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1 PSICOTERAPIA EXISTENCIAL: A SISTEMATIZAÇÃO DE IRVIN D. YALOM RICARDO DANTAS CABRAL * Neste artigo, o autor apresenta a sistematização sobre Psicoterapia Existencial proposta pelo psiquiatra norte-americano Irvin D. Yalom, mostrando que, além de ser um enfoque dinâmico no sentido de forças em conflito , fundamenta-se em quatro pressupostos básicos da existência: a morte, a liberdade, o isolamento existencial e a carência de sentido da vida. A consciência e o temor em relação a tais pressupostos são uma poderosa fonte de angústia que é o combustível das psicopatologias e os sujeitos lidam com ela por meio de mecanismos de defesa específicos, que correspondem a cada uma das preocupações básicas da existência. Quanto mais rígido for o sistema defensivo do sujeito, maior a restrição à própria personalidade. Ao final do artigo, o autor tece algumas considerações críticas tanto à terminologia empregada quanto à própria especificidade dos modos defensivos propostos na obra apresentada. In this article the author presents the systematization about Existential Psychotherapy proposed by the north-american psychiatrist Irvin D. Yalom, showing that besides being a dynamic focus in the sense of conflicting forces it‟s based on four basic purposes of existence: death, freedom, existential isolation and meaninglessness. The awareness and the fear in relation to such purposes are a powerful source of anguish which is the psychopathology‟s reason – and individuals cope with it by specific self-defensive mechanisms, that correspond to each one of the basic existence concerns. The more rigid the self-defensive system is, the stronger is the restriction about the own personality. At the end of the article, the author points out some critical considerations regarding the used terminology as well as the proper specification of the defensive behaviors proposed by the presented work. É sabido que a Psicologia Existencial não tem um „pai‟, no máximo antepassados; também não tem uma metodologia exclusiva, ainda que a fenomenologia tenha contribuído bastante na investigação e na prática clínicas; não se constituiu como uma teoria unificada ou uma escola formal, e carece também do respaldo de alguma * Psicólogo Mestre em Tecnologia (CEFET/RJ) Psicoterapeuta, orientação existencial Rua Décio Vilares 169, ap. 401 Copacabana CEP 22041-040 Rio de Janeiro - RJ (21) 3507-0784 / 8818-9991 e-mail: [email protected]

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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL:

A SISTEMATIZAÇÃO DE IRVIN D. YALOM

RICARDO DANTAS CABRAL*

Neste artigo, o autor apresenta a sistematização sobre Psicoterapia Existencial proposta pelo psiquiatra norte-americano Irvin D. Yalom, mostrando que, além de ser um enfoque dinâmico – no sentido de forças em conflito –, fundamenta-se em quatro pressupostos básicos da existência: a morte, a liberdade, o isolamento existencial e a carência de sentido da vida. A consciência e o temor em relação a tais pressupostos são uma poderosa fonte de angústia – que é o combustível das psicopatologias – e os sujeitos lidam com ela por meio de mecanismos de defesa específicos, que correspondem a cada uma das preocupações básicas da existência. Quanto mais rígido for o sistema defensivo do sujeito, maior a restrição à própria personalidade. Ao final do artigo, o autor tece algumas considerações críticas tanto à terminologia empregada quanto à própria especificidade dos modos defensivos propostos na obra apresentada.

In this article the author presents the systematization about Existential Psychotherapy proposed by the north-american psychiatrist Irvin D. Yalom, showing that besides being a dynamic focus – in the sense of conflicting forces – it‟s based on four basic purposes of existence: death, freedom, existential isolation and meaninglessness. The awareness and the fear in relation to such purposes are a powerful source of anguish – which is the psychopathology‟s reason – and individuals cope with it by specific self-defensive mechanisms, that correspond to each one of the basic existence concerns. The more rigid the self-defensive system is, the stronger is the restriction about the own personality. At the end of the article, the author points out some critical considerations regarding the used terminology as well as the proper specification of the defensive behaviors proposed by the presented work.

É sabido que a Psicologia Existencial não tem um „pai‟, no máximo antepassados; também não tem uma metodologia exclusiva, ainda que a fenomenologia tenha contribuído bastante na investigação e na prática clínicas; não se constituiu como uma teoria unificada ou uma escola formal, e carece também do respaldo de alguma

* Psicólogo – Mestre em Tecnologia (CEFET/RJ) – Psicoterapeuta, orientação existencial Rua Décio Vilares 169, ap. 401 Copacabana CEP 22041-040 Rio de Janeiro - RJ (21) 3507-0784 / 8818-9991 e-mail: [email protected]

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sociedade ou de órgãos de difusão de dimensões realmente significativas. Mas se até aqui a caracterizamos pelo que ela não tem, o que vem a ser a Psicologia Existencial, e em nosso caso particular, a Psicoterapia Existencial?

