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BRUNO GIULIANI Abade dos cônegos regulares lateranenses Uma Vida... um romance: da Itália ao Brasil.

BRUNO GIULIANI

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Abade dos cônegos regulares lateranenses

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BRUNO GIULIANIAbade dos cônegos regulares lateranenses

Uma Vida... um romance:da Itália ao Brasil.

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Índice

Capitulo I - Capestrano, Minha Cidade Natal.................................

Capitulo II - A minha família...........................................................

Capítulo III - O tempo de formação.................................................

Capítulo IV - Finalmente Padre.......................................................

Capítulo V - Viva as montanhas.......................................................

Capítulo VI - Um Brasil acolhedor..................................................

Capítulo VII - A mulher que revolucionou minha vida pastoral.....

Capítulo VIII - Uma tarefa imprevista: superior geral...................

Capítulo IX - A volta para o Brasil..................................................

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Apresentação

Aqui está minha biografia. Foi por vaidade? Por desejo de ser conhecido?

Por mostrar que a vida do padre é bem diferente do pensamento comum, que, quando

se quer falar de vida fácil, fala-se de “vida de padre”?

Nada disso. A ocasião veio por pura coincidência.

Como poderão constatar da leitura do livro, trabalhei no mundo da saúde por

muito tempo.

Essa paixão ainda hoje me acompanha.

Quando fui eleito Superior geral da nossa Ordem religiosa e me mudei para

Roma, minha vida mudou totalmente.

Mas, de volta para o Brasil, voltou a preocupação para a urgente necessidade

de ajudar os doentes pobres, tão numerosos.

Encontrei o local da creche, que eu mesmo tinha projetado e subsidiado com

a ajuda da Itália, fechado e sem uso. Fiquei triste e revoltado, sobretudo quando me

contaram os motivos do fim do convênio com a prefeitura de São Paulo.

A Vila dos Remédios está dividida entre os municípios de São Paulo e

Osasco, e, como linha divisória, foi escolhida a avenida principal, que passa no meio

do bairro.

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A creche estava no lado de Osasco, mas atendia a crianças de toda a região.

Por este motivo, assim pelo menos me contaram, o município de São Paulo não pôde

renovar o convênio conosco.

O que fazer? Logo tive a ideia de criar um Centro Assistencial para ir ao

encontro de tanta gente com problema de saúde.

Com a aprovação dos Superiores, procurei pessoas e meios para realizar o

meu sonho.

Transferi logo uma pequena farmácia comunitária, que os Vicentinos

administravam, ampliando o espaço e condições de atendimento. Graças a pessoas

voluntárias, hoje atende diariamente um número grande de necessitados.

Convidei alguns profissionais da saúde para atender, na medida do possível,

doentes e pessoas com deficiência física e idosos.

Adaptei também um espaço para uso de laboratório, e outro para consultório

dentário.

Finalmente, criei um bazar de roupas, calçados e outros objetos a serem

doados para famílias pobres.

Porém, o peso econômico tornou-se insustentável. Onde procurar dinheiro?

Foi aqui que alguém lançou uma proposta impensada: por que não escrever

uma biografia do Pe. Bruno, que tem uma história tão interessante?

A ideia, lançada por acaso, encontrou apoio de todos. Somente eu não

acreditava. Era a última coisa que podia acontecer.

Pouco tempo depois eu tive de sujeitar-me a uma difícil intervenção

cirúrgica no coração.

A recuperação todo mundo sabe que é demorada. O que fazer? E como

ocupar o tempo?

Foi assim que me decidi a pôr no papel minha vida, para ocupar bem o

tempo.

O resultado está nestas páginas, que ofereço à leitura de amigos e leitores

anônimos. Espero que transmitam otimismo e o gosto pelo bem.

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Capitulo I

Capestrano, Minha Cidade Natal.

Capestrano: que nome curioso! É por que os seus moradores têm cabeça

estranha? Gente original e diferente? Nada disso. O nome vem do latim: caput trilem

amnium, que quer dizer: cabeça de três nascentes.

A cidade encontra-se na região central da Itália, chamada Abruzzi, conhecida

agora por um terremoto que, em 6 de abril de 2009, destruiu sua capital, l´Aquila,

cidade rica de história e de arte.

A região dos Abruzzi é uma região montanhosa, famosa pelas montanhas

mais altas da Itália central e conhecidas como “Gran Sasso d´Itália”, de quase 3.000

metros de altitude. É lá onde existe a única geleira da Itália central. Aos pés da

montanha, diante de uma esplendida planície, encontra-se Capestrano. Aos seus pés

surgem três nascentes de agua límpida e fresca que, juntando-se, formam um rio, o

Tirino, com águas que podem ser provadas com gosto e sem medo, pois são puras e

frescas.

A presença de tanta e gostosa água, desde a antiguidade, reuniu povos em

busca de uma vida tranquila e fecunda.

Uma prova disso temos na descoberta de uma antiguíssima estátua

conhecida como “O Guerreiro de Capestrano”.

Um agricultor, que estava preparando o terreno para plantar uma vinha,

encontrou um grosso boneco de pedra. Tirou o boneco da terra, e continuou seu duro

trabalho. No fim do dia, amarrou o boneco com uma corda e o puxou com o cavalo até

sua casa.

Chamou um amigo professor, estudioso de antiguidades, e mostrou-lhe o

boneco. Qual foi sua surpresa quando o professor o pegou pelo pescoço, como para

esganá-lo, examinou a estatua, e lhe disse furioso:

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- Como foi que você trouxe essa estátua pelo pescoço? Poderia tê-la quebrado

durante o caminho!

Graças a Deus, a estátua chegou intacta. Dois dias depois, uma comissão

arqueológica examinou atentamente a estátua e definiu sua idade: Século 8 antes de

Cristo! Era uma preciosíssima e raríssima estátua, conhecida hoje como “O Guerreiro

de Capestrano”, conservada no salão nobre do museu de Chieti, outra cidade

abruzzesa.

Capestrano é conhecida por outro motivo para os católicos: Foi lá que nasceu

São João da Capestrano, (1385-1456), cuja festa é celebrada no dia 23 de outubro.

Filho de um barão alemão e de uma mulher nobre de Capestrano, ele estudou

na universidade de Perugia, formando-se em direito civil e eclesiástico com 25 anos.

Devido à sua forte personalidade, o rei Ladislau de Nápoles o nomeou primeiro

ministro de estado. Mais adiante, se tornou também vice-governador de Perugia.

Durante uma missão delicada, foi feito cativo. Na prisão teve uma visão de São

Francisco. Deixou o mundo e dedicou-se à vida religiosa, entrando na Ordem

franciscana.

Ordenado padre, dedicou-se a predicação. O papa Martinho V em 1427 o

enviou a lutar contra a heresia dos “fraticelli”. O papa Eugenio IV o enviou como

inquisidor contra os Saracenos. O imperador Federico III de Alemanha pediu sua

ajuda para fazer a paz entre vários príncipes. Finalmente o papa Callisto III lhe

confiou a organização da cruzada contra os Turcos muçulmanos, que queriam ocupar

a Itália e acabar com o cristianismo. O padre João participou de maneira forte e

decisiva na batalha de Belgrado. Mas ficou doente e morreu de peste no mosteiro por

ele construído em Iook no ano de 1456.

Sua permanência na cidade natal está viva no mosteiro que ele mesmo

mandou construir e que continua a ser o centro da religiosidade para tantos católicos.

Na ocasião da criação da União Europeia foi proposto como padroeiro da

mesma, mas São Bento foi escolhido.

O papa São João Paulo II o proclamou, no ano de 1984, patrono de todos os

capelães militares no mundo.

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Cada festa litúrgica em sua honra conta com a participação de representantes

militares de vários países e de numerosos capelães.

Digno de recordação é também o castelo, construído em 1400, ainda hoje em

pleno funcionamento para uso da prefeitura e para outras manifestações culturais e

artísticas.

Hoje, Capestrano vive como tantas outras cidadezinhas italianas, num ritmo

reduzido a poucos habitantes, porque faltam atividades artesianas e a agricultura é

toda mecanizada. Mas, longo o rio Tirino está instalada uma grande criação de trutas.

Continuamente viajam caminhões carregados de trutas para todas as cidades da

Itália.

Em Capestrano, todos os anos, acontece a festa da truta, perto das festas

juninas, que recolhe cidadãos de Capestrano, residentes em muitas cidades próximas

e distantes. É a festa do reencontro. Para muitos, é a festa da saudade, quando se

saúda, fala, canta, e reconecta antigas amizades, assim como se apresentam novos

amigos.

O país reanima-se e quem permanece sente-se menos solitários.

Os visitantes prometem voltar quanto antes.

Foi lá que nasci, no dia 23 de novembro de 1930.

Capestrano

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O guerreiro de Capestrano

Budapest (Hungria): estatua de São João

Catedral de Viena (Áustria): estatua de S. João

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Capitulo II

A minha família.

Uma flor bonita e perfumada nasce de uma planta robusta e forte.

Com certeza é o meu caso, pois tive o privilégio de nascer em uma família

unida e virtuosa.

Meu pai, Dante, era filho de um carpinteiro. Não um qualquer carpinteiro,

mas um verdadeiro artista. Ainda hoje, em muitas famílias de Capestrano, pode-se

admirar seus lindos móveis para quartos de casais e salas. Trabalhava a madeira com

verdadeira arte, esculpindo figuras e ornando os móveis com mosaicos coloridos e

esculpidos.

Essa habilidade, meu pai herdou de meu avô. Enquanto esperava para se

casar, nas horas menos empenhativas, ia preparando os móveis para sua futura casa.

Mas um dia o pai lhe ordenou de entregar os móveis para sua irmã, que decidiu casar

antes dele. Não foi fácil desfazer-se de um trabalho feito com tanto amor, mas

obedeceu ao pai e passou tudo para a irmã. Ainda hoje os móveis de grande beleza

ornam os quartos da tia: maciços, entalhados, de madeira nobre.

Quando meu pai decidiu casar, teve de preparar depressa móveis mais

simples e menos trabalhados. Foi a sua sorte, por que, como veremos, quando foi

obrigado a mudar frequentemente de lugar, em duas horas desfazia e remontava os

móveis de casa.

Devo dizer que sua obediência ao pai e sua doação para a irmã foram bem

compensados de maneira imprevista.

Minha mãe, Elvira Celli, era de família mais humilde: era filha de agricultor.

No início, a avó paterna não aceitou com simpatia a escolha do filho: como podia seu

filho, bem de vida, casar com uma moça filha de agricultor e semianalfabeta! Mas

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logo mudou de atitude, quando descobriu suas esplendidas qualidades humanas e

femininas.

Sua história também era interessante: nasceu-nos E.U.A., na pequena

cidade de Hurley-Wiskonsin, região de Minneapolis, durante uma das tantas

emigrações do pai. Ele viajava em busca de dinheiro e, quando achava oportuno,

voltava em pátria para comprar terrenos e gado.

Minha mãe era a primeira de dez filhos. Seis faleceram jovens, mas, sendo a

mais velha, foi obrigada a ajudar a mãe em casa. Por causa disso interrompeu os

estudos logo no segundo ano primário. Mas, quanta bondade e quanta dedicação

exerceu em sua vida! E quantos exemplos pode dar, ainda hoje, a tantas moças só em

busca de vaidade e falsos valores!

Meus pais casaram no ano de 1929. Meu pai sonhava em emigrar para os

E.U.A. em busca de uma vida melhor, seguindo o exemplo de tantos patrícios,

disseminados pelo mundo inteiro.

Mas não deu em nada: o ano de 1929 foi o ano da tremenda crise econômica

na América e na Europa. A economia estacionou, o dinheiro ficou curto, o

desemprego se alastrou de todo lado, deixando muitos trabalhadores na pior miséria.

Por isso, meus pais desistiram de aventurar-se num mundo tão incerto.

Porém, meu pai não desistiu de tentar outros caminhos. Frequentou um curso

noturno e foi contratado como funcionário estatal para recolher impostos. Foi assim

que toda a família começou a viver uma vida nova, cheia de transferências de cidade

em cidade.

Com dois anos de idade fiz a primeira viagem para uma cidadezinha

chamada Castel del Monte. Logo depois, nasceu meu segundo irmão, Nino. Mas ele

também não teve muita paz: viajamos para outra cidade, chamada Secinaro. Em

seguida mudamos para Farindola.

É dessa cidadezinha que, com apenas três anos, guardo a mais antiga

lembrança de minha vida. Nessa cidade havia uma central elétrica. Um dia o diretor

foi fazer uma inspeção seguido pelo seu cachorro. Não se sabe por qual razão, o

diretor caiu na agua. O cachorro correu de volta e começou a morder as calças dos

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funcionários, puxando-os para o lago. Os funcionários se assustaram, mas seguiram

o cachorro e conseguiram salvar o diretor. Em pouco tempo toda a cidade foi para o

lago. Meu pai também foi, levando-me a cavalinho. Não esqueci nunca deste fato tão

extraordinário, que gravou na minha memória.

