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1 AUTOANTROPOLOGIA DA IMAGEM COM POVOS INDÍGENAS DO UAÇÁ 1 Ana Manoela Primo dos Santos Soares Karipuna 2 (UFPA / Brasil) Os Karipuna do Amapá, povo indígena do qual a autora desta pesquisa é membro, habita nas Terras Indígenas Uaçá, Galibi e Juminã, no município de Oiapoque, estado do Amapá, região de fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. É sobre este povo que o presente trabalho se debruça, considerando imagens feitas pela autora entre os anos de 2016 e 2018, com a finalidade serem utilizadas em pesquisas de autoantropologia. O objetivo principal deste estudo é tecer uma análise sobre o viés da antropologia da imagem, analisando o modo como a cultura do povo Karipuna é retratada em fotos sobre o olhar de uma antropóloga indígena Karipuna. Os objetivos específicos apontam a descrever e interpretar o que é retratado, as escolha sobre a composição da foto, a relação entre quem fotografa e é fotografado, as demandas que a imagem proporciona e, de maneira secundária, a relação que a autora mantém com imagens fotográficas sobre os Palikur e Galibi-Marworno (povos indígenas do Oiapoque que mantém relações de interação intensa com os Karipuna) que lhes foram destinadas com fins antropológicos a partir de uma intermediação familiar. A metodologia está centrada na análise de textos sobre antropologia da imagem, autoantropologia e sobre os povos indígenas em questão, sobre a análise de imagens em formato de fotos e sobre as vivências que a autora possuí enquanto indígena Karipuna do Amapá. Palavras-chaves: Karipuna do Amapá, Antropologia da Imagem, Autoantropologia, Palikur, Galibi-Marworno. 1 Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA. 2 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do grupo de pesquisa “Dinâmicas socioculturais na Amazônia: identidades, territorialidades e relações interétnicas” do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). E-mail: [email protected]

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AUTOANTROPOLOGIA DA IMAGEM COM POVOS INDÍGENAS DO UAÇÁ1

Ana Manoela Primo dos Santos Soares Karipuna2 (UFPA / Brasil)

Os Karipuna do Amapá, povo indígena do qual a autora desta pesquisa é membro, habita

nas Terras Indígenas Uaçá, Galibi e Juminã, no município de Oiapoque, estado do Amapá,

região de fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. É sobre este povo que o presente

trabalho se debruça, considerando imagens feitas pela autora entre os anos de 2016 e

2018, com a finalidade serem utilizadas em pesquisas de autoantropologia. O objetivo

principal deste estudo é tecer uma análise sobre o viés da antropologia da imagem,

analisando o modo como a cultura do povo Karipuna é retratada em fotos sobre o olhar

de uma antropóloga indígena Karipuna. Os objetivos específicos apontam a descrever e

interpretar o que é retratado, as escolha sobre a composição da foto, a relação entre quem

fotografa e é fotografado, as demandas que a imagem proporciona e, de maneira

secundária, a relação que a autora mantém com imagens fotográficas sobre os Palikur e

Galibi-Marworno (povos indígenas do Oiapoque que mantém relações de interação

intensa com os Karipuna) que lhes foram destinadas com fins antropológicos a partir de

uma intermediação familiar. A metodologia está centrada na análise de textos sobre

antropologia da imagem, autoantropologia e sobre os povos indígenas em questão, sobre

a análise de imagens em formato de fotos e sobre as vivências que a autora possuí

enquanto indígena Karipuna do Amapá.

Palavras-chaves: Karipuna do Amapá, Antropologia da Imagem, Autoantropologia,

Palikur, Galibi-Marworno.