Para tentar responder a essa pergunta, e fazendo-o de forma sucinta, partiremos dos escritos de um psiquiatra norte-americano chamado Irvin D. Yalom, que em 1980 publicou um livro intitulado “Psicoterapia Existencial”. Nessa obra, o autor visa propor e explicar “um enfoque psicoterapêutico, isto é, uma estrutura teórica e uma série de técnicas dela derivadas, que sirvam de marco de referência para elementos muito diferentes e extraordinários da psicoterapia” (Yalom, 1984, p.15). Sua articulação parte de uma definição formal, que vem a ser:

“A Psicoterapia Existencial é um enfoque dinâmico que se concentra nas preocupações enraizadas na existência do indivíduo” (ibid.).

Vamos por partes. Por que um enfoque dinâmico? Segundo o autor, o termo “dinâmico” relaciona-se ao conceito de “força”, conceito esse desenvolvido por Freud em seu modelo do funcionamento mental. Tal modelo postula a existência, em todos os indivíduos, de uma série de forças conscientes e inconscientes em conflito, as quais por sua vez são traduzidas em emoções, desejos, pensamentos e comportamentos.

Grande parte das psicoterapias baseia-se nesse modelo, ou seja, o que Maddi denominou de modelo baseado no conflito, onde encontramos, por exemplo, a própria psicanálise, a psicologia analítica, a orgonoterapia, a análise transacional, etc., em contraposição aos modelos baseados no desenvolvimento, tendo como exemplo algumas orientações humanistas tais como a de Rogers, Maslow, etc. A concepção de Yalom situa-se no primeiro grupo. Entretanto, se dizemos que a estrutura da psicoterapia existencial é a mesma dos modelos baseados nas forças em conflito, tal não ocorre com seu conteúdo – e é aí que reside o que há de existencial neste modelo.

Podemos dizer que a psicodinâmica existencial é regida pela seguinte fórmula:

Consciência da(s)

Preocupação(ões) Angústia Mecanismo(s) de Defesa

Essencial(ais)

É preciso dizer primeiro que, na psicodinâmica existencial, a relação entre os elementos não é causal, mas sim motivacional, baseada na consciência e no temor. E para entender o uso do termo “motivacional”, tomemos um exemplo muito utilizado pelo analista existencial Medard Boss: se um cisco entra em meu olho e eu lacrimejo, podemos dizer que o cisco é causa do lacrimejar, sendo uma resposta „mecânica‟, geral;

mas se as lágrimas se dão no funeral de meu pai, o que podemos dizer é que sua morte foi o motivo do lacrimejar, não uma de suas causas. Pode-se perceber que, além dos aspectos filosóficos dessa relação motivacional, entende-se também que há uma total implicação do sujeito em relação à sua existência, o que amplia suas possibilidades frente à mesma. Abrindo um parêntese, não podemos nos esquecer que Boss, assim como Ludwig Binswanger, fizeram uso do método fenomenológico como base para sua atividade clínica, ambos sendo também muito influenciados pela analítica existencial de Heidegger.

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Temos, portanto, a consciência e o temor referentes às preocupações essenciais. Desse confronto surge a angústia, que tentamos eliminar, ou pelo menos diminuir, por meio de mecanismos de defesa1, não só os já estudados pela psicanálise, mas também mecanismos específicos de defesa que cumprem a função de auxiliar o indivíduo a fazer frente a cada um dos temores existenciais primários.

Pois bem, começamos explicando que a psicoterapia é um enfoque dinâmico, no sentido da existência de forças em conflito. Entretanto, qual seria esse conflito? Segundo o autor, é aquele “que emana do confronto do indivíduo com os pressupostos básicos da existência” (Yalom, 1984, p.19), entendendo tais pressupostos como propriedades intrínsecas do ser humano, às quais temos acesso, ou de que tomamos consciência, principalmente através das “situações limite”2, que seriam momentos críticos de nossas vidas que muitas vezes exigem uma reavaliação, re-significação da própria existência.

A obra de Yalom trata de quatro pressupostos: a morte, a liberdade, o isolamento existencial e a carência de sentido da vida. Falemos um pouco sobre

cada um deles.

De todos os pressupostos, a morte é o mais evidente, o que se apresenta de forma mais concreta e pungente. Afinal, todos vamos morrer um dia; todos. E essa

verdade, da qual não podemos escapar, é uma imensa fonte de angústia, angústia essa que se encontra na estruturação das psicopatologias, que é o combustível das psicopatologias.

Diz-se que “ainda que o evento físico da morte destrua o homem, a idéia da morte serve para salvá-lo” (Yalom, 1984, p. 47). O sentido desta frase aponta para o fato de que a idéia da morte, ou melhor, a “experiência limite” da morte, ajuda-nos a sair do nosso estado de existência cotidiano, caracterizado por um “descuido de si”, levando-nos ao “cuidado de si” – falando em termos heideggerianos. O primeiro estado pauta-se na preocupação pela forma como as coisas são, por se estar perdido nos demais, o que é

qualificado por Heidegger como um modo de existência “inautêntico”, onde a pessoa não percebe sua responsabilidade em relação à sua vida e ao mundo, tratando de não escolher e “deixando-se levar por qualquer um”. É bom observar que não escolher é uma

escolha, mesmo que não seja percebida como tal.

