Cndido depois do auto de f em que foiaoitado e Pangloss, enforcado, o que sero os outros ento? (captulo 6). provvel que esteja pensando na Terra inteira, mas tambm possvel pensarmais modestamente, como vimos. Se a Westflia um mundo, o so igualmenteoutras regies e pases. Se a Europa um mundo, tambm o so as Amricas, e oprprio Cndido o diz: Ns vamos para outro universo. nesse, por certo, quetudo est bem (captulo 10). Como veremos, est certo e errado quanto a isso.

    Mas em Cndido as pessoas tambm so mundos, cada qual confinada numcrculo de necessidade e experincia individual, e cada qual convencidaprecisamente do oposto proposio de Pangloss, ou seja, de que no h mundopior que o seu. Esse um dos temas prediletos de Voltaire, e ele o elabora comgrande entusiasmo. Cndido fica sabendo por intermdio de Pangloss do destinoterrvel de Cunegunda: foi estuprada e estripada por soldados blgaros. Resultaque houve certo exagero no que se refere estripao, j que ela sobreviveu, emais adiante Voltaire dedica um captulo inteiro sua histria, a qual ela conta a

  • Cndido. Tornou-se amante do oficial superior dos estupradores, depois foivendida a um mercador judeu que divide seus favores, ou quase favores, com umgro-inquisidor portugus. Cunegunda, Cndido e a velha que a acompanhaacabam de jantar quando o mercador judeu chega para exercer seu direito depropriedade. Enfurecido ao ver Cndido, ele saca um punhal, mas acabadescobrindo que Cndido ainda mais veloz com a espada e, embora tivessehbitos muito gentis, [] estende o israelita teso e morto no cho, aos ps dabela Cunegunda (captulo 9). Minutos depois, chega o inquisidor portugus, eCndido, pensando rapidamente no lugar onde se encontra, entende que omelhor mat-lo tambm. A situao d ensejo a uma das cenas maisespetaculares de Voltaire, uma tima sequncia de rplicas absurdas. Comofizestes isso, pergunta Cunegunda, vs que sois to gentil, matar em doisminutos um judeu e um prelado? (captulo 9). difcil imaginar uma boaresposta a essa pergunta, mas Cndido a encontra: Minha bela moa, quandose est apaixonado, com cimes e fustigado pela Inquisio, a gente no sereconhece mais. O gracejo sobre a natureza amvel de Cndido no umsarcasmo, e sim uma sugesto de que ningum gentil o tempo todo, e tambmaponta mais genericamente para a possibilidade de a natureza de qualquer um serradicalmente modificada pelas circunstncias. Voltaire retoma essa ideia e essetom quando Cndido, em outro arroubo de autodefesa, mata (ou pensa quematou) o irmo de Cunegunda. Dessa vez, ele prprio que proclamaingenuamente sua surpresa: Sou o melhor homem do mundo, e eis a j trshomens que eu mato; e, entre esses trs, h dois padres (captulo 15). Cndidoainda um homem manso? Quantos assassinatos so necessrios para alterar talatributo?

    O mundo pessoal de Cunegunda mostra-se bastante ruim, mas ela no est livrede concorrentes, e faz algum tempo que sua companheira, a velha, vem dando aentender que tambm tem uma histria a contar. Quando Cunegunda frisa quetem sido to infeliz (captulo 10) em seu mundo, a velha diz que j sofreuinfortnios muito piores. Cunegunda quase ri e, resvalando comicamente navanglria do sofrimento que tanto marca o livro, se pe a multiplicar tudo pordois, em parte em prol da argumentao, e em parte, sem dvida, porque senteque sofreu tudo duas vezes.

    Ah!, disse ela, minha boa senhora, a menos que a senhora tenha sidoviolada por dois blgaros, que tenha recebido duas facadas na barriga, quetenham demolido dois dos seus castelos, que se tenham degolado diante dosseus olhos dois pais e duas mes, e que tenha visto dois de seus amadoschicoteados num auto de f, no vejo como a senhora possa me superar.(Captulo 10)O nmero de blgaros parece correto, o resto contabilidade competitiva.Agora, naturalmente, a velha alega que sua histria e suas considerveis

    agruras ofuscam as de Cunegunda. Ela italiana, filha de um papa com uma

  • princesa, e os cenrios de suas provaes abrangem boa parte do mundo entoconhecido: Tnis, Trpoli, Alexandria, Esmirna, Constantinopla, Moscou, Riga,Rostock, Wismar, Leipzig, Kassel, Utrecht, Leiden, Haia, Roterd. A velhatambm gosta de se vangloriar, tanto de sua beleza e fortuna de outrora quantode seus posteriores tormentos, e tambm se entrega a comparaes disparatadas,enfatizando que a peste pior que o terremoto, como se houvesse o que dizer afavor de um ou de outro. Mas ela dispe de uma forma prpria de sabedoria Eu tenho experincia, conheo o mundo, diz (captulo 12) e prope umaaposta que sabe que no pode perder. Desafia Cunegunda a pedir aospassageiros que contem sua histria, e se houver um s que no tenhaamaldioado a vida com frequncia, que no tenha dito muitas vezes a si mesmoque era o mais infeliz dos homens, atirai-me ao mar de cabea. Insinua, pois,que todo mundo, numa frase usada por Voltaire no conto Zadig, se considera omodelo do infortnio. Posteriormente, Cndido recorda a proposio da velha eorganiza uma competio. Dispe-se a levar consigo na viagem de volta Europa o homem que for o mais desgostoso de seu estado e o mais infeliz daprovncia. No fim, sem poder decidir qual o candidato mais desgraado,escolhe um que por certo desditado, porm mais divertido que a maioria, omaniqueu Martinho. A ideia de supremacia na dor ou na aflio por si sadversa para todos, com exceo dos misantropos mais rigorosos, e a velhaquem tem a viso mais persuasiva daquilo que se pode chamar de teoria do piordos mundos pessoais possveis. Conta que quis se matar cem vezes, mas aindaamava a vida. Prossegue chamando esse amor de fraqueza ridcula (captulo12), mas simplesmente de uma forma de herosmo radical, um amor que no sno precisa de razes como persiste apesar das hostes de contrarrazes. Detecta-seaqui um eco da incapacidade de Cndido de manter o desespero, por plausveisque sejam seus motivos. A velha conta que viu um nmero prodigioso depessoas que execravam a sua existncia; mas vi apenas doze que tinham postovoluntariamente fim prpria misria: trs negros, quatro ingleses, quatrogenebreses e um professor alemo chamado Robeck. A lista concebida comcuidado. Os negros so presumivelmente escravos; o ingls, to melanclicoquanto o pinta o mito francs; os genebreses, por certo, demasiado srios ecalvinistas para viver; e Robeck, um personagem histrico que alegava que amara vida era ridculo e, para provar sua tese, afogou-se deliberadamente em 1739.

    Quanto ao Novo Mundo, Cndido est redondamente enganado em acreditarque seja o lugar em que tudo est bem, pois a crueldade, o conflito e a ambiono se restringem ao Velho Mundo, e Cacambo assinala que este hemisfrio novale mais do que o outro (captulo 17). Mas Cndido tem razo em outrosentido, porque acaba encontrando Eldorado, um mundo em que tudo realmentevai bem, uma verso da utopia esboada no ensaio sobre os canibais de Michelde Montaigne8 e repetida e debochada na Tempestade de Shakespeare. EmEldorado no h tribunais, prises nem advogados, e ningum se interessa por

  • ouro ou prata. Os nativos acreditam em Deus, mas no rezam, no sentido derogar auxlio, graa ou cura, porque j tm tudo de que necessitam. Sua forma deorao mera adorao e agradecimento.

    No entanto, a felicidade e a inocncia dos cidados de Eldorado permanecemem isolamento total, garantido por um edito com o qual todos consentiram e quea todos probe de deixar o reino. E, naturalmente, nenhum estrangeiro pode neleentrar, a no ser pelo tipo de acidente que levou Cndido e Cacambo para l.Voltaire parece dizer que possvel encontrar e fruir o melhor dos mundos, mass ao preo da separao total do mundo turbulento e cambiante em que oshumanos tm o hbito de viver e morrer, e, nesse contexto, a observao feita porCndido e Cacambo, ambos igualmente perplexos e desconcertados comEldorado mesmo sem nele ter visto muita coisa, excepcionalmente reveladora.Eles dizem que aquele provavelmente um pas onde tudo vai bem; pois absolutamente necessrio que haja algum desta espcie (captulo 17).Absolutamente necessrio? O lugar no precisa existir na realidade material e,pelo que sabemos, nunca existiu. Mas, ao que parece, deve existir como umaexpresso de necessidade e desejo, pois ns no podemos viver sem o sonho deperfeio que ele encarna. justamente por isso que Voltaire o inclui no livro.Eldorado a iluso ficcional que representa a esperana histrica.

    Ora, nem tanto. Eldorado perfeito, mas a prpria perfeio um problema natica de Voltaire, como tambm sugerem suas aluses recorrentes ao Jardim doden. Por certo, podemos desejar que as pessoas sejam menos infelizes do quetantas delas o so, menos atormentadas pela doena, a pobreza e a violnciafuriosa de seus semelhantes, mas devemos esperar uma felicidade ideal paratodos? Esse objetivo pode ser no s inatingvel como indesejvel, porque suarealizao no deixaria espao para a inquietude humana e para a intensidadedo nosso interesse pelas opinies alheias. Nada mais desagradvel, escrevesecamente Voltaire num ensaio intitulado Elogio histrico da razo, que serenforcado na obscuridade9 ou seja, sem ateno pblica ao nosso martrio.E, acerca do tema da felicidade, oferece uma das afirmaes mais lacnicas ecomplexas em Cndido. Depois de um ms em Eldorado, Cndido decide que olugar no serve para ele porque Cunegunda no est l, e tambm porque ele noquer ser igual a todos os outros. Se levar para a Europa algumas cargas de ouro ejoias, ser mais rico que todos os reis somados. Cacambo concorda: bom estarem movimento, ns todos gostamos de voltar para casa e contar a histria dasnossas viagens. O comentrio de Voltaire : os dois felizes resolveram no maiss-lo. Por que algum decidiria abandonar a felicidade? Porque no erafelicidade? Ou porque era? O paradoxo com certeza contm um elemento decrtica, uma medida de loucura: essas duas pessoas (genuinamente) felizes nosabem viver com a felicidade. Porm, outra leitura talvez mais forte insistir noelogio ambguo: os dois fazem bem em partir, a felicidade no tudo, e uma vidaplena deve incluir o risco e a aventura e at um pouco de mesquinhez.