De Farindola fomos transferidos para uma outra cidade de nome Anversa-

Scanno.

Aqui nasceu meu terceiro irmão, Ercole, em 1935.

Uma noite, quando minha mãe estava ainda na cama após o parto, eu não

queria comer as batatas da salada. Meu pai insistiu, mas diante da minha recusa, não

duvidou e me jogou o prato na cabeça, dizendo: ” você acha que estou dando-te o

veneno? Nunca mais faça isso. ” Passei a noite sem jantar, mas aprendi a nunca mais

recusar alimento algum. Hoje como tudo.

De Anversa-Scanno viajamos por outra cidade, de nome Sante Marie (não me

perguntem por que o plural). Aqui fui crismado com sete anos de idade. Mas as

peripécias não terminaram.

Mudamos de uma cidade para outra, mas sempre na mesma região, chamada

Abruzzi. Um belo dia meu pai avisou para preparar-nos para uma longa viagem:

tinha chegado uma ordem para que ele fosse trabalhar muito longe, na Calabria,

extremo sul da Itália, numa cidade de nome Fabrizia. Os avôs choraram, porque

diziam que os calabreses eram violentos, vingativos e retrógrados. Minha mãe ficou

triste, mas nunca se recusou a seguir meu pai. Que belo exemplo de amor conjugal e

de fidelidade!

Viajamos de carro até Napoli, e de lá até a Calabria de trem. Meu pai veio nos

buscar e nos levou até a destinação, Fabrizia, cidade a 1.000 metros de altitude no

meio de bosques de castanhas. Lugar delicioso pelo ar puro no meio das montanhas,

chamadas “Sila”.

Alugamos um apartamento, que fazia parte de três imóveis de uma mesma

família.. Atrás da casa havia uma horta com galinheiro. Foi-nos dado em uso uma

parte do balcão. Fomos proibidos de ir à horta, e a porta que comunicava com o

apartamento do velho dono foi fechada com uma tábua para maior segurança.

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Mas a bondade de minha mãe logo acabou com as barreiras e venceu toda a

desconfiança dos donos de casa. Logo no primeiro domingo, antes do almoço, minha

mãe foi oferecer a eles um prato típico de nossa terra. Os donos apreciaram tanto este,

e outros pequenos gestos de amabilidade, que em poucos dias abriram o espaço no

balcão, tiraram a madeira da porta divisória e nos deixaram visitar a horta.

Entre nós e eles criou-se um clima tão familiar e fraterno, que acabamos

formando uma só família.

Com o tempo, fomos descobrindo também algumas tradições próprias do

lugar, que nos chocaram. No domingo, quando iam na Missa, cada um levava sua

cadeira ou banquinho para sentar-se. Havia cadeiras na igreja, mas precisava pagar

um pequeno aluguel.

Outra tradição, que chocou meus pais, foi o fato de a mulher do casal ter

emitido um voto de nunca mais sair de casa, após a morte de um filho na guerra. Meu

pai tentou várias vezes fazê-la sair de casa, mas quando finalmente conseguiu

convencê-la a participar de uma festa religiosa, teve que leva-la de volta, pois ela se

sentiu mal. Foi a novidade? Ou a falta de um voto? Não sei responder.

Outra tradição, praticada nos tempos de Jesus, mas não mais vivida nos

nossos tempos, era a presença de mulheres choronas na ocasião de funerais. Eram

mulheres convidadas e pagas para acompanhar o morto e contar sua vida, chorando e

cantando tristes melodias. Nós crianças ficávamos escondidas atrás da janela para

não rir diante daquele espetáculo. A mãe ficava de guarda para não criar problemas.

Hoje, acho que essas tradições desapareceram diante das mudanças tão

rápidas do mundo moderno.

Foi naquela cidade que eu fiz minha primeira Comunhão.

Um ano depois, meu pai foi transferido outra vez, destinado a trabalhar na

cidade de Pescara, uma cidade abruzzese, moderna e bela, perto do mar Adriático, e,

portanto, com esplendidas praias e muita areia.

Não ficamos muito tempo. Desta vez foi meu pai quem pediu a transferência,

por motivos familiares. Um dia minha mãe tinha de se ausentar por muito tempo, e

me levou até o escritório do pai. Eu estava sentado, tranquilo num cantinho, quando o

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diretor me viu e disse a meu pai:

- O que essa criança está fazendo aqui? Este não é seu lugar.

Meu pai, irado, respondeu:

- Se este não é lugar para meu filho, não é lugar nem para mim. Peço a

transferência.

E assim foi. Poucos dias depois, mudamos mais uma vez para uma

cidadezinha não longe de Pescara, de nome Spoltore nos sentimos bem, porque

voltamos a viver num clima simples e sem muita burocracia. Lembro ainda o dia em

que viajamos: era o primeiro do ano de 1939.

Mas nem nesta cidade permanecemos tanto tempo: poucos meses depois,

justo na quinta-feira santa do mesmo ano, estávamos mudando para outra cidade do

interior: Pereto, perdido no meio das montanhas, longe de qualquer meio de

comunicação. E foi aqui que terminei o meu curso fundamental de ensino, com uma

inesquecível professora, bondosa e dedicada.

Em Pereto nos adaptamos muito bem. Fizemos muitas amizades e ficamos

anos no mesmo lugar, devido à guerra, que começou na Itália exatamente no dia 10 de

junho de 1940.

Que dia triste e inesquecível para mim!!! À tarde, às 15 hs Mussolini, o

ditador da Itália, ia fazer um discurso no rádio para comunicar a entrada da Itália na

guerra, ao lado da Alemanha de Hitler e do Japão, contra a França e a Inglaterra.

Na época, poucas famílias tinham o rádio, e nossa casa encheu-se de

vizinhos e amigos para ouvir o discurso de Mussolini. Ao termino, eu vi mães

chorando, pois seus filhos faziam parte do exército e elas temiam o pior.

Não deu para enxugar as lágrimas. O tempo estava nublado. Obscureceu

tanto em poucos minutos. Veio uma chuva de granizo tão forte e tão abundante, que

acabou com as colheitas e encheu casas e porões de água. Todos foram para casa, para

tirar o gelo e limpar os pátios.

Tinham passado mais ou menos duas horas, quando começaram a gritar.

- Gente, a creche das freiras está pegando fogo! Venham todos ajudar!

Graças a Deus o fogo foi apagado, mas, para nós crianças, foi uma

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experiência terrível, que nunca mais se apagou da memória.

Aquele 10 de junho de 1940 foi um dia histórico e maldito. A chuva de

granizo passou, o fogo da creche foi apagado, mas começou a grande tragédia da

Segunda Guerra Mundial, que provocou o choro de milhões de mães, matou milhões

de soldados, e destruiu inúmeras cidades e países.

Deus não permita que tal tragédia se repita nunca mais.

Para fechar este capítulo sobre minha família, devo acrescentar o nascimento

do meu quarto irmão, Gianni, que foi uma bênção de Deus, pelas suas qualidades

intelectuais e éticas, nascido no ano de 1947. Eu estava no seminário, longe de casa, e

não o conheci se não depois de muito tempo. Não foi fácil ganhar sua confiança, por

que me viu com o hábito talar, e teve medo. Agora é o irmão mais próximo e mais

afetuoso, pois foi o único que veio visitar-me no Brasil, gostou do país, e adquiriu até

um apartamento. Sua simpatia ganhou muitos amigos, e sua esposa Pina é admirada

pela sua arte culinária.

A Mãe preparando a polenta

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Capítulo III

O tempo de formação

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Já disse que Pereto é uma pequena cidadezinha do interior. A escola pública

oferecia somente o curso primário. E depois, o que fazer? Foi o grande problema que

meu pai teve de enfrentar. Deixar seu filho continuar sem os estudos? Enviá-lo em

casa de parentes para continuar os estudos? Ou obriga-lo a viajar todos os dias para a

cidade mais próxima?

A solução veio imprevista e inesperada: no mesmo ano de 1940 um jovem

sacerdote de Pereto veio celebrar sua primeira Missa. Que festa! Todo o povoado foi

acolhê-lo na entrada da cidade, os sinos batiam festivos, o velho pároco se

desdobrou para ornar a igreja onde o jovem padre ia celebrar sua primeira Missa na

presença de seus familiares e da população toda. Nunca se viu uma cidade tão alegre,

unida, festiva e orgulhosa: um filho seu tinha chegado ao sacerdócio! Nem

imaginava que um dia ele se tornaria um grande estudioso bíblico, escrevendo vários

livros. Mais tarde, esse mesmo jovem sarcedote foi convidado para ser um dos

quatro conselheiros biblistas do Papa. Imaginem a maravilha de nós crianças diante

de tamanho espetáculo. Seu nome era Pe. Ângelo Penna, religioso dos Cônegos

Regulares Lateranenses.

Na semana seguinte, meu pai procurou o padre e pediu-lhe se era possível

acolher-me no seminário de sua família religiosa. O padre respondeu que era

possível a uma condição: o menino manifestava o desejo de um dia tornar-se padre

como ele? Meu pai ficou um pouco embaraçado, e respondeu que não podia

responder a tal pergunta. Mas falou que eu era um menino obediente, estudioso, que

frequentava a igreja, acrescentando que, se um dia o filho quisesse tornar-se padre,

teria sido uma honra e um prazer para ele, e para a mãe, muito religiosa.

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O resultado foi que, poucos meses depois, eu estava viajando para o

seminário menor, situado em uma cidade longe de Pereto, próxima da França,

chamada Andora.

Acostumado a mudar de cidade em cidade, não senti a distância da casa e da

família. A viagem de trem foi longa demais, mas não estava sozinho: havia outros

quatro jovens e um padre que nos acompanhava.

Andora era uma bela cidade à beira do mar, localizada em um vale com um

riacho no meio. Os terrenos eram cultivados com plantas de frutas e flores. O

seminário era uma bela construção, com igreja aberta ao público, com um campo de

futebol e uma horta. A acolhida foi bem fraterna, tanto que me achei logo à vontade.

O ritmo de vida, entre oração, estudo, alimentação e recreio, enchia bem o nosso

tempo. As matérias escolares eram bem dadas pelos padres, muito dedicados ao

ensino. A comida era variada e abundante. Os jogos, bem organizados, satisfaziam

nossos desejos de parecer verdadeiros jogadores.

Vivi um tempo feliz. As cartas, que escrevia aos pais, reproduziam tanta

felicidade e tantas novidades. A guerra, no início, nem se sentia: chegavam notícias

de batalhas na África, bem longe de nós. Nas férias, não íamos em família, mas não

me queixei. Todos os dias íamos na praia para tomar banho, fazer mergulhos, e

brincar com a areia. Nunca tinha tido tantos privilégios.

Mas, com o passar do tempo, as coisas começaram a piorar. Quando também

a América entrou em guerra, as notícias que nos chegaram não eram mais

entusiasmantes. Começamos a ouvir os padres falar de aviões abatidos na África do

Norte, de naves afundadas, de soldados que abandonavam antigas fortalezas. Para

nós crianças eram notícias inéditas: nunca tínhamos vivido uma experiência de

guerra e tínhamos plena confiança em Mussolini, amado e respeitado pela maioria da

população italiana.

Mas não demorou que os sinais da guerra chegassem até pertinho de nós.

Durante a noite era proibido ter luz acesa nos quartos por medo dos bombardeios. As

cartas para e da família começaram a chegar com um intervalo muito maior, a

comida começou a ser mais escassa, sobretudo o pão, já que a farinha vinha de longe.

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Os padres ficaram mais preocupados e, muitas vezes, falavam baixinho para não nos

transmitir más notícias.

Até que um dia tivemos a prova que a guerra estava chegando perto. Uma

tarde estávamos tendo aula de latim, quando a casa começou a tremer por causa de

dois tremendos golpes vindo do mar. Ficamos assustados e logo nos falaram que um

submarino inglês afundou um navio de guerra diante da nossa praia. Foi um grande

susto e a confirmação de que a guerra já estava perto com todas as tristes

consequências de ruina e de morte.

Mas, com notícias tão ruim nos chegavam também fatos inimagináveis: um

dia um padre nos mostrou uma caneta que não precisava de tinta para escrever. Será

que podíamos dispensar a tinta, que sujava cadernos e até nossas camisas? Todos

quisemos experimentar a nova caneta.... Outro dia o mesmo padre nos falou que

haviam inventado uma corda feita com petróleo. Ninguém acreditou: como era

possível fazer um solido com um liquido. Com o tempo, começamos a ver fitas,

cordas e objetos de plástico. Era o novo mundo que começamos a conhecer.