1Trabalho apresentado no III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 19 e 21

de setembro de 2018, Belém/PA. 2 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do grupo de pesquisa

“Dinâmicas socioculturais na Amazônia: identidades, territorialidades e relações interétnicas” do Museu Paraense

Emílio Goeldi (MPEG). E-mail: [email protected]

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AUTOANTROPOLOGIA DA IMAGEM COM POVOS INDÍGENAS DO UAÇÁ

INTRODUÇÃO:

POVOS INDÍGENAS DE OIAPOQUE: KARIPUNA, PALIKUR E GALIBI-

MARWORNO

A presente pesquisa tem por questão tecer uma análise sobre o viés da

antropologia da imagem do modo como a cultura do povo Karipuna do Amapá é retratada

em fotos sobre o olhar de uma antropóloga indígena Karipuna. Tendo-se como outras

pretensões as descrições e interpretações a respeito do que é retratado, as escolhas sobre

o que compõe a foto, a relação entre quem fotografa e é fotografado, as demandas que a

imagem proporciona e, de maneira secundária a relação que eu enquanto autora indígena

mantenho com imagens fotográficas sobre os Palikur e Galibi-Marworno que foram

destinadas a mim com fins antropológicos a partir de uma intermediação familiar. Porém,

antes de adentrar nas questões mais específicas que este trabalho aborda, é necessário que

se compreenda quem são os povos em questão.

Os Karipuna do Amapá (povo do qual sou proveniente), juntamente com os

Palikur e os Galibi-Marworno são os chamados povos indígenas de Oiapoque3. Nós, os

Karipuna, vivemos em vinte e uma aldeias localizadas nas Terras Indígenas Uaçá, Galibi

e Juminã. Nossa população está em torno dos 2900 membros4. E somos um povo falante

do português e do patois ou patoá ou créole ou kheuol5, nossa língua indígena, que se

encontra vinculada a família linguística creoulo. Os Palikur, povo vizinho a nós, é um

povo que possui sua população habitando parte na T.I. Uaçá e parte em bairros indígenas

3 Os povos indígenas do Oiapoque compreendem quatro grupos, os Karipuna do Amapá, os Palikur, os Galibi-

Marworno e os Galibi Kalinã, este último também conhecido como Galibi do Oiapoque. Entretanto, não me utilizo dos

Galibi Kalinã em tal pesquisa, por não dispor de imagens e por ainda não ter tido oportunidade de realizar pesquisas de

antropologia com eles. 4 Segundo dados presentes no site do Instituto Sócio Ambiental (ISA), que foram colhidos em 2014 pela Secretaria

Especial de Saúde Indígena (Sesai). Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Karipuna_do_Amap%C3%A1.

Acesso em: 26 de jul. de 2018. Ressaltando-se que todos os dados concernentes a quantidade de membros indígenas

com relação aos seus respectivos povos, presentes neste artigo, são provenientes de dados da Sesai do ano de 2014. 5 Seguindo a grafia para línguas indígenas no Brasil, para sua utilização nas escolas indígenas, passou a ser grafada

como kheuol (TASSINARI, 2015). Enquanto Machado (2017) diz que o “kheuol falado pelos Galibi-Marworno e o

patois ou patoá falado pelos Karipuna são a mesma língua, com pequenas diferenças fonéticas entre si, e são variações

do crioulo “negro” falado na Guiana Francesa”. O kheuol ou patois no catálogo da Europalia Índios no Brasil

(KARIPUNA, 2011/2012) é definido por Suzana Primo dos Santos Karipuna, como “un mélange de français et de

dialecte des familles indigènnes”, em português uma mistura de francês e dialetos das famílias indígenas da região de

Oiapoque.

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na Guiana Francesa. Os Palikur de acordo com dados da Sesai de 2014, possuem uma

população de cerca de 1700 membros6. Sendo um povo falante do parikwaki. Mas que se

utiliza também de maneira secundária do francês e do português (MACHADO, 2017). Os

Galibi-Marworno são um povo indígena que conta com cerca de 2500 membros7, habitam

as T.I. Uaçá e Juminã e são falantes da língua kheuol (o mesmo patois), porém utilizando-

se também do português.