  • E se Cacambo est disposto a abandonar Eldorado e a felicidade com seu amo,ele tambm um modelo de bondade e lealdade e, por esse motivo, uma figurasignificativa no texto. A leitura de Cndido nos transforma em especialistas emdesconfiana, sintonizados com a obliquidade da linguagem do livro. A pessoahonesta algum prestes a fazer algo desonesto; bom ou digno significaingnuo ou tolo. E assim, quando Cndido d a Cacambo a metade da suafortuna e lhe pede que cuide de Cunegunda, com Voltaire a acrescentar que eraum homem muito bom esse Cacambo (captulo 19), ns sabemos o que esperar.E quando Cndido diz que conta com Cacambo como consigo prprio, queTudo est bem, tudo vai bem, tudo vai o melhor que possvel (captulo 23),simplesmente nos perguntamos que forma ter sua terrvel decepo quandochegar. Martinho refora essa ideia ao chamar Cndido de simplrio poresperar que um criado mestio se conserve leal tendo uma to providencialoportunidade de desertar. Dez pginas mais adiante, ficamos sabendo que aindano h sinal de Cacambo. Mas eis que ele aparece. Esteve o tempo todo a serviode Cndido, encontrou Cunegunda. Resulta que o fiel Cacambo justamente oque diz o epteto: fiel. A regra interpretativa desse texto profundamente irnicoparece ser que a leitura desconfiada de palavras, pessoas e fatos sempre correta salvo quando no o . Por certo no podemos contar com a bondade humana,diz Voltaire; mas tampouco podemos contar absolutamente com a traiohumana.

    o jardim do satiristaItalo Calvino chama a ateno para o ritmo e a velocidade da escrita deVoltaire em Cndido,10 e Jean Sareil, no estudo crtico do livro que continuasendo o mais sutil e abrangente, faz um punhado de perguntas-chave.11 SeVoltaire nos est apresentando uma viso de mundo to desencantada, por queh tanta alegria na escrita? Por que o relato de tantas catstrofes tem um finalfeliz? Por que o conto filosfico no contm nenhuma discusso filosfica real?Por que Cunegunda a nica personagem que envelhece e fica feia?

    O prprio Sareil d uma srie de respostas interessantes. Cndido uma stira,no uma confisso. Voltaire no nos d sua opinio sobre o universo; examinaproblemas persistentes cujas solues, inclusive a proposta por ele, no osatisfazem. Deseja representar um mundo que no absurdo nem intil, e simmisterioso, eternamente inexplicvel; um mundo simultaneamente habitvel eruim.12 E, muito explicitamente, as lies de Voltaire dizem tanto que a vidano vale muito a pena quanto que esse no muito tem um valor inestimvel.So respostas excelentes. A alegria de Voltaire uma questo de estilo, no defilosofia; o final feliz irnico e, ao mesmo tempo, um convite a no exagerar onosso senso de sofrimento. Sua filosofia no requer discusso filosfica; alis,requer a sua ausncia. No falta confirmao dessas afirmaes em outras obrasde Voltaire. O heri de Zadig recorre filosofia quando tem um problema, mass obtm conhecimento, no alvio. No Dicionrio filosfico, finge indagar porque discutimos tanto a ideia de bem supremo ou extremo. Voc tambm podia

  • perguntar o que o azul supremo ou o ensopado supremo ou o modo de andarsupremo []. No h prazeres extremos nem sofrimentos extremos que durem avida inteira: o bem supremo e o mal supremo so quimeras.13 E uma vez mais(acerca do tema destino): S se pode ter certa quantidade de dentes, cabelos eideias. Chega o tempo em que se perdem necessariamente os dentes, os cabelos eas ideias.14 Mas possvel dizer mais, e no s a respeito da perda da beleza deCunegunda.

    Talvez seja til desacelerar Voltaire um pouco, examinar os detalhes de suavelocidade. Muitos crticos comentam seu uso estratgico da palavrinha mas.Em Zadig, ela representa uma discusso inacabada. Um anjo explica ao heri queas coisas so o que so e, se fossem diferentes, este seria um mundo diferente.Querendo discutir e filosofar, Zadig diz: Mas. O anjo no o ouve, j est acaminho de outra esfera. Em Cndido, porm, o uso do mas geralmente indicano o desejo de continuar conversando, e sim a existncia de um fato materialque exige ateno imediata, algo que suplanta a conversa. Acaso Cndidoacredita que o papa seja o Anticristo? Cndido responde que nunca ouviu dizertal coisa, mas quer ele o seja, quer no, est me faltando po (captulo 3).Tendo reencontrado Pangloss infestado de sfilis, Cndido escuta com pacinciauma longa discusso sobre o melhor dos mundos e muitas argumentaes; entodiz: Eis a algo admirvel [] mas preciso cur-lo (captulo 4). Colhido peloterremoto de Lisboa, Pangloss procura um vnculo cientfico entre esse tremor eum ocorrido anteriormente no Peru. Existe certamente uma corrente de enxofrepor baixo da terra, desde Lima at Lisboa (captulo 5). Estirado na rua ecoberto de escombros, acreditando-se beira da morte, Cndido diz: Nada mais provvel [] mas, por Deus, um pouco de leo e de vinho. Pangloss diz:Como, provvel?, e Cndido perde os sentidos. Em tom mais brando, aindaque preservando o mesmo padro corretivo, Voltaire faz Cndido dizer que nadah de garantido no mundo (o francs diz literalmente que nada h de slido nomundo), a no ser a virtude e a felicidade de rever a srta. Cunegunda. Cacamboretruca: Concordo [] mas ainda nos restam dois carneiros com mais tesourosdo que jamais ter o rei da Espanha (captulo 19). A palavra mas usada deoutros modos em Cndido, momentos de briga ou discusso convencionais,porm a tendncia geral bvia e nos prepara para o mas mais famoso detodos. Correta, mas trivialmente, Pangloss sintetiza todas as suas aventuras comoum encadeamento de causa e efeito. Cndido responde nas ltimas palavras dolivro: Isso est bem falado [] mas preciso cultivar o nosso jardim (captulo30). O jardim o que existe por baixo e alm das nossas palavras; e at a filosofia bem-vinda no jardim, contanto que no queira ter consequncias nem estorvaro trabalho, o cultivo ativo da terra.

    Cultivar o jardim no simplesmente cuidar da prpria vida, uma verso maissbia e sofisticada do egosmo que o livro atacou no incio. decidir noprocurar respostas a perguntas que no as tm; recordar as metas concretas

  • que espreitam cada grande abstrao. Todavia, difcil no sentir que h certainsipidez nessa filosofia que recusa a filosofia, uma traio aos melhores e maisinflamados momentos do prprio Voltaire, e Roland Barthes, sem inteno deelogiar, chamou-o de o ltimo escritor feliz, ou talvez, dada a fluidez dosignificado da palavra francesa, o ltimo escritor felizardo. Voltaire erafelizardo, escreveu Barthes, por ter a histria do seu lado, um mundo deatrocidades e viles visveis, idiotas, abrindo caminho para a grande onda deprogresso que culminou nas revolues francesa e americana. E felizardo por tersido capaz de ignorar outro tipo de histria, j que ele nada podia saber de Hegelou Marx ou da evoluo. Para Voltaire, no h histria no sentido moderno dapalavra, apenas cronologias. Ele escreve obras histricas expressamente paradizer que no acredita na histria.15 A histria, para Barthes, no simplesmente o que acontece aos seres humanos no tempo, mas um projeto ps-iluminista particular de dar sentido ao progresso e aos seus descontentes. Oterceiro aspecto da sorte ou felicidade de Voltaire, diz Barthes, foi a acolhida queseus contemporneos deram a sua recusa de todos os sistemas. E no s oscontemporneos de Voltaire como tambm os de Barthes. Voltaire dissociavaincessantemente inteligncia de intelectualidade, afirmando que o mundo umaordem desde que no tentemos excessivamente orden-lo, que ele s um sistemase ns renunciarmos a sistematiz-lo: essa conduta mental teve uma grandecarreira subsequente: hoje a chamamos de anti-intelectualismo.16

    Hoje para Barthes era 1964, e podemos sentir que a ideia de histria comomudana e evoluo recebeu alguns golpes de l para c. Mas me parece que amudana da complacncia intelectual conserva sua fora somente medida quetentamos captar o pensamento de Voltaire, ou, mais precisamente, medida quetentamos separar o seu pensamento do movimento da sua prosa. Ao procurarentender Voltaire, esquecemos o que l-lo. No nvel das palavras, aquilo queBarthes denomina sorte transforma-se no que Calvino chama de velocidade, e aalegria da escrita, longe de minimizar os horrores descritos ou fornecer umargumento para menosprez-los, os reala. Eles esto alm da mera condenaosentimental e alm da filosofia tambm, em outro sentido: a filosofia no simpotente como insossa, uma forma de crueldade. Aqui, por exemplo, Cndidoque tremia como um filsofo ao fugir da verso voltairiana da Guerra dos SeteAnos:

    Passou por cima de montes de mortos e de moribundos, e chegou primeiro auma aldeia vizinha; ela estava em cinzas: era uma aldeia abar que os blgaroshaviam queimado, segundo as leis do direito pblico. Aqui, ancios crivados detiros olhavam morrer as suas mulheres degoladas, que mantinham os filhos nasmamas ensanguentadas; ali, moas estripadas depois de terem saciado asnecessidades naturais de alguns heris exalavam o ltimo suspiro; outras, meioqueimadas, gritavam que terminassem de mat-las. Crebros estavamespalhados pela terra, ao lado de braos e pernas amputados. (Captulo 3)

  • Um pouco mais tarde, numa aldeia pertencente ao outro lado na guerra,Cndido continua pisando membros palpitantes. Mortos e moribundos, queparece um clich, acaba sendo o anncio exato de uma perversidade extrema: isso que significa ainda no ter sido morto, s baleado, esfaqueado, queimado eesquartejado. A raiva se dirige queles que levam as pessoas guerra ( o queouvimos especialmente no sarcasmo acerca dos heris, que no passa de umsinnimo de estupradores), mas tambm convm lembrar que Cndido,exaustivamente descrito em todo o livro como uma boa pessoa, no para paraajudar ningum, ou nem se mostra chocado.