Passados dois anos, em1943, as coisas começaram a precipitar para os

alemães e os italianos. Mussolini e Hitler estavam no fim.

Na Itália, soldados e civis começaram a organizar-se como guerrilheiros,

chamados “partisães” para combater a ditatura fascista.

Os alemães, retirando-se da Itália, estavam levando consigo muito material

saqueado.

Um dia, estávamos terminando a Missa de abertura do ano escolar, quando

chegaram correndo alguns jovens para nos convidar a ir até 'a estação ferroviária,

onde estava um trem cheio de material sendo levado para a Alemanha. Os

“partisães” obrigaram os soldados a fugir e toda a cidade estava esvaziando o trem.

Nós fizemos a nossa parte: pegamos caixas de alimentos, vários materiais, uma

estufa e quatro rolos de pano. Que aventura! Os alimentos comemos, e os panos

serviram para fazer lençóis e roupas.

Ao término da guerra, depois de mais de três anos, conseguimos, com

enormes sacrifícios e muitos dias de viagem, voltar para casa e visitar nossas

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famílias. Quantas peripécias! Tentamos uma primeira vez, mas, chegando a Genova

tivemos que voltar atrás: um bombardeio noturno tinha acabado com a linha de

ferro. Tentamos uma secunda vez, viajando num carro de mercadoria, sem assento, e

nem toilette. O espaço era mínimo, não se sabia aonde pôr os pés.

Ninguém pode imaginar os sofrimentos: sem comida, sem segurança, com

gente que ia perto, e com gente que ia longe. Ninguém sabia se ia encontrar parentes

vivos, ou mortos.

Quando toquei a campainha de casa, minha mãe não me reconheceu. Mas

foi um instante, e logo me abraçou e choramos de emoção.

Fiquei na minha casa mais de um ano e meio, até a guerra terminar.

A Itália estava destruída, ferrovias e estradas ficaram intransitáveis, muitas

cidades bombardeadas e semidestruídas não ofereciam segurança, a política em

plena desordem, a fome continuava a matar como as armas. Lembro que uma

senhora, fugida de Napoli para Pereto tinha apenas uma batata fervida para comer no

dia em que deu à luz. Outro dia chegou de Roma, a pé, o superior geral de meu pai,

em busca de alimentos para sua família. Nós estávamos discretamente bem por que,

antes do desastre final da guerra, meu pai escondeu muito trigo e farinha em um

buraco perto de casa.

Até que um dia, o mesmo padre Ângelo Penna chegou em Pereto e me

perguntou se eu ainda estava disposto a ingressar no noviciado.

Falei que sim, e repetimos mais uma viagem para longe de casa, até a cidade

de Gubbio, sede do noviciado.

Foi uma viagem aventurosa: de Pereto até Roma viajei sobre um caminhão

cheio de carvão. Imaginem vocês como cheguei. De Roma, lavado e descansado,

viajamos de trem até Fossato de Vico, e de lá até Gubbio em um caminhão, cheio de

operários.

Gubbio é uma cidade belíssima, cheia de história e de antigas tradições,

localizada a uns 150 km de Roma e a 30 km de Assisi. A nossa casa era um mosteiro

antigo. Acolheu o jovem S.to Ubaldo, no sec.XII, ordenado padre, foi também

superior, antes de ser eleito bispo da cidade.

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Gubbio também é cheia de construções medievais. Seu palácio, conhecido

como palácio dos Consules, ainda é bem conservado, com um enorme sino, que toca

nas circunstâncias mais importantes da cidade. No alto do monte Subasio ergue-se o

santuário dedicado a S. Ubaldo e meta de continuas visitas de peregrinos. Os

cidadãos têm para ele uma devoção incomum. A cidade para no dia de sua festa, em

16 de maio. Grandes e pequenos vestem roupa tradicional e repetem cada ano a

famosa Festa dos Círios. Começou como devoção ao Santo para oferecer ao

mosteiro cera, óleo e velas para iluminar o templo. Depois, se tornou uma tradição

única no mundo. A população, dividida entre agricultores, artesãos e governantes,

homenageava três protetores: S. Antônio, protetor dos agricultores, S. George,

protetor dos artesãos, e S. Ubaldo, protetor da cidade. Os círios são formados de

madeira bem trabalhada, têm cerca de cinco metros de altura e adornados com

estátuas de santos no topo. Os devotos, com suas roupas diferentes, carregam as

estátuas correndo por toda a cidade e sobem a montanha em alta velocidade. É um

espetáculo inesquecível: em menos de 10 minutos sobem a montanha, que

normalmente exige uma caminhada de 40 minutos. Quem quer visitar a Itália, não

pode perder este espetáculo, único no mundo.

Começamos o noviciado em outubro. Éramos cinco jovens dirigidos por um

padre, Giovanni Dani, considerado como um santo. A ele foi dedicada uma praça na

parte nova da cidade.

A formação que ele nos deu para a vida religiosa foi tão profunda e eficaz,

que os cinco nos tornamos padres e os cinco celebramos juntos, em Roma, os 50

anos de sacerdócio em 2006.

Claro, não faltaram dificuldades, sobretudo o frio, que nos castigou durante

todo o inverno. Durante 15 dias a temperatura desceu a 15 graus abaixo de zero, dia e

noite. Nem tínhamos aquecimento em casa. Até a agua, que guardávamos nos

quartos para nos lavar durante a noite, congelava. No dia se corria e se trabalhava, e à

noite se colocava na cama quantos cobertores era possível achar.

O ano de noviciado correu bem. Fomos aprovados para a profissão religiosa

e fomos transferidos para a cidade de Vercelli, perto de Turim. Chegamos no fim de

17

Page 21: BRUNO GIULIANI

outubro de 1947 para continuar os estudos superiores.

Em Vercelli nossa moradia também era um mosteiro, anexo a uma basílica

maravilhosa do séc. XII, de perfeito estilo gótico. Foi construída por um cardeal,

Gualabicchieri, que a confiou aos cônegos regulares franceses para instalar um

centro cultural. O primeiro superior foi o abade Tomaso Gallo, que vinha do instituto

teológico de Paris, transformado em seguida em faculdade “La Sorbonne”. O seu

tumulo está ao lado direito do altar maior, e aparece sentado dando aula a um jovem,

que estavam nas costas. Quatro eram de habito branco, o habito dos cônegos, e um

era de habito marrom: era nada menos que santo Antônio de Pádua. Quando jovem,

estava no mosteiro dos cônegos de Coimbra, mas um dia passou por aí um grupo de

franciscanos em caminho para as missões na África do Norte. O jovem Antônio

juntou-se aos missionários, mas nunca chegou na África pelos ventos contrários do

mar. Chegando em Pádua, foi enviado a Vercelli para terminar seus estudos.

A permanência em Vercelli foi magnifica. O ambiente de casa era acolhedor,

o superior, Pe. Luigi Carnicelli tinha sido confessor de santa Gemma Galgani na

cidade de Lucca.

A basílica de Santo André era o centro religioso e cultural de Vercelli. Os

estudos filosóficos procediam sem problemas. Mas havia uma hora, que nunca

esqueço: era a última hora de terça-feira. O professor achava que todos devíamos

estar cansados para estudar filosofia. Assim, nos apresentava cada semana uma

resenha cultural e social, como aparecia nos jornais e nas revistas italianas. Quanto

material variado e interessante! Que curiosidade nos despertou e quanto amor para o

conhecimento da realidade¹ para nós, seminaristas fechados no nosso pequeno

mundo.

Nunca esqueço aquele professor Pe. Vallaro para tanta abertura mental que

me deu com as suas aulas.

Um momento particularmente desejado era, quando em alguns dias de festa,

íamos fazer uma bela merenda em cima da torre central da basílica. Ao redor,

podíamos olhar um panorama grandioso. De longe podíamos ver também os

imensos campos cultivados com arroz, em terrenos submersos na água, que

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Page 22: BRUNO GIULIANI

produziam o melhor arroz da Itália.

Em 1952 chegou para nós a ordem de transferência para Roma, a fim de

terminar os estudos teológicos numa das melhores universidades, chamada

“Angelicum”, dirigida pelos dominicanos. Foi uma experiência nova: os textos

escolares eram em latim. Os professores, muitos deles estrangeiros, falavam em

latim, o que dificultava a compreensão. Entre eles, havia um célebre estudioso

dominicano que escreveu muitos livros conhecidos no mundo inteiro, o Prof.

Garrigou Lagrange.

Em casa, o ambiente não era de menor espírito cultural. O nosso superior,

Pe. Carlos Egger, era um dos maiores latinistas daquele tempo. Trabalhava no

Vaticano e era o tradutor de todos os documentos oficiais do Papa e do Vaticano. Um

dia, leu para nós a narração de um jogo de futebol em latim. Que surpresa!

Além dele, outro professor era célebre. O abade Giuseppe Ricciotti era um

grande estudioso da bíblia e da Igreja. Escreveu cerca de 20 livros e mais de 600

artigos em revistas e nas enciclopédias. O seu livro “A Vida de Cristo” foi um best-

seller, traduzido em mais de 40 línguas. O interessante é que nós seminaristas

corrigíamos as “bozzas”, participando de certa maneira dos seus escritos e

dirigindo-lhe mil perguntas.

Passamos assim os últimos anos de preparação ao sacerdócio, nas melhores

condições possíveis, adquirindo sempre mais amor aos estudos e à Igreja.

Finalmente chegou o grande dia. Foram momentos de intensa preparação.

Para mim, havia mais uma circunstância familiar: a celebração, no mesmo ano, dos

25 anos de casamento de meus pais, alegrados, também com a colação de grau de

dois irmãos, Nino, na vida militar, e Ercole como professor. E, para não deixar o

menor, Gianni, sem participação ativa, foi preparado para sua primeira Comunhão.

Nossa mãe estava tão ansiosa que meu pai acreditava que teria um infarto,

de tanta graça que a família recebia ao mesmo tempo. (pensava de ter um golpe.

Tanta graça junta¹)

A ordenação sacerdotal foi no dia 27 de junho de 1945, em Roma, e a primeira

Missa solene na minha cidade de Capestrano no dia 27 de julho do mesmo ano.

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Page 23: BRUNO GIULIANI

Capítulo IV

Finalmente Padre

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Ordenado padre, me senti como um navio que, saindo do porto, entra no

imenso mar.

Abriam-se para mim todas as possibilidades de realizar os meus sonhos. Na

minha frente estava o mundo todo, precisando de amor, de socorro, e de luz. Senti-

me como um farol acima do monte para ensinar o caminho aos navegantes, meio

perdidos no meio de um mar em tempestade.

É um sentimento diferente de quem se casa e se sente feliz com sua jovem

esposa, depois das festas, finalmente sós em casa própria. Eles sonham em construir

uma família, enfeitar a casa, dar vida aos filhos, e ganhar dinheiro para ter uma vida

serena e tranquila.

Eu, ao contrário, abri portas e janelas para o mundo afora. Coloquei-me a

total disposição para os outros, e fiz a promessa de nunca dizer não a quem precisava

de mim. Pedia ao Senhor para que me doasse luz suficiente nas confissões. Na

primeira vez em que confessei tremia como uma folha e me perguntava: será que vou

entender bem a situação do penitente? E que conseguirei dar as orientações certas?

Hoje, a situação é diferente. Os seminaristas desde cedo vivem em contato

com o povo, prestam serviço ao altar, fazem celebrações na falta do padre... Na

minha época, a formação era totalmente fechada. A preparação era apenas teórica,

sem nenhuma pratica. Por isso, precisava preparar detalhadamente tudo: liturgia,

sacramentos, bênção dos mortos e das casas. Durante quase dez anos preparei a

homilia do domingo começando desde segunda-feira para decorá-la. Guardei

centenas de envelopes com as homilias para os casos de necessidade.

Passado o primeiro mês em família, fui enviado ao seminário de Andora

para assumir a função de assistente e professor. Me senti privilegiado em poder viver

Page 24: BRUNO GIULIANI

21

ainda em comunidade, só com os jovens, sem ter de assumir a responsabilidade de

uma paróquia, tarefa para a qual não me sentia preparado.

