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Cadernos da Semana de Letras Ano 2011 Volume II - Trabalhos Completos Universidade Federal do Paraná Curitiba, 23 a 27 de maio de 2011

Caderno Semana 2011 - Volume II

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Cadernos da Semana de LetrasAno 2011 Volume II - Trabalhos Completos Universidade Federal do Paran Curitiba, 23 a 27 de maio de 2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES COORDENAO DO CURSO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ESTRANGEIRAS MODERNAS DEPARTAMENTO DE LINGUSTICA, LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS CENTRO ACADMICO DE LETRAS

COMISSO ORGANIZADORA PRESIDENTE Eduardo Nadalin (DELEM/Vice-Coordenador do Curso de Letras) VICE-PRESIDENTE Mrcio Renato Guimares (DLLCV/Coordenador do Curso de Letras) SECRETARIA GERAL Rodrigo Tadeu Gonalves (DLLCV) COMIT CIENTFICO Joo Arthur Pugsley Grahl (DELEM) Nylca Thereza de Siqueira Pedra (DELEM) Camila de Oliveira Afonso (discente) Carlo Giacomitti (CAL) Elisa Tisserant de Castro (CAL) Jos Olivir de Freitas Junior (CAL)

EDITOR Eduardo Nadalin COMIT DE PUBLICAO Joo Arthur Pugsley Grahl Marcio Renato Guimares Nylca Thereza de Siqueira Pedra Camila de Oliveira Afonso Carlo Giacomitti Elisa Tisserant de Castro Jos Olivir de Freitas Junior Rodrigo Tadeu Gonalves NORMALIZAO BIBLIOGRFICA Jos Olivir de Freitas Junior PRODUO GRFICA Jos Olivir de Freitas Junior 1 edio Catalogao-na-publicao Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) S471c Semana de Letras (3. 2011: Curitiba, PR) Cadernos da Semana de Letras: trabalhos completos / Semana de Letras, 23 a 27 de maio de 2011, Curitiba, PR. Curitiba: UFPR: 2011. 481 p. ISSN 2237-7611 1. Universidade Federal do Paran Congressos. 2. Universidades e faculdades Pesquisa Congressos. I. Ttulo. CDU 8(048.3)Bibliotecrio Mauro C. Santos CRB 9/1416

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NDICE DE AUTORESALMEIDA, Andr Luiz de Oliveira: 8 ANDRADE, Thalita R.: 21 BENFATTI, Maurcio Fernandes Neves: 274 BORDINI, Maria Isabel da Silveira: 29, 40, 174 BOURSCHEID, Marcelo: 52 BROUGHTON, Lois: 357 CAMARGO, Luiz Rogrio: 62 CARLI, Felipe Augusto Vicari de: 74 CARVALHO, Raphael Guilherme de: 87 COLLING, Ivan Eidt: 95, 108 COSTA, Filipe Reblin: 121 DVILA, Andressa: 128 DISSENHA, Glaucia Aline: 140, 165 FERREIRA, Rodrigo Bueno: 274 FIGUEIREDO JUNIOR, Selmo Ribeiro: 8,152 FRANCO, Crislaine Loureno: 165 FRANZONI, Guilherme A.M.C.: 21 GABRIELE, Maria do Socorro Gonalves: 174 GARCEZ, Simone B.G.M.: 21 GODOI, Elena: 8, 274 GRIPP, Maristela dos Reis Sathler: 186 GUBERT, Antonio Luiz: 196 HERRERA, Gabriela Cardoso: 205 IZQUIERDO, Elianne Vanisse Martinez: 216 KNPFLE, Andrea: 228 KOVALSKI, Josoel: 240 LEAL, Ednei de Souza: 252 LEAL, Maria Aparecida Borges: 262 LUBAWSKI, Patrick: 165 MAZUROSKI JR, Aristeu: 274 MESQUITA, Fabio Luis Fernandes: 286 MOREIRA, Jos Carlos: 298 ORVATICH, Josiane: 313 OZAKI, Francine Fabiana: 325 PAJEWSKI, Neusa: 417 PAJEWSKI, Renato: 417 PERIN, Bernardo Antnio Beledeli: 333 PINTO, Ricardo Peixoto: 341 REBOUAS, Laiza: 357 RIBEIRO, Patrick Fernandes Rezende: 349 SALES, Ana Paula Almeida Sales: 357 SCANDOLARA, Adriano: 368 SCHREINER, Vanessa: 21 SILVA, Juliana Camila Milani da: 8 SILVA, Thiago Rodrigues da: 382 SIMO, Diogo: 393 SOUZA JR., Lourival M.: 21 SOUZA, Luiza dos Santos: 401 SPRENGER, Raphael Turra: 408 STEIN, Jaqueline Scot: 357, 417 TREVIZAN, Suelen Ariane Campiolo: 425 VAILATTI, Teurra Fernandes: 437 WARMLING, Liana Bisolo: 447 WIELER, Rodrigo: 457 ZANOTTI, Luiz Roberto: 469

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Pensamento sistmico, teoria da relevncia e teoria da polidez: apontamentos iniciais para abordagens do continuum biolgico-cognitivo-sociolgico1Andr Luiz de Oliveira Almeida Elena Godoi Juliana Camila Milani da Silva Selmo Ribeiro Figueiredo Junior Apresentao

Quando fizemos a comunicao coordenada que serve de base para este artigo2, denominada Teoria da relevncia, teoria da polidez e pensamento sistmico: uma inter-relao epistemolgica sob lentes pragmticas, pretendamos discutir se haveria, por parte dessas diferentes teorias, alguma congruncia na reflexo de objetos do conhecimento tais como a linguagem e a comunicao, bem como se poderia haver algum proveito originado dessa postura reflexiva a favor dos estudos pragmticos. Tambm foi nessa ocasio que perguntamos se esse modo interdisciplinar de nos reportar aos objetos do conhecimento mencionados faria evidenciar quais so os elementos imprescindveis para a intercompreenso entre os sujeitos e, ainda, onde estaria o lugar privilegiado do cientista em sua tarefa. Quanto ao questionamento em relao congruncia no trato de objetos em comum por parte da teoria da relevncia (TR), da teoria da polidez (TP) e do pensamento sistmico (PS), estvamos intuitivamente seguindo uma ideia cuja expresso aproximada o grfico 1, abaixo, pode aludir.

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Esta discusso se desenvolveu a partir de apontamentos originados neste ano (2011) no Grupo de GRFICO Pesquisa Linguagem e cultura (UFPR-CNPq), liderado1 pela Dra. Elena Godoi. 2 Realizada no dia 23 de maio na Semana de Letras 2011 da UFPR.

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Salientvamos que a TR estaria do lado da cognio (C), a TP a se ocupar de aspectos sociolgicos da interao mediante a linguagem (S) e o PS voltado para consideraes de ordem biolgica ou ontognica (B)3. Com isso, a discusso poderia se pautar na busca de congruncias, o que mais ou menos quisemos evidenciar com os crculos acima interpenetrados (como sugerem as linhas tracejadas), dando a ideia de tratamentos dirigidos a fenmenos iguais sob perspectivas diferentes, sem uma ordem predefinida da discusso em relao aos nveis. Fizemos isso na comunicao oral, mas aqui apresentamos nova postura: propomos uma reflexo sobre a linguagem e a comunicao, no com preocupao de encontrar semelhanas dos tratamentos propostos pela TR, TP e PS, mas sim de observar esses fenmenos tendo em mente um continuum cuja constituio parte do mbito biolgico rumo dimenso sociolgica para a explicao dos fatos da linguagem. Isso dito, as sees que seguem apresentam brevemente as teorias e, na sequncia, a seo Do continuum biolgico-cognitivo-sociolgico expe nossa reflexo mais propriamente, seguida pelas consideraes finais.

Pensamento sistmico4

Para MATURANA (2002), a linguagem e as emoes so elementos que participam de todo conversar5. O autor destaca que algumas condies sob as quais uma conversao ocorre so a amizade, o interesse comum, o confinamento espacial e o amor6. MATURANA entende as emoes como

[...] disposies corporais que especificam a cada instante o domnio de aes em que se encontra um animal (humano ou no), e que o

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Nas sees seguintes, essas correlaes (TR e cognitivo, TP e sociolgico, PS e biolgico/ontognico) sero explicitadas. 4 O pensamento aqui exposto o de MATURANA (2002). 5 O conversar (na acepo de MATURANA), como ao, pertence ao mbito emocional (MATURANA, 2002:174). 6 Dentre as emoes, o amor est no centro dos fatos histricos que do origem ao homem; a emoo que constitui o espao de aes no qual aceitamos o outro na proximidade da convivncia (MATURANA, 2002:174-5).

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emocionar7, como o fluir de uma emoo a outra, o fluir de um domnio de aes a outro. (MATURANA, 2002:170).

O domnio de aes referido na citao acima est ligado necessidade de que seja um domnio consensual, um domnio de condutas que se encadeia como consequncia do acoplamento estrutural ontognico8 recproco entre organismos estruturalmente plsticos (MATURANA, 2002:147). Essa plasticidade tem a ver com o sistema nervoso, que, embora plstico, fechado9.

Quando dois ou mais organismos interagem recursivamente10 como sistemas estruturalmente plsticos, cada um deles vindo a ser um meio para a realizao da autopoiese11 do outro, o resultado um acoplamento estrutural ontognico mtuo. (MATURANA, 2002:146).

Assim, para MATURANA, deve haver, como condio necessria (mas no suficiente), um acoplamento estrutural recproco entre os homens para que os rudimentos de uma linguagem possam surgir, homens esses que recebem o estatuto de homens ao surgir a linguagem, considerada um comportamento especial num domnio consensual. Quando os domnios de coordenaes consensuais de conduta se tornam recursivos, os homens comeam a operar na linguagem (MATURANA, 2002:172). Bastante expressiva esta outra colocao do autor:

Ao movermo-nos na linguagem em interaes com outros, mudam nossas emoes segundo um emocionar que funo da histria de interaes que tenhamos vivido, na qual surgiu nosso emocionar como um aspecto de nossa convivncia com outros fora e dentro do linguajar12. Ao mesmo tempo, ao fluir nosso emocionar num curso que o resultado de nossa histria de convivncia dentro e fora da linguagem, mudamos de domnio de aes e, portanto, muda o curso7 8

O emocionar um aspecto fundamental do operar animal (MATURANA, 2002:170). Ontogenia diz respeito historicidade de cada organismo individual (MATURANA, 2002:173). 9 Nesse sentido, digno de nota a concepo de linguagem assumida aqui: a ling uagem, como processo, no tem lugar no corpo (no sistema nervoso) de seus participantes, mas no espao de coordenaes consensuais de conduta que se constitui no fluir recursivo nos seus encontros corporais recorrentes (MATURANA, 2002:168). 10 A recursividade a capacidade que um sistema qualquer tem de recombinar os componentes que o constituem de forma virtualmente infinita. 11 Autopoiese a capacidade que os organismos vivos tm para manterem a si mesmos (MATURANA, 2002). 12 Linguajar um termo que se refere ao ato de estar na linguagem (MATURANA, 2002:168).