    Mais adiante, Cndido, uma vez mais chamado de o bom Cndido,encontra-se com Paquette, a camareira do castelo westfaliano, a que passou sfilisa Pangloss. Continua bonita e agora se prostitui em Veneza e, tendo passadopelas mos de um monge, de um mdico e de um juiz, parece ser uma espcie deespecialista nas profisses:

    Ah, monsieur, se o senhor pudesse imaginar o que ser obrigada a acariciarcom o mesmo entusiasmo um velho mercador, um advogado, um monge, umgondoleiro e um abade; ficar exposta a todos os insultos, a todas as afrontas;ser muitas vezes reduzida a vestir uma angua emprestada para ir e deixar umhomem repugnante levant-la; ser roubada por um daquilo que ganhei deoutro; ser extorquida pelos oficiais de justia, e no esperar seno uma velhicehorrenda, um asilo e um monturo; o senhor concluiria que eu sou uma dascriaturas mais infelizes do mundo. (Captulo 24)Esta outra histria do pior dos mundos possveis, claro, mas difcil discutir

    com ela, e Voltaire acrescenta um volteio cruel e sutil. Cndido expressa suasurpresa com o fato de Paquette se mostrar to feliz, e ela explica que parecerfeliz faz parte da sua profisso e no o menor dos seus horrores: Ah, meusenhor [] a est mais uma das misrias do ofcio. Ontem fui roubada eespancada por um oficial, e tenho de parecer hoje de bom humor para agradar aum monge.

    Num conto intitulado Aventuras da memria, Voltaire diz que as Musas nocompem stiras porque as stiras no corrigem ningum, irritam os tolos e ostornam ainda mais malvados.17 Ele acredita nisso? Provavelmente sim, pelomenos em parte. Voltaire compe stiras no porque elas funcionem, mas porqueele escritor, felizardo ou no. Guerras inteis, estupro onipresente, prostituiosem fim, morte miservel, vida miservel, o egosmo mesmo dos melhoreshomens, o bom humor como mscara profissional da dor estes so apenasalguns aspectos do mundo que Voltaire evoca para ns, e nem chego a mencionaros desastres naturais e a ganncia e desonestidade humanas. Em tal universo,cultivar o prprio jardim no complacncia nem sabedoria, e sim uma terapiado esquecimento, um modo de conjugar a nossa boa sorte com o sofrimentoalheio. No entanto, se acaso o seu jardim for o mundo da escrita, cultiv-lo no um trabalho de esquecimento. um trabalho de inexorvel lembrana, um

  • recorrente agrupamento de palavras que nos recorda como o mundo e nosconvida a indagar quais partes dele podemos mudar. As stiras no corrigemningum, mas pode ser que alguns leitores achem que sua mescla de horror e risolhes sugere o trabalho a fazer. Esse seria o seu jardim.

    Resta a questo do envelhecimento e afeamento de Cunegunda. Ela no rigorosamente a nica personagem a quem isso acontece a velha foi outrorauma bela princesa , mas a nica a quem isso acontece no tempo da narrativaimediata, e o contraste com Paquette importante. Esta precisa manter a boafeio para que a brecha entre a aparncia de felicidade e a dureza do laborsexual finalmente fique clara, e, na economia da escrita de Voltaire, a situaoalude ao abismo entre muitas outras aparncias luminosas e sombrias realidades.E Cunegunda precisa perder a beleza para que As possibilidades so realmentemuitssimas.

    Talvez o envelhecimento de Cunegunda ocorra simplesmente para que Voltairepossa zombar da amarga reviravolta neste que Cndido, e talvez no s ele,continua enxergando como um conto de fadas: o heri se casa no com aprincesa de seus sonhos, mas com o sapo velho em que a princesa se transformou.Voltaire trabalha esse tema com muito empenho. Ao saber que Cunegunda setornou horrivelmente feia (captulo 27), Cndido assume rapidamente apostura correta: sou um homem de bem, e meu dever am-la sempre. Mas, nofim do mesmo pargrafo, ele continua pensando na mudana: mesmo penaque ela tenha se tornado to feia. E, como acrescenta Voltaire com debochadagratuidade, Cndido se dispe a ir busc-la por mais feia que ela pudesse estar.Quando enfim rev Cunegunda, ele tomado de horror e recua antes de serecompor e avanar apenas por bom procedimento (captulo 29). Sua surpresano muito surpreendente, j que Voltaire acaba de descrever Cunegunda assim:amorenada, de olhos rajados, com o colo ressecado, as faces enrugadas, osbraos vermelhos e escamados. Evidentemente, ela vtima de mais que oenvelhecimento comum; vtima do autor, pode-se dizer. No s no envelheceubem como se transformou numa antibeldade.

    O conto de fadas azedou, mas o azedume tem seus motivos. Para comear, oconto era uma iluso, um sonho incmodo ou fantasia retardada. Cunegunda omurcho objeto do desejo de Cndido; na verdade, o que acontece a todo desejoque s persegue a ideia de uma pessoa ou uma paixo. Ela tem de mudar nopara decepcionar Cndido ou permitir-lhe fazer enfim a coisa certa, mas para noslembrar que os objetos do nosso desejo tm histria prpria, da qual podemosno gostar. Cunegunda a encarnao do mais cruel mas do livro. Cndidoreencontra seu grande amor, mas ela a personificao da feiura e, alm disso,desagradvel. Resulta que a desafortunada Cunegunda perde a belezaexatamente pelo mesmo motivo pelo qual Paquette conserva a dela: as aparnciaspodem mudar ou no, mas nunca passam disso, de aparncias, um lugar ondecomear, mas no onde acabar.

    notas

  • 1 Theodore Besterman, Voltaire, Londres, 1969, p. 31.2 Voltaire, Philosophical dictionary [Dicionrio filosfico], trad. Theodore Besterman, Londres, 1971, p. 72.3 Voltaire, Candide et autres contes [Candido e outros contos], Paris, 1979, p. 414.4 Alexander Pope, Poems, ed. John Butt, New Haven, 1963, p. 515.5 Da Teodiceia de Leibniz, apud notas a Candide et autres contes, p. 420.6 Philosophical dictionary, p. 727 Peter Gay, Voltaires politics, Princeton, 1959, p. 21.8 Michel de Montaigne, Des cannibales, Essais, livro 1, captulo 30.9 Voltaire, loge historique de la raison (1775), in Candide et autres contes, p. 279.10 Italo Calvino, Candide: an essay in velocity, in The literature machine, trad. Patrich Creagh, Londres, 1987.11 Jean Sareil, Essai sur Candide, Genebra, 1967.12 Ibid., p. 31.13 Philosophical dictionary [Dicionrio filosfico], p. 67, verbete Bien (Souverain Bien): Good (Souvereign Good).14 Ibid., p. 173.15 Roland Barthes, Barthes: selected writings, ed. Susan Sontag, trad. Richard Howard, Londres, 1983, p. 154.16 Ibid., p. 156.17 Voltaire, Aventure de la mmoire (1775), in Candide et autres contes, p. 275.* Toda a natureza apenas arte por ti desconhecida;/ Todo o acaso, direo que no podes ver;/ Toda discrdia,harmonia incompreendida;/ Todo mal parcial, bem universal. (n. t.)

  • Cndido,ou o Otimismo1traduzido do alemo do sr. dr. ralph2

    com as adies3 que foram encontradasno bolso do doutor quando este morreu

    em minden,4 no ano da graa de 1759

  • captulo 1Como Cndido foi criado num lindo castelo,

    e como foi expulso deleHavia na Westflia, no castelo do senhor baro de Thunder-ten-tronckh, umjovem a quem a natureza tinha dado os mais suaves costumes. Sua fisionomiaanunciava a sua alma. Tinha o juzo bastante reto, com a mente mais simples;era, creio, por essa razo que o chamavam de Cndido. Os antigos criados dacasa suspeitavam que ele fosse filho da irm do senhor baro e de um bom ehonesto fidalgo da vizinhana, a quem essa senhorita nunca quis desposarporque ele s conseguiu comprovar setenta e um quartos,1 e porque o resto desua rvore genealgica tinha se perdido pela injria do tempo.

    O baro era um dos senhores mais poderosos da Westflia, pois o seu castelotinha uma porta e janelas. Sua grande sala era at ornamentada com tapearias.Todos os ces de seu terreiro compunham uma matilha, se necessrio; os seuspalafreneiros eram os adestradores; o proco da cidade era seu capelo-mor.Todos o chamavam de meu senhor e riam quando ele pilheriava.

    A senhora baronesa, que pesava cerca de trezentas e cinquenta libras, angariavacom isso uma grande considerao, e fazia as honras da casa com uma dignidadeque a tornava ainda mais respeitvel. Sua filha Cunegunda, de dezessete anos,era corada, fresca, gorda, apetitosa. O filho do baro parecia em tudo digno dopai. O preceptor Pangloss2 era o orculo da casa, e o pequeno Cndido escutavaas suas lies com toda a boa-f de sua idade e de seu carter.

    Pangloss ensinava a metafsico-teolgico-cosmolonigologia.3 Ele provavaadmiravelmente que no h efeito sem causa,4 e que, no melhor dos mundospossveis, o castelo do senhor baro era o mais belo dos castelos e a senhora, amelhor das baronesas possveis.