O UAÇÁ E OS KARIPUNA DO AMAPÁ SOBRE O OLHAR DE UMA

ANTROPÓLOGA INDÍGENA KARIPUNA

Utilizo-me dos termos autoantropologia e autoetnográfia, ao invés de

antropologia e etnográfia, pelo fato de a autoantropologia e/ou autoetnográfia ser aquilo

que ocorre quando o antropólogo volta o foco das suas pesquisas para a sua cultura de

origem (STRATHERN, 2015), sendo este o caso em questão. E no que diz respeito ao

fazer antropológico ou autoantropológico é relevante esclarecer que passei a me interessar

pela antropologia no ano de 2014 (mesmo ano em que ingressei no Curso de Ciências

Sociais da Universidade Federal do Pará) estabelecendo-me de maneira mais intensa pela

mesma, especialmente na área da etnologia indígena, em 2016, quando através de duas

bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) em antropologia passei a realizar pesquisas

com meu povo de origem intermediadas pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG).

Durante o tempo em que fui bolsista no MPEG, meus trabalhos foram todos voltados para

o que concerne aos estudos de gênero na etnologia indígena, e desenvolvi sínteses

autoetnográficas sobre o modo de vida e a cosmologia das mulheres Karipuna do Amapá.

Portanto, as imagens que realizei entre os anos de 2016 e 2018 possuíam sobretudo como

finalidade demonstrar quem somos nós, as mulheres Karipuna (fam Karipuna), no

cotidiano das aldeias. E minha intenção para com as imagens não foram a de que as

mesmas servissem como meras ilustrações de textos acadêmicos, mas sim que elas

narrassem por si mesmas quem nós somos e que principalmente servissem como forma

de perpetuação de nossa história, de nossas vivências materiais e imateriais.

6 Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) correspondente ao ano de 2014. Fonte:

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Palikur Acesso em: 18 de ago. de 2018. 7 Dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) correspondente ao ano de 2014. Fonte:

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Galibi_Marworno Acesso em: 18 de ago. de 2018.

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As fotografias que realizei (2016 – 2018) demonstram as mulheres de meu povo

em momentos de sua infância, vida adulta e velhice. Nelas podemos observar as tx ifam

(meninas) Karipuna em momentos de lazer ou em atividades como a fabricação da farinha

de mandioca e o trato com o pescado (visto que a farinha e o peixe são a base da dieta

alimentar dos povos indígenas de Oiapoque). Observamos as mulheres solteiras (jonfi ou

johmun8), as mulheres casadas (fam9) e as mulheres idosas (vie ou ãji10) em momentos do

cotidiano, assim como há outras fotografias de ilustrações realizadas por mim e outras

indígenas. Todavia, estas imagens para mim, também são como representações de uma

vida que não tive a possibilidade de viver (Castorino e Seluchinesk (2014) concebem a

fotografia como uma possibilidade de se vivenciar a percepção). Pois, apesar de ser

indígena Karipuna do Amapá, e de estar vinculada a aldeia de Santa Isabel por uma

questão de descendência matrilinear11, assim como também pelo fato de esta mesma

aldeia ter sido fundada por meu avô, o cacique Manoel Primo dos Santos Karipuna ou

cacique Côco como era mais conhecido, e por sua primeira esposa, a indígena Delfina

Batista, eu não nasci nem fui criada na aldeia, mas sim na cidade de Belém, no estado do

Pará, e isto ocorreu pelo fato de minha mãe ter decidido residir fixamente em Belém em

decorrência de uma graduação que realizou em Ciências Sociais pela Universidade

Federal do Pará (UFPA) e de ofertas de trabalho como funcionária pública na Funai

(Fundação Nacional do índio) e posteriormente no Museu Goeldi, assim como pelo fato

de meu pai não ser indígena e desejar viver na cidade ao invés da aldeia. Contudo, apesar

de estar na cidade, ainda sou considerada como Karipuna por inúmeros fatores que em

síntese se debruçam sobre questões de parentesco e de manifestação e perpetuação da

cultura de meu povo. Logo, as imagens que realizei possuem uma relação extremamente

próxima com quem sou, a uma forte relação de sensibilidade entre mim e elas. E mais do

que imagens sobre os Karipuna do Amapá, elas são imagens do cotidiano de uma imensa

família, da qual faço parte. O que converge para aspectos teóricos de Joanne Rappaport