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de nosso linguajar e de nosso raciocinar. A esse fluir entrelaado de linguajar e emocionar eu chamo conversar, e chamo conversao o fluir, no conversar, em uma rede particular de linguajar e emocionar. (MATURANA, 2002:172, grifo do autor).

A cognio cujo domnio , a um s tempo, limitado e ilimitado, como o o nosso domnio de realidade13 (MATURANA, 2002:162) constituda pelas possibilidades que o organismo tem para realizar algo. E o carter racional da ordem das coerncias operacionais aplicadas s coordenaes consensuais de conduta que perfazem a linguagem, e a razo como tal emerge da emoo como diferenciao. Com alguns dos conceitos sistmicos em mos, fizemos um esquema que evidencia a hierarquizao exposta no esquema a seguir, debatido na comunicao oral a que nos referimos e abaixo reproduzido, seguido por observaes.

ESQUEMA 113

A realidade o domnio de coisas, e, nesse sentido, aquilo que pode ser distinguido real (MATURANA, 2002:156).

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Como se v acima, a autopoiese fundamenta as condies primevas de possibilidades que um organismo poder ter no mbito do orgnico, sem a qual um domnio cognitivo certamente no poderia vir existncia. A capacidade de distinguir que se faculta a um organismo vivo um processo sobredeterminado pelo domnio cognitivo que o alicera, dentre cujas expresses primeiras que emergem por diferenciao est o emocionar. Por sua vez, a dinmica do emocionar condio para que o amor, a mais importante das emoes, seja possvel e atribua, inclusive, o trao gregrio a um sem-nmero de organismos vivos. com a aproximao que o amor propicia que estar aberto o caminho para que acoplamentos estruturais ontognicos aconteam entre organismos, fenmenos que esto na base e na origem da construo de coordenaes consensuais de conduta, feitas sem que necessariamente se tenha a um sistema simblico tal como uma lngua o , porquanto a ordem da razo precisa fulcr-la. Com o surgimento da qualidade de raciocinar, temos um componente que possibilita que as coordenaes consensuais de conduta constituam domnios consensuais organizados entre os indivduos, que, quando manipulados

recursivamente, fornecem as condies necessrias para que uma linguagem verbal suscite na histria evolutiva que nos constitui, manifestada por essncia com o conversar.

Teoria da relevncia14

Com a afirmao de SPERBER e WILSON (2005:222) de que as expectativas de relevncia so precisas e previsveis o suficiente para guiar o ouvinte na direo do significado do falante, j vemos a filiao cognitivista que a TR demonstra ter no interior dos estudos pragmticos de linguagem. Para a TR, a cognio humana orientada para a relevncia. Globalmente, o sistema cognitivo engrenado para escolher informaes potencialmente relevantes. Assim, a TR 14

A orientao de TR que apresentamos aqui a de SPERBER e WILSON.

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uma teoria pragmtica cognitiva que pretende analisar como os enunciados so compreendidos na perspectiva do ouvinte; para isso, observa como os fatores contextuais e as propriedades lingusticas interagem na interpretao dos enunciados. Em outros termos, como os fatos sobre a audincia, o tempo e o lugar do enunciado se combinam com a estrutura fonolgica, sinttica e semntica da sentena enunciada como material sobre o qual se faz uma interpretao particular. A TR aponta que o significado de uma sentena ultrapassa seu significado lingustico, ou seja: haveria um aspecto da estrutura lingustica que se mantm constante em todos os enunciados, o qual esquemtico ou incompleto, e que deve ser completado ou enriquecido em contexto para definir se a proposio gerada pode ser tida como verdadeira ou falsa. Nesse sentido, o significado para cada falante sempre o que cada um pretendeu comunicar pela enunciao de uma sentena. Ou seja, uma mesma sentena tem diferentes significados, conforme os variados objetivos de falantes diversos. Em relao ao ouvinte, essa teoria sugere que caberia a ele o papel de usar a variedade de processos pragmticos de que dispe para completar e enriquecer o significado esquemtico da sentena e gerar sua hiptese interpretativa sobre o significado que o falante pretendeu passar. No que se refere ao que a TR toma como contexto, alm da situao ou ambiente fsico da enunciao e do texto ou do discurso precedente, em uma abordagem cognitiva, leva-se em considerao que o ouvinte capaz de recuperar, ou derivar da memria, percepes ou inferncias que auxiliam na identificao aproximativa do significado do falante. Para a teoria ora em referncia, o contexto deve ser o conjunto de suposies mentalmente representado ( parte da suposio do enunciado no momento produzido), que utilizado na interpretao, incluindo suposies projetadas da interpretao do texto precedente e da observao que recai no falante e no ambiente imediato. O critrio de interpretao da TR desenvolve-se de uma suposio bsica sobre a cognio humana: a de que a cognio humana orientada para a relevncia. Uma vez que explicar como os ouvintes atribuem o significado tendo em vista a pretenso dos falantes, num processo bem ou malsucedido, a meta de uma teoria pragmtica cognitiva. A TR defende ainda que h um critrio nico para a avaliao das interpretaes possveis. Contudo, esse critrio, mesmo quando13

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corretamente aplicado, nem sempre destaca a interpretao pretendida pelo falante. Assim, o ouvinte deve selecionar, no uma interpretao correta, mas aquela que mais se aproxima com a considerada como correta pelo falante. Nesse sentido, procuram-se as intenes do falante, sem, claro, garantia, contando-se para isso com a representao do conjunto de suposies contextuais. No particular da informao, a TR trabalha com trs concepes: 1) a forma acidental, 2) a forma intencional encoberta e 3) a comunicao aberta. A primeira ocorre quando pistas como sotaque, estados de nimo etc. podem ser notadas, projetando concluses que no formam parte do significado do falante e que no so intencionalmente transmitidas. A segunda envolve intenes (ser mais agradvel, por exemplo) que o falante no pretende que sejam reconhecidas ou compartilhadas. E a terceira, tambm chamada transmisso aberta de

informao, refere-se ocorrncia de uma troca genuna, quando o falante pretende transmitir uma mensagem e deseja que seu ouvinte reconhea essa inteno. Alm disso, a TR tambm se norteia por estes pontos: a) cada enunciado tem uma variedade de interpretaes linguisticamente possveis, todas compatveis com o significado da sentena; b) nem todas essas interpretaes, em dada ocasio, so igualmente acessveis ao ouvinte (ou seja, no so todas igualmente provveis de vir mente do ouvinte); c) os ouvintes so equipados com um critrio nico e muito geral para avaliao das interpretaes, na medida em que elas ocorrem, aceitando-as ou rejeitando-as como hipteses sobre o significado do falante; d) esse critrio poderoso o suficiente para excluir todas, exceto uma nica interpretao (ou algumas interpretaes prximas semelhantes), de modo que o ouvinte tem o direito de assumir que a primeira hiptese que o satisfizer (se houver alguma) a nica plausvel.

Teoria da polidez

A teoria da polidez aborda o lado social da linguagem; mas antes de iniciar falando sobre essa teoria, convm definir o que polidez, e faremos isso utilizando a definio de WATTS (2003), o qual considera haver duas formas de se entender polidez.14

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Polidez 1: remete a comportamentos sociais que so especficos de cada cultura (regras de etiquetas, bons modos, senso comum cultural), isso em relao tanto aos comportamentos verbais quanto aos no-verbais. Polidez 2: a partir da ideia de que todo encontro social supe um risco para os interlocutores, vista como um comportamento lingustico para que a comunicao ocorra da forma mais harmoniosa possvel, para que haja equilbrio na interao entre as pessoas; e esta o objeto do nosso estudo. Cada cultura faz uso de estratgias lingusticas de maneira diferente, nem sempre eficazes como previsto no Princpio de Cooperao15. Com isso em mente, BROWN e LEVINSON (1987) desenvolveram sua teoria tendo como base que o falante tem o desejo de ser apreciado pelos demais (imagem positiva) e o desejo de no ter suas aes impedidas (imagem negativa). Com isso, complementaram o Princpio de Cooperao de Grice e ampliaram o modelo de face de Goffman16, que se refere imagem pblica que cada indivduo tem e quer para si. Para isso, Brown e Levinson utilizaram um modelo de pessoa (Model Person MP), a qual fala fluentemente e possui racionalidade e imagem social. Para esses linguistas, o falante sempre utiliza sua racionalidade para escolher a estratgia que, com menos esforo e menos risco, consiga alcanar seus objetivos comunicativos. Os autores descrevem as imagens como negativa e positiva. Imagem negativa: vista como o desejo de qualquer pessoa de que suas aes no sejam impedidas e de no sofrer imposies, ou seja, de ter o territrio respeitado pelos outros. H o anseio de liberdade de ao, de impor e realizar as prprias vontades; os desejos da face negativa esto relacionados com a pretenso de que as aes realizadas pelo falante no sejam impedidas pelas outras pessoas. Imagem positiva: desejo que todo ser humano tem de ser aprovado pelos demais interlocutores, de ter seus desejos compartilhados por pelo menos algumas pessoas. Refere-se vontade de que a autoimagem seja apreciada15

O Princpio de Cooperao diz respeito ao acordo prvio e tcito de colaborao entre interlocutores para que se entendam eficazmente na comunicao. Para mais detalhes, v. GRICE (1982). 16 Erving Goffman estudou a interao social no dia-a-dia, especialmente em lugares pblicos, principalmente no seu livro A representao do eu na vida cotidiana. Para Goffman, o desempenho dos papis sociais tem a ver com o modo como cada indivduo concebe a sua imagem e pretende mant-la.

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e aprovada pelos outros membros do grupo social. Pois, ao ser aceita, a pessoa sente-se segura e forte, por ser parte integrante de um grupo composto por membros que tm interesses em comum. Outro conceito importante diz respeito aos Face-Threatening Acts (FTAs): atos que agridem as imagens, atos que ameaam a imagem pblica do falante e/ou do ouvinte, pois vo contra ao que desejvel para manter a imagem. Atos que ameaam a imagem negativa do ouvinte tiram a liberdade de ao do ouvinte, quando o pressionam ou o impedem de realizar algo (ordens, pedidos, sugestes, conselhos, lembretes, ameaas, advertncias etc), e tambm quando o ouvinte fica em dbito com o falante e se v obrigado a ter que realizar algo (promessa). Atos que ameaam a imagem positiva do ouvinte quando desaprovam a imagem do falante (crticas, queixas, acusaes e insultos), ou quando o falante traz tona temas emocionalmente perigosos e controvertidos para a imagem positiva do ouvinte. Atos que ameaam, principalmente, a imagem negativa do falante agradecimentos, aceitao de desculpas e ofertas, dar explicaes, fazer promessas e ofertas que no deseja. Atos que afetam diretamente a imagem positiva do falante desculpar-se, confessar ou reconhecer culpa e aceitar elogios (ao aceitar os elogios, ele pode se sentir obrigado a retribuir e exaltar o ouvinte). Para cada um desses eventos h estratgias a serem executadas para minimizar os efeitos de tais ameaas; porm, so variveis e mudam de cultura para cultura. Variveis que tambm modificam a linguagem so: Distncia social relao hierrquica entre os interlocutores, assim como grau de familiaridade e a intimidade instaurada. Poder relativo demonstrado a partir de duas vertentes: 1) a partir de um controle material, por meio do poder econmico de uma classe para a outra, ou pela fora fsica, do mais forte para o mais fraco. 2) Por um controle sutil, s vezes encoberto, realizado de um individuo a outro, mas quando h aceitao do ouvinte.