    Est demonstrado, dizia ele, que as coisas no podem ser de outro jeito:pois tudo sendo feito para um fim, tudo necessariamente para o melhor fim.Notem que os narizes foram feitos para carregar culos. As pernas foramvisivelmente institudas para usar calas, e ns temos calas. As pedras foramformadas para ser talhadas e para fazer castelos; assim meu senhor tem umbelssimo castelo; o maior baro da provncia deve ser o mais bem alojado; e osporcos sendo feitos para serem comidos, comemos porcos durante o ano todo;por conseguinte, aqueles que afirmaram que tudo est bem disseram umabobagem; era preciso dizer que tudo est o melhor.5

    Cndido escutava atentamente, e acreditava inocentemente, pois ele achava asrta. Cunegunda extremamente bela, embora nunca tivesse tido a ousadia dedizer isso a ela. Conclua que, depois da felicidade de ter nascido baro deThunder-ten-tronckh, o segundo grau de felicidade era ser a srta. Cunegunda; oterceiro, v-la todos os dias; e o quarto, ouvir mestre Pangloss, o maior filsofoda provncia e, consequentemente, de toda a Terra.

    Um dia, Cunegunda, passeando perto do castelo, no bosquezinho a quechamavam parque, viu por entre o matagal o dr. Pangloss dando uma aula de

  • fsica experimental camareira de sua me, moreninha muito bonita e muitodcil. Como a srta. Cunegunda tivesse muita disposio para as cincias,observou, sem sofrer, as experincias reiteradas de que foi testemunha; ela viuclaramente a razo suficiente6 do doutor, os efeitos e as causas, e voltou muitoagitada, toda pensativa, toda cheia do desejo de ser sbia, imaginando que elabem que podia ser a razo suficiente do jovem Cndido, que tambm ele podiaser a dela.

    Ela encontrou Cndido ao voltar para o castelo, e corou; Cndido tambmcorou; ela lhe disse bom-dia com voz entrecortada, e Cndido falou com ela semsaber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, ao sarem da mesa,Cunegunda e Cndido encontraram-se atrs de um biombo; Cunegunda deixoucair o leno; Cndido recolheu-o, ela tomou-lhe inocentemente a mo, o rapazbeijou inocentemente a mo da moa com uma vivacidade, uma sensibilidade,uma graa toda particular; as suas bocas se encontraram, os olhos se inflamaram,os joelhos tremeram, as mos se apertaram. O senhor baro de Thunder-ten-tronckh passou perto do biombo e, vendo aquela causa e aquele efeito, expulsouCndido do castelo com grandes pontaps no traseiro; Cunegunda desmaiou; foiesbofeteada pela senhora baronesa logo que voltou a si; e tudo ficou consternadono mais belo e mais agradvel dos castelos possveis.

    captulo 2O que se tornou Cndido entre os blgaros

    Cndido, expulso do paraso terrestre, caminhou por muito tempo sem saber poronde, chorando, erguendo os olhos para o cu, voltando-os com frequncia parao mais belo dos castelos que encerrava a mais bela das baronesinhas; dormiu semjantar no meio dos campos, entre dois sulcos; a neve caa em grandes flocos.Cndido, transido de frio, arrastou-se no dia seguinte rumo cidade vizinha, quese chama Valdberghoff-trarbk-dikdorff,1 sem dinheiro, morrendo de fome e delassido. Parou tristemente porta de um cabar. Dois homens vestidos de azul2o notaram: Camarada, disse um deles, a est um jovem muito bem-apessoado e que tem o porte exigido. Avanaram em direo a Cndido e lhepediram que jantasse, com muita civilidade. Meus senhores, disse-lhes Cndidocom uma modstia encantadora, fico muito honrado, mas no tenho com quepagar a minha parte. Ah! Meu senhor, disse-lhe um dos azuis, as pessoas devosso porte e mrito nunca pagam nada: no tendes cinco ps e cinco polegadasde altura? Sim, senhores, o meu porte, disse ele, fazendo uma reverncia.Ah! Meu senhor, ponde-vos mesa; no somente assumimos a despesa, masnunca aceitaramos que um homem como vs esteja sem dinheiro; os homens sso feitos para socorrer uns aos outros. Tendes razo, disse Cndido, oque o senhor Pangloss sempre me disse, e bem vejo que tudo est pelo melhor.Pedem-lhe que aceite alguns cus,3 ele aceita e quer fazer-lhes um comprovante dadvida; no querem nada disso, sentam-se mesa: Vs no amais com ternura?. Oh! Sim, respondeu ele, amo com ternura a senhorita Cunegunda.No, disse um daqueles senhores, estamos vos perguntando se no amais com

  • ternura o rei dos blgaros.4 No, mesmo, disse ele, pois nunca o vi.Como! o mais encantador de todos os reis, e temos de beber sua sade.Ah! Com muito gosto, meus senhores. E ele bebe. Basta, dizem-lhe. Eis quesois o apoio, o sustentculo, o defensor, o heri dos blgaros; vossa fortuna estfeita e vossa glria est garantida.5 Colocam-lhe imediatamente ferros nos ps elevam-no para o regimento. Fazem-no virar direita, esquerda, levantar avareta,6 recolocar a vareta, mirar, atirar, dobrar o passo, e do-lhe trintabastonadas; no dia seguinte ele faz o exerccio um pouco menos mal, e recebeapenas vinte pancadas; dois dias depois s lhe deram dez, e ele passa a ser vistopor seus camaradas como um prodgio.

    Cndido, completamente estupefato, no distinguia muito bem ainda como que ele era um heri. Um belo dia de primavera ele teve a ideia de ir passear,caminhando direto para a frente, achando que era um privilgio da espciehumana, como da espcie animal, servir-se das pernas a seu bel-prazer. Malandou duas lguas quando quatro outros heris de seis ps o alcanam,amarram-no, levam-no para uma masmorra. Perguntaram-lhe juridicamente oque preferia: ser fustigado trinta e seis vezes por todo o regimento, ou receber aomesmo tempo doze balas de chumbo no crebro. Por mais que ele dissesse que asvontades so livres7 e que no queria nem uma coisa nem outra, foi preciso fazeruma escolha; ele decidiu-se, em virtude do dom de Deus a que se chama liberdade,a passar trinta e seis vezes8 pelas varas; aguentou dois passeios. O regimento eracomposto de dois mil homens: isso lhe valeu quatro mil varadas que, desde anuca at o cu, puseram-lhe mostra os msculos e os nervos. Como iam proceder terceira rodada, Cndido, no aguentando mais, pediu como graa queaceitassem ter a bondade de quebrar-lhe a cabea; ele obteve tal favor; vedam-lheos olhos, fazem-no ajoelhar-se. O rei dos blgaros passa nesse momento,informa-se sobre o crime do paciente; e, como esse rei tinha um grande gnio,compreendeu, por tudo o que ouviu de Cndido, que se tratava de um jovemmetafsico, completamente ignorante das coisas deste mundo, e concedeu-lhe asua graa com uma clemncia que ser louvada em todos os jornais e em todos ossculos.9 Um bom cirurgio curou Cndido em trs semanas com os emolientesensinados por Dioscrides.10 J tinha um pouco de pele e podia andar quando orei dos blgaros travou batalha com o rei dos abares.

    captulo 3Como Cndido fugiu de entre os blgaros,

    e o que se tornouNada era to belo, to lesto, to brilhante, to bem-ordenado quanto os doisexrcitos. Os clarins, os pfaros, os obos, os tambores, os canhes, formavamuma harmonia tal como nunca houve no inferno.16 Os canhes derrubaram deincio cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida a rajada de mosquetestirou do melhor dos mundos por volta de dez mil malandros que lhe infectavam asuperfcie.2 A baioneta tambm foi a razo suficiente da morte de alguns milharesde homens.3 O total bem podia chegar a umas trinta mil almas. Cndido, que

  • tremia como um filsofo, escondeu-se o melhor que pde durante aquelacarnificina heroica.

    Finalmente, enquanto ambos os reis faziam cantar o Te Deum4 cada um em seucampo, ele tomou o partido de ir arrazoar em outro lugar sobre efeitos e causas.Passou por cima de montes de mortos e de moribundos e chegou primeiro a umaaldeia vizinha; ela estava em cinzas: era uma aldeia abar que os blgaros haviamqueimado, segundo as leis do direito pblico.5 Aqui, ancios crivados de tirosolhavam morrer as suas mulheres degoladas, que mantinham os filhos nas mamasensanguentadas; ali, moas estripadas depois de terem saciado as necessidadesnaturais de alguns heris exalavam o ltimo suspiro; outras, meio queimadas,gritavam que terminassem de mat-las. Crebros estavam espalhados pela terra,ao lado de braos e pernas amputados.6

    Cndido fugiu o mais depressa que pde para outra aldeia; ela pertencia aosblgaros, e heris abares haviam-na tratado da mesma forma.7 Cndido, semprecaminhando sobre membros palpitantes ou atravs de runas, deixou enfim oteatro da guerra, carregando umas provisezinhas em seu embornal e noesquecendo nunca a srta. Cunegunda. Faltaram-lhe provises quando chegou Holanda; mas tendo ouvido dizer que todo mundo era rico nesse pas, e que opovo dali era cristo, no teve dvidas de que o tratariam to bem quanto o forano castelo do senhor baro antes que de l fosse expulso pelos belos olhos dasrta. Cunegunda.

    Pediu esmola a vrias personagens sisudas, que lhe responderam todas que, seele continuasse a exercer esse ofcio, iriam trancafi-lo numa casa de correopara que aprendesse a viver.8

    Dirigiu-se depois a um homem que acabara de falar uma hora seguida sobre acaridade numa grande assembleia. Esse orador,9 olhando-o de atravessado, disse-lhe: O que que o senhor veio fazer aqui? Est aqui pela boa causa?. Noexiste efeito sem causa, respondeu modestamente Cndido, tudo estencadeado necessariamente10 e arranjado em funo do melhor. Foi preciso queeu fosse expulso de junto da senhorita Cunegunda, que tivesse passado peloaoite, e preciso que eu pea o meu po at que possa ganh-lo; tudo isso nopodia ser de outra maneira. Meu amigo, disse o orador, o senhor acreditaque o papa seja o Anticristo?11 Eu ainda no tinha ouvido dizer isso,respondeu Cndido; mas quer ele o seja, quer no, est me faltando po. Nomereces com-lo, disse o outro; v, malandrinho, v, miservel, no cheguesperto de mim pelo resto de tua vida. A mulher do orador, tendo posto a cabeana janela e avistando um homem que duvidava que o papa fosse o Anticristo,derramou-lhe na cabea um cheio. cu! A que excesso chega o zelo dareligio nas mulheres!