Continuei a viver uma vida bem organizada, com horário e compromissos

definidos. Lecionei várias matérias escolares, como italiano, latim, história

geografia, e, enfim, francês. Essa última matéria me encontrou despreparado. Havia

estudado a língua na infância, mas sem um grande aprofundamento. Porém, o

professor da língua, um querido confrade holandês e poliglota, teve de voltar

urgentemente na sua pátria. Alguém tinha de assumir seu lugar. O mais novo dos

padres era eu: não podia recusar-me. Enfrentei o novo compromisso preparando

com atenção cada aula. Mas, no fim do ano escolar, pedi para passar um período em

algum lugar de língua francesa. Merecido ou não, fiz uma experiência excepcional

na Suíça. Os cônegos regulares, nossos confrades, operavam em várias localidades

suíças, e há muitos séculos, possuíam o mosteiro do Monte São Bernardo. Fui lá para

aprender o francês, no meio das montanhas, num clima gostoso e fresco a 4.000

metros de altitude e tendo o privilégio de passear todos os dias com duas cachorras

da raça São Bernardo que estavam gravidas.

Quem nunca ouviu falar destes cachorros famosos, representados com um

pequeno barril no pescoço, para salvar os viajantes perdidos no meio da neve? No

mosteiro, logo na entrada, conserva-se o corpo embalsamado de um cachorro

famoso chamado 'Biarriz', que salvou a vida de 14 pessoas perdidas e quase

congeladas na neve. Elas beberam o licor que o cachorro transportava e, seguindo-o,

chegaram até o mosteiro.

A passagem alpina do Grand São Bernardo era famosa desde a antiguidade.

Hannibal, o africano, tentou entrar na Itália através desta passagem. Numerosos

exércitos da Europa, na idade média, passaram também por ali, assim como

comerciantes e peregrinos. É interessante ver no museu as moedas antigas que os

viajantes deixavam como agradecimento ao Santo.

As aulas de francês melhoraram e pude aproveitar o meu conhecimento da

língua em frequentes contatos com os confrades de língua francesa.

A escola também progredia. A vida dos jovens tinha um clima de

Page 25: BRUNO GIULIANI

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fraternidade. Juntos eles participavam de aulas de canto, cerimonias religiosas,

competições etc.

Ao fim do curso escolar, os jovens se submetiam a exames públicos. Os

estudos no colégio eram particulares e precisavam de reconhecimento oficial. Era

uma verdadeira satisfação ver os jovens aprovados e elogiados.

Passei três anos em Andora plenamente realizado. Amava os jovens e eles

me amavam. Estava demonstrado que a dedicação supre as deficiências técnicas e

que o amor cria um clima de fraternidade, em que cada um se encontra à vontade

com suas qualidades e seus limites.

Após três anos fui transferido ao Vêneto, uma região ao norte da Itália, na

cidade de Castelfranco, onde a Congregação tinha aberto um outro seminário. O

Veneto era considerado como uma terra muito religiosa e, portanto, com mais

vocações para a vida religiosa.

Foi verdadeiramente uma outra experiência de vida sacerdotal. O povo

veneto era religiosíssimo. O centro das cidades eram as igrejas com suas torres altas.

O ritmo da vida era dirigido pelos sinos que tocavam todas as horas. As igrejas

estavam sempre cheias. As famílias eram numerosas e viviam felizes.

Aprendi muito com os padres de lá. Eram verdadeiros guias espirituais. As

comunidades estavam bem organizadas, como nunca tinha visto antes.

A sede do seminário, adquirida com muito sacrifício, era uma antiga sede

das famílias nobres de Veneza. Ela tinha espaços grandes, salas ornadas com

estuques, e ao redor, parques com jardins e árvores raras. Em um lado havia uma

estrebaria quase abandonada, com ornamentos de ferro e bronze, sinal de sua antiga

nobreza.

Foi lá que passei mais 11 anos de minha vida, cuidando dos alunos,

ensinando, brincando, organizando jogos, campeonatos e passeios. Um passeio de

10 dias para as montanhas dolomites foi um dos mais memoráveis daquela época.

Os alunos eram divididos em equipes: a equipe da comida, da enfermaria,

do dinheiro e do guia nos caminhos montanhosos. Uma noite, dormindo numa

estrebaria no meio da palha, caiu tanta neve que perdemos o rumo. Mas, com a ajuda

Page 26: BRUNO GIULIANI

de camponeses que vieram ver o gado, e com a colaboração dos guardas de

montanha, que nos levaram até a cidade mais próxima, vencemos a neve e voltamos

para casa, pedindo carona aos carros que passavam por lá.

No Natal íamos sempre a Veneza, a 40 km de distância. Na cidade havia

uma tipografia, que preparava caixas para “panettoni”. Um dia, falando com o

diretor, combinamos que os alunos iam dobrar as caixas. Por cada caixa dobrada

ganhávamos uma pequena quantia de dinheiro, que, no fim cobria, as despesas do

passeio.

Além dos seminaristas, fui encarregado da pastoral vocacional nas cidades

da redondeza. Visitava os párocos, os grupos jovens e as famílias. O meu meio de

transporte era uma moto, que nunca me criou problemas. Nunca abusei da

velocidade, porque era um motorista amador. Mas, estas viagens me propiciaram

tantos compromissos pastorais: confissões, retiros, missas festivas. Eu era feliz com

todas as belas oportunidades para viver plenamente meu sacerdócio.

Uma experiência interessante foi a pregação de retiros mensais, que o jovem

pároco de Piombino Dese, uma cidade desenvolvida e industrial, organizava para

homens e mulheres comprometidos no campo do trabalho. Eram os primeiros

passos de um movimento católico, as ACLI (Associação Cristã dos Trabalhadores

Católicos), que se difundiu no mundo do trabalho, levando a doutrina social da

Igreja. Tais encontros me abriram a mente a um mundo quase desconhecido. A

minha atual sensibilidade aos problemas sociais e políticos nasceu naqueles

encontros mensais.

No fim do primeiro ano escolar surgiu um grande problema para alunos

padres: os alunos que moravam longe não tinham como chegar em casa para as

férias. Como resolver o problema? Um amigo nos ajudou, falando de um prédio a

venda em uma cidadezinha próxima, Tonadico, no meio das dolomites.

Fomos ver a casa, o lugar e o preço. Deu certo. Adquirimos a casa de

montanha para passar alegremente as férias escolares. Tratava-se nada menos do

que uma antiga central elétrica do império austríaco. No subsolo corria bastante

agua para movimentar as turbinas. Para nós foi fantástico. Trabalhamos no primeiro

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Page 27: BRUNO GIULIANI

ano para adaptar a casa às nossas necessidades. Nos anos seguintes, fomos conhecer

as montanhas da redondeza, fazendo escaladas alpinas.

Infelizmente, dois anos depois, um tremendo temporal derrubou árvores e

pedras, até invadir nossa casa e quebrar a pequena ponte que a ligava à estrada

principal.

Foi um verdadeiro desastre. Quando eu e um colega fomos visitar a casa,

ficamos espantados. Tivemos de abrir uma parede da casa para permitir que uma

escavadeira limpasse a casa. Com calma, reconstruímos as partes destruídas e a

ponte. Foi um duro trabalho, mas não pagamos um tostão: o poder público nos deu a

verba necessária para a reconstrução.

Porém, com tanto trabalho material e espiritual, os resultados vocacionais

eram escassos: muitos vinham para estudar, e no fim nos deixavam com um triste

“adeus”. NÃO ENTENDI. POR QUE OS RESULTADOS VOCACIONAIS

ERAM ESCASSOS?

Muitas vezes fiquei desanimado. Só depois de muitos anos pude ver que o

trabalho não foi perdido. Os primeiros alunos, já adultos e com família, decidiram

reencontrar-se para relembrar os tempos do seminário. Todos estavam

compromissados nas comunidades, nas escolas, no mundo político e em sindicatos,

decididos a introduzir nestes ambientes o espirito cristão. Ainda hoje, continuam a

encontrar-se com esposas e filhos, relembrando os cantos de montanha que nós

cantávamos.

No início de 1968, os superiores italianos voltavam de uma visita ao Brasil,

onde viram grandes obras criadas por nossos missionários e acharam necessário

enviar um reforço. Eles escreveram uma carta a todos os padres italianos pedindo

disponibilidade para o Brasil.

Eu, buscando novas experiências, mas ao mesmo tempo com receio de um

futuro incerto, respondi que estava disposto a ajudar os colegas no Brasil.

Um mês depois recebi a notícia de que, entre os candidatos, havia sido

escolhido. Foi um susto. Terminei o ano escolar, entreguei trabalhos e documentos,

e fui para a casa de minha família para repousar.

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Page 28: BRUNO GIULIANI

Capítulo V

Viva as montanhas

Nos brasileiros encontrei tantas belas qualidades, como a hospitalidade, o

otimismo, o espirito de colaboração nas iniciativas comunitárias. Mas não encontrei

grande interesse pelas atividades de montanha.

Será a rotina da vida urbana, que não permite mais ver o alto, será a paixão

do futebol, que entusiasma jovens e adultos, e enche todos os fins de semana?

Para mim, italian, e nascido numa região montanhosa, as montanhas sempre

tiveram uma atração particular.

Desde criança subi montanhas, para admirar a beleza da natureza, para

admirar plantas e flores, para apanhar pássaros e insetos. As montanhas têm uma

mística especial, nos afastam da rotina enjoativa da vida cotidiana, nos levam mais

perto do céu, nos fazem penetrar no coração da natureza, nos fazem respirar um ar

mais puro e mais perfumado.

Subir nas montanhas foi para mim, desde criança, um desafio e uma

conquista. A gente sofre o cansaço da subida, a irregularidade das pedras das ruas,

sofre a sede e o peso da mochila, mas, quando chega ao topo se goza a vitória

conquistada, se admira o panorama vasto e variado, sente o céu mais perto.

É uma experiência que precisa ser vivida, para sentir tudo isso e começar a

amar as montanhas.

Minha primeira subida em montanha foi quando, ainda criança aos sete

anos, fiz uma marcha de mais de três horas com minha família e os amigos para ir

visitar um santuário situado no topo. Nós crianças éramos como animais soltos:

sempre na frente, colhendo flores, apanhando bichinhos e olhado os pais, que nos

seguiam com passo mais lento.

Lembro ainda de um pormenor, que me entristeceu enormemente. Meus

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Page 29: BRUNO GIULIANI

Passei dias de entusiasmo e de dúvidas, de amor e de medo pelas novidades

que me esperavam. Meus pais me perguntaram muitas vezes se estava certo da

decisão. Quando parti, no início de agosto, meu pai passou mal. Porém, minha mãe,

uma mulher forte e de grande fé, me abençoou, pondo-me nas mãos de Deus.

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Page 30: BRUNO GIULIANI

pais, junto com os amigos, tinham decidido fazer aquela escalada com espirito de

profunda fé, e com o propósito de participar da Missa e receber a santa Comunhão.

Avisaram-nos logo para não matar bichinhos, não brigar, não falar palavrões, não

comer e não beber antes da Comunhão. No passado, havia a regra do jejum absoluto

desde a meia-noite até a Missa. Muitos leitores de idade lembram-se desta norma.

Num certo momento eu vi uma moita com belas amoras maduras. Sem pensar, comi

algumas amoras. Isso me impediu de receber a santa Comunhão.

Nos anos de formação não faltaram experiências de montanha. O

seminário se encontrava numa cidade perto do mar, na região da Liguria, bem perto

da França. Mas, nas férias não faltavam excursões nas montanhas. Uma vez

realizamos uma caminhada de dez dias, para alcançar duas montanhas entre a Itália

e a França. Para nós adolescentes foi uma vitória: tínhamos entrado no território

francês.

Quando adulto, aproveitei as férias em família para escalar montanhas em

diferentes regiões. Meu irmão Ercole é um verdadeiro alpinista e fazia parte do

Conselho alpino da minha cidade. Durante todo o ano este Conselho organizava

excursões aos domingos e feriados com muitos apaixonados pelas montanhas.

As escaladas eram divididas em médias e grandes dificuldades, segundo a

capacidade dos participantes. Foi por isso que pude aproveitar para aprender todo

tipo de escalada. Não era sempre fácil, mas nem extremamente difícil. Para

conquistar o objetivo era preciso ter coragem, equilíbrio e sangue frio. Aprendi a

subir em cordada, quando havia perigo de precipitação. Aprendi a usar sapatos

especiais com pregos na soleira, quando havia neve e gelo nas montanhas. As

dificuldades existiam para serem enfrentadas, o que nos dava maior satisfação e

orgulho. Assim, além do exercício físico, a montanha oferecia uma ocasião para

fortalecer o caráter quanto às dificuldades da vida. Quantas vezes, diante das

dificuldades da vida a gente desanima e desiste? O alpinismo nos ensina a ir em

frente até a realização do projeto programado.

Na Itália temos muitas possibilidades para escalar montanhas. Há os Alpes

ocidentais na divisa com a França e a Suíça; há os Alpes orientais, chamados

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Dolomites, entre a Itália e a Áustria; e há o grupo apeninico, com o Gran Sasso d'Itália

no centro, de 3.000 metros de altura.