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Grau de imposio definida cultural e situacionalmente, levando-se em conta os desejos da imagem positiva e negativa. Tais variveis mudam de cultura para cultura, por exemplo, um tratamento familiar no Brasil tem grau de intimidade diferente de um tratamento familiar no Japo. E ao analisar o grau de polidez em uma cultura, todos esses elementos devem ser considerados em particular. A teoria da polidez prope um exame acurado dos fatores que so levados em considerao pelo falante em sua atividade de produo de enunciados; porm, no nos permite uma anlise mais profunda dos elementos envolvidos no processo de interpretao realizado pelo ouvinte, que fica a cargo da teoria da relevncia.

Do continuum biolgico-cognitivo-sociolgico

Inicialmente, para facilitar a exposio da ideia de se observarem os fatos de linguagem da perspectiva do continuum biolgico-cognitivo-sociolgico, recorremos a uma apresentao grfica simples, disposta abaixo.

GRFICO 2

Com isso, queremos seguir a intuio de que o nvel da cognio (C) necessariamente precedido pela ordem biolgica/ontognica (B), esta pertinente dimenso orgnica que nos d realidade de existncia material e bsica, enquanto que o nvel do social (S) no nos parece existir sem os nveis anteriores, a dimenso que no seno o prprio complexo fenomnico posto em movimento por uma realidade orgnica e ontognica dos indivduos cognitivamente aparelhados17

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como condio necessria para que coordenaes consensuais de conduta, por diferentes sistemas simblicos, produzam fatos de linguagem (da nvel 1, nvel 2, nvel 3 no grfico). Com isso em mente, buscamos contribuir ao aumento das condies de possibilidade de compreenso sobre os fenmenos que se ligam aos fatos de linguagem por parte do cientista como queremos dizer com o lugar do observador privilegiado no grfico 2 e, na especificidade da linguagem, observla em seu carter ontognico (PS), cognitivo (TR) e social (TP). Nesse sentido, destacamos o fenmeno da intercompreenso entre os homens, que implica propriamente em comunicao e linguagem no entanto, a intercompreenso efeito de um composto de diferentes fatores: envolve as qualidades pertinentes ao acoplamento estrutural ontognico entre os indivduos; as disposies emocionais constitutivas das condutas comunicativas; as imagens (positiva e negativa) dos interlocutores a serem prototipicamente preservadas na interao; e, dentre outros, o dispositivo cognitivo orientado para a relevncia dos fatos significveis produzidos e a que se est exposto nas trocas simblicas. A esse respeito, parece-nos claro que o distinguir17 est atrelado ao mecanismo de relevncia que o ouvinte dispara para selecionar a hiptese interpretativa mais plausvel em relao ao pretendido pelo falante. Veja-se, pois, que a se trata de formao de realidades. Outro interesse reside em considerar que os acoplamentos estruturais ontognicos so presididos por um critrio de relevncia acerca dos significados que esses mesmos acoplamentos produzem, afetando, portanto, o domnio consensual que medeiam os sujeitos, fortemente impelidos, em seu conversar, pelas disposies emocionais que subjazem sua comunicao racionalmente organizada. E a importncia do fenmeno ligado imagem positiva tem relao com o amor que discutimos. A vida em sociedade se fundamenta nisso, assumindo os riscos de agresso (FTAs) que cada interao comunicativa traz, cujos produtos passveis de processos de significao o critrio de relevncia saliente na cognio far destacar, e o fluir na linguagem seja possvel: por isso, o acoplamento estrutural

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V.n.13.

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ontognico recproco entre os interlocutores precisa ter em considerao o risco que essa interao potencialmente carrega. Alm disso, um dado que surge diz respeito TP, amparada pela categoria de modelo de pessoa em seu quadro epistemolgico, que tem, dentre outras caractersticas, o trao da racionalidade. Com a forma acidental de informao, emergem-se manifestaes de ordem emocional. Destaquemos que talvez na forma acidental de informao as emoes do falante fiquem mais explicitadas e se coloque mais claramente em vistas o funcionamento do amor, constituinte de todo comunicar com o outro. Ademais, uma vez que as trocas comunicativas humanas derivam do comportamento dirigido a um fim, plausvel crer que os ambientes sociais e cognitivos influenciem o pensamento sistmico e afetem o processamento sinttico e semntico das interaes.

Consideraes finais

Gostaramos de salientar que, segundo nosso intento, este trabalho apenas uma reflexo, sem pretenses de criar um novo campo de saber que poderia ser construdo a partir da articulao entre as teorias referidas, o que no obsta, no entanto, que possamos ver alguma pertinncia de discutir essas questes, sem que a possibilidade de incentivo ao surgimento de novo campo de saber seja tomado como impensvel para o futuro.

Referncias bibliogrficas

BROWN, P.; LEVINSON, S. Politeness: some universals in language usage. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

GRICE, H. P. Lgica e conversao. In: DASCAL, M. (ed.). Fundamentos metodolgicos da lingustica: problemas, crticas, perspectivas da lingustica. So Paulo: UNICAMP, 5, 1982.

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MATURANA, H. Linguagem e domnios consensuais. In: A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 146-166.

_____. Ontologia do conversar. In: A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. pp. 167-181.

SPERBER, D.; WILSON, D. Relevance: communication & cognition. 2.ed. Oxford: Blackwell, 1995.

_____. Teoria da Relevncia. In: Linguagem em (dis)curso, LemD. Tubaro, v. 5, n. esp., p. 221-269, 2005.

WATTS, R. J. Politeness. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

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Anlise dinmica de ritmo na fala de crianas em fase de aquisio da linguagem

ANDRADE, Thalita R. FRANZONI, Guilherme A.M.C. GARCEZ, Simone B.G.M. SCHREINER, Vanessa SOUZA Jr., Lourival M.

Os estudos de aquisio da linguagem tiveram incio h algumas dcadas e teve o seu auge nos anos 50 do sculo passado. Nos ltimos 20 anos, as pesquisas nessa rea se intensificaram consideravelmente e, hoje, a postura mais aceita pelos estudiosos considera que a linguagem humana corresponde a um instinto inato, isto , gentico, prprio e exclusivo nossa espcie. Segundo Pinker:Pensar a linguagem como um instinto inverte a sabedoria popular, especialmente da forma como foi aceita nos cnones das cincias humanas e sociais. (PINKER, 2004, p. 10)

Os estudos do renomado linguista Noam Chomsky,...o primeiro linguista a revelar a complexidade do sistema e talvez o maior responsvel pela moderna revoluo na cincia cognitiva e na cincia da linguagem (PINKER, 2004, p. 14)

postulam que a criana possui uma espcie de dispositivo para a aquisio da lngua language acquisition device (CHOMSKY 1965).Na encruzilhada entre lingstica e engenharia do som, entre abordagens inatistas e de aprendizagem e generalizao por esquemas conexionistas, os fenmenos prosdicos recobrem uma gama de referncias, nos estudos da lngua/linguagem, difcil hoje de ignorar ou de marginalizar. (SCARPA, 1999, p. 9)

Esta pesquisa visa a investigar a aquisio no da linguagem em si, mas a partir de um estudo especfico da aquisio do ritmo na fala da criana em comparao com a fala adulta. 21

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A hiptese inicial

A hiptese inicial a de que a fala de adulto e a fala de criana em fase de aquisio de linguagem tm diferenas rtmicas, ou seja, as crianas tendem a ser mais lentas, por consequncia da maior hesitao desta durante a sua narrativa. Em uma fase em que os enunciados da criana comeam a ser plurifuncionais, eles podem se identificar com a fala adulta.Contudo, a principal caracterstica desse perodo a separao de seus enunciados em duas funes principais a funo pragmtica, em que a linguagem usada para satisfazer as necessidades da criana e interagir com os outros, e aquilo a que Halliday (1975) chamou funo mattica, em que a linguagem usada para aprender sobre o ambiente da criana e sobre a prpria lngua, resultando num aumento drstico do vocabulrio nessa poca. (ELLIOT, 1982, p. 64)

Aos 4 anos de idade, a criana j capaz de adaptar o seu discurso ao do interlocutor: o aumento da flexibilidade comunicacional paralelo ao aumento da sua conscincia lingustica. A partir dos 5 anos de idade, a criana formula enunciados bastante complexos, parecidos com os dos adultos, porm, no ainda no mesmo ritmo que eles.

Dados para a pesquisa

Levantamento do corpus

Constituram-se dois grupos de sujeitos: um grupo investigado, formado por uma criana em fase de aquisio de linguagem (5:2) e um grupo controle, formado por um adulto (15:6), a fim de colher dados acsticos de ambos para a realizao da pesquisa. A escolha dos grupos deu-se pelo fcil acesso criana, assim como ao adulto, devido proximidade familiar de componentes do grupo de investigadores. Um texto especfico foi escolhido para a gravao dos dados acsticos, uma narrativa oral baseada em uma sequncia de imagens sem legenda de uma revista em quadrinhos da Turma da Mnica. A escolha dessas imagens foi a partir do tamanho da estria e da facilidade de compreenso e da enunciao do grupo investigado; e ainda foram retiradas as legendas para evitar que a possvel 22

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alfabetizao da criana pudesse interferir no experimento. O instrumento utilizado para fazer a gravao foi um notebook, com auxlio do programa Audacity, um editor de udio que grava e reproduz som. Em seguida, os dados acsticos foram colhidos, sendo estes as gravaes de fala semiespontnea da criana e do adulto em ambiente fechado e familiar, (porm no acusticamente tratado) a fim de evitar rudo intenso durante o processo e, ao mesmo tempo, fazer com que a criana no se sentisse acuada em diferente ambiente. Ambos os sujeitos narraram os acontecimentos da estria dos quadrinhos da Turma da Mnica sua maneira, contudo, no saindo daquele contexto. A criana teve mais dificuldade em falar espontaneamente na primeira tentativa, ela interagiu com a investigadora, mas mostrou-se bastante nervosa e hesitante; na segunda, como j estava familiarizada com a estria e com o procedimento da gravao, falou com mais naturalidade. Com o adulto no houve maiores dificuldades.