    Um homem que no tinha sido batizado, um bom anabatista12 chamado Tiago,viu a maneira cruel e ignominiosa com que assim se tratava um de seus irmos,um ser de dois ps sem penas, que tinha uma alma;13 ele o levou sua casa,

  • limpou-o, deu-lhe po e cerveja, presenteou-o com dois florins, e at quis ensinar-lhe a trabalhar nas suas manufaturas de tecidos da Prsia que se fabricam naHolanda. Cndido, quase se prosternando diante dele, exclamou: MestrePangloss bem que me dissera que tudo est pelo melhor no mundo, pois estouinfinitamente mais comovido com a vossa extrema generosidade do que com aseveridade daquele senhor de sobretudo preto e da senhora sua esposa.

    No dia seguinte, enquanto passeava, encontrou um mendigo coberto depstulas, de olhos mortios, com a ponta do nariz roda, a boca torta, dentespretos e falando com uma voz estrangulada, atormentado por uma tosse violentae cuspindo um dente a cada esforo.

    captulo 4Como Cndido encontrou o seu antigo mestre

    de filosofia, o dr. Pangloss, e o que disso adveioCndido, mais movido pela compaixo do que pelo horror, deu a esse espantosomendigo os dois florins que recebera de seu honesto anabatista Tiago. Ofantasma olhou para ele fixamente, verteu lgrimas e saltou-lhe ao pescoo.Cndido, apavorado, recuou. Ah!, disse o miservel ao outro miservel, noestais mais reconhecendo o vosso querido Pangloss? Que ouo eu? O senhor,meu querido mestre! O senhor, nesse estado horrvel! Que desgraa vosaconteceu? Por que no estais mais no mais belo dos castelos? O que aconteceucom a senhorita Cunegunda, a prola das mocinhas, a obra-prima da natureza?No aguento mais, disse Pangloss. Imediatamente Cndido levou-o aoestbulo do anabatista, onde o fez comer um pouco de po; e quando Pangloss jestava refeito: E ento, disse-lhe ele, Cunegunda? Morreu, retomou ooutro. Cndido desmaiou; o amigo o fez recobrar os sentidos com um pouco devinagre ruim que se encontrava por acaso no estbulo.1 Cndido reabre os olhos.Cunegunda est morta! Ah! Melhor dos mundos, onde ests? Mas de quedoena ela morreu? No seria por me ver expulso do castelo do senhor seu pai agrandes pontaps? No, disse Pangloss. Ela foi estripada por soldadosblgaros, depois de ter sido violada tanto quanto se pode s-lo; eles quebraram acabea do senhor baro, que queria defend-la; a senhora baronesa foi cortadaem pedaos; meu pobre pupilo, tratado exatamente como a irm; e quanto aocastelo, no ficou pedra sobre pedra,2 nem uma cocheira, nem um carneiro, nemum pato, nem uma rvore; mas fomos bem vingados, pois os abares fizeram omesmo num baronato vizinho que pertencia a um senhor blgaro.

    Ao ouvir isso, Cndido desmaiou de novo; mas, voltando a si e tendo dito oque devia dizer, indagou-se sobre a causa e o efeito, e sobre a causa suficiente quetinha colocado Pangloss num estado to lamentvel. Ah!, disse o outro, foi oamor; o amor, o consolador do gnero humano, o conservador do universo, aalma de todos os seres sensveis, o terno amor. Pena!, disse Cndido, eu oconheci, esse amor, esse soberano dos coraes, essa alma de nossa alma; elenunca me trouxe nada alm de um beijo e vinte pontaps na bunda. Como essabela causa pde produzir em vs um efeito to abominvel?

  • Pangloss respondeu nestes termos: meu caro Cndido! ConhecestesPaquette, aquela bela acompanhante de nossa augusta baronesa; degustei em seusbraos as delcias do paraso, que produziram estes tormentos infernais pelosquais me vedes devorado. Ela estava infectada. Talvez j tenha morrido disso.Paquette tinha recebido essa ddiva de um franciscano3 muito sbio, que forabuscar sua fonte; pois ele a pegara de uma velha condessa, que a recebera de umcapito de cavalaria, que a devia a uma marquesa, que a pegara de um pajem,que a recebera de um jesuta,4 que, sendo novio, a havia contrado em linhadireta de um dos companheiros de Cristvo Colombo. Quanto a mim, no apassarei a ningum, pois estou morrendo.

    Pangloss!, exclamou Cndido, a est uma estranha genealogia!5 No foio diabo que esteve na origem disso? No mesmo!, replicou aquele grandehomem. Era uma coisa indispensvel no melhor dos mundos, um ingredientenecessrio;6 pois se Colombo no tivesse pegado, numa ilha da Amrica, essadoena que envenena a fonte da gerao, que muitas vezes at impede a gerao,e que evidentemente o oposto do grande escopo da natureza, no teramos nemo chocolate nem a cochonilha.7 H que se observar ainda que, at hoje, em nossocontinente, essa doena nos particular,8 como a controvrsia. Os turcos, osindianos, os persas, os chineses, os siameses, os japoneses no a conhecem ainda;mas h uma razo suficiente para que a conheam, por sua vez, dentro de algunssculos. Enquanto isso, ela fez um maravilhoso progresso entre ns, eprincipalmente nos grandes exrcitos compostos de honestos estipendirios, bem-educados, que decidem do destino dos Estados; pode-se garantir que, quandotrinta mil homens combatem em ordem de batalha enfileirados contra tropas deigual nmero, h cerca de vinte mil sifilticos de cada lado.

    Eis a algo admirvel, disse Cndido, mas preciso cur-lo. E comoposso faz-lo?, disse Pangloss. Eu no tenho um tosto, meu amigo; e em todaa extenso deste globo, no se pode nem fazer uma sangria, nem tomar umalavagem sem pagar, ou sem que haja algum que pague por ns.

    Este ltimo discurso determinou Cndido; ele foi lanar-se aos ps de seucaridoso anabatista Tiago e fez-lhe uma pintura to comovente do estado a queseu amigo estava reduzido, que o bom homem no hesitou em recolher o dr.Pangloss; f-lo tratar-se s suas expensas. Pangloss, no tratamento, s perdeu umolho e uma orelha. Ele escrevia bem e sabia perfeitamente a aritmtica. Oanabatista Tiago fez dele o seu guarda-livros. Ao cabo de dois meses, sendoobrigado a ir a Lisboa para cuidar dos negcios de seu comrcio, levou em seunavio os dois filsofos; Pangloss explicou-lhe como tudo era o melhor possvel.Tiago no era de sua opinio. preciso, dizia ele, que os homens tenhamcorrompido um pouco a natureza, pois no nasceram lobos e tornaram-se lobos.9Deus no lhes deu canhes de vinte e quatro polegadas nem baionetas,10 e elesfizeram baionetas e canhes para se destruir. Eu poderia listar as bancarrotas, e ajustia que se apossa dos bens dos falidos para frustrar os credores.11 Tudo

  • isso era indispensvel, repetia o doutor caolho, e as desgraas particularesfazem o bem geral,12 de modo que quanto mais houver desgraa particular, maistudo ficar bem. Enquanto ele arrazoava, o cu escureceu, os ventos sopraramdos quatro cantos do mundo e o navio foi assaltado pela mais horrveltempestade, vista do porto de Lisboa.

    captulo 5Tempestade, naufrgio, terremoto, e o que adveioao dr. Pangloss e a Cndido e ao anabatista Tiago

    A metade dos passageiros, enfraquecidos, expirantes por aquelas angstiasinconcebveis que o balano de um navio provoca nos nervos e em todos oshumores do corpo agitados em sentido contrrio, no tinha nem de se preocuparcom o perigo. A outra metade soltava gritos e fazia oraes; as velas estavamrasgadas, os mastros quebrados, o casco entreaberto. Trabalhava quem podia,ningum se entendia, ningum comandava. O anabatista ajudava um pouco namanobra; ele estava no tombadilho; um marujo furioso bate nele com rudeza e oestende no assoalho; mas, com o golpe que deu, sofreu ele prprio uma togrande sacudidela que caiu para fora do barco de ponta-cabea. Ficou suspenso edependurado a uma parte do mastro rompido. O bom Tiago corre em socorrodele, ajuda-o a subir de volta e, com o esforo que fez, precipitado no mar vista do marujo, que o deixou perecer sem sequer olhar para ele. Cndidoaproxima-se, v o seu benfeitor, que reaparece um momento e engolido parasempre. Quer lanar-se atrs dele no mar; o filsofo Pangloss o impede,provando-lhe que a baa de Lisboa tinha sido feita de propsito para que oanabatista nela se afogasse.1 Enquanto ele provava a priori,2 o navio seentreabre, tudo perece, com exceo de Pangloss, de Cndido e desse desalmadomarinheiro que tinha afogado o virtuoso anabatista; o malandro nadou comsucesso at a praia aonde Pangloss e Cndido foram levados em uma tbua.

    Quando voltaram um pouco a si, caminharam rumo a Lisboa; ainda tinhamalgum dinheiro, com o qual esperavam salvar-se da fome depois de teremescapado da tempestade.