Eu tive a oportunidade de subir todas essas montanhas, graças às muitas

regiões em que vivi.

Nos alpes ocidentais cheguei a contemplar subir o monte mais alto dos alpes,

o monte Bianco, que tem 4800 metros de altitude. Faltou-me o tempo para subir até o

cume a pé. É possível alcançar o topo com um teleférico, mas a experiência é, claro,

muito diferente.

O monte Bianco está entre a Itália e a França, e pode ser escalado partindo de

ambos os países. Em baixo há uma longa galeria, que hoje liga as duas nações. Mais

ao oriente há o monte Rosa, um pouco mais baixo, mas igualmente majestoso e mais

fácil de ser escalado.

Além das escaladas, meu tempo vivendo no monte Gran San Bernardo

colaborou para que eu me apaixonasse ainda mais pelas regiões montanhosas. A vida

por lá não é fácil. Durante muitos meses a neve cobria parte do mosteiro e era preciso

sair pela janela. Mas, no verão, a região fica cheia de alpinistas italianos, suíços e de

outros países. O mosteiro oferece hospitalidade, o que facilita a escalada aos cumes

ao redor.

Descendo a montanha pelo lado suíço, chegamos à famosa cidade de San

Maurice, onde há apenas um mosteiro há 1500 anos. É, portanto, muito rico em

história.

Descendo do lado italiano se passa pelo Valle d´Aosta, cheio de lindas

cidades come castelos e torres.

As dolomites, montanhas entre a Itália e a Áustria, são consideradas uma das

maravilhas do mundo por terem uma vegetação rica.

Tive a oportunidade de visitá-las durante quase 15 anos, o tempo em que

trabalhei perto da cidade de Treviso. Quantas recordações! Nas costas das

montanhas havia enormes florestas de pinheirais, conservados pela república de

Veneza, que castigava com a morte quem cortava uma arvore sem autorização. Nos

pinheirais crescia uma quantidade enorme de cogumelos bons para comer. No meio

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29

das florestas apareciam frequentes lagos de água azul e límpida que espelhavam as

montanhas.

As montanhas e as florestas eram locais de descanso, sobretudo quando eu

viajava com grupos de jovens. Quando encontrávamos outros grupos de pessoas,

inclusive estrangeiros, era uma festa. Tentávamos nos comunicar trocando

informações e presentes.

Outras vezes visitávamos os lugares com galerias e trincheiras onde,

infelizmente, morreram tantos italianos e austríacos. Se aquelas montanhas

pudessem falar, teriam contado histórias de dores, de frio, de doenças e de morte.

Numa destas montanhas, durante um verão muito quente que provocou o

derretimento da neve e do gelo do topo, encontraram uma mão humana. O episódio

aconteceu uma semana após eu, meu irmão e minha cunhada termos feito uma

escalada. Logo conseguiram liberar o corpo inteiro da vítima, uma múmia muito

bem conservada. Ninguém imaginava a importância da descoberta, que foi de

interesse histórico e científico.

Otzis, ou a múmia do Similaum, foi um homem que viveu há 5.300 anos e é o

cadáver mais antigo já encontrado, conservado no museu arqueológico de Bolzano.

As montanhas que mais escalei foram as da região de Gran Sasso d'Itália,

onde morava minha família. Foi ali que realmente me aventurei no esporte. Confesso

que as primeiras vezes que fazemos a escalada gera nervosismo, mas o resultado é

indescritível.

Foram também nessas montanhas, conhecidas como Campo Imperador,

para onde foi levado Mussolini no final da guerra.

As montanhas significam muito não apenas para mim, mas para toda a

minha família. Meu sobrinho, Cesare, conseguiu subir uma das pontas mais difíceis

e perigosas do Himalaia há alguns anos. Depois de subir 6.000 metros, sendo 2.000

rochosos, fincou uma bandeira da cidade de Tivoli, onde moram meus irmãos, no

cume.

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A Cruz com a neve congelada: uma visão celestial.

Com meu irmão no monte Velino

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Meu sobrinho subindo corajosamente com as cordas

Sobre o monte Similaum na vigília da descoberta do corpo humano

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A descoberta do corpo congelado no monte Similaum

O corpo bem conservado há 5.300 anos, hoje no museu de Bressanone

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Capítulo VI

Um Brasil acolhedor

Viajei de Genova no mês de agosto, numa viagem até São Paulo de 15 dias.

O transatlântico era enorme: quase 2.000 passageiros e 800 membros da

tripulação.

É preciso mesmo viajar assim para ter uma ideia do que é um transatlântico.

Salas enormes, refeitórios de luxo, biblioteca, salas de leitura, teatro, piscinas etc.

Leva-se tempo para conhecer tudo e ambientar-se.

O que me alegrava era a tolda no alto do navio, de onde podíamos

contemplar o céu e as estrelas durante a noite. Junto com outros passageiros vivi

horas e horas de felicidade observando o céu e conversando com os amigos. Cada

um tinha uma história e todos cultivavam um sonho para o futuro.

Alguns já viviam no Brasil e voltavam de uma visita aos parentes. Outros

emigravam pela primeira vez em busca de uma vida melhor. A terra brasileira era,

para todos, uma terra abençoada e acolhedora.

Estávamos todos impacientes para chegar. Quando o navio atracou no porto

do Rio de Janeiro nos sentimos no paraíso. Foi uma maravilhar ver os ilhotes, as

praias, as montanhas e, sobretudo, o Corcovado com o Cristo Redentor, que nos

acolhia de braços abertos.

Foi uma festa geral, pois alcançamos a meta sem problemas na viagem. Um

marinheiro me confessou que, em 26 viagens realizadas, nunca tiveram um mar tão

calmo.

Eu viajava com um velho colega, o Pe. Roque Castellano, que já havia

vivido por muitos anos no Brasil. Foi ele quem me deu as primeiras aulas de

português e que, no Rio de Janeiro, me fez experimentar o guaraná, uma bebida

desconhecia na Itália.

Foi ele também que me levou até o Corcovado. Olhando a estátua do Cristo,

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fiquei orgulhoso quando li em uma placa que a primeira iluminação do monumento

foi por mérito do grande cientista italiano Guglielmo Marconi, que da Itália

conseguiu realizar o feito, como comando à distância.

O dia no Rio de Janeiro correu rápido. A visita foi acelerada, pois

continuaríamos viagem até o porto de Santos.

Quando saímos do navio tive outra surpresa. Meu colega, o Pe. Guerrino

Ricciotti me esperava com uma comitiva de quatro carros. A acolhida fraternal,

assim como a atenção que recebi dos amigos, me deram a sensação de estar em casa.

Parecia que os milhares de quilômetros de distância entre eu e a Itália haviam

desaparecido. Eu estava entre irmãos.

Senti que realmente estava em casa quando, chegando a São Paulo, pude

abraçar os padres Domingo Tonini e Giuseppe Losciale, velhos amigos.

Passei os primeiros dias no Brasil olhando e admirando as obras que

estavam crescendo ao redor da casa religiosa. Parecia que estava em um mundo

irreal. Um colégio para as crianças do bairro, uma creche para os filhos das mulheres

trabalhadoras do bairro, uma igreja nova. Tudo isso era obra dos padres, uma história

recente que estava sendo criada. Me senti pequeno perto dos colegas missionários,

corajosos e criativos. Vi ali um cristianismo prático e encarnado em realidades

novas, algo muito diferente do que eu via na Itália, onde as obras já existiam de

muitos séculos passados.

Tentei inteirar-me logo nas atividades daquela comunidade. Fazíamos

várias reuniões por semana para que eu entendesse melhor o trabalho e me

encaixasse nas tarefas.

Foi assim que soube da origem do colégio. Quando o governo instituiu o

salário educação para assegurar a alfabetização de operários e seus filhos, o diretor

de uma firma próxima à igreja, opositor ao governo, fez críticas duras à medida, mas

reparou que havia uma cláusula permitindo que empresas privadas usassem o

dinheiro para organizar estudos.

O empresário, Jairo, procurou o Pe. Guerrino e fez a proposta para construir

uma escola. O padre concordou, mas confessou que estava sem dinheiro. O Sr. Jairo

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35

afirmou que tomaria conta da questão e, vinte dias depois, realizou uma reunião com

donos de fábricas da redondeza e os convidou para colaborar com o projeto.

Todos aceitaram. Um deles, o Dr. Fuchs, entregou ao padre um cheque que

correspondia ao imposto educacional de um ano. Quando a construção terminou, os

alunos começaram as atividades, mas precisavam de um diretor.

O escolhido para assumir a função foi Orlando, um homem de grande

capacidade. Os responsáveis por fazerem do colégio uma realidade eram todos de

diferentes religiões, mas o bem sempre se soma, nunca se divide.

A igreja ainda estava no início das obras e momentaneamente parada. O Pe.

Guerrino dizia que uma igreja não faz uma escola, mas uma escola pode fazer muitas

igrejas. Eu tinha trazido um bom dinheiro da Itália e, junto com a colaboração do

povo, consegui levar a construção da igreja para frente.

Reiniciamos os trabalhos no mês de setembro e, no dia de Natal do mesmo

ano conseguimos inaugurá-la. Foi um milagre, fruto da dedicação e da generosidade

do povo.

Eu, que conheci pouco da língua portuguesa, vestia o macacão e ajudava nas

obras assim que terminava de celebrar a missa.

Hoje, após algumas melhorias, temos uma basílica. O engenheiro que

idealizou o projeto foi Vaccari, que era professor e funcionário da prefeitura. Ele se

inspirou na basília de São João de Letran para valorizar a nossa origem lateranense.

A pequena creche foi criada na própria casa paroquial, quando os padres,

ouvindo os pedidos de muitas mães trabalhadoras, cederam a casa e foram habitar

locais improvisados da igreja.

Para facilitar a vida das mães que precisavam chegar cedo ao trabalho, a

creche abria às 5h, graças a Cenira Rissatto, uma senhora que se ofereceu a começar

o trabalho bem cedo.

Os pedidos por vagas cresciam a cada dia, mas não tínhamos um espaço

muito grande para acolher os mais de 300 pedidos que recebemos.

Decidimos aproveitar um terreno atrás da casa e construir um novo edifício,

confortável e acolhedor para mais de 300 crianças. Graças a um convênio com a

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36

prefeitura, pudemos garantir as vagas gratuitamente. Com a ajuda de amigos

italianos foi possível equipar a creche com um sistema de aquecimento solar, o que

reduziu bastante o custo da energia.

O ambiente criativo e sempre a serviço das necessidades do povo pareciam,

para mim, um sonho. Não eram apenas os santos que faziam milagres. Os milagres

se repetiam todos os dias, graças à dedicação dos padres e a colaboração dos fiéis.

Com a boa vontade, tudo é possível. Um exemplo disso é um posto de saúde

na Vila dos Remédios, que funcionava em uma casa pequena e pouco apropriada

para realizar atendimentos. Um dia, o Dr. José Ruben de Alcântara Bonfin, médico

sanitarista, conversou comigo sobre a preocupação que tinha com relação ao

espaço.

Eu tinha um espaço bom para um posto de saúde e mostrei a ele, que ficou

entusiasmado com a proposta. Em menos de um mês projetamos o ambiente,

fizemos as adaptações e logo o posto começou a funcionar. Era para ser algo

provisório, mas funcionou por mais de 30 anos, até que a prefeitura construiu o

posto de saúde do bairro. A espera valeu a pena e, mais uma vez, demonstramos que

quando se trabalha com amor e união para o bem da comunidade, Deus abençoa e

ajuda.

Quando terminamos as obras na igreja, um outro problema se apresentou.

Na Itália as vocações começaram a diminuir. Como seria possível dar continuidade

às obras sem preparar um futuro?

Eu, que tinha trabalhado por 15 anos com a formação de futuros padres,

apresentei um projeto. Me ofereci para acolher e acompanhar os jovens que tinham

iniciado o caminho religioso em nosso seminário menor e que, por falta de

estruturas adequadas, estavam se dispersando.

O resultado foi que, durante a metade de janeiro de 1969, reunimos 10

jovens que iniciariam o noviciado. Nós os acomodamos da melhor forma possível,

no andar térreo, mas também dedicamos algumas horas por dia para construir outros

dois andares na casa.

Page 40: BRUNO GIULIANI

37

Três jovens dentre esses dez chegaram ao sacerdócio.

Os resultados parecem poucos, mas a semente estava lançada. Hoje, já com

muitos padres brasileiros, temos jovens no noviciado, na filosofia e na teologia. O

futuro está garantido.

Um ano depois, um novo capítulo se abriu em minha vida. Fui participar de

um movimento chamado “Crusilhos de Cristandade”, que estava fazendo sucesso

no Brasil.