Anlise de dados da pesquisa Com a ajuda de um software de anlises acsticas o programa PRAAT na verso 5.2 03 , os grupos entoacionais, ou enunciados1, na gravao de cada grupo de sujeitos foram segmentados manualmente. A medio do ritmo de fala considerando-se a unidade silbica poderia apresentar resultado dbio, dada a grande variabilidade de produo das crianas, como tambm a dificuldade epistemolgica em se definir o significado de slaba. Portanto, partimos do pressuposto de que o ritmo da fala se d a partir das vogais. Deste modo, escolhemos a unidade GIPC (grupo interperceptual center) para a medio da durao relativa dos eventos acsticos, sem considerar as pausas entre os enunciados formados. Ainda com a ajuda do software PRAAT e com o objetivo de medir a durao dos eventos acsticos dentro de cada enunciado a fim de observar o ritmo de fala do sujeito investigado, escolhemos a unidade de programao rtmica mnima GIPC

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Considerando como enunciado a formao de uma frase entre duas pausas, preenchidas

(presena de hesitao) ou no preenchidas (silenciosa).

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(grupo inter-perceptual center) para a medio, a qual est delimitada pelo onset (acusticamente definido) de uma vogal at o offset da vogal seguinte, em termos de alongamento homogneo. Essa unidade GIPC, composta pela rima de uma slaba e o ataque da slaba seguinte, quando esta presente, nos permitiu realizar esta pesquisa. Quaisquer pausas foram desconsideradas e foi medida manualmente a durao dos eventos acsticos GIPCs absolutos obtidos em cada enunciado do grupo investigado e do grupo controle. Em seguida, foram realizados os clculos dos GIPCs relativos de cada enunciado, a fim de obter-se uma anlise quantitativa dos resultados; um exemplo est exposto logo abaixo. Demonstrativo dos clculos de GIPCs relativosa b c d e f g h i j k l

Eles pegaram uma corda e ficaram segurando com fora pra ela cair.

Durao total do enunciado = 4769 a) 266/4769 = 0,055 5,5% b) 189/4769 = 0,039 3,9% c) 133/4769 = 0,027 2,7% d) 200/4769 = 0,041 4,1% e) 389/4769 = 0,081 8,1% f) 149/4769 = 0,031 3,1% g) 232/4769 = 0,048 4,8% h) 147/4769 = 0,030 3,0% i) 319/4769 = 0,066 6,6% j) 91/4769 = 0,019 1,9% k) 135/4769 = 0,028 2,8% l) 252/4769 = 0,052 5,2%

Conforme citado anteriormente, para a obteno de um resultado quantitativo de GIPCs dos enunciado de cada grupo de sujeitos, a realizao dos clculos foi feita da seguinte forma: em primeiro lugar, mediu-se a durao total da cada enunciado; seguiu-se pela medio de cada GIPC absoluto de cada enunciado, separadamente, da fala semiespontnea de cada sujeito, ou seja, no demonstrativo acima, cada letra alfabtica corresponde a um GIPC daquele enunciado; ento, dividiu-se o valor do GIPC absoluto pelo valor total do enunciado, a fim de revelar o valor do GIPC relativo, o qual, por sua vez, foi multiplicado por cem para resultar em um percentual de GIPC relativo, resultado a ser comparado em uma concluso de clculo quantitativo. Segue o exemplo mais detalhado do clculo de um GIPC relativo: 24

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a) 266 (GIPC absoluto) / 4769 (total do enunciado) = 0,055 (GIPC relativo) 5,5% (percentual de GIPC relativo)

Por uma questo didtica, dividimos as variaes dos percentuais de GIPCs relativos em faixas numricas para que, deste modo, a pesquisa obtivesse um resultado grfico, o qual ser exposto mais adiante, para melhor demonstrao e esclarecimento. Por fim, compararam-se os valores percentuais dos GIPCs relativos de cada grupo de sujeitos, alm do nmero de enunciados formados pelos dois sujeitos, a fim de apontar as diferenas rtmicas das falas da criana e do adulto, e confrontamos as anlises a partir de dois grficos quantitativos, a fim de verificar se a hiptese inicial vlida e de realizar uma leitura e interpretao desses dados a partir das seguintes suposies: as medidas dos GIPCs tm durao maior em adultos do que em crianas, e o grupo investigado possui maior nmero de grupos entoacionais, ou enunciados, do que o grupo controle. A escolha dessa metodologia nos permite obter uma resposta hiptese inicial, devido escolha do corpus, pois, desta forma, mantm-se certo controle sobre a narrativa de ambos os sujeitos, afinal, ambos ficam limitados a narrar apenas o que se encontra nas imagens dos quadrinhos; mtodo este que difere de uma fala totalmente espontnea, a qual poderia resultar em uma narrativa demasiadamente longa e diversa entre os sujeitos; ou ainda diferente de um experimento baseado na repetio de enunciados pr-estabelecidos, o que acabaria resultando em um experimento muito mais mecnico.

Histograma de dados do sujeito investigado e do sujeito controle

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Grfico

do

nmero

de

grupos

entoacionais

do

sujeito

investigado e do sujeito controle

Consideraes Finais

Aps anlise e confronto dos resultados percentuais das duraes relativas de GIPCs (grupo inter-perceptual center) dos dados acsticos do 26

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grupo investigado e do grupo controle, e, ainda, com a exposio dos grficos acima, conclui-se que a hiptese inicial de que h diferenas rtmicas entre a fala de crianas e a fala de adultos se confirma em partes, pois o espelhamento resultado entre os grficos no foi o esperado para os dois sujeitos participantes desta pesquisa. O ritmo de fala da criana mais lento que o ritmo de fala do adulto. Apesar disso, a criana do grupo investigado apresentou uma grande tendncia a acompanhar o ritmo do adulto do grupo controle para o qual a maioria dos percentuais de GIPCs relativos ocupam as primeiras faixas do grfico. H um significativo nmero de percentuais de GIPCs relativos concentrados nas faixas do meio no grfico do grupo investigado, o que no se consubstancia no grfico do grupo controle. Muito embora o grupo investigado apresente maior nmero de percentuais de GIPCs relativos nas ltimas faixas do grfico o que quase no aconteceu no grupo controle a criana tambm apresentou um grande nmero de percentuais nas primeiras faixas do grfico, semelhana do adulto. Contudo, a criana formou grupos entoacionais com um maior distanciamento entre eles do que os do adulto e, inclusive, a maior parte dos GIPCs relativos tm durao maior do que os do adulto. Isso pode ter ocorrido devido maior hesitao e lentido da criana para formar enunciados em fala semiespontnea, o que ainda pode explicar a presena das diversas pausas entre as palavras e entre os enunciados. A fala do adulto, assim como a elaborao de enunciados, mais corrente e contnua: os enunciados acabam sendo mais longos e menos truncados do que os da criana, enquanto as medidas dos GIPCs relativos so mais curtas. A partir da observao anterior, pode-se tambm verificar que a criana possui mais grupos entoacionais, ou seja, mais enunciados do que o adulto. Ainda existem vrios outros desdobramentos passveis de anlise, nos quais esta pesquisa no trabalha. Houve, sim, uma diferena no ritmo de fala entre o grupo investigado e o grupo controle, porm essa diferena foi mais tnue do que a esperada no levantamento da hiptese inicial, sendo que, desta forma, seria de bom alvitre estender a averiguao aqui iniciada a investigaes com maior nmero de sujeitos para que possamos trabalhar com 27

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um banco de dados mais consistente e, ressaltando-se essa observao, para que se possa eliminar comportamentos peculiares de um sujeito cujo desempenho conduza a inferncias errneas.

Referncias bibliogrficas

PINKER, S. O Instinto da linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Sintax. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 1965.

ELLIOT, A. A Linguagem da Criana. Rio da Janeiro: Zahar Editores, 1982.

SCARPA, E. (org.). Estudos em Prosdia. So Paulo: UNICAMP, 1999. ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas. NBR 14724: Informao e documentao. Trabalhos Acadmicos - Apresentao. Rio de Janeiro: ABNT, 2002.

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A blank spot: ecos de uma experincia-limite

BORDINI, Maria Isabel da Silveira (UFPR)

A ideia da experincia-limite, ou da experincia interior, como denomina Bataille, parece extremamente pertinente a um momento em que experimentamos ruir muitas das certezas pelas quais pautvamos nosso modo de agir e compreender o mundo. A crise da convico de que os regimes democrticos so os mais aptos a conduzir a humanidade a um certo grau de desenvolvimento e felicidade quando alguns desses principais regimes se mostram incapazes de garantir efetivamente uma srie de direitos fundamentais e o questionamento do papel desempenhado, bem como de seus limites, por diversas instituies sociais (famlia, escola, Estado, instituies religiosas) so algumas manif estaes desse desmoronamento que parece ser o principal (e o mais extensamente comentado) sintoma de nossos tempos. A ideia (falar em ideia certamente ficar aqum da elaborao de Bataille) da experincia-limite me parece gritantemente oportuna e sinceramente necessria para pensar e enfrentar essa crise de certezas que marca a condio humana atual. Pretendo desfi-la a partir da apresentao de uma experincia real, que foi reelaborada ficcionalmente em dois momentos: trata-se da experincia de Christopher Johnson McCandless (1968-1992), jovem universitrio norte-americano, proveniente de uma famlia social e economicamente bem posicionada, que, aps se graduar pela Universidade de Emory (em Atlanta, Gergia), passou a viver como andarilho durante dois anos (1990-1991), perodo em que transitou (viajando como caroneiro na maioria das vezes) pelo Arizona, Califrnia e Dakota do Sul, alternando-se entre empregos temporrios (trabalhou armazenando gros em silos na Dakota do Sul, dentre outras ocupaes) e perodos em que viveu sem dinheiro e longe de todo convvio humano. Em abril de 1992, Christopher McCandless seguiu at o Alasca, com a inteno de viver um perodo de completo isolamento numa

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regio selvagem1. Estava minimamente equipado contava apenas com um saco de menos de cinco quilos de arroz, um rifle Remington semi-automtico, munio para 400 tiros, um livro sobre flora local, vrios livros de literatura e alguns itens para acampar (no tinha bssola e h controvrsias sobre se teria levado um mapa da regio) , alm de no ter qualquer experincia ou instruo acerca de como sobreviver no Alasca selvagem. Durante trs meses, McCandless viveu em um nibus abandonado prximo ao Parque Nacional de Denali, at que, surpreendido pela cheia do rio Teklanika, viu-se impossibilitado de cruz-lo e retornar civilizao. Foi encontrado morto em seu refgio, aps 113 dias passados no mais completo isolamento, pesando cerca de trinta quilos apenas. A causa oficial da morte: inanio. Christopher, que vinha se alimentando de frutas silvestres e pequenos mamferos (roedores, principalmente), no conseguiu arranjar comida suficiente para sobreviver e simplesmente definhou de fome. A histria, que assim recontada provavelmente reverbera em tons que vo do trgico ao pattico, recebeu um tratamento literrio por parte de Jon Krakauer, jornalista que publicou, em 1996, a obra Into the wild, na qual, num misto de biografia e jornalismo literrio, reconstri a trajetria de McCandless a partir de depoimentos de pessoas que o conheceram e de registros que o prprio McCandless deixou (enquanto esteve no Alasca, Christopher manteve um dirio, escrito no verso das pginas de um livro sobre flora local, que cobre praticamente todos os dias que passou l). Baseado no livro de Krakauer, o ator e diretor de cinema Sean Penn dirigiu um filme de mesmo ttulo2, lanado em 2007, que explora, com a falta de pudor e a

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Two years he walks the earth. No phone, no pool, no pets, no cigarettes. Ultimate freedom. An extremist. An aesthetic voyager whose home is the road. Escaped from Atlanta. Thou shalt not return, 'cause "the West is the best." And now after two rambling years comes the final and greatest adventure. The climactic battle to kill the false being within and victoriously conclude the spiritual pilgrimage. Ten days and nights of freight trains and hitchhiking bring him to the Great White North. No longer to be poisoned by civilization he flees, and walks alone upon the land to become lost in the wild. Alexander Supertramp. May 1992. Inscrio encontrada numa tbua dentro do nibus onde McCandless se refugiou por trs meses,em Stampede Trail, prximo ao Parque Nacional de Denali. Fonte: Acesso em: 3 fev. 2011.2

Na Natureza Selvagem o ttulo com que foi lanado no Brasil.

