Cadernos de filosofia alemã XII

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FILosoFIa aLeM

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11/7/2008, 20:12

Cadernos de

FILosoFIa aLeM XII

Publicao semestral do Departamento de Filosofia FFLCH-USP

jul.-dez. 2008

So Paulo SP

ISSN 1413-7660

Cadernos de FilosoFia alem uma publicao semestral do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. Editores Responsveis Maria Lcia MeLLo e oLiveira caccioLa ricardo ribeiro Terra Comisso Editorial bruno nadai, cau PoLLa, Fernando cosTa MaTTos, FLaMarion caLdeira raMos, igor siLva aLves, Lus Fernandes dos sanTos nasciMenTo, Marisa LoPes, Maurcio cardoso KeinerT, Monique HuLsHoF, rrion soares MeLo Conselho Editorial aLessandro Pinzani (uFsc), andr de Macedo duarTe (uFPr), danieL TourinHo Peres (uFba), deniLson Lus WerLe (usJT/cebraP), eduardo brando (usP), ernani PinHeiro cHaves (uFPa), gerson Luiz Louzado (uFrgs), Hans cHrisTian KLoTz (uFsM), Joo carLos saLLes Pires da siLva (uFba), JoHn abroMeiT (universidade de cHicago), Jos PerTiLLi (uFrgs), Jos rodrigo rodriguez (Fgv), JLio csar raMos esTeves (uenF), Luciano nervo codaTo (FacuLdade de so benTo), Luiz rePa (FacuLdade de so benTo/cebraP), Mrcio suzuKi (usP), Marco aurLio WerLe (usP), Marcos nobre (unicaMP), oLivier voiroL (universidade de Lausanne), PauLo roberTo LicHT dos sanTos (uFscar), Pedro PauLo garrido PiMenTa (usP), rosa gabrieLLa de casTro gonaLves (uFba), srgio cosTa (Frei universiTT), siLvia aLTMann (uFrgs), soraya nour (cenTre MarcH bLocH), THeLMa Lessa Fonseca (uFscar), vera crisTina de andrade bueno (Puc/rJ),vinicius berLendis de Figueiredo (uFPr), virginia de araJo Figueiredo (uFMg)

Universidade de so Paulo Reitora: sueLy viLeLa Vice-reitor: Franco Maria LaJoLo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Diretor: gabrieL coHn Vice-diretora: sandra Margarida niTrini departamento de Filosofia Chefe: Moacyr ayres novaes FiLHo Vice-chefe: Caetano Ernesto Plastino Coordenador do Programa de Psgraduao: Marco Antnio De vila Zingano diagramao Microart Editorao Eletrnica Ltda. www.microart.com.br

Capa Hamilton Grimaldi e Microart Editorao Eletrnica Ltda. Impresso Prol Editora Grfica Ltda. Tiragem: 500 Exemplares

copyright departamento de Filosofia FFLCH/UsP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 Cid. Universitria CEP: 05508-900 So Paulo, Brasil Tel: (011) 3091-3761 Fax: (011) 3031-2431 E-mail:[email protected] N 12 jul.-dez. 2008 ISSN 1413-7860

SumrioEditorial Artigos Identidadevolitiva:acontribuiodeFichteparaaexplici- taodoconceitodepessoa 11 Christian Klotz Impulsoverdadeeimpulsoartstico:umaleituradeSobre verdade e mentira no sentido extra-moral thelma lessa da FonseCa BenjamineBrecht:apedagogiadogesto luCiano Gatti Perspectivismoedemocracia:umabrevereflexosobrea polticaapartirdoespritolivrenietzschiano Fernando Costa mattos Traduo O pensamento de Schopenhauer em relao cincia e religio,demax horKheimer ComentrioetraduodeFlamarion Caldeira ramos Resenhas Des Hgmonies brises,deReinerSchrmann emmanuel Cattin 129 99 29 51 9

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Ser e verdade: A questo fundamental da filosofia; Da essncia da verdade,de Martin Heidegger 149 antonio ianni seGatto Lanamentos ndice em ingls Instrues para os autores 159 161 163

FrutodeumainiciativaconjuntadosGruposdeFilosofia AlemdoDepartamentodeFilosofiadaUSP,osCadernos de Filosofia Alem,publicadosdesde1996,pretendemconstituir umespaoparaapublicaodetextos,ligadosfilosofiaeao idiomaalemes,quecolaboremparaodesenvolvimentode umdilogofilosficovivo,capazdefazerjusaomote,entre nsconsagrado,dafilosofiacomoumconviteliberdadee alegriadareflexo.

EditorialMantendooseuescopodeestimularumtrabalhovivocomahistria dafilosofia,emparticulardafilosofiaalem,osCadernos de Filosofia Alem abremestedcimosegundonmerocomumartigodeChristianKlotzque noapenasanalisaoconceitofichtianodepessoa,masprocuramostrarasua presenanacenacontempornea,emqueoelementovolitivoindiscernvel dacompreensodaidentidadesubjetiva. OsegundoartigodeThelmaLessadaFonsecaedesenvolveuma interessantereflexosobreaquestodaverdadeemSobre verdade e mentira no sentido extramoral,conhecidotextodojovemNietzsche.Aocontrrio doquemuitossustentam,elaprocuramostrarquejnessetextoNietzsche rompeucomateoriadoconhecimentoeestembuscadeumacompreenso doimpulsoverdadecomoumfenmenomoral,descabendoconsiderar, porexemplo,seeleafirmaounoapossibilidadedeconhecerascoisasem simesmas. AssinadoporLucianoGatti,oterceiroartigonosmostraimportantesaspectosdodilogoentreWalterBenjamimeBertoltBrechtacerca dopapeldoteatronasociedadecapitalista:comvistasaoesclarecimento dopblicoepossibilidadedefavoreceratransformaosocial,servivel oprojetodeumteatropedaggico,talcomopropostoporBrecht?desta questoqueparteBenjamimnostextosanalisadosporGatti,comopropsitodesublinharalgunsaspectoscrticoseanti-ilusionistassemosquais talpapeldoteatronosedeixariacumprir. Oquartoeltimotextodaseodeartigostrazumareflexode FernandoCostaMattossobreapossibilidadedeassociaropensamento perspectivistadeNietzscheaumaposiopolticademocrtica.Emque peseasimpatiadofilsofopelosregimesaristocrticos,adefesadaliberdade comoindependnciaespiritual,contidananoodeespritolivresegundo aanlisedeMattos,seriamaiscompatvelcomoEstadodemocrticode direitodoquecomumsistemaautoritriodegoverno. AseoseguintetrazumtextotardiodeMaxHorkheimer,traduzidoeapresentadoporFlamarionCaldeiraRamos,emqueoconhecido filsofodaassimchamadaEscoladeFrankfurtrecuperaopensamento

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pessimistadeSchopenhauercomvistasamostrar,emfacedaautomatizao crescentedoserhumano,oquantoelepermaneceriaatual,jqueapresenta amaisprofundafundamentaodamoralsementraremcontradiocom oconhecimentocientfico. Naseoderesenhas,porfim,temosaanlisefeitaporEmmanuel Cattin,daUniversidadedeClermont-Ferrand,sobreolivroDes hgmonies brises,deReinerSchrmann,emqueeste,partindodebasesheideggerianas, acabariaporradicalizarareflexosobrealinguagematopontodeconcluir queasolidomaisoriginriaqueoamor. Asegundaresenha,deAntonioIanniSegatto,debrua-sesobre olivrodeHeideggerSer e verdade,compostopelaspreleesAquesto fundamentaldafilosofiaeDaessnciadaverdadeelanadonoBrasil em2007,pelaVozes,comtraduodeEmmanuelCarneiroLeo.Segatto procurachamaraatenoparaaimportnciadonacional-socialismono pensamentodeHeideggerpocadessasprelees1933e34,respectivamente,sendovistoporelecomoumreflexodalutaalemcontraa no-verdade,contraoencobrimentodoser. Dandoguaridaatesestovariadasquantoopresenteeditorial permiteentrever,esperamosqueestenmeroconsiga,tambmaosolhos deseuleitor,provocarreaese,assim,realizaropropsitoprincipaldestesCadernos,queodeestimularodebateeareflexoapartirdafilosofia alem.

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Identidade volitiva: a contribuio de Fichte para a explicitao do conceito de pessoaChristian KlotzProfessor Doutor do Departamento de Filosofia da UFSM

Resumo: NasuaDoutrina da Cincia nova methodo,Fichtedefendeques aoidentificar-secomumadeterminao volitiva que submete as suas aessobumaexignciacategrica, umsujeitoalcanaumadeterminada concepo de si. O artigo presente tem por objetivo mostrar que esta tese fichtiana envolve uma noo de identidade volitiva que antecipa concepes contemporneas da identidade prtica de pessoas, tal como tm sido sugeridas por H. FrankfurteChr.Korsgaard. Palavras-Chave: Fichte,Autoconscincia,Identidadeprtica

Abstract: In The Science of Knowledge nova methodo, Fichte holds that a subject only acquires a determinatedconceptionofitselfby identifying itself with a volitional determination that subjects its actionstoacategoricaloughtto.The present article aims at showing that the fichtean thesis encompasses a conceptionofvolitiveidentitywhich anticipates contemporary conceptionsofthepracticalidentityofpersons,suchasthoseintroducedbyH. FrankfurtandChr.Korsgaard. Keywords: Fichte, Self-Consciousness,Practicalidentity

No seu perodo ienense, Fichte desenvolveu um tipo prprio de argumentao transcendental. Neste, as estruturas da nossa experincia e do nosso agir so legitimadas ao serem estabelecidas como condies da auto-referncia pela qual compreendemos a ns mesmos como sujeitos espontneos. Obviamente, esta estratgia pressupe uma determinada concepo da auto-referncia, cujas condies so analisadas, que serve como ponto de partida como princpio da argumentao. No entanto, Fichte no acreditava que o modo como ns originalmente nos referimos a ns mesmos est, por assim dizer, imediatamente diante de nossos olhos. Em vez disso, ele defendeu que ele est escondido por11

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autoconcepes secundrias. Portanto, parecia-lhe necessrio usar argumentos e anlises filosficos j no contexto da formulao do princpio do seu sistema. A chamada Doutrina da Cincia nova methodo, que Fichte apresentou em Iena a partir de 1796, leva extensamente em conta este ponto, pois na sua maior parte ela consiste numa argumentao ascendente que serve para estabelecer o princpio da Doutrina da Cincia. O resultado dessa argumentao que a nossa auto-referncia fundamental essencialmente prtica. Ela consiste no fato de que identificamos a ns mesmos com a vontade pura. No entanto, esta autoconcepo original j envolve normatividade; pois a determinao pura da vontade, com a qual identificamos a ns mesmos, constitui uma exigncia categrica qual ns, enquanto agentes, estamos submetidos. Assim, no seu argumento ascendente para o princpio da Doutrina da Cincia, Fichte estabelece um resultado que se aproxima de abordagens mais recentes sobre a auto-referncia de pessoas, tais como as que tm sido defendidas por H. Frankfurt e Chr. Korsgaard. Em particular, Fichte j antecipa a tese de que a identidade de pessoas est intrinsecamente ligada normatividade. Ao menos isso o que se defender no que segue: o propsito principal desta exposio ser mostrar que Fichte, na argumentao fundamental da Doutrina da Cincia nova methodo, descobriu a identidade normativa de pessoas como um assunto prprio da investigao filosfica. Se esta tese for correta, pode-se dizer que Fichte reconstruiu um pressuposto implcito da tica kantiana, que se baseia na concepo da identidade normativa de pessoas sem torn-la um assunto da investigao explcita.1. Estaexposio,quesubstituioFundamento de toda a Doutrina da Cincia (1794/95)equefoiapresentadatrsvezesentre1796e1799,nofoipublicada por Fichte como um todo. A principal fonte considerada no que segue o manuscrito do seu ouvinte K. Chr. Fr. Krause. Fichte, J. G. Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause.Org.de E.Fuchs.Hamburgo:F.Meiner,1982. 2. Cf.aterceiraseodaFundamentao da Metafsica dos Costumes,emque Kantafirmaqueoeuverdadeiroestintrinsecamenteligadoleimoral. Kant,I.Fundamentao da Metafsica dos Costumes.Trad.dePauloQuintela. Lisboa:Edies70,2007,p.135.