No segundo estado, o de “cuidado de si”, não há a preocupação pela forma de ser das coisas, mas sim pelo fato delas existirem, sendo, portanto, a contínua consciência do ser, traduzida pela responsabilidade que se tem consigo mesmo. É a partir desse estado que “entramos em contato com a criação de nós mesmos e chegamos a captar o poder inerente à própria capacidade de mudança” (ibid., p. 49).

Mas não costumamos permanecer por muito tempo no estado de “cuidado de si”, haja vista a angústia concomitante que ele provoca. E o preço que pagamos para livrarmo-nos da angústia, que neste caso se refere ao confronto com a morte, é a volta à mundanalidade das coisas, à distração com sua forma, o perdermo-nos nos demais, por meio de mecanismos de defesa – que certamente nos proporcionam segurança, porém restringem nossa experiência e desenvolvimento.

Como dissemos anteriormente, se no modelo existencial encontramos os mecanismos de defesa estudados pela psicanálise, devemos acrescentar-lhe outros específicos. No que se refere à angústia em relação à morte, destacamos duas formas de

1 Vale notar que este é o termo empregado por Yalom. Comentaremos sobre isso ao final deste trabalho.

2 Termo cunhado por Karl Jaspers.

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negação: a crença de que se é especial, e a crença em um salvador. Comecemos

então pela primeira.

Imaginemos que alguém diga: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem; portanto, Sócrates é mortal”, e que depois acrescente: “isto certamente se aplicará a Sócrates, talvez aos outros homens, mas a mim não!”

Não, caro leitor, não é preciso obrigar o sujeito que fez uma afirmação dessas a tomar neurolépticos, já que, afinal de contas, tanto ele quanto os demais seres humanos sabem que a vida tem começo, meio e fim, e que esse fim é conhecido como a morte. Entretanto, se em termos conscientes isso está claro – ao menos é o que se espera… –, no mais íntimo do nosso ser deposita-se a crença de que a inevitabilidade da morte é tão somente para os outros. “A negação é uma tentativa de resolver a angústia resultante da iminente ameaça de perigo, mas também é o produto de uma profunda convicção na própria inviolabilidade” (Yalom, 1984, p. 149). O aspecto psicopatológico da negação apresenta-se quando a atuação de tal modo defensivo é excessiva, o que desequilibra a sua qualidade adaptativa, fazendo com que brote uma angústia avassaladora. Sendo assim, o indivíduo tenta proteger-se de maneira mais extrema, o que faz com que o seu sistema entre em colapso. E como sabemos, quanto mais rígido for o sistema de crenças, de comportamentos e de defesas, mais violento é tal colapso, principalmente ao deparar-se com as mencionadas situações limite.

A crença de que se é especial é uma forma de negação considerada de certa maneira como positiva pela cultura ocidental – impregnada pela idéia do sucesso, da superação individual, das conquistas solitárias, contra tudo e contra todos: a idéia do “self made man”. Esse individualismo tão incentivado e cultuado condiz com a noção de que

crescer é separar-se, destacar-se da natureza, descobrir a própria autonomia, ser pai de si mesmo, e em contrapartida, ter que se confrontar com o fato de que há, no projeto „homem‟, um término, denominado „morte‟. Essa última parte é o desagradável da história. Façamos o que façamos – ou mesmo se nada fizermos –, morreremos de qualquer jeito.

“A convicção de que se é diferente dos demais é muito adaptável e permite diferenciar-nos da natureza e tolerar inúmeros incômodos: o isolamento, a consciência de nossa insignificância e da estranheza do mundo externo, o comportamento inadequado de nossos pais, nossa debilidade física, as funções corporais que nos unem à natureza e, sobretudo, o conhecimento da morte que nos ronda sem cessar… Tal crença… nos proporciona valor e nos permite arriscar-nos sem que nos sintamos abrumados pelo perigo de nossa extinção… Na medida em que adquirimos maior poder, atenua-se o medo da morte e em contrapartida é reforçada a crença de que se é especial” (ibid., p. 152).

Yalom nos apresenta alguns exemplos de desajuste ligados à solução individualista, como no caso dos workaholics, pessoas „viciadas‟ em trabalho – algo que não é mal visto em nossa cultura –, que têm um estilo de vida compulsivo e transtornado, envolvendo-se em várias atividades não porque querem, mas porque devem fazê-lo. Um

dos traços mais marcantes encontrados nesse modo de ser-no-mundo é sua crença em uma espiral ascendente, no progresso constante, onde o ócio, o tempo que não for empregado em algum „fazer‟, é um tempo não vivido, e o tempo, por sua vez, apresenta-se como um inimigo a ser dominado – só não pode ser eliminado. Outro modo defensivo, à primeira vista positivo, perseguido mesmo por algumas correntes psicoterápicas, consiste na ampliação do „eu‟, da esfera de controle do indivíduo. É claro que nos referimos a um exagerado afã de controle e de poder, muitas vezes associado à

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agressão, que torna mais tolerável o sentido da própria fragilidade, das próprias limitações. Assumir posições de poder acalma os temores mais aparentes, ainda que nas capas mais profundas eles não deixem de existir.