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grandiloquncia tipicamente hollywoodianas, tanto a beleza e a exuberncia das paisagens quanto a romantizao da figura de McCandless. A essa heroicizao, resultado de uma abordagem em certa medida mitificadora da histria, costuma se levantar uma reao supostamente realista e investigativa que procura desconstruir a imagem de heri idealista atribuda a McCandless e apontar a falta de sentido e de moralidade na sua experincia. O embate viceja especialmente na polmica em torno da causa da morte do andarilho: enquanto a corrente romntica, endossada por Krakauer e Sean Penn, prefere a verso (adotada pelo livro e pelo filme) da morte pela ingesto acidental de sementes venenosas, a corrente realista insiste na morte por inanio (causa oficial e legalmente declarada), esmerando-se inclusive em apresentar provas do fato3. Parece que a morte por inanio sustenta melhor a imoralidade da experincia de McCandless, uma vez que a aproxima mais do suicdio do que a outra hiptese. E apontar essa dita imoralidade parece ser uma preocupao bastante forte de certas (e no poucas4) manifestaes que se declaram inimigas e fatigadas da3

No site da produtora responsvel por um documentrio acerca da aventura de McCandless ( The call of the wild, 2007, de Ron Lamothe) encontra-se inclusive um grfico que procura reconstituir, com base no que McCandless registrou em seu dirio, o dficit calrico da sua dieta e a progressiva perda de massa corporal que o levou morte por inanio. Ver: Acesso em: 1 fev. 2011.4

Uma rpida olhada nos comentrios que se espalham nos sites contendo textos acerca de McCandless revela a significativa presena dessa necessidade de desconstruir o mito do aventureiro idealista. Veja-se, nesse sentido, alguns desses comentrios: 1) This is what bothers me that Christopher McCandless failed so badly, so harshly, and yet so famously that his death has come to symbolize something admirable, that his unwillingness to see Alaska for what it really is has somehow become the story so many people associate with this place, a story so hollow you can almost hear the wind blowing through it. His death was not a brilliant fuck-up. It was not even a terribly original fuck-up. It was just one of the more recent and pointless fuck-ups. Sherry Simpson, escrevendo no Anchorage Press. Acesso em: 1 fev. 2011. 2) When you consider McCandless from my perspective, you quickly see that what he did wasnt even particularly daring, just stupid, tragic, and inconsiderate. First off, he spent very little time learning how to actually live in the wild. He arrived at the Stampede Trail without even a map of the area. If he [had] had a good map he could have walked out of his predicament [...] Essentially, Chris McCandless committed suicide. Peter Christian, guarda florestal no Alasca. Acesso em: 1 fev. 2011. 3) There is nothing fucking romantic and wonderful about stumbling off into the wilderness and starving to death. What is great about the Christopher McCandless story is that it proves, in Alaska at least, natural selection is alive and well. McCandless was a fucking utterly stupid and reckless cunt, who actually had a history of doing ridiculous and reckless things that nearly killed him long before he dragged his fatally incompetent ass into the swamp lands of Denali Park. He was asking to die as

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romantizao dos fatos, como se a histria de McCandless carregasse, por trs de um bvio e simples pateticismo, um potencial desconstrutivo, questionador, ou no mnimo um sentimento de incmodo que oportuno evitar. A abordagem talvez um tanto ingnua e glamourizante de Krakauer e Sean Penn me parece, no entanto, menos problemtica que certas vises perigosamente conservadoras5 que encontrei a respeito da histria. Contudo, entre a viso mais idealizada que nos apresenta Christopher como o aventureiro visionrio, leitor de Tolsti, Thoreau, Jack London e outros, um viajante esteta cujo lar a estrada (conforme ele mesmo em algum momento se definiu), um inconformado com a sociedade insuportavelmente materialista e hedonista que decidiu buscar a elevao espiritual longe da corrupo do convvio humano e a viso supostamente realista para a qual o nosso viajante no passava de um arrematado idiota, um suicida ou, pelo menos, algum que drasticamente carecia de bom senso (como levar a srio algum que se rebatiza Alexander Supertramp6?!) acredito que a abordagem mais interessante justamente aquela que parte da fissura gerada pela confuso e pelo conflito entre as vises que agrupei, com alguma dose de arbitrariedade, nessas duas perspectivas. Parece-me que somente a partir dessa abertura que temos espao para pensar as questes pertinentes quilo que poderamos chamar de uma condio humana e sobre a qual gostaria de refletir mais pontualmente a partir das elaboraes de Blanchot (comentando Bataille) acerca da experincia-limite. (Qualquer uma das duas perspectivas, se tomada de modo nico e exclusivo, institui um fechamento que, j usando a terminologia de Bataille-Blanchot, estanca a paixo do pensamento negativo, o que em ltima anlise significa a morte do ser.) Lembremos, de incio, do que se trata a experincia-limite. No comentrio de Blanchot, temos que:A experincia-limite a resposta que encontra o homem quando decidiu se pr radicalmente em questo. Essa deciso quemuch as someone who decides they're going to climb Everest, alone. Acesso em: 1 fev. 2011.5

Louvar a seleo natural por ter eliminado uma vida que se considera incompetente e moralmente reprovvel me parece de um reacionarismo agressivo e alarmante.6

Algo como Alexander, o Super Andarilho ou o Super Vagabundo Krakauer aponta a referncia obra do poeta gals, W. H. Davies, The Autobiography of a Super-Tramp.

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compromete todo ser exprime a possibilidade de jamais deter-se em qualquer consolao ou em qualquer verdade que seja, nem nos interesses ou nos resultados da ao, nem nas certezas do saber e da crena. (BLANCHOT 2007: 185)

Trata-se do movimento da paixo do pensamento negativo, em virtude do qual o homem no esgota a sua negatividade na ao e no saber, o que, consequentemente, empurra-o para um no-saber. No para uma negao ou uma invalidao do que conhecido (e produzido), mas para uma abertura que se manifesta numa atitude de desprendimento, despojamento, fracasso, que conduz a um no-poder e, dessa forma, ao que seria uma verdadeira soberania uma vez que se ope paixo produtiva, acumulatria e triunfante, a qual por sua vez constitui um fechamento e, portanto, uma forma de escravizao.A experincia-limite (...) o desejo do homem sem desejo, a insatisfao daquele que est satisfeito em tudo, a pura falta, ali onde no entanto h consumao de ser. A experincia-limite a experincia daquilo que existe fora de tudo, quando o tudo exclui todo exterior, daquilo que falta alcanar, quando tudo est alcanado, e que falta conhecer, quando tudo conhecido: o prprio inacessvel, o prprio desconhecido. (BLANCHOT 2007: 187)

A partir daqui, gostaria de fazer um recorte mais definido para verificar se h, e em que medida, ecos dessa experincia-limite no itinerrio de Christopher McCandless. Parece-me que a incurso a uma terra selvagem, sozinho, sem planejamento, sem experincia, preparao ou equipamentos, sem avisar ningum e sem a possibilidade de se comunicar com quem quer que seja, numa atitude que contradiz qualquer princpio de sobrevivncia, contm algumas ressonncias evidentes daquela dissipao, do dispndio que se ope ao af produtivo e triunfante e cujo limite se d justamente na experincia interior. Como Ron Lamothe, produtor do documentrio The call of the wild, a meu ver acertadamente coloca, importam menos as razes pelas quais Chris McCandless no conseguiu sair do Alasca do que as razes pelas quais ele chegou at l7. Jon Krakauer, numa formulao talvez superficial e sensacionalista, assume7

Why he didnt walk out, perhaps, is less important in the big scheme of things, than why he walk ed in. The former is fleeting, and peripheral, whereas the latter is timeless, and profound. , Ron Lamothe.< http://www.tifilms.com/wild/call_intro.htm> Acesso em: 2 fev. 2011.

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que McCandless, desejando encontrar um terreno inexplorado, um blank spot no mapa, e deparando-se com a infelicidade de no existirem mais regies fora do mapa no final do sculo vinte, arranjou uma soluo inusitada: se livrou do mapa, de modo que, ao menos para ele, a terra se tornava ento desconhecida8. Em que pese o grau de anedota da afirmao de Krakauer os detetives de planto, num esforo investigativo (e produtivo!), fazem questo de levantar a lista de pertences9 encontrados junto ao corpo de McCandless, dentre os quais estaria, sim, um mapa , o desejo, apontado pelo autor, de adentrar uma regio que no est no mapa me parece fundamental para, seno compreender, ao menos se aproximar de alguma forma do que foi a aventura de Christopher no Alasca. Este desejo de um blank spot, diferentemente de outras incurses aventureiras de que temos notcia ao longo da histria, est despojado daquela exigncia produtiva e triunfante que leva o homem a conquistar a terra a fim de demarc-la como sua, num af apropriativo e reprodutivo (uma vez que a terra necessria reproduo da sua existncia e perpetuao da sua linhagem). A aventura de Christopher encontra-se, antes, muito mais prxima daquele estado em que o fazer se consuma e cria-se espao para uma negatividade sem emprego, para aquilo que sobra, que transborda depois que se esgota a negatividad e produtiva pela qual o homem nega a natureza e constri o mundo. Essa negatividade sem emprego, esse excesso de nada faz com que o homem, nas palavras de BLANCHOT (2007: 188), deixe-se tomar pelo infinito do fim e passe ento a responder a uma outra exigncia: (...) no mais de produzir, mas de despender, no mais de triunfar, mas de fracassar, no mais de realizar obras e falar utilmente, mas de falar em vo e tornar-se ocioso, exigncia cujo limite est dado na experincia interior.

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"In coming to Alaska, McCandless yearned to wander uncharted country, to find a blank spot on the map. In 1992, however, there were no more blank spots on the map not in Alaska, not anywhere. But Chris, with his idiosyncratic logic, came up with an elegant solution to this dilemma: He simply got rid of the map. In his own mind, if nowhere else, the terra would thereby remain incognita.", Jon Krakauer, Into the Wild. Acesso em: 2 fev. 2011.9

No site da produtora do documentrio The call of the wild, h inclusive uma imagem (uma fotografia) do que seria a lista dos pertences de McCandless elaborada pela polcia alasquiana nela consta um road map. Ver: Acesso em: 2 fev. 2011.