O movimento consistia em convidar homens e mulheres de todos os

ambientes sociais: político, trabalhista, educacional, da saúde... Todos participavam

de um retiro de três dias, liderado por padres e pessoas da comunidade que davam

um testemunho sobre a vida cristão. Muitas conversões aconteceram nos cursilhos e

muitas lideranças surgiram na igreja.

Do movimento nasceram belas iniciativas para os hovens nas favelas, nas

escolas e nas prisões. Um grupo de cursilhistas de São José dos Campos em prol dos

presos é mundialmente conhecido e teve sua história narrada no livro “Parceiros da

Ressurreição”, de Mario Ottoboni. Em 1972 ele fundou a APAC (Associação de

Proteção e Assistência aos Condenados). Uma iniciativa como essa seria muito

bem-vinda hoje.

Trabalhei por muito tempo com esse movimento, até ser convidado para

assumir a direção espiritual de toda a cidade de São Paulo. A coordenação era

formada por pessoas de grande prestígio. Um grande empresário, o Sr. Baumer, e

sua esposa, Dona Luiza, nos acolhiam em sua casa, onde fazíamos reuniões para

aprovar fichas e organizar Cursilhos.

Luiza era, na prática, a verdadeira secretaria. Após um acidente de trabalho,

perdeu o movimento das pernas e andava com dificuldade, mas atendia com

entusiasmo todas as necessidades. Uma vez realizamos um retiro dentro da fábrica

da família. Os frutos dessa amizade e parceria foram abundantes, pois conseguimos

marcar presença em muitos aspectos da vida da comunidade.

A igreja se beneficiou imensamente do esforço e passou a ser uma

instituição totalmente voltada para a população, dando mais espaço aos leigos.

Page 41: BRUNO GIULIANI

38

Foi nessa época em que foram ciados os Conselhos de Pastoral e os Conselhos

administrativos, em que os cursilhistas participavam com grande dedicação.

Hoje o movimento perdeu parte de sua eficácia. As lideranças passaram a

acolher todos os tipos de pessoas, que participavam do grupo com o intuito de

resolver problemas pessoais, não comunitários. Assim, o grupo perdeu sua força

inovadora.

Com os cursilhos, viajei pelo Brasil. Fui uma vez para Foz do Iguaçu, onde

um amigo sempre pedia minha presença.

Nunca me esqueço de um episódio em que esse amigo me apresentou duas

filhas já adultas. Estranhei porque em visitas anteriores havia conhecido apenas uma

das meninas. Diante da minha surpresa ele explicou o ocorrido.

Contou que em uma sexta-feira ele e os amigos, também empresários,

decidiram ir a um motel. Ele foi alvo de chacota dos amigos. “Está vendo? O nosso

amigo se acha um bom católico, mas não recusa um motel”.

Entrando no quarto, enquanto a moça começava a tirar a roupa, ele pediu

para que ela parasse:

- Moça, pare. Eu não vim aqui para te explorar. Me diz, por que você está

vivendo essa vida miserável?

Ela respondeu que foi por causa do pai, que bebia e maltratava a esposa e os

filhos. Na casa dela faltava até comida e, por isso. Ela resolveu fugir de casa. Sem

estudos e sem uma profissão, a moça não encontrou outra saída.

- Eu te ajudo. Está disposta a sair dessa vida? – Perguntou meu amigo.

A moça aceitou e foi morar na casa dele. Voltou a estudar e aceitou ser

adotada como filha.

O mundo não seria melhor se tivéssemos mais homens com vontade de

fazer o bem e ajudar a quem precisa?

Permaneci no movimento até a minha transferência para Caxias do Sul, em

1978. Meu novo cargo era a formação dos noviços e o cuidado de uma paróquia em

um distrito pequeno, chamado Santa Lúcia do Piaí.

Quando o bispo soube da minha atuação no cursilho, me convidou para

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assumir a coordenação espiritual da diocese. Lá também consegui recolher ótimos

frutos. Hoje perdi contato com os colaboradores, mas não esqueço os exemplos de

vida cristã que tive o prazer de testemunhar.

Um dia um dos casais coordenadores me comunicou que estava

programando uma viagem à Europa para festejar 25 anos de casamento. Eram donos

de uma grande fábrica e não lhes faltava dinheiro, por isso me confessaram que

doariam à caridade um montante equivalente ao que gastariam com a viagem.

Quando retornaram, passavam todos os dias diante de uma casa de repouso

e resolveram parar por lá e perguntaram se os velhinhos tinham alguma necessidade.

As necessidades eram tantas que os moradores tinham até vergonhar de contar.

O casal pagou todas as despesas de uma reforma e, quando passavam diante

da casa para ir até a fábrica, ouviam o agradecimento das velhinhas. “Deus lhes

pague. Obrigada por tudo o que fizeram por nós”. Para eles, a gratidão das senhoras

foi um presente maior do que a viagem.

Como pároco de Santa Lúcia do Piaí, consegui realizar um bom trabalho.

O distrito tinha cerca de 800 habitantes espalhados por uma vasta zona rural.

O ambiente era simples, formado por gente trabalhadora. Havia por ali um pequeno

hospital que estava fechado, mas com a permissão do visco consegui reativá-lo.

A farmácia dava um pequeno lucro. O consultório odontológico atendia todos os

dias. O médico do hospital, muito prestativo e dedicado, me ajudou a colocar em

funcionamento uma sala cirúrgica.

Para o aniversário de 50 anos da paróquia, restaurei a escola da comunidade,

que precisava de muitas reformas.

Ficava muito entristecido com a orientação dos professores, que

incentivavam os melhores alunos a continuar os estudos na cidade grande.

Eu defendia o contrário. Acreditava que os melhores alunos deviam aprofundar os

conhecimentos agrícolas para que a produção rural progredisse.

Realizei um congresso da juventude rural de Santa Lúcia, convidando

técnicos e políticos de Caxias do Sul e Porto Alegre. O resultado foi um aumento na

produção de leite, pois a população passou a escolher melhor a raça das vagas.

39

Page 43: BRUNO GIULIANI

Um técnico em agricultura passou a acompanhar a produção agrícola e o comércio.

Com a colaboração de alguns moradores, também consegui instalar

iluminação elétrica em vários locais distantes do centro.

Todos os moradores daquela cidade eram de origem veneta, região onde eu

morava na Itália, e falavam o dialeto de lá. Eu me sentia em casa. Gostei muito

daquele tempo e do trabalho que fiz para pessoas boas.

Ainda hoje, 30 anos depois, tenho saudades dos anos passados no Sul e dos

amigos que fiz por lá, que tinham uma conduta honesta, muita dedicação à família e

ao trabalho.

A antiga igreja do Bairro dos Remédios

40

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41

A igreja atual, construída em 1968

O colégio N. Senhora dos Remédios, construído em 1957,

chegou a atender 3.000 alunos, jovens e adultos..

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42

Capítulo VII

A mulher que revolucionou minha vida pastoral.

O título deste capitulo parece exagerado. Que mulher é essa? E que tipo de

pastoral revolucionou? Depois de tantas experiências nas minhas atividades

sacerdotais, haverá ainda algo a acrescentar?

Mas, por favor, termine esse capitulo e opine se ela não foi responsável por

uma verdadeira revolução.

Uma senhora chamada Ivaní Espindola tinha uma filha com talassemia e se

encontrava mensalmente com outras mães para acompanhar a filha, que precisava de

transfusões no banco de sangue.

Lá, em 1984, encontrou a Sra. Neuza Cattassini, que também tinha uma filha

com a doença. Diante do desconhecimento dos médicos e dos problemas

enfrentados no tratamento oferecido pelas autoridades sanitárias, Neuza fundou,

com outras mães, a Associação Brasileira de Talassemia (ABRASTA). Ela ficou

sabendo que a doença tinha origem na Europa e na Itália a terapia estava mais

avançada.

Ivaní sugeriu que Neuza pedisse ajuda a mim, o pároco italiano. Foi dias

depois nos encontramos. O assunto estava totalmente fora dos meus conhecimentos,

mas meu irmão era policial e trabalhava no quartel geral de Roma. Enviei a ele uma

carta pedindo que nos desse notícias sobre a doença, uma possível cura e qualquer

outra informação.

Em menos de 20 dias recebi a resposta com todas as informações e alguns

endereços para contato, para os quais escrevi rapidamente.

Recebemos uma resposta com uma grande quantidade de material sobre a

doença e, surpreendentemente, uma passagem de São Paulo para Milão, onde seria

Page 46: BRUNO GIULIANI

43

realizado o primeiro encontro internacional das associações de pais com filhos

talassêmicos.

Quem nos havia respondido era ninguém menos do que a Dra. Bianca

Silvestroni, uma grande pesquisadora da talassemia e diretora de um centro de

atendimento em Roma. Ela era católica e participante ativa de nossa paróquia de São

José em via Nomentana. Tivemos muita sorte!

Neuza aceitou o convite, mas exigiu que eu fosse junto para Milão, como

guia e intérprete. Com a licença de meus superiores, viajei para a Itália com Neuza,

sua filha e Ivaní.

Na viagem conheci melhor a Sra. Neuza, que tinha uma longa experiência

como voluntária no hospital Matarazzo, onde trabalhava em favor de doentes sem

família e sem recursos. No hospital, começou a conhecer as falhas administrativas e

o modo como os funcionários agiam de maneira fria. O hospital passava por uma

fase difícil. Em razão de falhas burocráticas, as freiras que administravam a

instituição deixaram a função de lado. Os voluntários chegaram a fornecer aos

pacientes remédios recolhidos gratuitamente em outros lugares.

Um dia, eles conheceram a paciente Lourdes Guarda, que há mais de 40

anos vivia deitada em um leito, vítima de um erro médico. Totalmente imobilizada,

mas com grande fé, Dona Lourdes organizou um grupo de deficientes físicos junto

com um padre jesuíta parapsicólogo, Geraldo. Assim criaram a Fraternidade Cristã

de Doentes e Deficientes Físicos.

Muitas voluntárias do hospital não aceitaram o convite para participar do

grupo, pois ajudar pessoas com deficiência é um trabalho duro. Mas Neuza aceitou

fazer parte. Uma pessoa frágil pode se espantar diante de situações que parecem

insuportáveis, mas outros aceitam o trabalho duro em prol dos que mais sofrem.

Neuza abraçou a causa. Lutou por melhores condições no hospital, lutou

para conseguir material e aparelhos úteis para os deficientes, participou da

organização de encontros formativos e viveu sob o exemplo e as palavras fortes de

Lourdes.

Com tanta prática, ela fundou, em 1982, a ABRASTA, que foi uma

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44

associação especial. A associação foi responsável por inúmeras iniciativas sociais e

científicas destinadas à cura de doentes. Mexeu profundamente na política do

sangue, questionou métodos de infusão dos médicos brasileiros, introduziu o uso

dos filtros para evitar contaminações e importou um remédio que não existia no

Brasil e anulava os efeitos negativos das transfusões.

Foram muitas as ações de ABRASTA e de Neuza, que sempre foi totalmente

dedicada à causa dos portadores de talassemia e anemia falsciforme.

Com uma parceira inspiradora, foi assim que entrei no desconhecido mundo

da saúde e das enormes dificuldades que o setor enfrenta no Brazil.

Participamos de diversos congressos internacionais. O italiano foi só o

primeiro. Conhecemos um mundo novo e aproveitamos o contato com outras

associações para iniciar um diálogo que rendeu bons frutos.

O trabalho com Neuza garantiu algumas melhorias no tratamento de pessoas

com talassemia. Revolucionamos a coleta de sangue, traduzimos o protocolo para o

tratamento, criado por Dr. Rio Vullo de Ferrara, e conhecemos a existência do

Tribunal do Doente.

Ao lado de Neuza, conheci outras pessoas importantes para essa luta. Uma

delas foi a Dra. Model, representante da ONU. A ela, apresentamos o Dr. Naun, um

brasileiro especialista em anemias hereditárias e em tratamentos preventivos de

baixo custo.

Em nosso colégio na Vila dos Remédios fizemos um exame preventivo em

1.200 alunos. O exame era muito simples. Em cada vidrinho de coleta existia um

grão de arroz. Com a reação era possível descobrir se havia uma anemia ou não. Só

que o exame não distinguia se a anemia era hereditária ou carencial, aquela que se dá

por falta de ferro. Somente 180 alunos tiveram alguma alteração no exame. Quando

a anemia foi investigada, 6 ou 7 alunos foram identificados como talassêmicos.

Nos anos seguintes, participamos de congressos realizados em várias

cidades italianas e europeias. Esse trabalho acabou por me levar ainda mais para a

área da saúde.

Em 1986 participamos de um congresso em Chipre. Conosco foi o

Page 48: BRUNO GIULIANI

Dr. Fabron, um médico hematologista que se sensibilizava com a questão dos

talassêmicos.