O mais intrigante desses exemplos é que por mais que apontem, em termos de senso comum, para o sucesso, com certa freqüência indivíduos com esses traços passam a apresentar uma “neurose de fracasso”, isto é, quando estão próximos de alcançar determinada meta há muito tempo perseguida, passam a sentir uma disforia paralisadora que às vezes os impede de triunfar. Podemos pensar, seguindo esta perspectiva, que se alcançamos nossas metas, nos aproximamos do nosso fim. Se elas permanecem inacabadas, „precisamos‟ estar vivos para poder terminá-las!

O outro tipo de negação – a crença em um salvador – é menos eficaz que o primeiro. É também o pólo oposto da crença de que se é especial; esta última é caracterizada pela diferenciação, enquanto a crença em um salvador baseia-se na fusão. Sua menor eficácia – e seu caráter mais nitidamente restritivo – reside na dependência extrema em relação ao outro – seja ele real ou imaginário –, o que implica em uma das piores perdas a que podemos nos expor: a perda de nós mesmos. A segurança oferecida pela crença em um salvador cobra um preço bastante elevado para sua manutenção. Percebemos nos indivíduos neuroticamente dirigidos ao outro, uma enorme dificuldade em encontrar alternativas para o eventual fracasso de uma relação baseada na fusão. No máximo propõem-se a buscar uma nova pessoa na qual possam fundir-se, alguém que dirija afetivamente suas vidas – e às vezes bem mais do que afetivamente.

Encontramos também uma série de traços associados a esse modo defensivo de existir: desprezo por si mesmos, medo de perder o amor do outro, passividade, dependência, depressão e, em casos mais extremos, tendências masoquistas.

É importante salientar que estes dois tipos de negação da morte não são mutuamente exclusivos. Pelo contrário, a maioria das pessoas utiliza ambos indistintamente, apenas foram apresentados separadamente visando uma maior clareza. Podemos dizer então que o conflito que emana da idéia da morte dá-se entre a consciência de vir a não-ser e o desejo de continuar sendo.

Cabe acrescentar que:

“Ainda que o terapeuta existencial procure ajudar a aliviar os níveis incapacitantes da angústia, não deseja eliminá-la completamente. Não se pode viver a vida e confrontar a morte sem esse sentimento. A angústia é ao mesmo tempo guia e inimiga, mas pode servir para apontar o caminho para uma existência autêntica. A tarefa do terapeuta consiste em diminuí-la convenientemente, e depois trabalhar com ela para ampliar a consciência e a vitalidade do paciente” (Yalom, 1984, p. 229).

A segunda preocupação básica da existência – não tão evidente nem acessível quanto a primeira – é a liberdade, que mesmo podendo ser considerada como

algo positivo, implica em uma premissa: “significa não termos nenhum chão sob nossos pés, não haver nada, somente um abismo, um vazio” (ibid., p. 20).

Antes de abordar os aspectos referentes à liberdade e à psicoterapia existencial, é preciso tecer algumas considerações para evitar equívocos. Há séculos discute-se sobre questões como liberdade, causalidade, etc., sendo que o debate não foi encerrado ainda. Entretanto, trabalharemos aqui com uma distinção entre liberdade de e liberdade para (Fromm, 1984).

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Sabemos que não somos completamente livres de determinantes biológicos,

condicionamentos sociais e culturais, ou mesmo de contingências político-econômicas. Seria ingênuo considerarmo-nos totalmente livres disso tudo. Entretanto – e temos aí um aspecto central no que tange à psicoterapia existencial –, somos livres para fazer frente a

isso tudo, isto é, estamos condenados a escolher a maneira como lidaremos com todos esses aspectos. E o „pior‟ é que ninguém poderá fazer isso por nós – discutiremos sobre esse aspecto no próximo tópico –, nem tampouco temos nenhuma garantia de que a maneira como lidamos com esses aspectos seja a mais „correta‟; e ainda, não há garantias de que uma vez feita a escolha, suas conseqüências corresponderão àquilo que buscamos. Ou seja, percebemos que apesar de qualquer crença, não escapamos do conflito básico entre a ausência de sólidos fundamentos e o desejo de encontrarmos uma estrutura que sirva de referência, o que se caracteriza como uma enorme fonte de angústia.

Há pouco nos referimos a aspectos inerentes à liberdade. Dois são fundamentais para este modelo: a responsabilidade e a vontade. O primeiro, já que

falamos da ausência de fundamentos, diz respeito à própria configuração do mundo. Somos os configuradores primários do mundo, apesar de nossos sentidos nos indicarem “que o mundo está „aí‟ e que entramos e saímos dele” (Yalom, 1984, p. 270); e segundo alguns filósofos existencialistas, ao experimentarmos a existência enquanto configurada por nós mesmos, a vertigem proveniente da consciência da responsabilidade sobre nosso mundo mostra-se assustadora. Por isso, a ela respondemos buscando alívio, a diminuição do conflito ao qual já nos referimos, tentando evitar a responsabilidade.