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Esse desejo de um blank spot, nas circunstncias das quais McCandless provinha situao econmica confortvel, famlia presente, educao e futuro profissional assegurados, um capitalismo de consumo estruturado sobre a iluso de que todo desejo pode, e deve, ser satisfeito , remete ao desejo da impossibilidade do desejo de que fala Blanchot, desejo da indiferena e da falta infinita que o desejo, e que pulsa sempre no interior da paixo do pensamento negativo. Christopher foi em busca do seu blank spot no Alasca, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar, inclusive em sua prpria casa ou, talvez mais propiciamente, na cela de um mosteiro ou mesmo em plena rua e perto do corao selvagem! , porque o que estava em jogo era menos a curiosidade meramente aventureira e adrenalstica (o que ainda estaria na ordem do fazer, do produzir) em conhecer novos lugares e mais a pulso gerada por aquele excesso de vazio, aquela falta essencial que confere ao homem o direito de se colocar a si prprio sempre em questo10. Da que a experincia de Christopher McCandless no caiba inteiramente em nenhuma daquelas duas perspectivas que apontamos h pouco: nem a sua idealizao como aventureiro entusiasta dos ideais de liberdade e vida pura (proposta que no deixa de carregar uma moral de matriz rousseauniana: a sociedade corrompe o homem, portanto preciso buscar os valores verdadeiros dentro de ns mesmos, longe do convvio humano) e menos ainda a abordagem supostamente crtica e realista, pela qual McCandless em ltima anlise no passa de um sujeito socialmente desadaptado (e de quebra temos a umas desagradveis formulaes moralistas que flertam com um darwinismo social assustador) cujo empreendimento um verdadeiro desservio sociedade e queles que labutam por pertencer honradamente (e produtivamente!) sociedade, nenhuma dessas duas perspectivas, infalivelmente carregadas de poder, de saber, de potencial construtivo, poderia abarcar inteiramente uma experincia em que vibram fortemente10

Em formulao magnfica, Blanchot assim fala dessa pura falta, desse excesso de vazio que conduz a paixo do pensamento negativo: No se trata de extorquir uma ltima recusa a partir do descontentamento vago que nos acompanha at o fim; no se trata tampouco desse poder de dizer no, pelo qual tudo se faz no mundo, cada valor, cada autoridade sendo derrubada por outra, cada vez mais extensa. O que est implcito em nossa proposio absolutamente outra coisa, exatamente isto: que ao homem, tal como , tal como ser, pertence uma falta essencial de onde lhe vem esse direito de se colocar a si prprio sempre em questo. (Grifo meu) BLANCHOT 2007: 187

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os ecos de um no-poder, um no-saber, um dispndio que significa inclusive a abertura morte. Uma morte, porm, que no chega a ser buscada como fim, como forma desejada de reintegrao Unidade e ao Absoluto (uma vez que a experincia-limite tambm a superao do absoluto como totalidade), mas que simplesmente decorre da abertura, em ltima anlise, ao impossvel, quilo que escapa a nosso prprio poder de prov-lo, mas prova do qual no poderamos escapar (BLANCHOT 2007: 190). Alis, a morte fsica, o fato da morte, de certa forma responsvel pelo excesso que, atravs da experincia interior, afirma aquela negao radical que no tem mais nada a negar. Ou, como diz BLANCHOT (2007: 188), o homem dispe de uma capacidade de morrer que ultrapassa em muito e de certo modo infinitamente o que lhe necessrio para entrar na morte (...) sobra-lhe a todo momento como que uma parte de morrer que no pode investir na atividade. Parece -me que esta capacidade infinita de morrer que Chris McCandless, diferentemente de boa parte de ns, que no temos, seno vontade, ao menos tempo ou as circunstncias para descobrir e provar, justamente essa capacidade infinita e inutilizvel de morrer que Christopher pressentiu e buscou explorar, tanto no perodo em que viveu como andarilho como, de forma aguda, durante o isolamento no Alasca. Se admitimos que a existncia humana pode ser governada pela razo, ento toda possibilidade de vida destruda11. A frase que parafraseia Tolstoi, atribuda a Christopher no filme Na Natureza Selvagem, pode ser posta em dilogo com o movimento da experincia interior, o movimento de afirmao dessa negao radical que no tem mais nada a negar. Tal movimento, entretanto, no consiste na negao daquele outro movimento constante pelo qual o homem procurar criar e atribuir sentido, mas sim numa superao dele. Numa superao do fechamento imposto pela razo, fechamento acusado na frase de Tolstoi. O no-poder no apenas a negao do poder e o no-saber no apenas a negao do saber a experincia-limite , antes, uma prodigalidade de afirmao que escapa inclusive lgica produtiva da razo dialtica, pois afirmao na qual tudo escapa e que escapa ela prpria unidade (BLANCHOT 2007: 193).

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"If we admit that human life can be ruled by reason, then all possibility of life is destroyed. " Parfrase de Tolstoi, em Guerra e Paz, atribuda a Christopher McCandless no filme de Sean Penn.

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Da a experincia de Christopher rechaar radicalmente o que vem ilustrado pela parfrase de Tolstoi a razo como totalidade, uma vez que, tornamos a afirmar, a experincia-limite extrapola toda a totalidade. Na leitura de Blanchot, a experincia-limite no chega a ser vivenciada por nenhum eu individual e nem pelo Eu como uma espcie de conscincia universal: o nico sujeito da experincia-limite a ignorncia encarnada no Eu-que-morre e em que, morrendo, no o faz nunca como eu pessoal. por isso que, ao sobrepor a experincia de Chritstopher McCandless ao que Bataille vislumbrou como a experincia-limite, tomei o cuidado de me referir s aproximaes que fiz entre as duas como ecos de uma experincia-limite12. Ainda, gostaria s de

mencionar uma ressonncia quase irresistvel desse tema que me parece existir na inscrio com a qual So Joo da Cruz, mstico carmelita, arremata o seu mapa do Monte da Perfeio13: Para vir a gostar, a saber, a possuir, a ser tudo, no queiras nem gostar, nem saber, nem possuir, nem ser nada. Deves prosseguir o teu caminho sem gostar, sem saber, sem possuir; deves ir por onde nada s. O caminho do nada14, nico que conduz ao iuge convivium, ao banquete infindvel, esse caminho , na mstica de So Joo da Cruz, o do desprendimento mais radical, que culmina no desprendimento do prprio eu (deves ir por onde nada s). Sem desejar anular as diferenas que se estendem entre as duas proposies, e sem ignorar que a paixo do pensamento negativo de Bataille impe de entrada a recusao de qualquer certeza espiritual implicada nas disposies e experincias msticas15, me parece haver (e tentador apontar) pontos de contato entre a12

E no como uma realizao pessoal da experincia-limite em si. Da a metfora do eco: uma espcie de presena sem presena ou, no limite, uma presena da ausncia.13

O Monte da Perfeio, esboo feito por So Joo da Cruz para a obra Subida do Monte Carmelo, ilustra trs caminhos possveis para o homem: o dos bens da terra, o dos bens do cu e o caminho do nada, sendo que apenas este leva at o iuge convivium, a esfera celeste.14

Tenho conscincia de que falo da experincia mstica de So Joo da Cruz muito ligeiramente, em virtude da falta de vivncia pessoal do tema a qual, a meu ver, seria indispensvel a uma anlise mais substancial , mas tambm devido ao limite de extenso deste texto. Para mais informaes sobre o assunto, sugiro consultar a obra Subida do Monte Carmelo, de So Joo da Cruz, publicada no Brasil pela Editora Vozes. 15 Isto, a meu ver, se deve ao fato de Bataille e Blanchot recusarem terminantemente qualquer repouso na Unidade, o que necessariamente exclui a ideia de um Deus que unidade e apenas unidade. Contudo, a lgica da f crist num Deus uno e ao mesmo tempo trino no representa forosamente um fechamento incompatvel com esse movimento de superao do absoluto de que temos falado at ento. Pois esta f pode representar justamente a superao da ideia de um Deus

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experincia interior descrita por Bataille e Blanchot e o caminho do nada abraado por So Joo da Cruz. Ambos pressupem o dispndio, ambos partem do desejo do homem sem desejo, do homem que, tendo sido tudo, ainda lhe sobra ser nada. No toa, So Joo da Cruz foi alcunhado o Doutor do Nada, sendo clebre a sua seguinte frase: Nada, nada, nada, at deixar a prpria pele e o resto, por Cristo. A diferena16 talvez esteja em que, enquanto para Bataille e Blanchot a experincia interior culmina na nova soberania de uma espcie de entre -ser, de um ser sem ser no devenir sem fim de uma morte impossvel de morrer (BLANCHOT 2007: 193), que no final uma impessoalidade, o caminho do nada de So Joo da Cruz culmina sempre numa Pessoalidade o Deus uno e trino17. Enfim, mas no que diz respeito experincia de McCandless, esse caminho do nada tambm parece de algum modo ressoar, ao lado dos ecos da experincialimite, ressaltando os traos de ascetismo e abnegao contidos no seu trajeto. Retomando aquelas constataes que formulei, talvez um tanto precipitada ou descompromissadamente, no incio deste texto, gostaria de desenvolver algumas consideraes, guisa de concluso, acerca da repercusso e importncia que a ideia da experincia-limite pode ter num mundo que se acha numa crise de certezas. Vimos que a experincia-limite pressupe a transgresso de toda e qualquer relao de pertencimento, em suma, de toda certeza. Aqui lanarei mo das formulaes de Michel Maffesoli a respeito do nomadismo e do que ele chama de enraizamento dinmico. A ideia do enraizamento dinmico manifesta um antagonismo paradoxal da existncia: necessrio pertencer a algum lugar, ter ligaes (ter certezas), contudo, para que essas ligaes e esse pertencimento

que apenas unidade, ao transformar a multiplicidade e a relao (lembrar que este Deus trino pessoa e, como tal, relao) num modo de ser original. Ver, nesse sentido: RATZINGER, Joseph. Introduo ao Cristianismo. 3. ed. So Paulo: Ed. Loyola, 2009, principalmente pp. 121-142.16

Alm do fato de que o caminho do nada de So Joo da Cruz, ao contrrio da proposta da experincia-limite, pode e deve ser pessoalmente trilhado, isto , percorrido por um indivduo que efetivamente o experimenta, como indivduo.17

Uma pessoalidade, contudo, inteiramente diferente daquilo que normalmente consideraramos uma pessoa. Pois enquanto para ns, criaturas, a relao nos algo por assim dizer acrescentado, o Deus cristo, como pessoa, existe originariamente como relao, sem deixar, contudo, de ser unidade. Quer dizer, nele, ser pessoa ser relao.