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A seguinte exposio se dividir em trs partes: primeiro, ser apresentado o contexto sistemtico no qual Fichte introduz a concepo da auto-referncia prtica de pessoas na Doutrina da Cincia nova methodo. Na segunda parte ser reconstruda a argumentao pela qual Fichte estabelece o conceito de identidade normativa como uma concepo fundamental para a compreenso do conceito de pessoa. Por fim, a relao entre a contribuio de Fichte e a discusso contempornea sobre o conceito de pessoa em particular a influente posio de Harry Frankfurt ser discutida. I. Daconscinciaimediatareflexo:Ocontextosistemtico daintroduodoconceitodeidentidadenormativa emFichte No primeiro pargrafo da Doutrina da Cincia nova methodo, Fichte pretende mostrar que a referncia consciente a objetos possibilitada por uma conscincia de si cuja natureza difere fundamentalmente de qualquer referncia objetiva. Fichte parte em seu argumento da observao de que a referncia a objetos e, com isso, qualquer conscincia intencional, surge de uma atividade espontnea. a atividade referencial da conscincia que determina o que o seu objeto. Esta atividade, o pensar no seu sentido mais fundamental, pode ser exercida de dois modos diferentes, que Fichte caracteriza metaforicamente como direes do pensar: podemos referir-nos a ns mesmos, ou a coisas que distinguimos de ns. No entanto, em qualquer caso e isso a tese principal de Fichte a conscincia intencional possibilitada por uma conscincia que de um outro carter do que a exercida em referncia ao objeto. Assim, o eu que subjaz a toda conscincia intencional est na conscincia, mas de uma maneira diferente daquela que caracteriza um objeto3. Cf. Fichte, J. G. Wissenschaftslehre nova methodo. Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause, pp. 28-35. Fichte exps o argumento do primeiro pargrafo da Doutrina da Cincia nova methodotambmnoEnsaio de uma nova exposio da Doutrina da Cincia,de1797,quefoiconcebidocomoprimeirocaptulo dapublicaodetodaaDoutrina da Cincia nova methodo,planoquenofoi realizadoporFichte.Cf.Fichte,J.G.A Doutrina-Da-Cincia de 1794 e Outros Escritos.Trad.deRubensRodriguesTorresFilho.SoPaulo:AbrilCultural, 1984,pp.177-85.

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pensado, seja este um objeto da experincia interna ou externa. Por isso, Fichte caracteriza o modo como o eu est originalmente consciente como uma autoconscincia imediata. No argumento para essa tese dois passos podem ser distinguidos. Primeiro, Fichte introduz a concepo de uma conscincia pr-reflexiva dos atos de pensar, pela qual estamos conscientes destes atos ao exerc-los, antes de qualquer pensamento de segunda ordem que os torne um objeto explcito do pensamento. A conscincia imediata do pensar, includa j na perspectiva do seu exerccio, uma condio da conscincia de qualquer objeto que necessariamente envolve uma conscincia do ato espontneo pelo qual este fixado como objeto. No entanto, este resultado ainda no envolve a tese, decisiva para Fichte, de que a conscincia prreflexiva j envolve uma conscincia de si como sujeito do pensamento, em vez de apresentar atos annimos do pensamento sem sujeito. neste ponto que a argumentao de Fichte entra no terreno prprio da teoria da conscincia de si. Assim, no seu primeiro passo, a abordagem fichtiana sobre a autoconscincia pertence ao contexto de uma investigao da conscincia intencional e das suas condies: Fichte pretende mostrar que a forma fundamental da conscincia de si est situada naquela conscincia pr-reflexiva do pensamento que subjaz a qualquer conscincia de objetos. Esse objetivo exige refutar uma imagem da autoconscincia que inicialmente parece muito plausvel: a noo segundo a qual a conscincia de si, na sua forma fundamental, surge do ato no qual4. Cf.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause,p.34;e_____. Ensaio de uma nova exposio da Doutrina da Cincia. In:_____.A Doutrina-Da-Cincia de 1794 e Outros Escritos,pp.177e182. Na preleo, Fichte d a seguinte formulao da tese a ser demonstrada: Todaaconscinciaacompanhadaporumaautoconscinciaimediata,e ssobapressuposiodestaquesepensa.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause,p.34,traduodoautor. 5. Cf.Fichte,J.G. Ensaio de uma nova exposio da Doutrina da Cincia.In: _____.A Doutrina-Da-Cincia de 1794 e Outros Escritos,p.182. 6. Paraumainterpretaodaconcepofichtianaquedestacaoaspectodasuavinculaocomateoriadaconscinciaintencional,cf.Neuhouser,F.Fichtes Theory of Subjectivity.Cambridge:CambridgeUniversityPress,1990,pp.68ss.

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um sujeito se torna um objeto do seu pensamento. Segundo esta imagem, a autoconscincia apenas uma espcie particular da referncia a um objeto, e no uma conscincia de carter diferente que subjaz a qualquer conscincia intencional. O conhecido argumento do crculo, que se encontra no primeiro pargrafo da Doutrina da Cincia nova methodo e no Ensaio, tem justamente a funo de mostrar que esta imagem, a concepo da autoconscincia como surgindo originalmente de um ato de reflexo, inadequada. O argumento baseia-se na observao de que um sujeito, ao tornarse objeto do seu pensamento, s pode alcanar uma conscincia de si atravs deste ato na medida em que j possui algum tipo de autoconscincia. Pois a reflexo exige, ao lado do sujeito que reflete, a conscincia de que o objeto do seu pensamento idntico a si mesmo enquanto sujeito pensante. Se a autoconscincia pressuposta na reflexo fosse explicada novamente a partir de um ato de reflexo, um regresso infinito na explicao da autoconscincia seria inevitvel. O conceito de intuio intelectual, introduzido no primeiro pargrafo da Doutrina da Cincia nova methodo, tem de ser entendido a partir desse argumento: ele serve para explicitar o carter particular daquela conscincia de si pr-reflexiva que subjaz a qualquer conscincia intencional. Esta intelectual no sentido de que surge espontaneamente na conscincia. O conceito de intuio, entretanto, refere-se aqui a trs caractersticas diferentes da autoconscincia pr-reflexiva. Primeiro, ao aspecto de que nesta autoconscincia o sujeito pensante est presente. Assim, o eu prreflexivamente consciente no um objeto que pode ser distinguido do seu estar consciente, sendo independente disso; o eu existe apenas no sentido de que o contedo da autoconscincia pr-reflexiva. No entanto, a caracterizao como intuio serve7. Cf.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause, p. 30; e _____. Ensaio de uma nova exposio da Doutrina da Cincia.In:_____.A Doutrina-Da-Cincia de 1794 e Outros Escritos,pp. 181-2.Cf.adiscussoinfluentedoargumentoemHenrich,D.Fichtes ursprnglicheEinsicht.In:Cramer,W.;_____.(orgs.).Subjektivitt und Metaphysik.Frankfurt:V.Klostermann,1966,pp.188-232.

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tambm para destacar um outro aspecto da autoconscincia imediata: como a intuio sensvel, enfatiza Fichte, a intuio intelectual no nenhuma conscincia completa, isto , no constitui por si um estado consciente. Ela s ocorre como condio e parte de uma outra conscincia, a saber, de uma conscincia intencional. Assim, o conceito de intuio serve tambm para expressar a incompletude da autoconscincia imediata. Finalmente, o conceito de intuio tem a funo de destacar a ausncia de diferenciao como um aspecto da autoconscincia imediata. Determinao conceitual e diferenciao individual so apenas possveis no pensamento e, com isso, em relao com objetos. A autoconscincia imediata intuio tambm no sentido de que ela ainda no envolve tais atos epistmicos. Nela, o eu consciente no compreendido como o que , nem individualizado, isto , distinguido como sujeito singular de outros sujeitos. O resultado estabelecido implica que a autoconscincia imediata ainda no inclui aquela auto-referncia que nos caracteriza como pessoas, pois esta envolve a formao da uma autoconcepo, isto , de uma compreenso da prpria identidade. verdade que a autoconscincia imediata, que est envolvida na conscincia intencional como tal, a autoconscincia originria, sendo uma pressuposio de qualquer concepo de si que surge da reflexo. Mas ela ainda no fornece aquela referncia a si que constitui pessoas como tais. Por isso, Fichte diz que o eu tem de superar a mera autoconscincia pr-reflexiva e tornar-se um objeto do seu pensamento. Esta passagem da autoconscincia imediata para a reflexo, decisiva para toda a estrutura da Doutrina da Cincia nova methodo, no pode ser entendida como dizendo que um sujeito necessariamente forma uma autonconcepo, de modo que a subjetividade necessariamente d origem personalidade. A conscincia intencional e a autoconscincia imediata nela envolvida no implicam a8. Cf.omanuscritoNeueBearbeitungderWissenschaftslehrede1800,em: Fichte,J.G. Gesamtausgabeder Bayerischen Akademie der Wissenschaften.vol. II/5.Stuttgart:Frommann-Holzboog,1962,p.338. 9. Cf.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause,pp.38e49.

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necessidade de uma reflexo e da formao de uma autoconcepo a partir dela. Em vez disso, a formulao fichtiana marca a transio para uma questo ampliada, a passagem da investigao da autoconscincia, que necessria para qualquer conscincia intencional, para uma abordagem sobre a auto-referncia que constitutiva de pessoas. Assim, Fichte volta-se aqui para o ponto de vista prprio do ser pessoal, que pressupe a intencionalidade consciente, mas ainda no est estabelecido com esta. II. AIdentidadenormativacomocondiodaauto-referncia prtica A questo norteadora dos passos que se seguem ao primeiro pargrafo da Doutrina da Cincia nova methodo a de como possvel a conscincia de um si, isto , de si mesmo como objeto da reflexo. Nessa abordagem, Fichte parte de uma dualidade fundamental para a reflexo: um si um objeto real, que capaz de efetividade causal; ao mesmo tempo, ele tal que um sujeito consciente se identifica com ele. Neste sentido, realidade e idealidade so aspectos fundamentais de um si.0 Segundo Fichte, isso implica o carter prtico-volitivo do si, pois a efetividade real s pode ser entendida como atividade prpria na medida em que se baseia no pensamento, isto , em atos intencionais que se referem a objetos. Isso se segue do primeiro pargrafo da exposio, cujo resultado que a autoconscincia original uma conscincia pr-reflexiva de si como sujeito de atos intencionais. Assim, um si tem de ser inteligncia. Mas, ao mesmo tempo, o status do si como objeto exige que sua intencionalidade seja ligada efetividade real. Portanto, o seu pensar tem de ser um conceber de fins, iniciando aes (de ante-imagens, e no de ps-imagens, como Fichte o expressa). No entanto, isso significa que um si, em primeiro lugar, tem de ser concebido como querendo, como sujeito volitivo: possuir uma concepo de si signfica entrar numa auto-referncia prtica.10. Cf.Idem,p.48. 11. Cf. Idem, pp. 52-5. Cf. Stolzenberg, J. Fichtes Begriff des praktischen Selbstbewusstseins.In:Hogrebe,W.(org.).Fichtes Wissenschaftslehre 1794. Philosophische Resonanzen.Frankfurt:Suhrkamp,1995.