Neste congresso nasceu a FIT (Federação Internacional dos Talassêmicos),

um organismo mundial que, posteriormente, foi muito benéfico para os doentes no

Brasil. Ganhamos a simpatia dos participantes da organização, que nos ofereceu

mini-infusores e desferal, um medicamento revolucionário para pessoas com

talassemia e que enfrentava muitas barreiras para ser importado.

No Chipre ficamos chocados quando descobrimos que a ilha era dividida em

duas partes: uma autônoma e outra dependente da Turquia. Era uma tristeza ver

famílias separadas e lutando para se encontrar.

Mesmo com a situação inusitada, houve uma confraternização entre os

participantes do congresso. Foi um jantar solene, com a presença do presidente de

Chipre e o Ministro da Saúde do país. Era também o dia do meu aniversário. Não sei

quem foi que revelou, mas ao final do jantar um cantor italiano improvisou uma

versão de Garota de Ipanema em minha homenagem: “Dom Bruno de Ipanema”.

Em 1987 fomos a um congresso em Atenas. Jamais imaginei que visitaria a

cidade, a capital da história e da cultura antiga. Quando subimos no cole para

admirar o Partenon, tínhamos a impressão de reviver a antiga história grega.

No congresso, um médico disse que a talassemia poderia ser evitada. Um

exame genético na mãe era capaz de identificar o gene da doença ainda durante a

gravidez. Em caso de confirmação de que o bebê tinha talassemia, podia ser feito um

aborto. Cerca de 150 jovens com a doença estavam presentes e se levantaram para

afirmar que sabiam das dificuldades na vida, mas que eram gratos aos pais por suas

vidas. Foi uma vitória da vida contra a morte.

Em 1988 a Sra. Neuza, aproveitando as amizades criadas em vários eventos

que fomos, organizou um congresso ítalo-brasileiro em São José do Rio Preto. Da

Itália, vieram ao Brasil o Prof. Rino Vullo; o Dr. Masera, descobridor da cura da

leucemia, e o Dr. Giansanti, representante de uma organização italiana CRIC.

Mais de 150 pais participaram do congresso, que apresentou propostas de

melhorias para a cura dos talassêmicos. Os presentes também sugeriram que

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houvesse uma colaboração maior entre a Itália e o Brasil. Foi triste ver a recusa de

médicos para participar de reuniões com pais, mas a presença de especialistas

italianos convenceram os brasileiros a permanecer nos encontros. Foi um episódio

que comprovou, mais uma vez, a situação retrógrada da classe médica brasileira.

Nossa participação constante e ativa nos congressos nos levou a conhecer

uma ONG de Reggio Calabria, no sul da Itália. Tivemos dois encontros com a

diretoria da ONG, com a qual elaboramos um projeto de US$ 1 milhão para

melhorar o conhecimento da classe médica no Brasil. O governo italiano aprovou o

projeto e nos deu o dinheiro, que serviu para ajudar na pesquisa, contratar médicos

para estudarem a doença e para produzir material de divulgação sobre a talassemia.

Além disso, tínhamos a intenção de criar um laboratório de

hemoglobinopatia, que denominaríamos “Centro de Pesquisa para Anemias Rino

Vullo”. Antes não existia um laboratório apropriado para a pesquisa de anemias em

nenhum país da América Latina.

O Hospital Matarazzo, também conhecido como Humberto Primo, foi o

local escolhido para instalarmos o laboratório. Porém, não conseguimos o alvará. O

hospital estava em dívida com o estado e até hoje não tem destino certo. A negativa

foi um duríssimo golpe contra nosso desempenho.

Mesmo assim, não desistimos de apoiar a Federação Internacional dos

Talassêmicos. Estabelecemos bons contatos e continuamos a participar dos

congressos. Fomos para Sardegna, uma ilha italiana; para Nice, na França e também

para Nova York, em 1990.

Em Nice, tínhamos pouco dinheiro. Para economizarmos na hospedagem,

encontramos uma agradável solução. Quase na divisa da Itália com a França morava

um casal parente de um colega italiano e missionário no Brasil, Pe. Novaro. Pedi

ajuda a ele e aos parentes, que nos arrumaram acomodações e ofereceram até mesmo

o carro para irmos ao congresso todos os duas. Neuza, ótima motorista, era quem

dirigia o carro, mas na fronteira oferecia o meu passaporte aos policiais. É muito

bom ter amigos!

Em Nova York o desafio foi outro. Pedi hospedagem ao superior da nossa

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comunidade no Bronks, um bairro que, na época, era bastante perigoso. A senhoras

não gostaram do local, mas assim que chegamos o pároco nos disse para fazermos

um passeio pela região, para que todos soubessem que éramos seus hóspedes. Muito

desconfiados, visitamos as ruas no entrono da paróquia e o pároco me deu as chaves

da casa.

O congresso não apresentou muitas novidades e terminou em um

restaurante fora da cidade. Não foi fácil encontrar um táxi disposto a nos levar até o

Bronks. Cansados, chegamos à casa perto da meia noite, mas eu não encontrava as

chaves. Havia perdido o molho por culpa de um furo nas calças. As mulheres ficaram

apavoradas. As acalmei dizendo “Não estamos aqui para turismo, massa para uma

obra boa. Tenham fé em Deus e vamos rezar uma Ave Maria”.

Todos rezamos, com medo de um homem que se aproximava.

- O que vocês querem? – Ele perguntou

Expliquei o porquê de estarmos lá e o problema que estávamos tendo para

entrar na casa. Ele nos acalmou.

- Não tenham medo! Eu abro. – Pegou uma chave e entrou. Ele era o

tesoureiro da paróquia.

Ao longo dos anos seguintes, o bispo, conhecendo meu interesse na área da

saúde, me convidou a organizar a pastoral da saúde diocesana. Eu precisava

organizar tudo: encontrar voluntários, formar grupos e orientar o trabalho.

Não foi nada fácil, mas também não era um desafio impossível.

Depois que reuni a comissão diocesana, ocupamos uma sala da cúria para

realizarmos reuniões mensais, organizarmos atividades, retiros e cursos de

formação. Para facilitar o trabalho dos voluntários, também compilamos um livro,

“A Pastoral da Saúde na Diocese de Osasco”. Nele detalhamos as diferentes

dimensões da pastoral da saúde, a dimensão samaritana, a dimensão comunitária e a

dimensão político-sanitária. Chegamos até a enviar um representante da pastoral a

Lourdes, no dia mundial dos enfermos. Na época ninguém poderia imaginar que

uma viagem como essa poderia acontecer, mas foi um sucesso.

Mesmo com muito trabalho, não deixei de atuar ao lado de Neuza.

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Participamos da criação de algumas associações, entramos em contato com outras já

existentes e formamos um fórum de patologias do estado de São Paulo. Quando

apresentamos o projeto ao Secretário Estadual da Saúde, o Dr. Guedes, ele nos

concedeu uma sala para nossas reuniões mensais.

Com um grupo de senhoras compilamos um livrinho com todos os diretios

do doente. Ficamos surpresos quando soubemos que um deputado estadual

apresentou nossas propostas à Câmara e elas se tornaram lei.

Também enfrentamos outro problema. Muitas famílias do Norte do país,

quando descobriam que os filhos tinham alguma doença grave ou rara, como a

anemia falciforme, vinham a São Paulo em busca de tratamento. Aqui, entretanto,

não encontravam dinheiro ou apoio. Como poderíamos ajuda-las?

Um dia me deparei com um grande prédio abandonado na rua Guaicurus, no

bairro da Lapa. Descobri que o chamado “tendal” havia sido um depósito de carne

para a cidade. Localizado próximo de uma estação de trem, com fácil acesso a

ônibus e bastante espaço, achei que poderíamos criar ali um centro de acolhida para

as pessoas que vinham em busca de apoio.

O Secretário Municipal de Saúde daquela época, Eduardo Jorge, adorou a

proposta e me deu a planta do prédio para que realizássemos as devidas reformas.

Fui para a Itália em busca de dinheiro e, quando voltei, descobri que o prédio tinha

sido destinado como sede da subprefeitura da Lapa. Foi uma oportunidade perdida.

Em 1988 Neuza me convidou para participar da constituinte em Brasília. A

Comissão das Minorias visava a participação popular nas decisões que impactavam

diretamente na sociedade. Tivemos a possibilidade de participar da implantação dos

conselhos de saúde e criamos conselhos gestores para garantir a participação

democrática da população em políticas de saúde.

Um ano depois, tivemos de lidar com um problema que ainda hoje é

recorrente no Brasil. Uma epidemia de dengue se alastrava por todo o Brasil e as

medidas tomadas pareciam insuficientes. Quando questionamos as autoridades,

ouvimos que faltava dinheiro. Respondemos que não precisávamos de dinheiro, mas

de colaboração. A pastoral da saúde assumiria o tabalho, mas precisavam da

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orientação que somente os técnicos da secretaria poderiam dar.

Assumi pessoalmente a coordenação da campanha na zona norte de Osasco,

onde viviam cerca de 400 mil pessoas. Partimos ao ataque em um domingo nas 13

paróquias da região. Na minha paróquia, na Vila Jaguara, a pastoral me pediu um

tempo de fala após a leitura do evangelho. Em poucos minutos organizaram um

quarto com cama, um doente, vasos de flores e recipientes com água. Senhoras

vestidas com asas de pernilongo voavam de um objeto para outro, simulando que

tiravam a água depositada. Todos os fiéis aprenderam a lição.

No domingo seguinte, em todas as paróquias, as equipes da pastoral da

saúde vestiam camisetas decretando a “Campanha contra a dengue”. Eles visitaram

todas as casas, mostrando como o mosquito se multiplicava e convidando os

moradores a jogarem fora vasos e recipientes que poderiam acumular água parada.

Os jovens da comunidade iam ao encontro da equipe para oferecer água, café e

bebidas. Ao final do dia, a pastoral familiar preparou um almoço para todos os

envolvidos na campanha.

A campanha não custou nada ao governo, mas foi um exemplo da dimensão

comunitária da pastoral da saúde.

Termino o capítulo com a pergunta inicial. Entende por que disse que a

revolução da minha vida pastoral se deu por mérito de uma mulher, a Sra. Neuza

Cattassini? Sem ela, nunca teria saído do meu pequeno mundo.

Hospital Matarazzo,

sede da ABRASTA,

aonde foi construído

o laboratório de

hemoglobinopatias

para as talassemias,

com a verba do

Governo Italiano.

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Capítulo VIII

Uma tarefa imprevista: superior geral

Em 2000 a minha vida mudou de maneira imprevista e radical.

A família religiosa dos Cônegos Regulares Lateranenses realizou, em julho,

uma assembleia geral para eleger um novo superior geral.

Para uma congregação religiosa, um capítulo geral é um momento de suma

importância. Nele avaliamos a caminhada do último sexenio, projetamos os futuros

planos de ação e, por último, elegemos o novo superior para o sexenio seguinte.

Como conselheiro do Brasil, participei do capítulo. Foi um grande prazer

encontrar velhos e novos colegas, representantes dos países onde a congregação

atua: Itália, Espanha, França, Bélgica, Inglaterra, Polônia, EUA, República de Santo

Domingo, Porto Rico, República Central da África, Argentina e Brasil.

O capítulo aconteceu em Gubbio, uma cidade onde morei no início de

minha vida religiosa e da qual guardava ótimas lembranças.

Depois de uma apresentação geral sobre as novidades positivas e negativas,

que fazem parte da vida religiosa, chegou a hora de eleger o novo superior geral.

Assim como as eleições no Brasil, o eleito precisava alcançar 51% dos votos e,

depois, podia ser eleito com a maioria simples.

Foi nesse momento que levei um susto. Meu nome apareceu como

candidato. Pedi um tempo para refletir e decidir se deveria escolher o cargo e

renunciar às atividades no Brasil, que me deixavam muito satisfeito. Dei o meu

consentimento no dia seguinte, entregando tudo nas mãos de Deus.

Eleito, voltei ao Brasil para entregar minhas tarefas a outras pessoas. Não

foi fácil, sobretudo quanto ao trabalho no campo da saúde. Era difícil achar alguém

que tivesse a mesma experiência que eu.

No dia 28 de dezembro, na presença de dois bispos, dos confrades e de

muitos fiéis e amigos, recebi a bênção abacial e, finalmente, viajei para Roma.

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Todos já ouviram falar dos franciscanos, salesianos ou jesuítas, mas você

sabe quem são os Cônegos Regulares Lateranenses?

Hoje somos uma minoria de religiosos e sem atividades específicas, mas a

nossa família é a mais antiga, tendo surgido antes mesmo dos beneditinos do século

V e dos franciscanos, do século XII.