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tenham significado necessrio que sejam, de modo real ou simblico, negados, superados, transgredidos. O limite s pode ser compreendido em fu no da errncia, como esta tem necessidade daquele para ser significante (MAFFESOLI 2001: 84). Essa tenso, esse antagonismo paradoxal, d-se de modo permanente, isto , no h superao sinttica, como prope a razo dialtica. Toda a estruturao social, e tambm a individual, baseia-se nessa tenso entre o lugar e o no-lugar. O movimento da errncia, da desterritorializao, que leva a sair do fechamento (seja ele territorial, poltico ou identitrio) e que compe essa tenso necessria e insupervel em toda estrutura, me parece que dialoga com o movimento da experincia-limite, na medida em que, tal como ela, acena com a possibilidade de instituio de uma nova soberania, marcada pela tica da liberdade do aptrida18. Essa liberdade no uma liberdade isenta de responsabilidade, mas, ao contrrio, existe apenas sob o signo da responsabilidade pelo prximo, uma vez que, para quem vive uma condio de apatridade, a nica ptria possvel so os homens pelos quais se assume responsabilidade19. A histria de McCandless me parece conter os arqutipos da viagem, da iniciao e do estrangeiro um garoto disposto a acolher o outro, o outro emprico e o Outro transcendente, sai em peregrinao, buscando-o (encontrando-o?) finalmente em um blank spot, um ponto inexplorado e inexistente no mapa , arqutipos esses que subjazem ao movimento do enraizamento dinmico. Movimento que, como paradoxo fundador que , me parece urgente, num contexto percebido como de crise, resgatar e iluminar. Afinal de contas, como MAFFESOLI (2001: 187) coloca, no h institudo sem instituidor, esttica sem dinmica. De um

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Para mais consideraes e anlise das implicaes dessa liberdade da apatridade, ver: FLUSSER, Vilm. Habitar a casa na apatridade (Ptria e mistrio Habitao e hbito), In: Bodenlos: uma autobiografia filosfica. So Paulo: Annablume, 2007, pp. 221-236.19

(...) ptria, para mim, so os homens pelos quais eu tenho responsabilidade. Conseqentemente, a liberdade adquirida na apatridade no exatamente filantropia nem cosmopolitismo ou humanismo. No sou responsvel pela totalidade da humanidade, como por exemplo pelos milhes de chineses. a liberdade da responsabilidade pelo prximo. essa liberdade que est subentendida nas doutrinas judaico-crists, ao exigirem o amor ao prximo e ao dizerem que o homem seria um expatriado no mundo, e que sua ptria seria em um outro lugar a se procurar. (Grifei) FLUSSER 2007: 232.

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modo metafrico, pode-se dizer que o territrio no possvel a no ser por sua negao. Trazer luz20 o movimento da experincia-limite e a necessidade do enraizamento dinmico pode vir a abrir espao para uma tica da liberdade baseada na responsabilidade pelo prximo, bem como para a ressignificao constante das relaes de pertencimento. E por isso a experincia de Chris McCandless no Alasca selvagem uma incurso que grita aos nossos tempos: urgente que empreendamos o aprendizado do imprevisvel, que acolhamos o imprevisvel nas nossas relaes (alis, como poderia existir verdadeira relao sem o imprevisvel? a relao pressupe o outro e o Outro , que sempre imprevisvel) e, com isso, saibamos constantemente ressignific-las, para que sobrevivam. Para que sobrevivamos.

Referncias bibliogrficas: BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: A experincia limite. Vol. 2. Traduo: Joo Moura Jr. So Paulo: Editora Escuta, 2007. FLUSSER, Vilm. Habitar a casa na apatridade (Ptria e mistrio Habitao e hbito), In: Bodenlos: uma autobiografia filosfica. So Paulo: Annablume, 2007.

MAFFESOLI, Michel. Sobre o Nomadismo: vagabundagens ps-modernas. Traduo: Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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Em que pese o que possa haver de paradoxal na proposta de trazer luz algo da ordem da experincia-limite, que aponta para o incomunicvel.

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As mulheres em quatro romances rurais

BORDINI, Maria Isabel da Silveira (UFPR)

Este trabalho tem por objetivo expor alguns aspectos envolvidos na representao ficcional da figura feminina em quatro romances de temtica rural do sculo XIX. Analisaremos, comparativamente, a condio e a atuao das personagens femininas em cada uma das obras, a saber: Inocncia, personagem- ttulo do romance de Visconde de Taunay; Alice, personagem de O tronco do ip, de Jos de Alencar; Joana e Luisinha, personagens de O Cabeleira, romance de Franklin Tvora; e D. Guidinha, protagonista de Dona Guidinha do Poo, de Manoel de Oliveira Paiva. Buscaremos compreender como tais personagens se inserem e contribuem para a figurao literria da matria rural.

Inocncia e a inegociabilidade dos valores patriarcais

A respeito de Inocncia, aquilo que primeiro salta aos olhos a idealizao das virtudes femininas da personagem, tais como beleza, delicadeza, pudor, recato, o que est exemplarmente enunciado na seguinte passagem:Envolvida em sua pureza como num manto de bronze, entregava-se Inocncia com exaltamento e sem reserva fora da paixo. E essa natureza pudica e delicada a tal ponto dominava a Cirino, que invencvel acanhamento o prendia ante a dbil donzela, alheia a todos os mistrios da existncia. (p. 1281)

O corao de Inocncia, a princpio, no devassvel: seus sentimentos ficam ocultos, temos notcia apenas da paixo que consome Cirino. Porm, a1

Todas as citaes da obra so da seguinte edio: VISCONDE DE TAUNAY. Inocncia. 5. ed. So Paulo: Editora FTD, 1999. Limitar-me-ei a indicar a pgina em que a citao se encontra.

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certa altura, ficamos sabendo que, em realidade, a moa sofre uma tremenda e profunda transformao: o amor por Cirino (e talvez, primeiramente, o amor de Cirino por ela) como que a arranca da sua inocncia2 em relao ao mundo, fazendo-a despertar para a sua individualidade. Vejamos:

- Escute, Cirino, observou ela, nestes dias tenho aprendido muitas coisas. Andava neste mundo e dele no conhecia maldade alguma... A paixo que tenho por mec foi uma luz que faiscou c dentro de mim. Agora comeo a enxergar melhor... Ningum me disse nada; mas parece que a minha alma acordou para me avisar do que bom e do que mau... Sei que devo de ter medo de mec, porque pode botar-me a perder... No formo juzo como; mas a minha honra e a de toda a minha famlia esto nas suas mos. (p. 127)

H, por fim, um paralelismo no destino de Inocncia e de Cirino. Ambos sucumbem (ele assassinado, e ela morre em circunstncias no esclarecidas, mas se d a entender que foi por ter resistido ao casamento arranjado por seu pai com Maneco) como mrtires de um ideal de amor o amor romntico, que tem como valores centrais a individualidade e a autoconscincia. Como mrtir do amor romntico, chama a ateno o grau de brutalidade que a personagem deve enfrentar (ainda que, a princpio, apenas enunciada no plano verbal porm, logo depois da passagem a seguir transcrita suceder a cena de agresso, em que Pereira joga a filha contra a parede):

- Nocncia, daqui a bocadinho Maneco chega da roa... Voc h de ir para a sala... se no fizer boa cara, eu a mato. E erguendo a voz: - Ouviu? Eu a mato!... Quero antes v-la morta, estendida, do que... a casa de um mineiro desonrada... (p. 161)

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Nesse sentido, interessante mencionar como Francisco Maciel Pereira, em prefcio edio da obra em que me baseei para este estudo, atenta para o fato de a moa ser sempre chamada pelo pai de Nocncia, o que poderia ser um indicativo do mal que (ao menos na perspectiva dos valores patriarcais) est arraigado na personagem (lembrar dos comentrios depreciativos de Pereira s mulheres), ou ento da nocncia (o aspecto danoso) que o seu destino amoroso (trgico) representa.

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A tentativa de negociao com os valores patriarcais, imaginada como possvel pela personagem, se revela frustrada. E aqui significativo o quanto a postura de Inocncia que determinante para o destino do casal, pois, enquanto Cirino prope que ambos fujam a fim de consumar o amor, Inocncia rejeita essa sada e prope a tentativa de negociao com os valores patriarcais atravs da intercesso de seu padrinho, Cesrio. Desse modo, Inocncia se presta a mais que a uma simples figurao dos esteretipos que compem a herona romntica, mas reveladora da impossibilidade de composio entre dois sistemas de valores opostos: de um lado, o sistema que comporta a ideologia do amor romntico e que tem como elemento fundamental o individualismo como ndice de modernidade , de outro, a ordem patriarcal e rural, em que as aspiraes individuais tm pouco (ou nenhum) espao.

Alice e a (suposta) conciliao inter-classe

O que temos a apontar na personagem Alice, no que diz respeito sua participao na composio do enredo e na figurao ficcional da matria rural, o papel central que a menina desempenha na conciliao, digamos, interclasse. O personagem Mrio, ressentido, amargurado e compungido pela sua condio de agregado na Fazenda de Nossa Senhora do Boqueiro, se concilia com o proprietrio, o Baro da Espera, atravs do casamento com Alice, filha deste. Alice, de incio, o principal alvo do sarcasmo e do ressentimento de Mrio, que tem por ela, e pela sua condio social privilegiada, um profundo, inarredvel e rancoroso desprezo que se deve em parte ao desprezo que Mrio devota ao pai da moa, senhor da Fazenda e seu protetor. Vejamos como isso se manifesta numa das falas do personagem:

Alice quis por fora trepar em uma rvore de goiabeira para colher um cacho de uvas da alta parreira. Houve desta vez uma oposio geral travessura. - Nhanh, isto so modos? Tomara que sinh saiba, exclamou Eufrosina. 43

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(...) - No trepe, Alice, no bonito; estraga as mos e pode romper o seu vestido, disse Adlia. Mrio limitou-se a sua habitual ironia: - Ora!... Deixe trepar, no faz mal! filha de baro... no cai... tem muito dinheiro!... (p. 16-17)3 (Grifei)

A menina, contudo, est destinada a ser o anjo do perdo, aquela que ir reconciliar seu pai com a memria do pai de Mrio (e que, de quebra, ir reconciliar Mrio com o Baro da Espera e ir restituir quele a sua condio de proprietrio, que afinal lhe pertence por direito4). Vejamos a seguinte passagem (no captulo XVIII), em que o Baro faz um juramento (a si mesmo e a Deus) pelo qual empenha a filha (pretende d-la em casamento a Mrio) como meio e garantia de acerto de contas com o passado:

O baro foi, abafando os passos, contemplar Alice adormecida. Mudo ante o vulto da menina, ele estremecia ao choque dos pensamentos que lhe tumultuavam dentro dalma. Afinal seus lbios murmuraram estas palavras: - Sers o anjo do perdo, minha filha. Defronte via-se a porta entreaberta do oratrio. O baro aproximou-se do altar e pousando a mo sobre a ara santa repetiu o juramento solene, cujo segredo ficou entre ele e Deus. (p. 88)

Digamos que o papel mediador de Alice (entre Mrio e o Baro) j est de certa forma antecipado no episdio (que consiste no ncleo de toda a primeira parte do livro) em que Mrio a salva das guas do boqueiro. (Com efeito, a passagem do juramento transcrita acima se d logo aps a ocasio do salvamento.) O desprendimento que conduz a ao de Mrio j um primeiro passo na sua aproximao com o Baro. Ao salvar a filha de um homem que

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Todas as citaes da obra so da seguinte edio: ALENCAR, Jos de. O tronco do ip. So Paulo: Editora Trs Ltda. [s. d.]. Limitar-me-ei a indicar a pgina em que a citao se encontra.4

Pois a Fazenda de Nossa Senhora do Boqueiro, onde Mrio vive como agregado, originalmente era propriedade de seu av, tendo passado s mos do pai de Alice, O Baro da Espera, devido a desentendimentos familiares entre o pai e o av de Mrio, num episdio um tanto quanto obscuro (que envolve inclusive a morte de Jos Figueira, pai de Mrio), mas em que a m-f do Baro parece ter atuado. O mal-estar perante a sua condio de agregado provm tambm do fato de Mrio desconfiar ter sido vtima de uma grande injustia (a espoliao das terras que deveriam lhe pertencer) por parte do Baro da Espera.