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O ponto de vista do agir, que com este resultado se torna o assunto prprio da abordagem fichtiana, tem de incluir alguma noo da prpria liberdade. Por isso a questo de que conceito de liberdade fundamental para a auto-referncia prtica tornase central para os passos seguintes da exposio fichtiana. Parece plausvel voltar-se neste ponto ao pensamento, indispensvel para o nosso agir, de que somos capazes de escolher fins, adotandoos pela prpria deciso. Fichte denomina a liberdade concebida como capacidade de escolher de liberdade material e, adotando os termos da discusso filosfica da sua poca, de liberdade do arbtrio (Freiheit der Willkr). E Fichte de fato se volta para a questo das condies sob as quais fins podem ser escolhidos, para explicitar o conceito de liberdade que fundamental para a autoreferncia prtica. No entanto, subjaz a isso uma inteno crtica, pois Fichte pretende mostrar que a concepo da liberdade de escolha, embora seja indispensvel para o nosso agir, no pode ser o conceito fundamental de liberdade na auto-referncia prtica. O conceito de liberdade de escolha, Fichte argumenta, depende de pressuposies, de modo tal que no pode ser reconhecido como o conceito fundamental de liberdade. assim que o conceito de liberdade transcendental, ligado ao de vontade pura, estabelecido no argumento fichtiano como o sentido de liberdade que fundamental para a auto-referncia prtica. A anlise crtica da liberdade de escolha proposta por Fichte visa, nos seus primeiros passos, destacar a estrutura do conhecimento emprico sem o qual a escolha de fins no seria possvel. nesse contexto que os conceitos de impulso e sentimento tm seu lugar, pois a considerao de fins possveis exige o conhecimento dos prprios impulsos: s se apresentam para uma pessoa12. Cf.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause,pp.46e158. 13. Comessaargumentao,Fichteformulaasuaposionadiscussosobre oconceitodeliberdadedoarbtrio,quesurgiraapartirdosegundovolumedasCartas sobre a Filosofia Kantiana de Reinhold,Leipzig1792(cf.,em particular,pp.262ss.)ecujosprincipaisautoreseram,almdeReinhold,K. Chr.E.SchmideK.F.Creuzer.Fichteentraranestadiscussojcomasua resenhadeCreuzerem1793.

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como fins possveis aqueles estados de coisas que satisfazem seus impulsos. O conhecimento dos prprios impulsos, por sua vez, inseparvel do conhecimento de situaes objetivas so estas que consideramos as causas do fato de que alguns dos prprios impulsos ainda no esto satisfeitos. Portanto, a contemplao de fins possveis pressupe a referncia a uma realidade independente, que nos delimita e que tem de ser transformada para determinados impulsos poderem ser satisfeitos. Conceitos de fins so essencialmente conceitos de transformaes das condies objetivas. Esse resultado significa que o exerccio da liberdade de escolha pressupe o conhecimento do estado de coisas objetivamente dado e, com isso, uma relao terica com o mundo. No entanto, segundo Fichte, vale igualmente a inverso desta proposio: o conhecimento emprico do mundo exige agir e, com isso, a intencionalidade prtica. No possvel construir uma imagem objetiva do mundo pelo mero intuir e pensar, mas somente ao movimentarmo-nos como agentes no mundo. Assim, argumenta Fichte, a determinao objetiva de distncias espaciais possibilitada por movimentos do sujeito cognoscente no espao. Este resultado decisivo para a estratgia dominante na anlise fichtiana das condies da liberdade de escolha. O exerccio da liberdade do arbtrio e a referncia a estados de coisas objetivos se pressupem mutuamente um ao outro, resultando em um crculo no qual, segundo Fichte, fica enredada qualquer teoria da auto-referncia prtica que considera fundamental o conceito de liberdade de escolha. Para resolver o crculo, conclui Fichte, preciso introduzir um conceito de liberdade que inclui o aspecto de uma objetividade delimitadora. Segundo isso, a liberdade tem de ser concebida como possuindo uma determinao objetiva que nos delimite. Assim, Fichte diz que o conceito de liberdade que fundamental para a auto-referncia prtica envolve uma determinao da liberdade mesma. No entanto, esta argumentao no convincente, pois14. Cf.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause,pp.66ess. 15. Cf.Idem,pp.117ess. 16. Cf.Idem,p.140.

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no claro em que medida a mtua relao pressuposicional entre o nosso querer e o conhecimento de condies objetivas exige uma terceira instncia na qual os dois aspectos, liberdade e objetividade delimitadora, esto unidos. Seria mais plausvel concluir que a conscincia da liberdade e o conhecimento emprico do mundo so dois aspectos intrinsecamente entrelaados da nossa conscincia que s podem surgir em conjunto. No entanto, mesmo que a argumentao de Fichte nesse ponto no seja satisfatria, com a noo de uma delimitao da liberdade mesma Fichte introduz uma concepo importante para a compreenso da auto-referncia prtica. Fichte caracteriza o aspecto em considerao mais precisamente como uma exigncia na qual uma pessoa v o seu carter principal. Assim, Fichte refere-se aqui ao status normativo da autoconcepo que fundamental para a compreenso que uma pessoa tem da prpria identidade. O modo como pessoas concebem sua identidade inseparvel de uma concepo do que devem ser e, com isso, da noo de que o seu agir est submetido a exigncias. do ponto de vista de uma tal autoconcepo que pessoas avaliam os seus impulsos e os fins possveis determinados por eles. Segundo isso, no seria apropriado conceber a liberdade de uma pessoa meramente como liberdade de escolha. Em vez disso, o exerccio da liberdade de escolha tal que nele a identidade prtica da pessoa faz-se valer. Assim, liberdade no sentido fundamental a capacidade da pessoa de corresponder nas suas decises s exigncias que ela considera essencialmente ligadas sua identidade. Com isso fica compreensvel em que medida o introduzido conceito de liberdade envolve uma sntese de liberdade e delimitao. O agir livre envolve essencialmente o aspecto de que as prprias escolhas so orientadas pelas exigncias delimitadoras que esto ligadas prpria identidade. Portanto, ele inclui um distanciamento em relao queles impulsos cuja satisfao seria incompatvel com estas exigncias. Assim, a noo fichtiana da unidade de liberdade e delimitao expressa a idia de17. Cf.Idem,p.148.

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que decises livres so necessariamente executadas a partir de uma autoconcepo normativa. Fichte denomina a exigncia qual a conscncia da prpria identidade se refere de vontade pura e de imperativo categrico. Com isso, ele introduz termos centrais da tica kantiana na explicitao da identidade prtica de pessoas. No entanto, no objetivo de Fichte justificar nesse ponto da argumentao um determinado princpio da moral. Os dois termos servem aqui para referir-se a aspectos da identidade prtica de pessoas. Uma exigncia que concebida como inseparvel da prpria identidade (como o prprio carter principal) no significa para uma pessoa uma delimitao que lhe seja externa; em vez disso, ela tem de ser considerada como determinao fundamental da prpria vontade. A pessoa no pode entender esta determinao superordenada da sua vontade como resultado das suas escolhas, visto que ela subjaz s suas decises, sendo, por assim dizer, a sua regra. No entanto, um querer anterior s prprias decises, que determine o modo como uma pessoa se relaciona com seus impulsos, pode ser denominado vontade pura. Tal querer ao mesmo tempo um imperativo categrico, pois submete decises a uma exigncia que no surge em funo de impulsos dados ou de fins arbitrariamente escolhidos, mas constitui o fundamento a partir do qual, para a pessoa, fins determinados devem ser escolhidos. Fichte introduz essa concepo, na Doutrina da Cincia nova methodo, como resultado de uma argumentao da qual foi dito que no convincente. E que tambm tem de ser avaliada como insuficiente sob um aspecto metodolgico, pois estabelece a concepo da identidade normativa a partir de uma perspectiva externa da conscincia do agente, a saber, como soluo de um problema terico de circularidade. No entanto, para entender a condio da auto-referncia prtica, preciso entrar no seu prprio ponto de vista. Assim, a concepo fichtiana s pode ser suficientemente fundada por uma argumentao que evidencia a necessidade de identificar-se com uma exigncia delimitadora a partir do ponto de vista do agente. A exposio de Fichte de fato aponta para um18. Cf.Idem,pp.142-3.

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argumento que cumpre essa exigncia. Numa nota que se refere ao argumento do crculo encontra-se o seguinte raciocnio:Todo o meu agir uma passagem da determinabilidade para a determinao, portanto deve existir algo ao qual a transio se atm; tem de existir algo contnuo e perdurante; procuramos e encontramos isso como o objeto imediato da conscincia; e esta determinaodavontadepuraoprincpiodaexplicaodetoda aconscincia.

O argumento esboado nessa passagem parte do fato de que agimos com base na conscincia de que escolhemos os nossos fins. Fichte descreve a escolha como uma passagem (berschweben) da contemplao ainda indecidida de possibilidades (da determinabilidade) direo do agir para um determinado fim. O aspecto decisivo para o argumento est na observao de que a escolha exige a conscincia de uma instncia que continuamente permanece durante tais passagens. Com isso, a necessidade de uma conscincia da prpria identidade que se estenda pelos atos de escolha torna-se central. A questo norteadora do argumento fichtiano a de como uma pessoa pode formar uma conscincia de sua identidade que tenha um contedo determinado. Obviamente, a conscincia da prpria liberdade de escolha no fornece uma base suficiente para isso. Na medida em que um sujeito atribui a si mesmo a capacidade de arbitrariamente adotar opes como fins, ele no concebe determinao alguma como essencial para si. Assim, a conscincia da liberdade de escolha no oferece resposta alguma pergunta sobre que pessoa sou eu pergunta que diz respeito prpria identidade. Neste ponto, Fichte introduz a tese de que um agente pode conceber a sua identidade em todas as suas decises apenas como a permanncia de um querer que essencial para ele. Portanto, uma pessoa tem de possuir a conscincia de uma identidade volitiva. No entanto, o querer constitutivo para a prpria identidade tem de ser concebido como anterior s prprias decises como um querer pelo qual todas as escolhas de fins se orientam. Assim,19. Idem,p.151(traduodoautor).