Dentre as manifestações clínicas de evitar-se a responsabilidade, algumas são destacadas por Yalom: a compulsividade, o deslocamento da responsabilidade e a negação. A primeira corresponde à “criação de um mundo psíquico onde não se

experimenta a liberdade, mas vive-se sob o império de uma força irresistível que é alheia ao eu („não-eu‟)” (Yalom, 1984, p. 274). A compulsividade torna opaca a possibilidade de escolha, esconde o fato de que o „autor‟ do mal-estar é o próprio sujeito.

O deslocamento da responsabilidade, segunda manifestação clínica referente à evitação da responsabilidade, é de fato muito comum, sendo até evidente no setting psicoterápico. O deslocamento da responsabilidade para outra pessoa, onde muitas vezes o terapeuta também costuma ser objeto desse deslocamento, está a serviço da diminuição da angústia, onde a explicação de sentimentos, desejos e eventos é atribuída a fatores alheios ao indivíduo. Os indivíduos com tendências paranóicas são mestres nesse quesito, em projetar seus sentimentos a outros indivíduos ou circunstâncias; as pessoas com distúrbios psicossomáticos também, e assim como os primeiros, têm dificuldade em perceber sua responsabilidade frente a seus padecimentos, defendendo-se através da atribuição de seus males a fatores alheios a si próprios.

A terceira forma de evitar a responsabilidade, a negação, sendo mais primitiva, mostra-se mais extrema. Nos é apresentada por Yalom em duas facetas, a da “vítima inocente” e a da perda de controle, onde a primeira vê-se em indivíduos que crêem-se vítimas de acontecimentos criados por eles mesmos – que em outras correntes podem ser considerados histéricos –, enquanto a segunda caracteriza-se como um estado temporário de irracionalidade, estar „com a mente perturbada‟, de modo a poder agir de forma irresponsável, sem ter que haver-se com seus atos. Além de não confrontar-se com a própria responsabilidade, obtém-se ganhos secundários, traduzidos em forma de atenção e cuidado por parte dos demais. Cabe aqui mais uma observação: a consciência da responsabilidade não se dá de maneira uniforme; “pode ser aceita em alguns terrenos e negada em outros” (ibid, p.282).

Prosseguindo em nossa explanação, é preciso dizer que adquirir consciência da responsabilidade pela própria existência não é suficiente. É preciso traduzir isso em

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mudanças, e para tal é necessário que falemos da vontade, que, como a liberdade,

também está desgastada por querelas filosóficas e teológicas. Alguns autores desenvolveram trabalhos sobre este tema (May, 1978; Rank, Farber in: Yalom, 1984), resgatando-o para a psicologia, já que esta tem preferido substituí-lo pelo conceito de motivação. Entretanto, ambos não são a mesma coisa: “a motivação pode influir, mas não pode substituir a vontade; independente de quais sejam seus motivos, o indivíduo pode comportar-se ou não comportar-se de uma determinada maneira” (Yalom, 1984, 353). A vontade é entendida como o “agente responsável” (ibid.) e vai de mãos dadas

com a liberdade, na medida em que não podemos falar de uma vontade que não seja livre. É o ponto sobre o qual o terapeuta deve trabalhar, mas não se trata da força de vontade, pois então bastaria a exortação, o incentivo, e isso não é psicoterapia. A vontade é o que a filósofa Hannah Arendt denominou “órgão do futuro”, pois se ocupa dos projetos, em contraposição à memória, que seria o “órgão do passado”, que se ocupa dos objetos. Arendt destaca duas maneiras de entendermos a vontade: como “nossa faculdade de iniciar espontaneamente uma seqüência no tempo” (in: Yalom,1984, p. 366), o que podemos denominar por desejo, só que o desejo de um agente; e “a

capacidade de decidir entre determinados fins e optar pelo caminho que leve a eles” (ibid.), o que denominamos escolha. Decidir e não agir não é decidir verdadeiramente;

por outro lado, agir sem desejar não é fazer uso de sua vontade, mas sim uma ação impulsiva. A ação isolada do desejo está presente, por exemplo, no personagem do romance “O Estrangeiro”, de Camus, onde vemos Meursault carregado de uma explosiva impulsividade, destrutiva para os outros e, o que é pior, para si mesmo.

Resta dizer, porém, que nem tudo depende de nossa vontade, nem sequer é de nossa responsabilidade. Refiro ao que denominamos “coeficiente de adversidade”, ou seja, o que o mundo nos coloca em termos de dificuldade, impedimento, frustração de nossos propósitos. Nesse sentido, os indivíduos voltados para o controle e o poder buscam minimizar, desconsiderar ou mesmo eliminar esse coeficiente, enquanto as „vítimas inocentes‟, os que deslocam a responsabilidade e aqueles que „perdem o controle‟ tratam de hipertrofiá-lo.