A congregação surgiu após as perseguições contra os cristãos na época do

Império Romano. A Igreja, que até então operava clandestinamente, começou a se

organizar.

Alguns bispos recolheram padres, que trabalhavam como podiam. A

maioria era casada, mas havia também homens solteiros, dedicados ao trabalho

missionário. Houve então bispos que convidaram esses sacerdotes para trabalharem

e viverem juntos, para facilitar a organização das ações.

Santo Eusébio, bispo de Vercelli, uma cidade localizada ao norte da Itália,

foi um dos primeiros a reunir os sacerdotes e outros bispos seguiram o exemplo. Um

deles foi Santo Agostinho que, quando eleito bispo, pediu a presença de padres a seu

lado, criando uma regra conhecida como a Regra de Santo Agostinho.

Em pouco tempo aumentou o número de padres em toda a Europa e também

na África. No século XII existiam cerca de 3 mil comunidades, algumas ligadas a

bispos, outras formando mosteiros autônomos.

A família canonical deu à Igreja 20 papas, dois quais 10 foram canonizados.

O trabalho dos cônegos e a criação de centros culturais filosóficos e

teológicos deram origem às célebres universidades de La Sorbonne, em Paris, e de

Oxford, na Inglaterra.

Pouco tempo atrás, festejamos os 800 anos da abadia de Carcóvia. Em 2015

comemoramos os 1.500 anos de abadia canonical de São Maurice, na Suíça.

Foi em meio a tanta história que fui projetado a Roma, na basílica de São

Pedro “in vincolis”, que significa “as correntes”. O nome se dá pois é na basílica que

estão as correntes do apóstolo São Pedro, que foi perseguido pelo imperador Nero.

A igreja também tem uma história extraordinária. Foi inauguraa em 438. As

colunas de sua fachada, em estilo dórico, foram doadas pelo imperador Valeriano a

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pedido de sua esposa, Eudossia. No interior, além das correntes de São Pedro,

encontra-se a estátua de Moisés, de Michelangelo. A escultura atrai milhares de

visitantes e admiradores.

A antiga moradia dos cônegos, no tempo da supressão das ordens religiosas

no século XVII, é sede da universidade de engenharia de Roma. Foi lá onde foi

realizada a primeira ligação elétrica, via fios de cobres, de Tivoli até Roma.

Para a sede central de nossa congregação foi reservado o lado esquerdo da

basílica. O prédio acolhe um rico acervo com 3 mil pergaminhos antigos, várias

coleções de livros, óperas, manuscritos preciosos e uma coleção de 200 cópias do

famoso livro 'Imitação de Cristo”, do confrade Tomaso da Kempis. O livro é fonte de

espiritualidade e foi traduzido em todas as línguas.

A basílica também abriga um dos mais antigos órgãos de Roma, datado do

século XVI. Pessoalmente, conversei com o cardeal de Washington para que

patrocinassem a reforma. O instrumento foi considerado pelos técnicos o mais

antigo e original de Roma.

Diante de tanta riqueza histórica, artística e cultural, me senti pequeno.

Porém, com boa vontade e com a graça de Deus, dei início ao meu mandato como

superior geral.

Por meio da nossa revista “Il Salvatore”, iniciei um contato com meu

confrades. Em seguida, visitei as comunidades da Itália e da Europa. Finalmente,

tomei coragem e visitei as comunidades na América do Norte, na América do Sul e

na África. Essas visitas me enriqueceram bastante. Percebi como tudo é relativo

nesse mundo. Vi como alguns costumes considerados ultrapassados na Europa

continuam vivos em outros países. Vi também expressões religiosas diferentes, que

podem nos escandalizar, mas que expressam a religiosidade de alguns povos.

Na República Centro-Africana, pude constatar algumas dessas enormes

diferenças. Lá não existem cidades, mas aldeias, sem ruas, sem luz e sem água. Nçao

existe uma organização social e os costumes são primitivos. Nem mesmo um

cemitério existia. Os mortos eram enterrados sem sinais de reconhecimento. As

Igrejas eram os únicos espaços nessas comunidades em que havia a manifestação de

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uma cultura própria, mas organizada. As mulheres vestiam hábitos variopintos. os

ajudantes se vestem bem e todos participam dos cantos. Testemunhei um mundo

diferente, mas muito bonito e com expressões profundas de fé.

Passei a admirar ainda mais nossos missionários, que se dedicam

inteiramente à construção de pequenos ambientes adibidos à escola. Nessas

comunidades não existem livros, ou cadernos. Os alunos levam pequenas lousas de

ardósia e escrevem com pedaços de gesso.

Com essas visitas, pude admirar o quanto os méritos da Igreja são grandes. A

instituição se preocupa em transmitir cultura, educação e valores cristãos a todo o

mundo.

As mulheres também fazem parte de nossa família religiosa. As Cônegas

Regulares Lateranenses são irmãs de vida contemplativa, dedicadas à uma vida de

oração. Hoje, há mosteiros na Itália, Espanha e nas Filipinas. Graças às orações

delas, enfrentei com confiança tantas dificuldades. O poder da oração é grande.

Outro compromisso que atendi com amor e fidelidade foi a participação em

assembleias trienais nos diferentes países.

Eram momentos importantes para a vida canonical. Não faltavam

problemas. Era especialmente difícil conciliar mentalidades antigas com a atual. A

sociedade mudou bastante, principalmente em países em desenvolvimento.

Na Argentina testemunhei um caso doloroso. Um padre de nossa

congregação foi acusado de pedofilia. Intervi imediatamente, como era meu dever,

suspendendo-o de suas funções e impondo um ano de retiro. Os jornais de Buenos

Aires relataram o caso e minha foto apareceu nas páginas dos jornais. O processo foi

severo e a investigação intensa e o padre foi absolvido. A acusação foi uma vingança

pelas duras decisões que o padre havia tomado contra funcionários de um colégio

que dirigia.

Mas minhas funções também promoveram momentos de alegrias, como as

reuniões semestrais com os superiores gerais de todas as famílias religiosas, que

terminavam com um encontro no Vaticano com o Papa.

Em um desses encontros eu estava usando um hábito de pano branco, igual

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ao do Papa Bento XVI, que me perguntou:

- Mas quem é você?

- Santidade, eu sou o rascunho – respondi.

Ele deu uma risada e me abençoou. O hábito branco era, antigamente, o mais

barato e não representava nenhum luxo. Custosos eram os tecidos coloridos, que

exigiam tinturas.

Meu mandato durou 12 anos. Em 2012 passei o bastão ao meu sucessor.

Bem ou mal, cumpri a minha missão.

Nosso estatuto permite que o ex-superior geral escolha onde quer morar.

Não poderia escolher outro lugar que não o Brasil, minha segunda pátria.

Visita ao papa São João Paulo II.

Encontro com o papa Bento XVI

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Capítulo IX

A volta para o Brasil

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Voltei para o Brasil em outubro de 2012.

Minha família não gostou da escolha. Mas não podia ser diferente. Com

mais de 30 anos de permanência, com tanto trabalho realizado, com tantos amigos,

não podia escolher outra sede, sobretudo por que me sentia ainda em pleno vigor

para retomar muitas antigas atividades pastorais.

Em janeiro de 2013, na assembleia provincial, fui eleito prior da casa na Vila

dos Remédios e formador dos seminaristas teólogos. Assumi os dois cargos com

coragem e dedicação. Sobretudo o de formador. Era meu desejo preparar os jovens

para que vivessem plenamente nossa dupla vocação: a vocação sacerdotal e a

vocação religiosa.

Reparei que a as exigências da vida religiosa haviam sido deixadas de lado

nos últimos anos.

Para viver uma vida comum não basta morar sob o mesmo teto e comer as

mesmas refeições enquanto cada um vive um projeto de vida pessoal. Isso acontece

em um hotel, onde as pessoas dormem no mesmo edifício, mas não têm nada em

comum uns com os outros.

Nós cônegos, que temos como carisma a vida comum, devemos dar mais

ênfase a esse aspecto da nossa vocação e, para isso, existe apenas um caminho:

colocar a nossa vida em comum, planejando e avaliando em comum o nosso

trabalho e executando-o segundo as funções determinadas em conjunto. Para isso, é

necessário realizar reuniões semanais e aprender a arte do diálogo, para que exista a

liberdade de não concordar, mas sem ofender quem discorda.

Pedi a dispensa da função de formador um ano depois. Me sentia muito

velho e distante das novas gerações.

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Cada dia mais vejo a dificuldade do diálogo entre as velhas gerações e as

novas, mas tenho a esperança de que os mais novos encontrem o caminho para viver

o nosso carisma.

Visitando velhos amigos do bairro encontrei de tudo. Alguns haviam

falecido, outros estavam em situação debilitada, outros haviam se mudado e muitos

outros continuavam a me receber com saúde.

O bairro também tinha mudado. Novos centros habitacionais surgiram, as

lojas da região melhoraram e passaram a oferecer produtos que só encontrávamos

em bairros centrais. Os padres tinham realizado o velho sonho da construção de uma

torre muito alta na igreja, visível de todos os lados. Também descobri a sede de um

canal de TV.

Infelizmente, também encontrei sinais de falso progresso. Acredito que

cada bairro deve ter um coração, um centro de convivência e de encontros

familiares. A Avenida dos Remédios sempre foi esse coração. Era ali que os

moradores se encontravam, plantavam árvores, passeavam e tomavam sorvete com

os amigos.

Quando voltei ao Brasil encontrei a calçada reduzida. O espaço foi

destinado ao estacionamento de carros.

A praça, que recepcionava os visitantes do bairro, também piorou. Grandes

seringueiras, que haviam sido plantadas por alguns dos primeiros moradores da

região, cresceram descontroladamente. Os galhos das árvores passaram a esconder

a fachada da igreja e as raízes destruíram o piso, o que dificulta a caminhada pela

calçada.

A mudança mais triste, entretanto, foi o fechamento da creche Padre

Guerrino.

O projeto havia sido feito por mim pessoalmente, com o dinheiro que trouxe

da Itália. Quando voltei, encontrei a creche fechada. Explicaram que uma lei

federal, que proíbe o município de realizar convênios fora da área municipal, era o

problema. De fato, quando o município de Osasco foi criado, a Av. dos Remédios foi

escolhida como divisória entre os dois municípios.

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A creche estava fechada, mas meus colegas pensavam em soluções.

Eu apresentei uma proposta: transformar a creche em um Centro

Assistencial.

Assim nasceu o Centro Assistencial Padre Guerrino, graças à boa vontade

de todos os confrades.

Não foi fácil adaptar os espaços. Convidamos um jovem fisioterapeuta, Dr.

Riccardo, a mudar para a nova sede. Também convidamos o Sr. Nil, dono de um

laboratório, a ocupar uma sala do centro. Os vicentinos, que tinham uma pequena

distribuição de remédios aos pobres, passaram a ocupar duas salas para armazenar e

distribuir os medicamentos que recebíamos de alguns benfeitores. Também

oferecemos um consultório à Dra. Mônica, dentista que passou a atender a

comunidade mais pobre a preços baixos. Por último, acolhemos também a entidade

“Instituto de Ação Comunitária”, que atua no campo habitacional em prol de

famílias sem teto.

Mais uma vez, a coragem, a união e o sacrifício de pessoas boas propiciou a

oferta de serviços imprescindíveis para famílias pobres da periferia.

Voltei ainda a acompanhar uma equipe de casais cristãos do movimento

“Equipes de Nossa Senhora (ENS)”, que resgata valores cristãos da família: a

fidelidade e a perseverança. Quando iniciei o movimento, em Alphavile, eram

apenas duas equipes. Hoje são mais de 20 equipes.

Em reuniões mensais, os casais estudam a família no mundo moderno. O

Papa Francisco convocou um grande encontro de cardeais e bispos para estudar os

problemas da família moderna. Cristãos foram convidados a preparar o encontro

mediante a resposta de um questionário sobre o tema. Juntos, refletimos sobre o

assunto e, no fim, tivemos uma bela surpresa. O casal responsável pelo movimento

em São Paulo foi convidado a participar do encontro em Roma. Esse é um sinal da

promoção de leigos na condução da Igreja.

Deus me concedeu a graça de uma vida variada, cheia de experiências e

repleta de pessoas dedicadas à causa do bem.

Sempre levanto a bandeira do otimismo. O mal faz muito barulho. O bem é

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mais silencioso. Mas não tenha dúvidas: existe muito bem no mundo. Para descobrir

boas ações, basta percorrer o mundo. Pais e mães, cultos e analfabetos, ricos e

pobres, todos estão motivados a fazer o bem.

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BRUNO GIULIANIAbade dos cônegos regulares lateranenses

Uma Vida... um romance:da Itália ao Brasil.