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a partir da identidade volitiva de pessoas que se entende por que determinadas escolhas so certas e importantes para elas. Neste sentido, a passagem para um determinado fim tem de aterse identidade. Com isso, Fichte estabelece a concluso de que a identidade de pessoas dada por uma exigncia delimitadora com a qual a pessoa se identifica. Numa abordagem acerca das condies da conscincia prtica da identidade surge, como resultado, justamente aquela concepo da vontade pura que Fichte j introduzira no argumento do crculo. No entanto, somente com este segundo argumento que Fichte introduz a concepo da identidade volitiva de pessoas a partir do ponto de vista do prprio agir, como uma condio intrnseca de escolhas conscientes. Como foi observado acima, Fichte expressa seu resultado com termos da tica kantiana: ao querer de ordem superior, que constitutivo para a identidade prtica da pessoa, ele chama de vontade pura; e exigncia normativa a que aquele submete as aes Fichte denomina categrica, porque no depende das escolhas da pessoa. De fato existe uma correspondncia entre a estrutura da vontade das pessoas, como descrita por Fichte, e a da vontade moral conforme concebida por Kant: a concepo kantiana da autonomia moral tambm se refere a um querer que , ao mesmo tempo, um dever. E o conceito kantiano de liberdade diz respeito capacidade, distinta da liberdade de escolha, de cumprir este dever. No entanto, importante notar tambm a diferena entre as abordagens de Kant e Fichte, que fica clara quando o ltimo diz que sua concepo no serve para fundar uma determinada moral. Isso seria a tarefa de uma Doutrina dos Costumes, isto , da tica, mas no o propsito daquela anlise da auto-referencia prtica que, segundo Fichte, faz parte da fundamentao de toda a filosofia.0 Assim, Fichte entende a exposio da identidade normativa de pessoas como sistematicamente anterior a qualquer fundamentao de uma tica especifica. Os termos kantianos, portanto, na exposio da conscincia prtica da identidade, ainda no tm20. Cf.Fichte,J.G.Wissenschaftslehre novamethodo.Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause,p.143(traduodoautor).

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nenhuma significao que envolva a aceitao da tica kantiana. Que a exigncia constitutiva da identidade seja categrica no implica que ela possui a validade universal que caracteriza o princpio kantiano da razo prtica pura. Em vez disso, categoridade no sentido aqui relevante uma funo da identidade volitiva: na medida em que uma exigncia est intrinsicamente ligada auto-concepo da pessoa, ela constitui o ltimo horizonte da orientao de tal pessoa a pessoa no possui um ponto de vista a partir do qual pudesse critic-la ou delimit-la por princpios de ordem superior. Ser categrico, nesses termos, compatvel com a particularidade. Assim, Fichte vincula na sua tica o conceito de identidade normativa com o conceito de individualidade moral, ou seja, com a idia de um particular papel (ou destino) moral do indivduo na comunidade. Portanto, fica indecidido em que medida a auto-concepo que constitutiva da identidade de uma pessoa tem de ligar-se a normas universalmente validas, questo qual voltaremos adiante. III. Acontribuiofichtianaeaanlisecontempornea doconceitodepessoa Como se mostrou acima, a Doutrina da Cincia nova methodo envolve uma concepo da auto-referncia prtica que visa esclarecer porque pessoas possuem uma autoconcepo que est intrinsecamente ligada a um dever, estabelecendo a identidade normativa como objeto de uma abordagem prpria. No que segue, pretende-se mostrar que Fichte, com isso, antecipou uma concepo que se tornou central na discusso mais recente sobre o conceito de pessoa. Fundamental para tal discusso a anlise do conceito de pessoa sugerida por Harry Frankfurt. O ponto de partida de Frankfurt em seu clssico artigo Freedom of the Will and the

21. Cf. Fichte, J. G. Das System der Sittenlehre. In: _____. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. vol. I/5. Stuttgart: FrommannHolzboog,1962,pp.229ess.

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Concept of a Person foi uma anlise do conceito de pessoa segundo a qual este se refere a uma determinada estrutura da vontade: o que caracteriza as pessoas o fato de no possurem apenas volies de primeira ordem, que so dirigidas para objetos ou estados a serem realizados pelo agir. Alm delas, pessoas tm volies de segunda ordem que so dirigidas para os motivos presentes na primeira, submetendo-os a uma avaliao. Assim, pessoas possuem a capacidade de distanciar-se criticamente dos seus motivos de primeira ordem. Ainda que todos estes, num certo sentido, pertenam pessoa, esta no se identifica com todos eles. Assim, o ponto de partida de Frankfurt na anlise do conceito de pessoa foi a idia do autocontrole volitivo como caracterstica de pessoas expressa em termos de volies de duas ordens. No entanto, esse resultado levanta a questo de por que volies de segunda ordem possuem tal importncia para uma pessoa, delimitando a esfera dos motivos de primeira ordem com os quais ela se identifica. Tem de haver alguma ligao entre as volies de segunda ordem e a identidade da pessoa a partir da qual tal importncia possa ser entendida. Assim, nos trabalhos posteriores quele artigo, Frankfurt ampliou a sua abordagem ao discutir o modo como a identidade de uma pessoa se constitui. O ponto de partida foi a noo comum de que somos capazes de tomar as nossas prprias decises. essa a concepo que subjaz idia de um agir e de uma vida autodeterminada. Frankfurt observa que a idia da autodeterminao no deve ser confundida com a de uma liberdade no-delimitada de escolha. Esta, ao contrrio, implica que a pessoa , por assim dizer, um quadro vazio que poderia adotar igualmente qualquer opo. Mas neste caso as decises seriam arbitrrias, e no autodeterminadas. A idia de decises determinadas pela prpria pessoa pressupe22. Frankfurt,H.FreedomoftheWillandtheConceptofaPerson.In:The Journal of Philosophy68(1971),pp.5-20. 23. Cf.,emparticular,osartigosreunidosemFrankfurt,H.The Importance of what we care about. Philosophical Essays.Cambridge:CambridgeUniversity Press, 1988; e _____.On the Usefulness of Final Ends. In: Iyyun. The Jerusalem Philosophical Quarterly41,1992,pp.3-19.

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que ela possui uma identidade que subjaz s decises que toma e que se expressa nelas. Sem a concepo de uma tal identidade, no seria compreensvel a afirmao de que as decises remontam pessoa mesma. Isso pressupe que esta j seja algo determinado antes das decises, possuindo uma identidade que as oriente. neste ponto que a concepo da identidade volitiva de pessoas entra na anlise de Frankfurt: a identidade da pessoa, para orientar as suas escolhas, deve ser constituda por volies de ordem superior que delimitam as escolhas aceitas por ela. Tais volies por constiturem a identidade da pessoa no podem ser entendidas por ela como resultado das escolhas que toma. Assim, a pessoa considera-se a si mesma como submetida a elas nas suas decises: h nelas uma exigncia que dada pelo que ela essencialmente. Frankfurt fala, por isso, do carter categrico que possuem as volies de segunda ordem envolvidas na identidade da pessoa. Ao mesmo tempo, no entanto, Frankfurt enfatiza a particularidade da identidade volitiva: ela constitui-se pelo que ele chama de caring (preocupao), isto , a dedicao a algo para que a pessoa dirige o seu agir pode ser, por exemplo, uma outra pessoa, os valores de uma tradio ou um ideal utopista. De qualquer modo, do fato de uma pessoa encontrar a sua identidade na dedicao a um determinado fim no se segue que outras pessoas devam fazer o mesmo. Em virtude de sua identidade volitiva, portanto, as pessoas consideram-se a si mesmas como submetidas a exigncias que so particulares, embora para elas categricas. Com isso, evidencia-se a afinidade entre a anlise de Frankfurt e a concepo fichtiana da identidade prtica de pessoas: ambos adotam a concepo da identidade volitiva de pessoas. Ambos concebem essa identidade como uma determinao de ordem superior proveniente da vontade que submete as escolhas da pessoa a uma restrio auto-imposta. Em ambas as posies surge, como conseqncia disso, a concepo de uma categoridade envolvida no ponto de vista da pessoa. E ambos, finalmente, estabelecem esta concepo numa crtica da noo de liberdade como faculdade de escolher, introduzindo a identidade volitiva como o prprio ponto de partida para a compreenso adequada de liberdade. Portanto, a posio de Frankfurt pode ser considerada uma reformulao26

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contempornea do resultado da anlise fichtiana da auto-referncia prtica de pessoas. No entanto, preciso destacar tambm uma diferena entre as concepes de Fichte e Frankfurt que diz respeito ao carter particular do contedo normativo ligado autoconcepo de pessoas. Segundo Frankfurt, a identidade prtica de pessoas definitivamente particular. Assim, pessoas podem adotar qualquer valor ou ideal (ou melhor, qualquer concepo que considerem um valor ou ideal) como essencial para si, definindo assim que tipo de pessoa so. Com isso, a identidade prtica em Frankfurt no tem nenhuma ligao intrnseca com uma racionalidade universal com a moralidade no sentido kantiano. Fichte, ao contrrio, defende que a autoconcepo normativa de pessoas est essencialmente vinculada a um ideal de autodeterminao da humanidade, de tal modo que a pessoa concebe a efetuao da sua identidade como a sua contribuio para esse fim universal. A identidade normativa no sentido fichtiano particular, mas uma identidade moral da pessoa. Com isso, Fichte introduziu o conceito de individualidade moral, que, segundo ele, no pode ser simplesmente reduzido aplicao de um princpio formal s situaes particulares de uma pessoa. Fichte manteve assim, na sua concepo da identidade normativa de pessoas, uma ligao positiva com a tica kantiana, enfatizando, no entanto, o carter individual da identidade moral de uma maneira que no corresponde mais tica kantiana. Na literatura mais recente, foi Christian Korsgaard quem se voltou para a vinculao entre a identidade normativa de pessoas e a idia de uma razo universal, argumentanto que a identidade volitiva das pessoas, no seu nvel fundamental, tem de ser concebida como uma identidade moral no sentido kantiano. Segundo Korsgaard, este argumento decisivo para a justificao da tica kantiana. A partir da posio de Korsgaard, assim, tornou-se presente, na discusso contempornea, a tese ligada anlise da auto-referncia prtica na Doutrina da Cincia nova methodo, a saber, que a concepo pr-tica da identidade volitiva de pessoas no apenas um campo prprio da anlise24. Cf. Korsgaard, C. The Sources of Normativity. Cambridge: Cambridge UniversityPress,1996.

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filosfica, mas tambm fornece o pano de fundo conceitual a partir do qual questes da fundamentao da tica tm de ser discutidas. BIBlIOgrAFIA:FICHTE, J. G. Das System der Sittenlehre. In: _____. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Vol. I/5. Stuttgart: Frommann-Holzboog,1962. _____. Neue Bearbeitung der Wissenschaftslehre. In: _____. Gesamtausgabeder Bayerischen Akademie der Wissenschaften.vol.II/5. Stuttgart:Frommann-Holzboog,1962. _____. Wissenschaftslehre nova methodo. Kollegnachschrift K. Chr. Fr. Krause.Org.deE.Fuchs.Hamburgo:F.Meiner,1982. _____.A Doutrina-Da-Cincia de 1794 e Outros Escritos.Trad.deRubens RodriguesTorresFilho.SoPaulo:AbrilCultural,1984. FRANKFURT,H.FreedomoftheWillandtheConceptofaPerson. In:The Journal of Philosophy68(1971),pp.5-20. _____. The Importance of what we care about. Philosophical Essays. Cambridge:CambridgeUniversityPress,1988. _____. On the Usefulness of Final Ends. In: Iyyun. The Jerusalem Philosophical Quarterly41,1992,pp.3-19. HENRICH, D. Fichtes ursprngliche Einsicht. In: CRAMER, W.; _____. (orgs.). Subjektivitt und Metaphysik. Frankfurt: V. Klostermann,1966. KANT, I. Fundamentao da Metafsica dos Costumes. Trad. de F. Gottschalk.Lisboa:Edies70,2003. NEUHOUSER,F.Fichtes Theory of Subjectivity.Cambridge:Cambridge UniversityPress,1990. STOLZENBERG, J. Fichtes Begriff des praktischen Selbstbewusstseins.In:Hogrebe,W.(org.).Fichtes Wissenschaftslehre 1794. Philosophische Resonanzen.Frankfurt:Suhrkamp,1995.