    Mal colocaram os ps na cidade, chorando a morte de seu benfeitor, sentem aterra tremer sob os seus passos;3 o mar se ergue a ferver no porto e destroa osnavios que esto ancorados. Turbilhes de chamas e de cinzas cobrem as ruas eas praas pblicas; as casas desmoronam, os telhados so derrubados sobre asfundaes, e as fundaes se dispersam; trinta mil habitantes de qualquer idade esexo so esmagados debaixo das runas. O marinheiro dizia, vaiando eblasfemando: Haver alguma coisa para se ganhar aqui. Qual poder ser acausa suficiente deste fenmeno?, dizia Pangloss. Eis o ltimo dia do mundo!,exclamava Cndido. O marujo corre incontinente para o meio dos escombros,enfrenta a morte para procurar dinheiro, encontra, apossa-se dele, embriaga-se, e,tendo curtido o seu vinho, compra os favores da primeira mulher de boa vontadeque encontra sobre as runas das casas destrudas e em meio a moribundos emortos. Pangloss, entretanto, puxava-o pela manga. Meu amigo, dizia-lhe,

  • isso no fica bem; estais faltando com a razo universal, estais usando mal o seutempo. Cabea e sangue!, respondeu o outro. Sou marinheiro e nascido naBatvia;4 pisei quatro vezes sobre o crucifixo5 em quatro viagens ao Japo;achaste mesmo teu homem com tua razo universal!

    Alguns fragmentos de pedra tinham ferido Cndido; ele estava estendido na ruae coberto de escombros. Dizia a Pangloss: Ai! Arranja-me um pouco de vinho eleo;6 estou morrendo!. Este terremoto no algo novo, respondeu Pangloss;a cidade de Lima sofreu os mesmos abalos na Amrica no ano passado; mesmascausas, mesmos efeitos: existe certamente uma corrente de enxofre por baixo daterra, desde Lima at Lisboa.7 Nada mais provvel, diz Cndido, mas, porDeus, um pouco de leo e de vinho. Como, provvel?, replicou o filsofo.Sustento que a coisa est demonstrada. Cndido perdeu os sentidos, e Panglosslhe trouxe um pouco de gua de um chafariz prximo.

    No dia seguinte, tendo encontrado algumas provises esgueirando-se atravsdos escombros, eles recuperaram um pouco as foras. Em seguida, trabalharamcomo os demais para aliviar os habitantes que tinham escapado da morte. Algunscidados socorridos por eles deram-lhes um jantar to bom quanto se podia apstamanho desastre. verdade que, na refeio, os convivas regavam o po comsuas lgrimas. Mas Pangloss os consolou garantindo-lhes que as coisas nopodiam ser de outra maneira:8 Porque, disse ele, tudo isto o que h demelhor. Pois, se h um vulco em Lisboa, ele no podia estar noutro lugar.9Porque impossvel que as coisas no estejam onde esto. Pois tudo est bem.

    Um homenzinho de negro, familiar da Inquisio, que estava ao seu lado,tomou polidamente a palavra e disse: Aparentemente o senhor no acredita nopecado original; pois, se tudo est o melhor, no h, ento, nem queda nempunio.10

    Peo muito humildemente perdo a Vossa Excelncia, respondeu Panglossainda mais polidamente, pois a queda do homem e a maldio entravamnecessariamente no melhor dos mundos possveis. Ento o senhor no cr naliberdade?, disse o familiar. Vossa Excelncia ir me desculpar, dissePangloss; a liberdade pode subsistir com a necessidade absoluta, pois eranecessrio que fssemos livres; pois enfim a liberdade determinada11 Panglossestava no meio da frase quando o familiar fez um sinal com a cabea ao seucapanga que lhe servia vinho do Porto, ou dOporto.12

    captulo 6Como se fez um belo auto de f para

    impedir os terremotos, e como Cndido levouuma surra no traseiro

    Depois do terremoto que havia destrudo trs quartos de Lisboa, os sbios dopas no tinham encontrado um meio mais eficaz para prevenir uma runa totalseno dar ao povo um belo auto de f;1 fora decidido pela universidade deCoimbra2 que o espetculo de algumas pessoas queimadas em fogo brando, emgrande cerimnia, um segredo infalvel para impedir a terra de tremer.

  • Tinha-se, em consequncia, prendido um biscainho3 convencido de terdesposado a sua comadre, e dois portugueses que, comendo frango, tinham-lheretirado o toucinho;4 vieram prender depois do jantar o dr. Pangloss e o seudiscpulo Cndido, um por ter falado e o outro por ter escutado com ar deaprovao: ambos foram levados separadamente para cmodos de extremofrescor, nos quais nunca se era incomodado pelo sol; oito dias depois foramambos vestidos com um sambenito,5 e ornaram-lhes a cabea com mitras depapel: a mitra e o sambenito de Cndido eram cheios de chamas invertidas ediabos que no tinham nem rabos nem garras; mas os diabos de Pangloss tinhamgarras e rabos, e as chamas eram direitas;6 caminharam em procisso vestidosassim, e ouviram um sermo muito comovente, seguido de uma bela msica emfalso bordo.7 Cndido foi surrado em cadncia, enquanto se cantava; obiscainho e os dois homens que no quiseram comer toucinho foram queimados,e Pangloss foi enforcado, embora no fosse o costume.8 No mesmo dia a terratremeu com um estrpito espantoso.9

    Cndido, assustado, estupefato, perdido, sangrando todo, todo palpitante,dizia-se a si mesmo: Se aqui o melhor dos mundos possveis, o que sero osoutros ento? V l se eu fosse apenas surrado, j o fui entre os blgaros. Mas, meu caro Pangloss!, o maior dos filsofos, era preciso ter visto vos enforcaremsem que eu saiba por qu?! meu caro anabatista, o melhor dos homens, erapreciso que tivsseis sido afogado no porto?! senhorita Cunegunda!, a proladas moas, era preciso que lhe rasgassem a barriga?!.

    Ele voltava, mal se mantendo, admoestado, surrado, absolvido e abenoado,quando uma velha o abordou e lhe disse:

    Meu filho, tomai coragem, segui-me.captulo 7

    Como uma velha cuidou de Cndido, e comoele reencontrou aquilo de que gostava

    Cndido no tomou coragem, mas seguiu a velha em seu casebre; ela lhe deu umpote de pomada para se esfregar, deixou-lhe o que comer e beber; mostrou-lheuma caminha bastante asseada; havia ao p da cama um traje completo. Comei,bebei e dormi, disse-lhe ela, e que Nossa Senhora de Atocha, monsenhor santoAntnio de Pdua e monsenhor so Tiago de Compostela cuidem de vs:1voltarei amanh. Cndido, ainda atnito com tudo o que havia visto, com tudoo que havia sofrido, e ainda mais com a caridade da velha, quis beijar-lhe a mo.No a minha mo que tendes de beijar, disse a velha. Eu voltarei amanh.Esfregai a pomada, comei e dormi.

    Cndido, apesar de tantas desgraas, comeu e dormiu. No dia seguinte, a velhalhe traz o almoo, examina-lhe as costas, esfrega-as ela mesma com outrapomada; traz-lhe em seguida o jantar; volta ao anoitecer e traz a ceia. No outrodia, fez de novo as mesmas cerimnias. Quem a senhora?, perguntava-lhesempre Cndido. Quem lhe inspirou tanta bondade? Que graas posso dar-lhe? A boa senhora nunca respondia nada; voltou ao cair da noite e no lhe

  • trouxe a ceia. Vinde comigo, disse ela, e no dizei nada. Ela o toma pelobrao e caminha com ele pelo campo por cerca de um quarto de milha; chegam auma casa isolada, cercada de jardins e canais. A velha bate a uma portinha.Algum abre; ela leva Cndido, por uma escada camuflada, a um gabinetedourado, deixa-o num sof de brocado, fecha a porta e se vai. Cndidoacreditava estar sonhando, e olhava toda a sua vida como um sonho funesto, e omomento presente como um sonho agradvel.

    A velha logo reapareceu: sustentava com dificuldade uma mulher trmula, deporte majestoso, brilhante de pedrarias e coberta com um vu. Tire esse vu,disse a velha a Cndido. O rapaz aproxima-se; ergue o vu com mo tmida. Quemomento! Que surpresa! Acredita estar vendo a srta. Cunegunda; via-a de fato,era ela mesma. Faltam-lhe as foras. No pode proferir palavra, cai aos seus ps.Cunegunda cai no sof. A velha cumula-os de aguardentes; eles retomam ossentidos, falam entre si: so de incio palavras entrecortadas, perguntas erespostas que se cruzam, suspiros, lgrimas, gritos. A velha recomenda-lhes quefaam menos barulho e deixa-os vontade. Qu?! Sois vs, diz-lhe Cndido,estais viva! Eu vos reencontro em Portugal! Ento no vos violaram? No vosromperam a barriga, como o filsofo Pangloss me havia garantido? Assim foifeito, disse a bela Cunegunda; mas nem sempre se morre desses dois acidentes.Mas vosso pai e vossa me foram mortos? a pura verdade, disseCunegunda a chorar. E vosso irmo? Meu irmo tambm foi morto. E porque estais em Portugal? E como soubestes que eu estava aqui? E por que estranhaaventura me fizestes conduzir a esta casa? Eu vos direi tudo isso, replicou asenhora; mas antes preciso que me conteis tudo o que vos aconteceu desde obeijo inocente que me destes e os pontaps que recebestes.