(2007), que enfatiza a importância da presença do próprio indígena na antropologia no

que diz respeito a tratar dos aspetos de suas próprias vivências, de sua própria cultura. E

8 Jonfi é uma palavra em patois / kheuol que significa moça, enquanto johmun é uma palavra que significa jovem e que

não faz distinção de gênero. 9 A palavra fam em patois / kheuol serve tanto para designar mulher em seu sentido mais abrangente que remete ao

sexo e ao gênero, quanto a categoria mais restrita de mulher casada, de esposa. 10 Vie e ãji são palavras em patois / kheuol que significam idosa ou idoso, e que não fazem distinção de sexo e gênero. 11 Nós, os Karipuna do Amapá, obedecemos tanto a descendência matrilinear quanto a patrilinear, e isto se aplica a

múltiplos casos. Em síntese, quando se nasce basta que a pessoa possua a mãe ou o pai Karipuna para que também seja

considerado como tal, o que converge para a nossa auto identificação como um povo misturado. No entanto, para que

a identidade se firme ao longo da vida é necessário que se observem outras questões.

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de Claudia López Garcés e Suzana Karipuna que inspiradas em ideias de Orlando Fals

Borda (FALS BORDA, apud LÓPEZ GARCÉS, KARIPUNA, 2017) tomam os

pensamentos e os sentimentos como campos indissociáveis12. E sentimentos e

pensamentos se unem de modo bastante singular no caso do autoantrópologo. E de acordo

com Castorino e Seluchinesk (2014) a fotografia possui um entendimento pessoal e

emotivo a partir de quem a produz e também de quem a observa.

Tocantins (2016) ao tratar da representação da imagem do indígena realizada

pelos próprios indígenas (autorrepresentação de acordo com Carvalho (2016)) diz que

estes tratam do modo como esta imagem se constrói a partir dos enunciados imagéticos

de uma nova memória para suas identidades. Pois, os indígenas consideram esta

linguagem (a imagem em si) também como portadora de discursos, e este trabalha esta

ideia a partir do conceito de intericonidade de Jean Jacques Courtine (COURTINE, apud

TOCATINS, 2016). Complementando que:

A intericonicidade supõe, portanto, dar um tratamento discursivo às imagens,

supõe considerar as relações entre imagens que produzem os sentidos...

(TOCANTINS, 2018).

Contudo, Tocantins (2016) está principalmente a tratar de questões díspares das

que objetivo para a presente discussão, a intericonidade em seu discurso está a recair

sobre a representação do corpo indígena na arte (especificamente a pintura e a gravura) e

como esta mesma arte, que é de matriz europeia e do período colonial, deturpa a

verdadeira identidade e imagem do indígena. Todavia, suas reflexões muito contribuem

para a questão que é abordada, pois, elas endossam o caráter da imagem como um meio

portador de fala, assim, como o fato de que a imagem realizada pelo indígena é a

representação mais fiel de sua identidade enquanto tal, e que ela é a perpetuação desta

identidade, mas também é a deslegitimação de uma imagem colonialista construída pelos

não indígenas e que ainda resiste através de mecanismos sustentados pela “colonialidade

do poder”13 (QUIJANO, 2005). Quando o indígena trata do próprio indígena, sobre um

viés imagético, ele está a tratar do “índio real”. E a imagem do “índio real” é evidenciada

12 De acordo com López Garcés e Karipuna (FALS BORDA, apud LÓPEZ GARCÉS, KARIPUNA, 2017) a junção

dos pensamentos e dos sentimentos é o que Fals Borda (2009) conceitua de “sentipensamentos”. 13 A colonialidade do poder é a forma de padrão global dominante, que classifica o que é advindo de matriz europeia

(eurocentrismo) como mais ou unicamente relevante perante os saberes de outras culturas e locais (QUIJANO, 2015).