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Impulso verdade e impulso artstico: uma leitura de Sobre verdade e mentira no sentido extra-moralThelma Lessa da FonsecaProfessora do Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias da UFSCar

Resumo: Em Ueber Wahrheit und Abstract: In Ueber Wahrheit und Luege in aussermoralischen Sinne, a Luege in aussermoralischen Sinne discussotravadaemtornodeduas onefindsadiscussionbetweentwo noes, cada qual sinalizando uma notions, each of them pointing atitude especfica em relao lin- out to a specific attitude regarding guagem:impulsoverdadeeimpulso language: truth drive and artistic artstico.Oartigoquesesegueparte drive.Thispapertakesintoaccount dadistinoentreessasduasnoes these two conceptions with the comoobjetivodeespecificarqueno- intentionofspecifyingwhatnotion odeverdadeestemjogonacrtica oftruthisatstakeintheNietzschean nietzschianafeitanessetexto. critiquecarriedoutinthistext. Palavras-chave: impulso verdade, impulso artstico, conscincia, linguagem. Key-words:truthdrive,artisticdrive,consciousness,language.

Somos instados ao cumprimento dessa dupla tarefa (dar realidade ao necessrio em ns e submeter a realidade fora de ns lei da necessidade) por duas foras opostas, que nos impulsionam para a realizao de seus objetos e que poderamos chamar convenientemente de impulsos.

O ensaio introdutrio chamado Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral toma, como ponto de partida, a pergunta pela origem do Trieb zur Wahrheit. Inicialmente, tal noo possui um sentido bastante abrangente de interesse pela verdade ou propenso busca da verdade. Aos poucos, o texto deixa entrever1. Schiller,F.A educao esttica do homem,cartaXII.Trad.deRobertoSchwartz eMrcioSuzuki.SoPaulo:Iluminuras,1990,p.67.

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que esse interesse parte de uma suposio, a saber, a suposio de que a inteligncia humana seja capaz de nos levar a conhecer algo das coisas em si mesmas. Isso pode ser inferido pelo teor da crtica que Nietzsche desenvolve ao conhecimento, pois esta crtica dedicada a destruir os fundamentos da expectativa de que o conhecimento racional possa representar-se algo das coisas em si mesmas, o que freqentemente interpretado como crtica a uma idia de verdade como adequao e que, portanto, reinsere Nietzsche no contexto das discusses sobre o conhecimento travadas pelas chamadas filosofias da representao. So dois os principais argumentos utilizados por Nietzsche que permitem entender que crtica se contrape a uma concepo de conhecimento assim descrita: em primeiro lugar, h a idia de que todo conceito antropomrfico e, ao invs de refletir algo da essncia das coisas, apenas revela elementos projetados pelo prprio homem no mundo. Tal idia est apoiada em uma concepo de linguagem como originalmente metafrica. Em segundo lugar, o autor defende uma concepo do intelecto a partir da qual tudo aquilo que ele pode abranger passa pelo filtro de interesses de auto-conservao da coletividade. Assim, no haveria objetividade possvel, pois no haveria conhecimento desinteressado. Dessa forma, Nietzsche estaria operando, em Wahrheit und Luege, com as idias de verdade como adequao e de conhecimento como conformidade, ainda que para recus-las. Se conhecimento no pode abranger, por sua constituio e utilidade original, as coisas em si mesmas, ento cabe perguntar pela origem dessa expectativa. Trata-se, dessa forma, de uma pergunta pela origem da pretenso do conhecimento racional, pergunta essa que se sustenta sobre a constatao de seus limites.2. Habermas, J. La Critica Nihilista del Conocimiento en Nietzsche. In:_____.Sobre Nietzsche y otros ensayos.Trad.deCarmenG.Trevijanoe SilverioCerra.Madri:Tecnos,1982(utilizou-se,aqui,atraduoespanhola doensaioqueserviucomoeplogopublicaodaSuhrkampdeumaantologiadeescritossobreteoriadoconhecimentoemNietzsche).Nesteartigo, HabermastrataespecificamentedeWahrheit und Luegeereconhecehavera umateoriadoconhecimentoque,mesmoimplcita,comprometeriaoautor comanoodeverdadecomoadequaoe,conseqentemente,comaschamadasfilosofiasdarepresentao.Cf.op. cit.,pp.44-52.

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Detenhamo-nos aqui em compreender aqueles dois argumentos para, em seguida, investigar o sentido da pergunta pelo Trieb zur Wahrheit feita por Nietzsche. Ao reafirmar o carter arbitrrio da linguagem que fornece os alicerces do conhecimento racional, Nietzsche retoma a argumentao de seu Curso de retrica para mostrar que a linguagem tem uma origem trpica e que no h qualquer relao de necessidade entre as palavras e aquilo que elas pretendem significar:Umestmulonervoso,primeiramentetranspostoemumaimagem! Primeirametfora.Aimagem,porsuavez,modeladaemumsom! Segundametfora.(...)Acreditamossaberalgodascoisasmesmas, se falamos de rvores, cores, neve e flores, e no entanto no possumosnadamaisdoquemetforasdecoisas,quedenenhum modocorrespondemsentidadesdeorigem.

Apia-se sobre trs pontos a argumentao em favor da idia de que toda linguagem metafrica. Em primeiro lugar, conforme est dito no trecho acima, quando qualificamos um objeto qualquer pensamos estar denominando uma qualidade da prpria coi3. Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: _____. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe. vol. I. Org. de Giorgio Colli e MazzinoMortinari.Berlim:WalterdeGruyter,1980.p.881.Sempreque possvel, sero utilizadas as tradues de Rubens RodriguesTorres Filho deNietzsche,F.Obras Incompletas.SoPaulo:AbrilCultural,1978.Nesse trecho transparece novamente a idia de Gerber de que a palavra uma transposiodeumestmulonervosoemsons:Esmussuebrigensschon andieserStelleaufdenUnterschiedzwischendemInhaltderEmpfindung und dem Inhalt ihrer Aeusserung durch den Laut hingewiesen werden. Die Empfindung naemlich, wie sie unmittelbar, durch irgend einen Nervenreiz hervor gerufen wird, nimmt zwar das Ding selbst, vom dem dieserReizausgeht,nichtinsichauf,abersiestehtdochmitihmineinen direkten,sinnlichenBezuge,erscheintvonihmabhaengig,gleichsamvon ihmerfuellt.WirdaberdieseEmpfindungnachaussenhindargestellt,so istderZusammenhangmitdemReizveranlassendenDingnurnochein mittelbarer,unddieDarstellunglaesstnothwendigdasDingausserAcht, und damit auch die genauere, individuelle Bestimmtheit des Reizes. Meijers,A.Die Sprache als Kunst.Berlim:WalterdeGruyter,1988,p.157; cf. tabela de concordncia em Meijers, A.; Stingelin, M. Gerber und NietzscheKonkordanz.In:Nietzsche Studien,v.XVII,1988.

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sa, como se tal propriedade fosse conhecida por ns (...) de outra forma que de uma maneira inteiramente subjetiva. No entanto, apenas temos acesso a estmulos internos provavelmente constitudos de um material absolutamente diverso daquele que constitui a suposta coisa que o desencadeou.

Em segundo lugar, cada denominao reflete a eleio arbitrria de uma caracterstica, como se tal caracterstica fosse exclusiva daquela entidade a que buscamos nos referir. O exemplo utilizado pelo autor aqui um exemplo retomado do Curso de Retrica: Falamos de uma Schlange (cobra): a designao no se refere a nada mais do que o enrodilhar-se, e portanto poderia tambm caber ao verme. Que delimitaes arbitrrias, que preferncias unilaterais, ora por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! O exemplo demonstra que uma mesma denominao seria adequada para referir-se a coisas distintas. Mas demonstra ainda que nossa excitao interna consiste num composto de diversos elementos, os quais, por sua vez, so arbitrariamente separados e, a partir desse composto, um desses elementos, ou um grupo deles, escolhido para fixar a denominao. H ainda, em terceiro lugar, o caso em que os mesmos objetos so denominados por diferentes nomes, tal como nos mostram as diferenas entre as inmeras lnguas. Disso conclui Nietzsche que no existe expresso adequada.

4. Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: _____. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe, vol. I, p. 881. Tambm esse exemploprovmdeGerber,conformemostraMeijerseStingelin:Wenn nun z.B. die Lateiner dasWort serpens, Kriechend, als Bezeichnung der Schlangebrauchten,soKantgefragtwerden,warumesihnennichtetwa Schneckebedeute,dennauchdieseistjaserpens,(...)beide:serpensund Schnecke bezeichnen also durch eine nur einseitige Wahrnehmung die ganze und volle Anschaung. Meijers, A.; Stingelin, M. Gerber und NietzscheKonkordanz.In:Nietzsche Studien,p.355. 5. Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: _____. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe, vol. I, p. 881. Em se atentando para a nota anterior, observa-se que tambm essa idia est presente em Gerber.

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Vejamos as implicaes desses trs pontos da argumentao. At aqui temos: uma tentativa de mostrar que, costumeiramente, tomamos impresses meramente subjetivas pelas prprias coisas; um empenho em delatar que, mesmo se tais impresses fossem suscitadas pelas coisas, jamais poderamos saber se nessas impresses conservada alguma caracterstica das coisas tais como so em si mesmas. O terceiro ponto da argumentao, referente distino entre as lnguas, consiste numa comprovao dos dois primeiros pontos: tal diferena nos mostra que a palavra no reflexo da prpria coisa e, mesmo que seja uma conseqncia de qualquer espcie dela (isto , que guardasse alguma relao de causalidade com ela), no manteria nenhuma de suas caractersticas essenciais. Com isso, pode-se entender que Nietzsche concentra seus esforos no sentido de limitar o alcance da linguagem ao mbito fenomnico, e qualquer tentativa de lan-la para alm desse mbito no passa de um procedimento antropomrfico, pois significaria projetar no exterior aquilo que fruto de uma criao humana arbitrria e apenas tem sentido para o homem. O segundo argumento, em favor da idia de que a linguagem no est apta a alcanar as prprias coisas, erige-se sobre o fato de que o intelecto apenas um instrumento de auto-conservao, no estando, por sua origem, apto a descobrir verdades. Tal intelecto (...) foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais in6. OfinaldaprimeirapartedeWahrheit und LuegeevidenciaqueNietzsche seapropriadanoodefenmenoemsuaformulaoschopenhaueriana: Emgeral,oqueparansumaleinatural?Noaconhecemosemsi,mas spelosseusefeitos,isto,nassuasrelaescomasoutrasleisdanatureza,queporsuavezssoconhecidaspornscomoconjuntoderelaes. Logo,todasestasrelaesnofazemmaisdoquereenviarconstantemente deumaparaaoutrae,noquerespeitaasuaessncia,soparanscompletamente incompreensveis; s aqueles com que contribumos, o espao, o tempo,isto,relaesdesucessoedenmeros,nossorealmenteconhecidos.Nietzsche,F.Sobre verdade e mentira no sentido extra-moraI.In:_____. Smtliche Werke.KritischeStudienausgabe,vol.I,p885. 7. OtermoIntellekt,torepetidamenteutilizadoporNietzscheemWahrheit und Luege,temcertamenteumteorfisiologistatantoquantoemSchopenhauer.