    Cndido obedeceu com profundo respeito; e, embora estivesse estupefato,embora a sua voz estivesse fraca e trmula, embora ainda lhe doesse um pouco aespinha, contou-lhe da maneira mais espontnea tudo o que haviaexperimentado desde o momento da separao de ambos. Cunegunda erguia osolhos para o cu; verteu lgrimas pela morte do bom anabatista e de Pangloss;depois do que, falou nestes termos a Cndido, que no perdia uma palavra e adevorava com os olhos.

    captulo 8Histria de Cunegunda

    Eu estava na cama e dormia profundamente, quando aprouve aos cus enviaros blgaros a nosso belo castelo de Thunder-ten-tronckh; degolaram o meu pai eo meu irmo e cortaram a minha me em pedaos. Um blgaro grande, com seisps de altura, vendo que diante desse espetculo eu havia perdido os sentidos,ps-se a violar-me; isso fez-me voltar a mim, recobrar os sentidos, gritei, debati-me, mordi, arranhei, queria arrancar os olhos desse blgaro grande, no sabendoque tudo que estava acontecendo no castelo de meu pai era algo de costumeiro: obruto me deu uma facada no flanco esquerdo de que ainda carrego a marca.Ah! Tenho a esperana de v-la, disse o ingnuo Cndido. Vs a vereis,

  • disse Cunegunda, mas continuemos. Continuai, disse Cndido.Ela retomou, assim, o fio de sua histria: Um capito blgaro entrou, viu-me

    toda ensanguentada, e o soldado no se perturbava. O capito encolerizou-sepelo pouco respeito que lhe testemunhava aquele bruto e o matou sobre o meucorpo. Em seguida, mandou fazer-me curativos e levou-me como prisioneira deguerra para o seu quartel. Eu lavava as poucas camisas que ele tinha, cozinhavapara ele; ele achava-me muito bonita, h que confessar; e eu no vou negar queele tinha um belo porte e a pele branca e suave; alis, pouco esprito, poucafilosofia: bem se via que no fora educado pelo doutor Pangloss. Ao cabo de trsmeses, tendo perdido todo o dinheiro e estando enjoado de mim, vendeu-me a umjudeu chamado Issacar, que traficava na Holanda e em Portugal, e que gostavaapaixonadamente de mulheres. Esse judeu apegou-se muito minha pessoa, masno podia triunfar sobre ela; resisti melhor a ele do que ao soldado blgaro. Umapessoa de honra pode ser violada uma vez, mas a sua virtude fortifica-se comisso. O judeu, para me amansar, trouxe-me para esta casa de campo que estaisvendo. Eu tinha acreditado at ento que no havia na terra nada to beloquanto o castelo de Thunder-ten-tronckh; fui desiludida.

    O grande inquisidor viu-me um dia na missa, olhou-me demoradamente desoslaio e mandou dizer-me que precisava falar comigo sobre assuntos secretos.Fui conduzida ao seu palcio; informei-o sobre o meu nascimento; ele observouquanto estava abaixo da minha estirpe pertencer a um israelita. Foi proposto desua parte a dom Issacar ceder-me a monsenhor. Dom Issacar, que o banqueiroda corte e homem de crdito, nada quis fazer a respeito. O inquisidor ameaou-ocom um auto de f. Finalmente o meu judeu, intimidado, fechou um negcio peloqual a casa e eu pertenceramos a ambos em comum; que o judeu teria para ele assegundas-feiras, as quartas e o dia do sab. E que o inquisidor teria os outrosdias da semana. H seis meses que essa conveno se mantm. No foi semquerelas; pois muitas vezes ficou indeciso se a noite do sbado para o domingopertencia antiga ou nova lei.1 Quanto a mim, resisti at agora a ambas, ecreio que por essa razo que sempre fui amada.

    Enfim, para afastar o flagelo dos terremotos, e para intimidar dom Issacar,aprouve ao senhor inquisidor celebrar um auto de f. Ele fez-me a honra deconvidar-me para assistir. Fiquei muito bem colocada; foram servidos refrescos ssenhoras entre a missa e a execuo. Fui, na verdade, tomada de horror ao verqueimar aqueles dois judeus e aquele honesto biscainho que havia desposado asua comadre; mas qual no foi a minha surpresa, o meu espanto, minhaperturbao, quando vi, dentro de um sambenito e debaixo de uma mitra, umafigura que parecia ser a de Pangloss! Esfreguei os olhos, olhei atentamente, vienforcarem-no; ca desfalecida. Mal recuperei os sentidos, vi o senhor despojado,todo nu: foi o cmulo do horror, da consternao, da dor, do desespero. Dir-lhe-ei com verdade que sua pele ainda mais branca e de um encarnado mais perfeitoque a do meu capito dos blgaros. Essa viso redobrou todos os sentimentos

  • que me acabrunhavam, que me devoravam. Bradei, quis dizer: Parem,brbaros!, mas faltou-me a voz, e os meus brados teriam sido inteis. Quando osenhor foi bem surrado: Como pode acontecer, dizia eu, que o amvel Cndidoe o sbio Pangloss se encontrem em Lisboa, um para receber cem chibatadas e ooutro para ser enforcado por ordem do senhor inquisidor de quem sou a bem-amada? Pangloss ento me enganou muito cruelmente quando me disse que tudovai pelo melhor do mundo.

    Agitada, desorientada, ora fora de mim, ora prestes a morrer de fraqueza, euestava com a cabea plena do massacre de meu pai, de minha me, de meu irmo,da insolncia do meu feio soldado blgaro, da facada que ele me deu, da minhaservido, do meu servio de cozinheira, do meu capito blgaro, do meu feiodom Issacar, do meu abominvel inquisidor, do enforcamento do doutorPangloss, daquele grande miserere2 em falso bordo durante o qual vosespancavam e principalmente do beijo que eu vos dera atrs de um biombo, nodia em que tinha visto o senhor pela ltima vez. Louvei a Deus, que o trazia devolta para mim por tantas provaes. Recomendei minha velha que cuidasse devs e que trouxesse o senhor aqui logo que pudesse. Ela executou bem o meupedido; experimentei o prazer inestimvel de rev-lo, de ouvi-lo, de falar-lhe.Deveis estar com uma fome devoradora; eu estou com muito apetite; comecemosa jantar.

    Eis que se pem ambos mesa; e depois do jantar, voltam para o belo sof deque j se falou; estavam ali quando o senhor dom Issacar, um dos donos da casa,chegou. Era dia de sbado. Ele vinha desfrutar de seus direitos e explicar o seuterno amor.

    captulo 9O que aconteceu com Cunegunda, com Cndido,

    com o grande inquisidor e com um judeuEsse Issacar era o mais colrico hebreu que j se tinha visto em Israel desde ocativeiro de Babilnia.1 O qu!, disse ele. Cadela da Galileia, no basta osenhor inquisidor? preciso que esse malandro partilhe tambm comigo?!Dizendo isso, saca de um longo punhal que sempre trazia consigo e, noacreditando que seu adversrio estivesse armado, lana-se sobre Cndido; mas onosso bom westfaliano tinha recebido uma bela espada da velha, com o trajecompleto. Ele saca da espada, embora tivesse hbitos muito gentis, e estende oisraelita teso e morto no cho, aos ps da bela Cunegunda.

    Santssima Virgem!, bradou ela. O que ser de ns? Um homem assassinadoem minha casa! Se a justia vier, estamos perdidos. Se Pangloss no tivessesido enforcado, disse Cndido, ele nos daria um bom conselho nesta situaoextrema, pois era um grande filsofo. Na falta dele, consultemos a velha. Elaera muito prudente e comeava a partilhar sua opinio quando outra portinha seabriu. Era uma hora depois da meia-noite, era o comeo do domingo. Esse diapertencia ao senhor inquisidor. Ele entra e v o surrado Cndido de espada namo, um morto estendido no cho, Cunegunda apavorada, e a velha dando

  • conselhos.Eis o que se passou nesse momento na alma de Cndido e como ele raciocinou:

    Se esse santo homem pedir socorro, far infalivelmente com que eu sejaqueimado; poder fazer o mesmo com Cunegunda; ele mandou chicotear-meimpiedosamente; meu rival; estou matando; no h como titubear. Esseraciocnio foi claro e rpido; e sem dar tempo ao inquisidor para recuperar-se dasurpresa, ele o trespassa de lado a lado e joga-o ao lado do judeu. S faltavaisso, disse Cunegunda; no h mais remisso; estamos excomungados, chegoua nossa hora derradeira. Como fizestes isso, vs que sois to gentil, matar emdois minutos um judeu e um prelado? Minha bela moa, respondeu Cndido,quando se est apaixonado, com cimes e fustigado pela Inquisio, a genteno se reconhece mais.

    A velha tomou ento a palavra e disse: H trs cavalos andaluzes na cocheira,com as selas e as rdeas: que o bravo Cndido os prepare; a madame temmoidores2 e diamantes: montemos rpido a cavalo, embora eu s possa meapoiar numa das ndegas, e vamos para Cdiz; est fazendo um belssimo tempo,e um prazer viajar com o frescor da noite.

    Imediatamente Cndido sela os trs cavalos. Cunegunda, a velha e ele fazemtrinta milhas numa tirada s. Enquanto se afastam, a Santa Irmandade3 chega casa; enterra monsenhor numa bela igreja e joga Issacar no depsito de lixo.

    Cndido, Cunegunda e a velha estavam j na cidadezinha de Abacera,4 no meiodas montanhas da serra Morena, e falavam assim numa tasca.

    captulo 10Em que penria Cndido, Cunegunda e a velha chegam a Cdiz e de seu embarque

    Quem que pode ter roubado as minhas pistolas e os meus diamantes?, diziaCunegunda a chorar. Com que vamos viver?! Como faremos? Onde encontrarinquisidores e judeus que me deem outras? Ai!, disse a velha, suspeito muitode um reverendo padre franciscano que pousou ontem no mesmo albergue quens em Badajoz. Deus me livre de fazer um juzo temerrio! Mas ele entrou duasvezes em nosso quarto e foi-se embora bem antes de ns. Pena!, disseCndido. O bom Pangloss tinha me provado muitas vezes que os bens da terraso comuns a todos os homens, que cada um tem sobre eles igual direito.1 Essefranciscano devia, segundo esses princpios, deixar-nos algo com que terminar anossa viagem. Ento no lhe resta mais absolutamente nada, minha belaCunegunda? Nem um maravedi,2 disse ela. Que deciso tomar?, disseCndido. Vamos vender um dos cavalos, disse a velha. Eu montarei nagarupa com a senhorita, embora s possa me manter com um lado das ndegas, echegaremos a Cdiz.

    Havia na mesma hospedaria um prior beneditino;3 ele comprou barato ocavalo. Cndido, Cunegunda e a velha passaram por Lucena, por Chillas, porLebrija e chegaram finalmente a Cdiz.4 A estavam equipando uma frota e serecrutavam tropas para submeter os reverendos padres jesutas do Paraguai, queeram acusados de insuflar uma de suas hordas contra o rei da Espanha, perto da

  • cidade do Santo Sacramento.5 Cndido, tendo servido sob os blgaros, fez oexerccio blgaro diante do general do pequeno exrcito com tanta graa,celeridade, mestria, garbo, agilidade, que lhe deram uma companhia deinfantaria para comandar. Ei-lo capito; embarcou com a srta. Cunegunda, avelha, dois valetes e dois cavalos andaluzes que tinham pertencido ao senhorgrande inquisidor de Portugal.