A terceira preocupação básica da existência vem a ser o isolamento existencial. Não deve ser confundida com o sentimento de solidão, uma queixa muito

freqüente no consultório e no cotidiano das grandes cidades. Este diferencia-se do isolamento intrapessoal – entendido como dissociação ou separação da pessoa em relação a partes de si mesma, onde uma de suas formas mais „concretas‟ seria a somatização, a separação quase total entre o indivíduo e seu organismo (Binswanger, 1973) – e do interpessoal – experimentado como solidão, por fatores que podem ser desde geográficos, até de personalidade. O isolamento existencial vem a ser um abismo intransponível entre os seres, com o qual nos deparamos em algumas ocasiões, e que relacionamento algum – seja com alguém, seja consigo mesmo – é capaz de eliminar.

Posso vivenciar o isolamento existencial através do conhecimento de minha morte, no sentido de que ninguém morrerá comigo e nem por mim. Ainda que alguns acreditem nesta última possibilidade – „fulano é capaz de morrer por mim!‟ –, isso não quer dizer que a morte do outro os salve de sua própria morte. Não há escapatória: a travessia final – ou se preferirem, o final – é um empreendimento absolutamente solitário.

Por outro lado, tenho consciência do meu isolamento na medida em que cresço e me percebo responsável por minhas escolhas – portanto, por minha vida –, o que significa perceber-me verdadeiramente órfão, ser condenado a assumir minha própria paternidade. Isso é inerente à existência, que em sua etimologia aponta para o

diferenciar-se, o destacar-se, o tornar-se um ser separado. Desta forma, o isolamento existencial vem a ser o preço pago pelo próprio desenvolvimento.

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Yalom destaca que o isolamento interpessoal e o existencial estão intrincadamente relacionados, já que é devido principalmente aos impedimentos interpessoais que o indivíduo se depara com sua existência isolada, separada da dos demais. Neste sentido, percebemos que freqüentemente busca-se acabar com tal isolamento através das relações – ainda que, como dissemos, nenhuma delas consiga eliminá-lo. Isto é notado no que em psicoterapia existencial denominamos “dilema de união-separação”. Se por um lado é preciso aprender a relacionar-nos com o outro sem fazer dele um objeto ou uma parte de nós a serviço de nossas defesas, por outro, não conseguimos “ceder ao desejo de escapar do isolamento, tornando-nos uma parte da outra pessoa” (Yalom, 1984, p.436). Aliás, fazer do outro um objeto seria o que Martin Buber denominou uma relação Eu-Isso, quando o ideal é a possibilidade de vivenciar uma relação Eu-Tu.

A principal defesa apresentada pelo autor é também a negação, que no que tange ao isolamento emerge através da fusão com o outro. Percebemos aqui uma proximidade em relação à “crença em um salvador”, principalmente pela restrição da personalidade. Só que quando a pessoa tenta eliminar o isolamento fundindo-se no outro, o que ela de fato consegue é eliminar a consciência de si mesma. Infelizmente este aspecto pode ser camuflado devido a certos parâmetros socialmente incentivados e cultuados na cultura ocidental: nos referimos tanto à relação amorosa, quanto à da dedicação a uma „causa‟, a um projeto, a um grupo, etc. Buber salienta como o amor pode minorar a dor do isolamento, lançando pontes entre o abismo que separa os indivíduos (Amatuzzi, 1989); entretanto, a busca do amor como forma de evitar a dor do isolamento e do vazio no cerne do próprio ser, não passa de uma caricatura neurótica das possibilidades amorosas – em outras palavras, passa muito longe da mencionada relação Eu-Tu – e o que a primeira vista pode parecer um amor imenso, em verdade corresponde a um modo defensivo extremamente restritivo. Temos como resultado não o encontro com o outro, mas a utilização do outro como instrumento para uma função, principalmente uma função defensiva. A orientação existencial nos serve inclusive para reconsiderar algumas manifestações clínicas tais como a sexualidade compulsiva, no sentido de verificarmos que essa compulsividade pode ser um sintoma relativo ao temor do isolamento básico, ou seja, sua natureza pode ser, mais do que sexual, existencial.

Não podemos deixar de falar da fusão com os demais – já referida a propósito de Heidegger –, que por um lado acarreta a perda da consciência de si mesmo, mas por outro faz com que também desapareça o medo da solidão. Só que alguns movimentos de massa, dos mais inocentes – como a estética uniforme da moda adolescente – aos mais trágicos – vistos nos suicídios coletivos – apontam para a tendência à conformidade, falam do refúgio sedutor prometido pelos grupos, que apenas exigem que se seja „mais um‟. O conflito inerente a este pressuposto básico da existência dá-se, portanto, entre a consciência do isolamento existencial e a tentativa de eliminá-lo através do relacionamento com o outro ou com algo.

A quarta e última preocupação básica, a carência de um sentido da vida, foi estudada na psicologia existencial principalmente pelo psiquiatra austríaco Viktor E. Frankl. Ele encontrou que, em sua clínica, aproximadamente um quinto de seus pacientes padeciam do que denominou neurose noogênica – do grego nous, entendido como „sentido‟, „significado‟ – isto é, uma neurose derivada da carência de um sentido da vida. A questão centra-se em um dilema aparentemente insolúvel, que vem a ser o conflito referente a esta quarta preocupação da existência: a necessidade de um sentido da vida, de princípios e ideais sólidos, em contraposição à afirmação de que o que há de absoluto é que não há nada de absoluto, na medida em que “tudo aquilo que é poderia não ter sido” (Yalom, 1984, p.504). Vale lembrar algumas

palavras de Nietzsche: “Quem tem um para que viver pode suportar quase qualquer como” (apud Frankl, 1984, p.104).