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felizes, delicados e perecveis dos seres, para firm-los um minuto na existncia, da qual, sem essa concesso, eles teriam toda razo para fugir to rapidamente quanto o filho de Lessing. Apenas por um orgulho desmesurado poderia o homem ter chegado a ignorar a fugacidade de sua prpria existncia e a insignificncia do intelecto cuja funo est circunscrita a ela. A inteligncia humana, segundo Nietzsche, pode servir como meio de auto-conservao de duas formas. Primeiramente, enquanto meio de preservao do indivduo em face de outros indivduos que, porventura, se mostrem ameaadores. Neste caso, o intelecto constri um jogo dissimulador com o objetivo de enganar o outro:O intelecto, como um meio para a conservao do indivduo desdobra suas foras mestras no disfarce; pois ele o meio pelo qual os indivduos (Individuum) mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles nos quais est vedado travar uma luta pela existnciacomchifresoupresasaguadas.8. Nietzsche,F.Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.In:_____.Smtliche Werke.KritischeStudienausgabe,vol.I,p876.Heine,emsua Contribuio Histria da Religio e Filosofia na Alemanha,citaacartadeLessingaTheodor Eschenburgemquerelatasuasimpressessobreamortedofilho:Minha alegriafoicurta.Ecomquedesgostoperdiessefilho!Vocnoacreditacomo aspoucashorasemquefuipaijmetransformaramnumarremedodepai! Seioqueestoudizendo.Nofoiaintelignciaquefezcomquetivessemde traz-loaomundoafrcepsquefezcomquesuspeitassedetudo?Nofoia intelignciaquefezcomqueaproveitasseaprimeiraocasioparadesaparecerdenovo?(...).Heine,H.Contribuio Histria da Religio e Filosofia na Alemanha.Trad.deMrcioSuzuki.SoPaulo:Iluminuras,1991,p.84.Esse trechodeLessingnoapenasilustraocarterfugazdavidahumanacomo, conseqentemente,enfatizaosentidoefmerodaracionalidadeaelarestrita,o qual,paradoxalmente,encontrasuafunonaconservaodestamesmavida. Agrandesabedorianoest,noentanto,nointelectoenquantoservodessa finalidade. Conforme j anunciava ao rei, o Sileno, na Origem da Tragdia, diz:(...)amelhorcoisanomundoestforadealcance:noternascido,no ser,nosernada.Masasegunda,paravoc,morrerlogo.Nietzsche,F.Die Geburt der Tragdie.In:_____.Smtliche Werke.KritischeStudienausgabe.vol. 3.Berlim:WalterdeGruyter,1980,p.35. 9. Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moraI. In: _____. Smtliche Werke.KritischeStudienausgabe,vol.I,p.876.

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A segunda forma pela qual o intelecto serve auto-conservao se apresenta(...)quandoohomem,aomesmotempopornecessidadeetdio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo depazeseesforaparaquepelomenosamximabellum omnium contra omnes desapareadeseumundo.0

Na primeira maneira pela qual o intelecto se constitui como meio de auto-conservao, a inteligncia serve unicamente para a conservao de um indivduo, o que pode implicar a destruio de um outro; por meio da segunda, ela serve no apenas conservao do indivduo, como tambm da coletividade. Aqui a auto-conservao est condicionada conservao da coletividade. Vale observar que Nietzsche atribui uma precedncia da primeira em relao segunda forma: antes, o homem desenvolvera o intelecto para o engano; posteriormente, por alguma razo (necessidade, tdio), ele condicionou sua sobrevivncia existncia da paz no interior de um todo social. Aqui j delineada a primeira caracterstica do intelecto humano: ele no perene. Sua efemeridade se d em dois nveis: num primeiro, por estar circunscrito fugacidade da existncia humana; num segundo nvel, dado seu carter utilitrio, seu papel pode se transformar de acordo com as circunstncias em que pode funcionar como meio de auto-conservao. Enquanto meio de auto-conservao do indivduo, a astcia caracteriza a atividade do intelecto: sua tarefa est no ludibriar, no mascarar. Apenas por pura vaidade, por um apreo pelo que superficial, enganoso, ilusrio, fugaz, por ter ele prprio uma existncia v e efmera, este homem se permite enganar-se sobre o alcance de seu intelecto, assim como o mesmo intelecto o teria enganado sobre o valor de suas verdades. Assim, no se pode entender de que maneira se lhe imputou a funo de buscar verdades, ou seja, no se pode imaginar por que o homem que vive isoladamente atribuiria ao intelecto a tarefa de conhecer algo das coisas em si mesmas, pensa Nietzsche. preciso, ento, considerar o intelecto como instrumento de conservao da vida em coletividade, para verificar em que medi10. Idem,p.877.

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da o pendor verdade, o Trieb zur Wahrheit, poderia ter descoberto a seus fundamentos. Se, na existncia isolada, o intelecto apenas engana, Nietzsche passa a considerar a possibilidade do impulso verdade ter se originado juntamente com a instaurao da sociedade: Esse tratado de paz traz consigo aquilo que parece ser o primeiro passo para alcanar aquele enigmtico impulso verdade. Dado esse primeiro passo, a seqncia do trajeto do conhecedor est traada:agora,comefeito,fixadoaquiloquedoravantedeveserverdade,isto ,descobertaumadesignaouniformementevlidaeobrigatria dascoisas,ealegislaodtambmasprimeirasleisdaverdade:pois surgeaquipelaprimeiravezocontrasteentreverdadeementira.

Quando o intelecto utilizado como meio de conservao da coletividade, a linguagem colocada a servio da comunicao. A, cada membro do todo social deve usar as convenes lingsticas de maneira correta, ou seja, ele deve dizer a verdade, caso contrrio estaria colocando em risco a segurana dos demais membros. Nesse contexto, entretanto, verdade apenas pode ser compreendida como conveno estabelecida no mbito da linguagem usada para a comunicao. O problema que semelhante concepo de verdade no responde pergunta inicial, que se voltava para a expectativa de que o conhecimento humano fosse habilitado para revelar-nos algo das coisas mesmas. Essa expectativa no passvel de justificaes, pois a verdade alcanada no mbito da comunicao reduz-se, no fim das contas, veracidade:oqueoshomensodeiamnoailuso,masasconseqnciasnocivas, hostis, de certas espcies de iluses. E tambm em um sentido restritosemelhantequeohomemquersomenteaverdade:desejaas conseqnciasdaverdadequesoagradveiseconservamavida.

Se apenas algumas iluses so rejeitadas, outras iluses no o so. As ltimas so chamadas verdades. Portanto, querer a verdade aqui significa preservar apenas as iluses que no causam da11. Idem,p.887. 12. Idem,p.877. 13. Idem,p.878.

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nos, que conservam a vida ao invs de amea-la. Assim, a busca da verdade no domnio da existncia em sociedade revela-se busca da veracidade e tem, ento, um sentido meramente utilitrio. A determinao do verdadeiro aparece aqui submetida legislao da linguagem. Entretanto, o uso do termo legislao (Gesetzgebung) indica que, se Nietzsche fala em conveno, no se pode depreender disso um acordo entre partes nem uma deliberao comum no que diz respeito fixao das denominaes. O que h, na realidade, um conjunto de normas a que todos se submetem a fim de evitar serem prejudicados. Trata-se de uma designao uniformemente vlida e obrigatria. Dessa forma, cada membro da coletividade deve limitar-se a usar a linguagem da forma sancionada pelo todo. Aquele que no respeitar tal legislao ser chamado mentiroso e correr o risco do banimento. Com isso, Nietzsche no chega a uma resposta sobre qual seja o fundamento do Trieb zur Wahrheit, enquanto impulso voltado para conhecer as coisas em si mesmas, isto , no chega a compreender por que via o conhecimento pode justificar racionalmente o motor de seu trabalho, qual seja: o pendor verdade no sentido clssico de adequao. Pois, at aqui, falou-se em coero veracidade, o que difere de um impulso verdade. No contexto social no se quer a verdade: -se coagido a respeit-la sob pena de sofrer punies (quando se mente) ou danos (quando se enganado). Mas o que se alcana a esse respeito tampouco so verdades, mas apenas a reiterao do universo lingstico fixado a partir de uma coero. Esse universo nada tem em comum com as coisas que busca designar. Assim, entendemos que, para Nietzsche, tanto o carter antropomrfico como o carter utilitrio do intelecto o tornam inapto a descobrir verdades, se por verdade for entendido um reflexo do mundo tal como em si mesmo. Dessa forma, permanece sem resposta a pergunta pelo fundamento da expectativa de que o conhecimento apreenda as coisas em si mesmas. Nietzsche quer apontar, atravs dessa discusso, para o fato de que o impulso verdade no pode justificar-se racionalmente. Diante disso, a pergunta pela origem do Trieb zur Wahrheit, feita repetidamente pelo autor desde o incio do texto, pode agora ser3

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entendida como pergunta voltada para a gnese de uma crena. E a resposta vem de forma clara: Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma verdade no grau acima designado. Assim, a questo pode ser precisada da seguinte forma: quais os mecanismos que promovem a transformao do fixado em determinao do mundo tal como ele em si mesmo, isto , como se engendra a idia de que h dados prvios prpria atividade do conhecimento, dados esses que justificariam a fixao da palavra? Trata-se, portanto, de compreender como ocorre o esquecimento de que toda palavra mera criao arbitrria humana. Em oposio ao impulso verdade, caracterstico do homem racional, h o impulso artstico, presente no homem intuitivo. Se o primeiro escravo de finalidades externas (autopreservao da espcie), orienta-se para a conservao e busca a fixao, o segundo se satisfaz com a imediatez da atividade ldica. Racionalidade e intuio se alternam em preponderncia no decorrer dos diversos momentos histricos e das diferentes culturas. Enquanto a Grcia pr-socrtica presenciou a vitria da segunda sobre a primeira, a poca moderna, diz Nietzsche, vive o inverso:Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na Grcia antiga,conduzsuasarmasmaispoderosamenteemaisvitoriosamente do que o seu reverso, pode configurar-se, em caso favorvel, uma civilizaoefundar-seodomniodaartesobreavida(...).Nema casa, nem o andar, nem a indumentria, nem o cntaro de barro denunciam que a necessidade os inventou: parece como se em todoselesfosseenunciadaumasublimefelicidadeeumaolmpica ausnciadenuvensecomoqueumjogocomaseriedade.