Estando Cheik Anta Diop (DIOP, apud GUERREIRO RAMOS, 1996) a criticar o eurocentrismo, chamando-o de

“falsificação da história”, enquanto Aimé Césaire o chama de “hipocrisia da civilização ocidental” (CÉSAIRE, apud

GUERREIRO RAMOS, 1996).

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por Alcida Rita Ramos (1988) em contraposição a imagens ilusórias do “índio-martir”,

do “índio-modelo” ou do “índio genérico” de Darcy Ribeiro (RIBEIRO, apud RAMOS,

1988), imagens estás que convergem para a imagem de um “índio hiper-real” que nada

mais do que um aglomerado de estereótipos que se criam a partir das concepções dos não

indígenas para com relação aos indígenas. E em suas palavras Ramos (1988) diz que o

“índio hiper-real” não é nada mais que um simulacro do indígena concreto, que é o “índio

real”:

A formação que recebemos da antropologia inclui em sua bagagem um

princípio básico que pode ser o antídoto do vírus do simulacro: é o princípio

da suspeita, da desconfiança em relação a verdades fixas. O questionamento

que fazemos como rotina de trabalho nos vacina, ao menos em parte, contra

esse vírus. Por outro lado, nossa profissão – refiro-me aqui especificamente

aos etnólogos – nos leva constantemente ao convívio com o “índio real”, o

índio concreto, com suas grandezas e misérias, complexidades e ambiguidades,

mas nunca vazio, nunca modelo de nada, ectoplasma de nossa imaginação...

Nossa lealdade, em última instância, é com os próprios índios, os índios do dia

a dia, das virtudes e dos vícios, e também com os princípios da antropologia,

em particular, com o respeito à alteridade concreta (RAMOS, 1988).

O etnólogo indígena muito contribui para a legitimação da real imagem dos povos

indígenas, e sua importância para com relação a isto é incontestável, entretanto, ele é

apenas um interlocutor das identidades que as reais imagens expressam. E ninguém está

em melhor posição, do que o próprio indígena, para realizar e exprimir o mais profundo

sentido de tais questões de identidade e imagem. E de acordo com depoimento de Sandro

Bororo e Ivanete Apiaká em artigo de Castorino e Seluchinesk sobre os usos da imagem

em atividades do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Estadual

do Mato Grosso – UNEMAT (CASTORINO, SELUCHINESK, 2014): Os processos não

precisam ser individuais, nem com tempo cronometrado... a imagem demanda pensar e

questionar para além dela mesma, com o objetivo de se buscar seus sentidos e

significados.

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Figura 1: Tx ifam Karipuna do Amapá. Meninas Karipuna do Amapá na aldeia Espírito Santo. Foto: Ana Manoela dos

Santos Karipuna. Janeiro de 2017.

Figura 2: Tx ifam Karipuna do Amapá descamando peixe na aldeia Karipuna de Santa Isabel. Foto: Ana Manoela dos

Santos Karipuna. Janeiro de 2017.

Figura 3: Tx ifam Karipuna do Amapá auxiliando a família no preparo da farinha de mandioca, aldeia Karipuna de

Santa Isabel. Foto: Ana Manoela dos Santos Karipuna. Janeiro de 2017.

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Figura 4: Jonfi Karipuna do Amapá tomndo banho em campo alagado pelo Rio Curipi na aldeia de Santa Isabel. Foto:

Ana Manoela dos Santos Karipuna. Janeiro de 2017.

Figura 5: Fam dando de comer as crianças (tx imun) na aldeia de Santa Isabel. Foto: Ana Manoela dos Santos Karipuna.

Abril de 2018.

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Figura 6: Dona Xandoca Karipuna, aldeia de Santa Isabel. Foto: Ana Manoela dos Santos Karipuna. Janeiro de 2017.

Figura 8: Antigo traje de verés14 que era utilizado por volta das

décadas de 1950 e 1960, desenhado por Suzana dos Santos

Karipuna (minha mãe). Foto: Ana Manoela Karipuna.