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ele despreza (que, por vezes, inclusive odeia), d-se um prenncio do poder conciliador e redentor do amor. Alice, figura feminina central da obra, e o amor como elementos conciliadores dos impasses sociais e materiais: esta talvez seja uma interpretao proveitosa da obra de Alencar. Contudo, h ainda um outro aspecto a se considerar: que essa conciliao inter-classe (entre um dependente ressentido e o seu protetor) no bem tal coisa, mas sim uma reposio do status quo ante de proprietrio a que Mrio tem direito (como neto do Comendador Figueira, proprietrio original da Fazenda de Nossa Senhora do Boqueiro, Mrio seria um herdeiro espoliado). Quer dizer, essa aparente conciliao inter-classe, operada pelo casamento e pelo amor, na verdade a restaurao de uma condio proprietria anterior (E, diante disso, poderamos formular a hiptese de que a soluo ao impasse amoroso possvel a, diferentemente do que ocorre nos demais romances analisados, justamente porque nesse caso o obstculo social o fato de Mrio ser um agregado e Alice a filha de um proprietrio j est anteriormente resolvido: Mrio , por direito, tambm um proprietrio). De toda forma, o amor romntico e a figura da mulher ocupam posio central nessa restaurao e tambm contribuem para um deslocamento do problema: de um conflito de natureza social (agregado x senhor) para um conflito de natureza moral (amor x obrigao/honra familiar).

Joana, Luisinha e a bondade divina incua A obra O Cabeleira, de Franklin Tvora5, carrega, de algum modo, a tese rousseauniana de que o ser humano nasce bom, mas de que a sociedade o corrompe. Como corolrio dessa ideia, tem-se o argumento de que dever do Estado, a fim de conservar e desenvolver as nobres inclinaes do esprito humano, promover a educao dos cidados e suprir o papel da famlia,

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Todas as citaes da obra so da seguinte edio: TVORA, Franklin. O Cabeleira. Curitiba HD Livros Editora, 1999. Limitar-me-ei a indicar a pgina em que a citao se encontra.

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quando esta no possa exerc-lo6. Diante disso, entendemos as mulheres de O Cabeleira Joana, a me, e Luisinha, amiga de infncia e amada de Jos Gomes como personificaes da figura do bom selvagem, do ser humano no seu melhor estado, incorrupto. Ou seja, na mulher, essa bondade natural, ameaada pela corrupo da sociedade, estaria especialmente presente (mais do que no homem). Vejamos como caracterizada Joana, a me do Cabeleira:

No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo vivo e edificante pela ternura, pela bondade, pelo esprito de religio que a caracterizava. Em contraposio porm a este salutar elemento de edificao, do outro lado da criana achava-se Joaquim, no s naturalmente mau, mas tambm obcecado desde a mais tenra idade na prtica das torpezas e dos crimes. Boa me era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doura contrastado pela ameaa, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado a ser o primeiro algoz do prprio ente a quem dera a existncia? (p. 20)

Assim, Cabeleira, assassino sanguinrio, foi em verdade desviado da bondade natural quando criana devido ao paterna. Caber a Luisinha, personagem de seus primeiros anos que reaparece em sua vida adulta, faz-lo voltar ao bem e alcanar a redeno de seus crimes (redeno que ele h de pagar com a morte). A redeno de Cabeleira, que possui um forte componente espiritual, se d no somente atravs do amor de Luisinha, mas tambm atravs da ao sobrenatural de Deus e, na verdade, esses dois elementos, o amor de Luisinha e a ao divina, esto entranhadamente imbricados, uma vez que a atitude da moa de um desprendimento e de uma abnegao

verdadeiramente sobrenaturais. Luisinha , tal como Joana, uma espcie de mrtir, na sua viso de mundo e na sua atitude baseadas na piedade e na aceitao (herica?) do sofrimento:6

Como o caso da problemtica famlia de Jos Gomes, o Cabeleira: Joana, a me boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o pai sem alma nem corao. Jos foi sempre o motivo, a causa desse combate sem trguas, Jos, filho sem sorte que estava fadado a legar posteridade um eloqente exemplo para provar que sem educao e sem moralidade impossvel a famlia; e que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de obrigar o pai a proporcionar prole, ou de proporcion-lo ela quando ele o no possa, o ensino que forma os costumes domsticos nos quais os costumes pblicos se firmam e pelos quais se modelam. (p. 38)

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- No esmoreas, meu bem; disse o mancebo. Havemos de ser felizes. - Onde? Neste mundo? perguntou ela com incredulidade. Na terra no h felicidade, Cabeleira; na terra s h dores e prantos, saudades e remorsos. (p. 116)

Desse modo, o papel da mulher na dinmica das relaes materiais no universo rural, tal como representadas pela fico, recebe em O Cabeleira um tratamento de sublimao que sem igual (em relao s outras obras aqui analisadas, pelo menos): as mulheres so apresentadas quase como encarnaes da bondade divina, numa obra cuja preocupao central o embate entre o bem moral e os descaminhos e perverses do meio social. Embate cuja soluo (de matriz iluminista) , na perspectiva da obra, a difuso da educao e do progresso social:

A justia executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na ignorncia e na pobreza. Mas o responsvel de males semelhantes no ser primeiro que todos a sociedade que no cumpre o dever de difundir a instruo, fonte da moral, e de organizar o trabalho, fonte da riqueza? (p. 150)

Entretanto, essa bondade divina, sobre-humana, que as personagens femininas encarnam, mostra-se, em ltima anlise, incua, incapaz de resolver os problemas sociais que a obra de Franklin Tvora pretende denunciar. No limite, pode-se dizer que as mulheres, tal como os valores cristos que elas exemplarmente representam, no encontram, no universo figurado por Tvora, um espao prprio para realizao. A mensagem parece ser a de que o momento no o de se voltar para os valores espirituais (apesar de serem importantes e cuja esfera por excelncia a do feminino, conforme o sistema de valores da obra), mas para a ao social, ligada aqui ao e ao papel das instituies (Estado, escola, famlia).

Dona Guidinha: latifundirio em corpo de mulher

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A personagem Dona Guidinha, protagonista de Dona Guidinha do Poo7, de Manoel de Oliveira Paiva, produz um contraste bastante evidente em relao s demais heronas romnticas, o que fica explcito j numa das primeiras asseres do narrador a seu respeito: Margarida era muitssimo do seu sexo, mas das que so pouco femininas, pouco mulheres, pouco damas, e muito fmeas. Mas aquilo tinha artes do Capiroto8. Transfigurava-se ao vibrar de no sei que diacho de molas (p. 15). Percebe-se que no estamos mais na mesma ambientao esttica e ideolgica dos outros trs romances. Com efeito, a prosa adquire aqui certos traos naturalistas e a materialidade das relaes representada com mais crueza e menos idealizao. E como se insere D. Guidinha na dinmica dessas relaes? Primeiramente, devemos lembrar que a personagem pertence classe dos proprietrios rurais, dos latifundirios, mais precisamente. E nessa condio que ela se insere na dinmica do favor e do mandonismo. A respeito de como D. Guidinha atua nessa dinmica sendo mulher, Fernando C. Gil e Ewerton de S Kaviski assim expressaram:

A condio mulher de Guidinha parece ter peso significativo na condio proprietria. Embora Guidinha seja a herdeira direta do poder de seu pai dentro do sistema de relaes sociais daquele serto, a senhora absoluta da regio no exerce o mandonismo como homem, mas como mulher. O universo de valores patriarcais que enformam o mandonismo e suas manifestaes (dependncia, opresso, favorecimento e imposio da vontade senhorial) exigem de Guida um mimetismo social para o livre exerccio de seu mando. Em outras palavras, Guidinha fica sujeita, nesse sentido, a tomar algumas atitudes que minimizem sua condio de mulher para, paradoxalmente, assumir atribuies masculinas - o mandonismo em sentido extenso. A atitude compensatria de Guidinha buscar arrimo em uma sombra masculina, via casamento, aproveitando o corpo de homem para manifestar sua vontade/poder herdado. Da a necessidade de velar a sobreposio da mulher sobre o marido na relao conjugal com Quim. (GIL e KAVISKI 2008: 45)

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Todas as citaes da obra so da seguinte edio: PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poo. So Paulo: tica, 1981. Limitar-me-ei a indicar o nmero da pgina em que a citao se encontra. 8 Isto , do demnio.

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Quer dizer, embora Guida exera de fato o poder derivado da sua condio social, no o faz no plano simblico, que terreno do marido: ele quem se encarrega (a pedido da mulher) de resolver o problema jurdico de Secundino, por exemplo (Secundino, sobrinho do Major Quim e que se torna amante de D. Guidinha, fora acusado de ser partcipe no assassinato de seu padrasto). Do mesmo modo que o exerccio do mando, o exerccio do favor (na verdade um corolrio do primeiro) mascarado pela condio feminina da personagem: Guida tida pela populao local como um exemplo de generosidade, como exercendo aquilo que seria mais natural ou prprio mulher do que ao homem: a bondade, a compaixo. No entanto, isso desmistificado pela prpria personagem quando, questionada pelo marido por ajudar os retirantes vtimas da seca, responde sem rodeios: Eu dou do que meu! Quer dizer, antes de ser um exerccio de caridade, a atitude de Guida a da conscincia proprietria9. Contudo, essa conscincia no pode, devido ao sistema de valores patriarcal em que se insere, ter manifestao simblica na dinmica das relaes de mando. E quando tem, isto , quando, ao encomendar o assassinato do marido, Guida executa explicitamente atos de mando, a Senhora do Poo d incio sua derrocada10. O momento, contudo, em que, em dilogo consigo mesma, Guida concebe a ideia de mandar matar o marido bastante significativo em termos da manifestao do seu poder, sem os