A sociedade grega aparece aqui como modelo do mundo no qual a criao artstica no sucumbe posio de instrumento til, no qual a arte domina a vida em vez de servir a ela como meio de conservao. O prazer ldico dispensa a necessidade de qualquer justificativa:14. Idem,p.878. 15. Idem,p.890.

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Ointelecto,essemestredodisfarce,estlivreedispensadodeseu serviodeescravo,enquantoelepodeenganarsemcausardano,e celebra ento suas Saturnais. Nunca ele mais exuberante, mais rico, mais orgulhoso e mais hbil e mais temerrio: com prazer criadoreleentrecruzaasmetforasedeslocaaspedras-limitedas abstraes, de tal modo que, por exemplo, designa o rio como caminhoemmovimentoquetransportaohomemparaondeele, docontrrio,teriadeirap.Agoraeleafastoudesioestigmada servilidade(...).

A arte o lugar onde o intelecto se v libertado da rigidez do pensamento conceitual, o lugar onde seu trabalho no pautado pela utilidade e pode, ento, iludir, ludibriar livremente. Assim, ainda que livre de sua atividade utilitria, ainda que livre de sua funo de enganar para a sobrevivncia, ele se dedicaria iluso como fonte de puro prazer esttico ou ldico. Essa atividade parece constituir o carter original do intelecto, ficando16. Idem,p.890. 17. AtnicadessasegundapartedeUber Wahrheit und Luegeevidencia,deum lado,apresenadoromantismoalemo(SchillereHlderlin),e,deoutro, doidealismodeIena(Schelling).Ainflunciadoprimeirosedeixarevelar naapreciaodomodelodavidagrega,emque,paraSchiller,aarteproporcionavaoverdadeiroequilbrioentrearazoeasensibilidade:na12. cartadasCartas sobre Educao Esttica,oautorexplicitaaexistnciadedois impulsosopostos,sendoque(...)oprimeiro(oimpulsosensvel)constitui apenascasos,osegundo(impulsoformal)forneceleis.Schiller,F.A educao esttica do homem,cartaXII,p.69.Oequilbrioentreambos,comose sabe,necessrioconsecuodoprojetoticoschilleriano,serencontrado naarte.EsseequilbriopodeserreconhecidoemNietzschecomoumequilbrio de foras entre o homem racional e o homem intuitivo. Conforme observaCharlesAndler(Cf.Andler,C.Nietzsche sa Vie et sa Pense.Paris: Gallimard, 1958, v. I, L. I, cap. III, pp. 33-49), muito expressiva a influnciadeSchillersobreNietzsche(Idem,p.33).Noquedizrespeitoao pontoaquimencionado,dizAndler:Nossabarbriemodernaamutila[a paixo sensvel] pelo excesso de saber e de clculo e nossa moral mesma estsemforas.(...)Apenasaartesabeestabelecerentreasensibilidadeea intelignciaoequilbriofelizque,concomitantemente,onaturalealiberdade.Schillerensinouumaeducaoestticadognerohumano.Nietzsche definiuaseupontodevistaltimocomooprolongamentodoesforode Schiller.MeuobjetivooobjetivodeSchiller,maselevadoinfinitamente. Idem,p.39.

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a veracidade na condio de corrupo desse carter resultante da vida em sociedade. Dizer a verdade, em sociedade, nada mais do que respeitar a mentira sancionada pelo todo. At aqui no parece haver grande diferena entre esta e a atividade anterior do intelecto como meio de conservao, isto , a atividade do intelecto enquanto expresso do Trieb zur Wahrheit. L tambm seu trabalho era o de enganar. No h, no que se refere sua atividade, oposio entre esses dois trabalhos do intelecto. Isso ocorre porque a verdadeira oposio no reside nos impulsos que o orientam. Quando o homem racional se sobrepe ao homem intuitivo, o lado artstico desse impulso , se no reprimido, ao menos mascarado, encoberto. Embora o impulso verdade no possa efetivamente subjug-lo, seu esforo se d no sentido de faz-lo. ento que, semelhana do mecanismo de sublimao, aquele encontra na arte, vez por outra, via livre de expresso. Na atividade artstica, ainda o intelecto que engana: O que quer que ele faa agora, tudo traz em si, em comparao com sua atividade anterior, o disfarce, assim como a anterior trazia em si a distoro. Apenas ocorre que, uma vez movido pelo impulso artstico, ele o faz livremente. A diferena, resultante disso, est em dois pontos: em primeiro lugar, como foi dito anteriormente, seus fins no so mediados, isto , aqui ele no busca satisfazer finalidades externas ao seu produto mais imediato. Em segundo lugar, ele copia a vida humana, mas a toma como uma boa coisa e parece darse por satisfeito com ela. Isso quer dizer que, diferena do seu papel anterior, o intelecto tem aqui um papel positivo em relao vida. No se trata de conserv-la, no se busca evitar que ela se aniquile. Antes ele a exalta em sua forma efetiva. Assim, temos um primeiro ponto de distino entre o impulso verdade e o impulso artstico: embora a atividade do intelecto seja em ambas a mesma (o ludibriar), na primeira o seu resultado pragmtico a conservao , enquanto na segunda esttico a elevao da vida categoria de obra de arte. V-se, portanto, que a diferena da funo18. Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moraI. In: _____. Smtliche Werke.KritischeStudienausgabe,vol.I,p.888. 19. Idem,ibidem.

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do intelecto, enquanto servo de cada um daqueles impulsos, reside numa posio distinta com relao vida. A idia de vida aqui tratada, por Nietzsche, como algo cuja referncia est na idia de efetividade, marcada pela imediatez e pela mutabilidade do devir heraclitiano. Na efetividade no h repetio no sentido estrito. H somente casos iguais no plano do conceito:Todo conceito nasce por igualao do no-igual. Assim como certo que nunca uma folha inteiramente igual a uma outra, certo que o conceito de folha pelo abandono dessas diferenas individuais,porumesquecer-sedoquedistintivo,edespertaento a representao, como se na natureza, alm das folhas, houvesse algoquefossefolha,umaespciedefolhaprimordial(...).0

Diante dessa vida identificada com a experincia efetiva da mutabilidade, o impulso criao de metforas (contrariamente ao impulso verdade) no representa, nem em sua forma e tampouco em sua produo, nenhuma atitude negadora. Ao contrrio, em seu contedo ele imita a vida e, na sua forma, ele prprio jamais encontra repouso em uma obra acabada, mas antes se incita pela possibilidade de substitu-la por outra:Constantementeeleembaralhaasrubricasecompartimentosdos conceitos,propondonovastransposies,metforas,metonmias, constantementeelemostraodesejodedaraomundodequedispe o homem acordado uma forma to cromaticamente irregular, inconseqentemente incoerente e eternamente nova como o mundodosonho.

A diferena reside no fato de que, quando voltado para a verdade, o intelecto busca um objeto que apazigue sua atividade criadora, ou seja, ele quer algo, uma verdade, que se sobreponha mutabilidade da experincia. Assim, seu objetivo est em alcanar a perfeita negao da vida, se por este termo for entendido efetividade. Resta lembrar que, se ele o faz, isso ocorre no momento exato em que esse intelecto torna-se instrumento de conserva20. Idem,p.880. 21. Idem,p.887.

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o. O impulso verdade, compreendido a partir dos elementos discutidos at aqui, caracteriza a reafirmao no apenas desta ou daquela denominao particular fixada, mas sim do fixo em geral:Pode-se muito bem aqui, admirar o homem como um poderoso gnioconstrutivo,queconsegueerigirsobrefundamentosmveis ecomoquesobreguacorrenteumdomoconceitualinfinitamente complicado(...).Ele,aqui,muitoadmirvelmassquenopor seuimpulsoverdade,aoconhecimentopurodascoisas.

A linguagem usada para a comunicao , portanto, conveno slida edificada sobre gua corrente. Partindo da idia de que as denominaes so forjadas a partir de modificaes internas, a partir de estmulos nervosos, entende-se que o conceito fixo tem sua base no fluxo das impresses, o qual est em movimento constante. Pode-se, ento, mensurar a distncia que separa o impulso verdade do impulso artstico criador de metforas. Enquanto o primeiro busca o fixado, tomando como legtima uma nica metfora em detrimento das outras tantas possveis, o segundo constantemente cria e recria as figuras de linguagem e, ao faz-lo, exalta a transformao e a multiplicidade da experincia efetiva. O esquecimento a que se refere esse texto de Nietzsche o esquecimento no sentido de que originalmente a palavra no visava fixidez, mas servia para reproduzir o fluxo constante das impresses internas. Sendo esse fluxo um dado subjetivo, quando se busca fix-lo no se erra, mas se mente. O homem mente, mas esquece o que faz:mente,pois,damaneiradesignada,inconscientementeesegundo hbitossecularesejustamenteporessainconscincia,justamente poresseesquecimento,chegaaosentimentodeverdade.

H dois nveis do esquecimento: no primeiro, o sujeito esquece que os conceitos tm sua origem nas metforas; mas esse esquecimento se sustenta sobre um outro nvel, a saber, a inconscincia de que ele prprio reitera as fices.22. Idem,p.882. 23. Idem,p.881.

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No incio do texto, Nietzsche enfatiza a idia de que o homem nada pode saber sobre si mesmo, j que est encerrado no cubculo de sua conscincia (Bewusstsein). H, deduz-se, uma parte do prprio homem que escapa sua conscincia. No final da primeira parte, o autor observa que caso o homem pudesse, ainda que por apenas um instante, abandonar a crena de que s palavras corresponde algo em si, (...) estaria imediatamente acabada sua autoconscincia (Selbstbewusstsein). Aqui, existe uma associao entre a crena na palavra e a autoconscincia, a qual implica que, sendo superada a primeira, a segunda se destruiria. Apenas para o indivduo, para o membro da coletividade, que sujeito e conscincia se identificam. ele que entende tudo aquilo que escapa sua conscincia como determinao externa ao humana. Ora, se percebesse que as palavras so meras criaes arbitrrias humanas, ele teria de, imediatamente, atribuir a si mesmo o papel de artfice dessa criao, sobre a qual sua conscincia no tem domnio. O esquecimento de que, na sua origem, a palavra uma pura fico se d, conclui-se, em decorrncia de um outro esquecimento, a saber, o esquecimento de si mesmo enquanto sujeito da criao artstica.24. Idem,p.877. 25. Idem,p.883. 26. Humainstnciacriadorainconscienteque,seignorada,resultaemquese entendaseralinguagemumprodutodadoaoshomensapartirdeinstnciasalheiassuaatividade.AquisedelineiaaheranadeSchellingsobreo pensamentodeNietzsche,presentenessetexto,aqualpodeserlocalizada naidiadequeosujeitodacriaoartsticanoseidentificacomaconscinciae,conseqentemente,projetanoexterioradeterminaodosprodutosdaquelacriao.SegundoNicolaiHartmann,Fichtetinhaexplicadoa suaidealidadepormeiodaatividadeirrefletidadoEu.Schellingaceitaessa idiaemtodasuaextenso,masd-lheumaformulaomaisfelizcomo conceito deproduo inconsciente. O que aparece ao entendimento ingnuocomoolimitedoEuemrelaoaumno-Euindependente,na verdade,apenasolimitedaconscinciadentrodoEu.Osujeitonosereduz conscinciapropriamentedita,necessitapossuirumcampoparaosseus atosinconscientes;precisoquehajanele,porassimdizer,umsegundoplanoinconscientenoqualseenrazetodaatividadeespontnea.Hartmann, N.A Filosofia do Idealismo Alemo.Trad.deJosG.Belo.Lisboa:Calouste Gulbenkian,s/d,cap.3,p.146.