Dezembro de 2016.

14 Antigamente era de costume que as mulheres Karipuna vestissem um conjunto de saia e blusa chamado conjunto de

“verés”, em que a blusa era chamada “verés” e a saia era chamada “sayá”. Em minhas pesquisas conosco (Karipuna do

Amapá) não obtive a informação de em que período tais vestimentas começaram a ser utilizadas, no entanto, sabe-se

que foram usadas pelas últimas vezes entre as décadas de 1950 e 1960, sendo este um traje típico das mulheres indígenas

de Oiapoque, portanto, era usado por nós Karipuna do Amapá, pelas Palikur e pelas Galibi-Marworno. Compunham

este conjunto uma blusa muito larga, de manga comprida, cheia de pregas, que era usada com uma saia igualmente

larga. O tecido utilizado para a confecção deste traje era chita estampada. Ela era usada somente em momentos de festa

ou em outros de grande relevância e era comum, após o festejo, as mulheres usarem apenas as saias com a parte do

corpo da cintura para cima desnuda. Não se usava qualquer colar com este traje, os colares deviam ser vermelhos, azuis

marinhos ou brancos, eram colares compridos de miçanga e que enchiam o pescoço. Segundo Suzana Karipuna há uma

destas saias (sayá) oriundas dos Galibi-Marworno na Reserva Técnica Coleção Etnográfica Curt Nimuendajú no

campus de pesquisa do Museu Paraense Emílio Goeldi , local onde trabalha desde 1987. Havendo outros trajes tipicos

dos Galibi-Marworno e Galibi Kalinã em tal acervo.Ressaltando-se que não há um consenso sobre como se escreve a

palavras “verés”, portanto, a escrevo tal como a ouço.

Figura 7: Antigo traje de verés que era utilizada por

volta das décadas de 1950 e 1960, desenhado por

Estela dos Santos Karipuna (minha tia). Foto: Ana

Manoela Karipuna. Dezembro de 2016.

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10

RELAÇÕES COM AS IMAGENS

As pesquisas que realizei na posição de autoantropóloga se concentraram em

grande parte em momentos vividos nas aldeias Karipuna Santa Isabel e Espírito Santo,

que se localizam na T.I. Uaçá. Entretanto, apesar de ser Karipuna, mas devido ao fato de

ter crescido distante das aldeias de meu povo por motivos já expostos, eu ainda não

conhecia muitos dos outros membros Karipuna do Amapá. E até então (com a idade de

vinte e um anos) minhas relações (devido a distância) eram mantidas sobretudo com

alguns parentes mais próximos, tais como com algumas irmãs e irmãos de minha mãe,

assim como com alguns de seus filhos e filhas e alguns de seus netos, porém, não se

estendendo a outras pessoas do grupo Karipuna. Sendo importante assinalar que

anteriormente ao ano de 2017, eu só havia estado em uma aldeia de meu povo aos cinco

anos de idade:

Aos cinco anos eu estive durante um mês na cidade de Oiapoque com minha

família, município onde se localiza a Terra Indígena Uaçá, e lembro de um dia

termos ido à aldeia Manga, mas também lembro de tudo ter acontecido muito

rápido, ficamos cerca de uma hora lá, pois já estava prestes à anoitecer e

tínhamos ido apenas porque alguém de minha família iria dormir lá. E a única

coisa que consigo lembrar além do fato de termos ficado pouco tempo, foi a

imagem de um imenso rio ao pôr do sol, onde flutuava uma canoa com dois

meninos. Após isto só retornei à aldeia dezessete anos depois (Manuscrito.

Acervo pessoal, agosto de 2017).

Retornando as mesmas apenas em janeiro de 2017 com a idade de vinte e dois anos e

posteriormente com a idade de vinte e três durante os meses de março e abril de 2018.