    Durante toda a travessia arrazoavam muito sobre a filosofia do pobre Pangloss.Ns vamos para outro universo,6 dizia Cndido. nesse, por certo, que tudoest bem. Pois preciso confessar que se poderia gemer um pouco pelo que sepassa no nosso em fsica e em moral. Amo o senhor de todo o corao, diziaCunegunda, mas ainda estou com a alma toda apavorada com o que vi, comaquilo por que passei. Tudo ir bem, replicava Cndido, o mar desse novomundo vale j mais do que os mares da nossa Europa; ele mais calmo, osventos mais constantes. certamente o novo mundo que o melhor dos mundospossveis. Deus o queira!, dizia Cunegunda. Mas fui to infeliz no meu queo meu corao est quase fechado para a esperana. A senhorita se queixa,disse a velha, ah!, no provastes infortnios tais como os meus. Cunegundaquase se ps a rir, e achou a boa senhora muito engraada por pretender ser maisinfeliz do que ela. Ah!, disse ela, minha boa senhora, a menos que a senhoratenha sido violada por dois blgaros, que tenha recebido duas facadas nabarriga, que tenham demolido dois dos seus castelos, que se tenham degoladodiante dos seus olhos dois pais e duas mes, e que tenha visto dois de seusamados chicoteados num auto de f, no vejo como a senhora possa me superar;acrescente-se que nasci baronesa com setenta e dois quartos7 e que fuicozinheira. Senhorita, respondeu a velha, no sabeis qual o meunascimento; e se eu vos mostrasse o meu traseiro, no falaria comigo como estfazendo e suspenderia vosso julgamento. Esse discurso fez nascer uma extremacuriosidade no esprito de Cunegunda e de Cndido. A velha lhes falou nestestermos.

    captulo 11Histria da velha

    Nem sempre tive os olhos rajados e cercados de escarlate; o meu nariz nemsempre tocou o queixo, e nem sempre fui serva. Sou filha do papa Urbano x e daprincesa de Palestrina.1 Educaram-me at os catorze anos num palcio em quetodos os castelos de seus bares alemes no teriam servido nem de estrebaria; eum dos meus vestidos valia mais do que todas as magnificncias da Westflia. Eucrescia em beleza, em graas, em talentos, no meio dos prazeres, das deferncias edas esperanas. Inspirava j amor; os meus seios se formavam; e que seios!Brancos, firmes, talhados como os da Vnus de Mdici; e que olhos! Queplpebras! Que sobrancelhas negras! Que chamas brilhavam nas minhas duaspupilas e apagavam a cintilao das estrelas, como me diziam os poetas dobairro. As mulheres que me vestiam e que me despiam caam em xtase ao olhar-me de frente e de costas, e todos os homens gostariam de estar no lugar delas.

  • Fui noiva de um prncipe soberano de Massa-Carrara.2 Que prncipe! Tobelo quanto eu, feito de doura e de dotes, brilhante de esprito e ardente deamor. Eu o amava como se ama pela primeira vez, com idolatria, com enlevo. Asbodas foram preparadas. Era uma pompa, uma magnificncia inaudita; eramfestas, carrossis, peras-bufas incessantes. E toda a Itlia fez para mim sonetos,dos quais nenhum era apenas passvel. Estava atingindo o momento da minhafelicidade quando uma velha marquesa, que fora amante do meu prncipe,convidou-o para tomar um chocolate em sua casa. Ele morreu em menos de duashoras, com convulses horrorosas. Mas isso apenas uma bagatela. Minha me,em desespero, e bem menos aflita do que eu, quis retirar-se por algum tempo deuma estada to funesta. Ela possua uma belssima terra perto de Gaeta.3Embarcamos numa galera do pas, dourada como o altar de so Pedro em Roma.Eis que um corsrio de Sal4 precipita-se sobre ns e nos aborda. Nossossoldados se defenderam como soldados do papa: puseram-se de joelhos jogandono cho as suas armas e pedindo ao corsrio uma absolvio in articulo mortis.5

    Logo os despiram nus como macacos, e minha me, s nossas damas dehonra e a mim tambm. uma coisa admirvel a diligncia com que aquelessenhores despem as pessoas. Mas o que mais me surpreendeu foi que eles noscolocaram o dedo num lugar onde ns, as mulheres, em geral s deixamoscolocar cnulas de seringas de lavagem. Essa cerimnia parecia-me muitoestranha: a est como se julga tudo quando nunca se saiu de sua terra. Fiqueilogo sabendo que era para verificar se no tnhamos escondido ali algunsdiamantes: uma prtica usual desde tempos imemoriais entre as naespolitizadas que correm pelos mares. Soube que os senhores religiosos Cavaleirosde Malta6 nunca deixam de faz-lo quando prendem turcos e turcas; uma lei dodireito das gentes que nunca se derrogou.

    No vos direi como duro para uma jovem princesa ser levada com sua mepara o Marrocos. Concebereis bastante bem tudo o que tivemos de sofrer nobarco corsrio. A minha me ainda era muito bela; as nossas damas de honra, asnossas simples camareiras, tinham mais encantos do que se pode encontrar emtoda a frica. Quanto a mim, eu estava arrebatadora, eu era a beleza, a prpriagraa, e era donzela; no o fui por muito tempo: essa flor que havia sidoreservada para o belo prncipe de Massa-Carrara foi-me arrebatada pelo capitocorsrio; era um negro abominvel, que acreditava ainda estar me fazendo umagrande honra. Por certo, era preciso que a senhorita princesa de Palestrina e eufssemos bem fortes para resistir a tudo que experimentamos at a chegada aoMarrocos. Mas passemos adiante; so coisas to comuns que no vale a penafalar delas.

    O Marrocos nadava em sangue quando chegamos. Cinquenta filhos doimperador Muley-Ismael7 tinham cada um o seu partido, o que produzia de fatocinquenta guerras civis de negros contra negros, de negros contra tisnados, demulatos contra mulatos. Era uma carnificina contnua em toda a extenso do

  • imprio.Mal desembarcamos, alguns negros da faco inimiga da do meu corsrio

    apresentaram-se para apossar-se de seu saque. ramos, depois dos diamantes e doouro, o que havia de mais precioso. Fui testemunha de um combate que nuncavedes em vosso clima da Europa. Os povos setentrionais no tm o sanguebastante ardente. Eles no tm a fria pelas mulheres ao ponto em que ela comum na frica. Parece que os vossos europeus tm leite nas veias; vitrolo, fogo que corre nas dos habitantes do monte Atlas e das regies vizinhas.Combateu-se com o furor dos lees, dos tigres e das serpentes da regio parasaber quem nos teria. Um mouro agarrou a minha me pelo brao direito, olugar-tenente do meu capito segurou-a pelo brao esquerdo; um soldado mouropegou-a por uma perna, um de nossos piratas a segurava pela outra. As nossasjovens tambm se viram num momento puxadas assim pelos soldados. O meucapito me mantinha escondida atrs de si. Ele tinha uma cimitarra em punho, ematava tudo que se opunha sua fria. Finalmente, vi todas as nossas italianas ea minha me rasgadas, cortadas, massacradas pelos monstros que as disputavamentre si. Os cativos, meus companheiros, aqueles que os haviam pegado,soldados, marinheiros, negros, tisnados, brancos, mulatos, e enfim o meucapito, todos foram mortos; e eu fiquei moribunda sobre um monte decadveres. Cenas semelhantes passavam-se, como se sabe, na extenso de mais detrezentas lguas, sem que se faltasse s cinco oraes por dia ordenadas porMaom.8

    Desvencilhei-me com bastante dificuldade da multido de tantos cadveressangrentos amontoados e arrastei-me para debaixo de uma grande laranjeira beira de um riacho prximo; ca ali de pavor, de cansao, de horror, de desesperoe de fome. Logo depois, os meus sentidos oprimidos entregaram-se a um sono quetinha mais de desmaio que de repouso. Estava nesse estado de fraqueza einsensibilidade, entre a morte e a vida, quando me senti pressionada por algo quese agitava sobre o meu corpo. Abri os olhos, vi um homem branco e de bomaspecto que suspirava e que dizia entre os dentes: O che sciagura dessere senzacoglioni!.9

    captulo 12Continuao das desgraas da velha

    Espantada e arrebatada por ouvir a lngua de minha ptria, e no menossurpresa com as palavras que aquele homem proferia, respondi-lhe que haviamaiores desgraas do que aquela de que ele se queixava. Instru-o em poucaspalavras sobre os horrores que eu havia suportado e reca em fraqueza. Elecarregou-me para uma casa vizinha, mandou colocar-me na cama, dar-me decomer, serviu-me, consolou-me, elogiou-me, disse-me que nunca tinha visto nadade to belo quanto eu, e que nunca tinha lamentado tanto a perda daquilo queningum podia devolver-lhe. Eu nasci em Npoles, disse-me ele, l se castramdois ou trs mil meninos todos os anos; alguns morrem por causa disso, os outrosadquirem uma voz mais bela que a das mulheres, outros vo governar os

  • Estados.1 Fizeram-me essa operao com grande sucesso e tornei-me cantor dacapela da senhora princesa de Palestrina. De minha me!, exclamei. De vossame!, exclamou ele a chorar. O qu! Sereis aquela jovem princesa que eduqueiat a idade de seis anos, que prometia j ser to bela quanto sois? Sou eumesma; minha me est a quatro passos daqui, cortada em quartos debaixo deum monte de cadveres

    Contei-lhe tudo o que me havia acontecido; ele tambm me contou as suasaventuras, e me informou como tinha sido enviado ao rei do Marrocos por umapotncia crist, para concluir com esse monarca um tratado pelo qual lhe seriamfornecidos plvora, canhes e navios, para ajud-lo a exterminar o comrcio dosoutros cristos.2 A minha misso est cumprida, disse-me aquele honestoeunuco. Vou embarcar em Ceuta,3 e vos levarei de volta para a Itlia. Ma chesciagura dessere senza coglioni!

    Agradeci-lhe com lgrimas de enternecime