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Com isso, a conscincia no apenas no constitui um espelho capaz de refletir o mundo como em si mesmo mas, indo alm, Nietzsche a apresenta como vu encobridor do sujeito da criao artstica (que extrapola o domnio da conscincia). A conscincia no a instncia que permite a superao do esquecimento, mas, ao contrrio, sendo orgulhosa e charlat, pretende-se e apresenta-se como idntica ao sujeito, o que a torna a sede do esquecimento por excelncia: tudo aquilo que se apresenta como tendo sido engendrado independentemente dela passa a ser interpretado como determinao prvia em relao ao sujeito individual, s criaes da coletividade, enfim, como dado anterior ao humana em geral. As consideraes de Nietzsche sobre o antropomorfismo da linguagem, que agora podem ser consideradas de uma forma mais aprofundada, buscam exatamente delatar a ausncia de fundamentos para a nossa crena no transcendente. Aquilo que percepo sensvel aparece como determinado a partir de instncias externas nada mais do que o produto de uma criao inconsciente, produto esse que, por uma srie de transposies, apresenta-se como coisa, objeto, de tal forma acabado que toma a feio de reflexo ou efeito do em si. O impulso verdade uma fora que impele justamente apreenso desse presumido objeto, cuja legitimao deve ser dada pela transcendncia. Portanto, parece legtimo compreender esse impulso como um pendor em direo ao fixo em geral, tendncia que pode ser interpretada como busca do dado. Se isso explica o motor do esquecimento do sentido original da palavra como criao artstica, o que engendra o pendor de tom-la como reflexo das prprias coisas, cabe agora perguntar pelo motor desse processo. Diante dessa nova meta, o seguinte trecho pode ser esclarecedor:Nosentimentodeestarobrigadoadesignarumacoisacomovermelha, outracomofria,umaterceiracomomuda,despertaumaemoo27. Essetermo,estranhoaoescritoaquiabordado,serutilizadocomoobjetivo deressaltarqueoTrieb zur Wahrheitnoapenasbuscaofixado,masofixo epreviamentedeterminado.

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quesereferemoralmenteverdade(...)[ohomem]colocaagoraseu agir como serracional sob a regncia das abstraes; no suporta maisserarrastadopelasimpressessbitas,pelasintuies.

Da obrigao se desenvolve uma emoo. O membro da comunidade , num primeiro momento, coagido a utilizar cada metfora da maneira fixada pelo todo social e, num segundo momento, passa a ver com repulsa no apenas todas as outras criaes metafricas que reivindicam a designao daquela mesma experincia mas, sobretudo, repugna-lhe assentir ao fluxo constante de suas prprias impresses internas. Para no ser arrastado pelas intuies, num movimento de auto-engano que, a sim, indiferencia impulso verdade de impulso artstico, cria-se a idia de aparncia enganosa, como vu encobridor da substncia fixa que se esconderia por detrs delas. A pergunta pelo motor do esquecimento pode, portanto, ser dividida em duas outras perguntas: a primeira, relativa razo do mal-estar provocado pela experincia da mutabilidade; a segunda, voltada a esclarecer o que haveria de moral nessa repulsa. Detenhamo-nos, por ora, na primeira pergunta. Nietzsche entende que o mundo emprico no um dado. Conforme j visto, uma vez ultrapassada a crena na determinao prvia dos conceitos, a prpria conscincia que nela cr se encontra ameaada. A atitude diante das vivncias internas se repete no que diz respeito conscincia: sua origem desconhecida e, como conseqncia, projetada em alguma instncia transcendente. Entretanto, o fato de que a conscincia seja incapaz de apreender sua prpria origem no autoriza a afirmar que ela no esteja submetida ao vir-a-ser. Assim como a idia de antropomorfismo buscava explicar de que maneira se engendra a crena no mundo objetivo, da mesma forma a noo de utilitarismo surge, nesse texto, para questionar a idia acerca da indeterminao da conscincia. A conscincia no transparente para si mesma porque instrumento de conservao do todo social e, enquanto tal, apreende unicamente o mundo28. Nietzsche, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moraI. In: _____. Smtliche Werke.KritischeStudienausgabe,vol.I,p.881.

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circunscrito pelos estreitos limites da linguagem. Ela serve comunicao e, portanto, seus fins lhe escapam, pois so determinados pelas necessidades da coletividade. Para a conscincia, questionar o dado significaria questionarse a si mesma, significaria suspeitar do conhecimento que ela pode ter de si prpria. No que diz respeito ao apreo pela verdade fixa imutvel, essa conscincia no apenas sua reproduo: ela sua prpria encarnao, pois se considera um dado. Assim, o que essa conscincia quer, ao supor o dado, ignorar a fugacidade de sua prpria existncia. A crena no dado permite a essa conscincia preservar a crena em sua prpria perenidade. Assim, a mutabilidade da experincia intuitiva repulsiva por denunciar a efemeridade do prprio indivduo que vivencia. Ela coloca em xeque a perenidade da conscincia. No que se refere ao sentido moral dessa repulsa, voltemos alguns passos atrs na discusso sobre a conscincia. Uma vez que o impulso verdade experimentado pela conscincia como busca desinteressada, evidencia-se que, para essa conscincia, no h escolha entre querer ou no a verdade. Ela busca o fixo, mas o que lhe escapa o fato de o valor da fixidez ser previamente determinado. Para dizer de outro modo, o impulso verdade quer o dado, mas a conscincia posta a seu servio se acredita dispensada de justificar a necessidade do fixo, j que, pressupondo sua validade, entende que o conhecimento apenas pode dar-se por ocasio de sua apreenso. A conscincia nem ao menos poderia voltar seus esforos no sentido de buscar fundamentos racionais para o valor do dado que ela objetiva alcanar, uma vez que ela , para si prpria, um dado e, assim, question-lo significaria suspeitar de sua prpria legitimidade, isto , colocar a si mesma em questo. Enfim, o impulso verdade aparece na conscincia como pendor ao fixo previamente determinado. Entretanto, a prpria conscincia, como construto, j fruto desse impulso, uma vez que v a si mesma como dada. Na medida em que o impulso verdade promove a reiterao do valor dado, mas, concomitantemente, se mostra incapaz de colocar em questo o valor desse mesmo dado por ele buscado, pode-se compreender esse impulso verdade como a prpria ne46

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cessidade do dado. O problema se torna moral pelo fato de que conscincia vedado reconhecer que tal necessidade engendrada pela ao dos homens no seio da vida em coletividade. Trata-se de uma coero ao fixado que por ela vivenciada como apreo pela verdade, apreo que encobre a necessidade do dado. Escapa-lhe, enfim, que seu impulso verdade resultante de uma certa configurao de foras no interior da existncia social e que o valor da fixidez resultante de uma norma socialmente imposta. Diante do temor da dissoluo da conscincia, o indivduo o membro do todo social a ela identificado desenvolve em si um sentimento de afeio pela norma. Ele tem uma tendncia espontnea a reafirm-la, tendncia calcada sobre a crena em sua prpria perenidade. Isso explica o que faz com que o valor da verdade seja progressivamente distanciado de sua utilidade original a coero veracidade , e passe a se impor de forma absoluta. O sentido fixado da palavra buscado como algo independente das relaes humanas, como algo determinado para alm dessas relaes, porque tal independncia a condio para que se possa acreditar na perpetuidade da existncia humana. possvel, ento, compreender aquilo que Nietzsche denomina questo moral como a introjeo da lei por meio de um valor que produz uma emoo. Emoo situada no temor da auto-aniquilao vivenciado pelo indivduo identificado com sua conscincia. Dessa forma, respondemos pergunta anteriormente formulada pelo motor do impulso verdade: pode-se agora concluir que, sendo tal impulso um pendor necessidade do dado no sentido acima descrito, tal necessidade deve seu aparecimento preservao do todo social. Na medida em que ela no pode aparecer como tal conscincia individual, e no pode faz-lo como condio mesma de sua prpria conservao, tomar a necessidade do dado como vlida per se (e no como necessidade circunscrita a um determinado momento histrico) significa a introjeo das normas sociais por meio de um sentimento. Com isso se explica por que surge o impulso verdade: necessrio que cada membro da coletividade respeite as formas fixadas e, para que esse respeito no seja quebrado, cria-se a ilu4

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so de que a validade dessas formas antecede as aes humanas e dada por fatores externos a essas aes, ou seja, incute-se na comunidade a crena de que essa validade determinada pela correspondncia entre palavra e coisa, o que resulta em que ela se apresente aos homens como inquestionvel. Se no h adequao, tampouco h conveno que seja capaz de legitimar a fixidez na linguagem. A fixao dos termos resultante de um impulso que extrapola o terreno abarcado pela conscincia, o que impede a consecuo de um acordo intersubjetivo sobre o uso da linguagem. Alm disso, entretanto, a conscincia representa a instncia de reproduo das regras socialmente impostas, na medida em que o solo sobre o qual se sustenta o esquecimento. Finalmente, tal concepo deflagra um problema moral, visto que toda discusso sobre os limites do conhecimento travada pelo autor termina por se revelar voltada para o questionamento de um valor absoluto atribudo verdade. Mostrar a arbitrariedade da linguagem resulta na construo da suspeita de fixidez na linguagem. Conseqentemente, o que Nietzsche realmente faz delatar a necessidade do dado que move todo trabalho do conhecimento. Esse o sentido da pergunta inicial acerca da origem do Trieb zur Wahrheit. Uma vez que essa necessidade resultante de uma lei social, mas, ao mesmo tempo, vivenciada subjetivamente como impulso espontneo, o problema em questo diz respeito ao mbito da moral. A partir disso, possvel afirmar que Nietzsche no est realmente preocupado com o alcance do conhecimento racional. Sua preocupao se volta para o campo da moral: somente isso justificaria seu tratamento das questes de teoria do conhecimento, as quais, do ponto de vista da problemtica moral, acabam por configurar um pseudoproblema, um sintoma de um problema maior e anterior. Levar a srio a discusso sobre a possibilidade de alcanar as coisas em si mesmas, presente no incio de Wahrheit und Luege, significaria legitimar a preocupao com o referencial externo que o prprio autor delata como sendo reflexo da necessidade do dado, isto , como fruto do impulso verdade.48

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Dessa forma, qualquer tentativa no sentido de situar a discusso central de Wahrheit und Luege no mbito da teoria do conhecimento significaria apenas uma nova reiterao da necessidade do dado. Isso porque, segundo Nietzsche, quando se discute a possibilidade de apreenso da essncia das coisas ou da coisa em si, j se toma o referencial externo como determinante daquilo que se entender por conhecimento. Entretanto, a validade de tal referencial no pode ser justificada racionalmente, ou seja, no pode ser conhecida no mbito da conscincia. Sendo tal validade estabelecida no terreno da moral, terreno este que impulsiona o prprio trabalho do conhecimento racional, a teoria do conhecimento no pode se posicionar criticamente diante dela. Ernst Behler, ao comparar a crtica nietzschiana ao pensamento conceitual com a crtica racionalidade feita pe