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Ao falarmos sobre a questão do sentido da vida, duas indagações vêm à baila: em primeiro lugar, a pergunta sobre qual o significado da vida, portanto sobre a existência de um significado cósmico, entendido como a referência a (ou a crença em) um padrão global, uma ordem prévia que rege a vida em geral, ou ao menos a vida humana. Nele a vida individual seria ordenada pela divindade, algo inerente à tradição judaico-cristã preponderante no mundo ocidental. A outra indagação é sobre qual o significado da minha vida, o que implica na busca –ou segundo Sartre, na „criação‟ – de um significado pessoal não religioso, especialmente à falta de um significado cósmico.

Se nos referimos a essas duas indagações e a suas respectivas implicações, é necessário tecer certas considerações a respeito de ambas. A busca de um significado cósmico, como já dissemos, é inerente à cultura ocidental. Entretanto, com o advento do desenvolvimento do espírito científico e tecnológico, o homem passou a desnaturalizar-se3 de maneira mais acentuada, não só relativizando os ideais religiosos a respeito do mundo e de si próprio, como também angustiando-se pelo vazio concomitante a tal relativização. Se o homem não é mais um ser „natural‟, se a natureza deve estar a seus pés, isso o torna completamente responsável por seus atos, idéias, princípios e escolhas. Se o universo carece de um desenho predeterminado – e ainda que exista tal predeterminação, não se tendo acesso à mesma –, ao necessitar o homem de um „para que‟ viver e dar-se conta de que o mundo já não lhe oferece diretrizes para isso, depara-se então com um fenômeno denominado vazio existencial, tão característico do século XX. À respeito disso, Frankl diz que nos dias de hoje o homem carece “… de um instinto que diga a ele o que há de fazer, não tem mais a tradição que diga a ele o que deve fazer; as vezes não sabe sequer o que gostaria de fazer. Ao invés disso, deseja fazer o que as pessoas fazem (conformismo) ou faz o que outras pessoas querem que faça (totalitarismo)” (1984, p. 105). Esse vazio bastante comentado por diversos autores (Binswanger, 1973; May, 1978; Frankl, 1984; Yalom, 1984 etc.), proveniente da falta de sentido, manifesta-se das mais variadas maneiras, mas sobretudo em um estado de tédio, apatia e inutilidade – e que quando associado a sintomas neuróticos vem a ser a já mencionada neurose noogênica – não sendo incomum que se revele, a partir do

“princípio do prazer4” em forma de compensação sexual.

Yalom destaca algumas manifestações clínicas desse modo neurótico proveniente da carência de sentido da vida, extraídas do material clínico de Salvatore Maddi, a saber: o espírito de aventura, o niilismo e a forma vegetativa. A primeira vem

a ser um modo defensivo caracterizado pela compulsiva necessidade de dedicar-se a qualquer causa, de forma reativa no que tange à profunda sensação de falta de sentido. Neste caso, não se deve pensar que alguém que abrace alguma causa o faz por motivos defensivos, mas sim perceber em que medida a necessidade passa a ser a de dedicar-se a qualquer causa, independente de seu conteúdo. Uma vez alcançados os objetivos, passa-se a outra causa, pois o que os move é a angústia da falta de sentido, e não propriamente a causa a que se entregam. Já o niilismo, na categorização de Maddi, “caracteriza-se por uma ativa e profunda tendência a desacreditar as atividades desempenhadas pelos outros” (in: Yalom, 1984, p. 538), pelo fato de que os outros encontram nelas um significado. “A energia e o comportamento do niilista brotam do seu desespero” (ibid). Por último, a forma vegetativa da enfermidade existencial vem a ser o mais alto grau de carência de sentido. Não há nem uma compulsiva dedicação a qualquer causa, nem tampouco o descrédito nas atividades dos demais. A falta de

3 É evidente que advogamos pela noção de “condição” humana, ao invés de “natureza” humana. O uso do

termo “desnaturalização” pretende tão somente ressaltar a idéia do poder do homem sobre a natureza, seu afastamento da mesma, e sua crença de que ela deve ser dominada, subjugada por ele.

4 Frankl (1984) destaca que a motivação humana desenvolve-se a partir do princípio do prazer freudiano,

que rege a criança; no adolescente, seu correspondente é o princípio do poder adleriano; e na maturidade do adulto, o princípio regente seria a vontade de sentido.

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sentido relaciona-se a um estado de profunda apatia, uma incapacidade crônica de vislumbrar qualquer valor às atividades humanas e a indiferença entre fazer algo ou nada fazer. Com freqüência este estado se apresenta em forma de profunda depressão.

Algumas pesquisas sobre o sentido da vida apresentadas por Yalom corroboram as seguintes conclusões:

“1. A carência de um sentido da vida associa-se com a psicopatologia em um sentido linear: isto é, quanto menor a proporção de significado vital, maior a gravidade dos sintomas psicopatológicos.

2. Um sentido positivo no significado vital associa-se a crenças religiosas profundamente arraigadas.

3. Um sentido positivo no significado vital associa-se com os valores de transcendência da própria pessoa.

4. Um sentido positivo no significado vital associa-se com o pertencer a grupos, com a consagração a causas e com a adoção de metas vitais claras.

5. O significado vital deve ser contemplado a partir de uma perspectiva que permita apreciar o seu desenvolvimento; os tipos de significados vitais mudam ao longo da vida do indivíduo, pois existem outras tarefas a serem cumpridas no desenvolvimento, antes de conseguir desenvolver os significados” (Yalom, pp. 549-50).

Uma observação se faz necessária no que diz respeito aos resultados de tais pesquisas. Yalom nos chama a atenção para o fato da carência de sentido da vida associar-se à psicopatologia, mas não ser a sua causa. Não vamos incorrer em

equívocos já destacados à respeito de relações causais tão freqüentemente estabelecidas pela “psicologia do senso comum5” e por outros sistemas psicológicos. Além do mais, é evidente a noção de um indivíduo que responde, que age, enfim, que existe como ser-no-mundo, desde sempre.

Como observação crítica sobre a obra aqui referida, podemos dizer que o autor nem sempre faz uso dos termos mais adequados ao referir-se à psicopatologia. Isto pode ser visto, por exemplo, quando fala em „mecanismos‟ de defesa, termo em total antagonismo com a posição crítica da orientação existencial. A palavra „mecanismo‟ guarda um traço de algo que „acomete‟ ao indivíduo, algo dissociado do seu ser, e não de um modo de ser-no-mundo, o que para nós se mostraria mais adequado e coerente com as categorias de liberdade e responsabilidade pela configuração da própria existência.

Também podemos perceber que na explanação sobre os conflitos básicos referentes à liberdade e à carência de sentido da vida, estes interpenetram-se tanto – para não dizer que se confundem! – que quase não se justifica tal diferenciação, ainda que os escritos de Frankl, por exemplo, estabeleçam melhor essa mesma distinção.

Ainda sobre o tema dos mecanismos de defesa, percebemos sobre o autor que, em sua tentativa de explicar sobre a especificidade de certos modos defensivos de ser-no-mundo e sua relação com cada um dos pressupostos básicos da existência, tais diferenças não se mostram muito claras, as defesas se confundem, o que compromete um pouco aquilo que vem a ser justamente a sua proposta: uma sistematização da psicodinâmica existencial. Talvez fosse necessário apontar essas semelhanças,

5 (Folk Psychology). Termo muito usado na filosofia da mente, especialmente por Daniel C. Dennett em seu

livro “La Stratégie de L‟Interprète - Le Sens Commun et L‟Univers Quotidien” (A Estratégia da Interpretação - O Senso Comum e o Universo Cotidiano). Paris: Gallimard, 1993.

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intercessões, não prometendo a falsa ilusão de que por mais que o modo de ser neurótico faça do homem uma caricatura de si mesmo, onde a previsibilidade, a repetição e o empobrecimento da vivência relacional são sua tônica, há suficiente variabilidade e singularidade para encher diversos tratados sobre o tema.

Longe de desqualificar a obra, suas páginas afirmam a própria característica crítica da psicologia como ciência, enquanto saber precário, sujeito a constantes reformulações. E de fato, sistematizar é empobrecer aquilo que é objeto de nossa sistematização; só que é preciso sistematizar!

Seguindo esse raciocínio, consideramos positiva a posição do autor de ilustrar os elementos teóricos não só com uma grande quantidade de casos clínicos, como também com pesquisas científicas de outros tipos que não as de estudo de caso, algo que não ocorre com muita freqüência na psicologia clínica, mas que nos parece uma medida importante, saudável e que deveria ser mais disseminada em nosso meio, independente das dificuldades de operacionalização.

Buscamos apresentar aqui, da forma mais breve e esquemática possível, a sistematização da Psicoterapia Existencial proposta por Irvin D. Yalom. Cremos ser uma obra que veio suprir uma lacuna nesta área, e que mais do que um tratado sobre o tema, visa oferecer um arcabouço teórico-prático para uma melhor compreensão do que venha a ser uma Psicoterapia de Orientação Existencial.

Bibliografia

AMATUZZI, M. M. (1989). O Resgate da Fala Autêntica. SP: Papirus.

BINSWANGER, L. (1973). Artículos y Conferencias Escogidas. Madrid: Editorial

Gredos.

FRANKL, V. E. (1984). El Hombre en Busca de Sentido. Barcelona: Herder

FROMM, Erich (1984). El Miedo a la Libertad. México: Paidós.

MAY, Rollo (1978). Eros e Repressão: Amor e Vontade. Petrópolis: Vozes.

YALOM, Irvin D. (1984). Psicoterapia Existencial. Barcelona: Herder.