Portanto, articular contato com outras pessoas Karipuna, depois de tanto tempo, assim

como realizar fotografias com as mesmas era algo que me deixava e que ainda me deixa

extremamente tímida. Porém, a não realização de imagens não é uma opção viável nos

atuais tempos para com a antropologia, sobretudo em uma época em que realizar uma

fotografia assim como difundi-la é algo concernente a realização de atos simples e

extremamente rápidos. Portanto, muitas das pessoas que aparecem nas fotografias feitas

por mim, não são pessoas com quem mantenho um grau de proximidade, elas já me viram

e eu já as vi nas aldeias. Mas a distância entre as aldeias e o local onde atualmente resido

(Belém – PA) se tornar um problema para mim, principalmente no que concerne a uma

comunicação mais assídua com outros membros Karipuna do Amapá.

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11

Porém, apesar de as imagens em um primeiro momento terem sido realizadas

com um fim antropológico, ou melhor autoantropológico, e como já mencionado ser

intrínseco a elas o fato de que as mesmas carregam um considerável teor de carga

emocional, não posso ignorar o fato de que essa carga emocional não é uma exclusividade

minha, pois, se para mim elas são em parte a representação do que não vivi, mas que ainda

assim compõem minha identidade enquanto Karipuna, para as pessoas que estão nas

fotografias estas são a representam concreta de momentos vividos, momentos felizes e de

dor, (visto que a última vez em que estive em Santa Isabel para realizar pesquisas para

minha última bolsa de Iniciação Científica coincidiu com o período de falecimento da

senhora Karipuna, Alexandrina dos Santos, a Dona Xandoca, matriarca da aldeia Santa

Isabel, importante liderança Karipuna e viúva de meu avô (o cacique Côco), e este foi um

momento doloroso para todos os povos indígenas de Oiapoque).

Figura 9: Cortejo fúnebre no velório de Dona Xandoca, aldeia de Isabel. Foto: Ana Manoela Karipuna. Março de 2018.

Partindo-se, portando, para o aspecto da devolução das imagens. Como uma

forma de trazer algum retorno material das pesquisas que venho desenvolvendo com meu

povo de origem, trouxe na viagem que realizei entre março e abril de 2018 algumas

fotografias reveladas que havia realizado em meu primeiro PIBIC (2016-2017). A ideia

de devolver as fotografias reveladas as pessoas que estavam nas mesmas foi algo que me

surgiu as vésperas de viajar para o Amapá, e foi uma sugestão dada por uma professora,

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12

a todos os antropólogos e estudantes de antropologia presentes em uma palestra sobre

antropologia visual que assisti nas dependências do Museu Paraense Emílio Goeldi. A

professora explicava o quanto uma fotografia física pode ser algo significativo para quem

a recebe, mesmo que estejamos vivendo em tempos em que as fotos são sobretudo

colocadas em acervos digitais. Eu sabia que deveria devolver as fotografias, que deveria

envia-las para meus parentes Karipuna, e que fazer isto por aplicativos tais como

Whatsapp e Messenger seria algo mais fácil, cômodo e sem custos de ordem financeira.

Porém nas aldeias Karipuna não há acesso à internet (excetuando-se a aldeia Manga), e

eu concordei com a posição da palestrante de que as fotos físicas seriam algo mais

significativo. E no final eu mesma fiquei imensamente feliz com o processo que foi tira-

las e depois vê-las impressas em papel fotográfico e não apenas através de um mecanismo

digital. Mas, infelizmente devido ao fato de eu apenas ter tido a sugestão de fazer isto as

vésperas da viagem, não pude revelar muitas fotografias. E no total foram vinte fotos

reveladas de uma média de quase quinhentas tiradas em janeiro de 2017, e dei preferência

a fotos com pessoas ao invés de fotos de paisagem, que também foram muitas. Entreguei

as fotos a senhora Glória Karipuna, que é minha tia (filha de Dona Xandoca e meu avô

Côco), ela as mostrou a algumas pessoas e se responsabilizou pela entrega das mesmas,

visto que não pude entrega-las pessoalmente, pois, como já referenciado esta viagem

terminou por coincidir com o falecimento de Dona Xandoca Karipuna, e neste período os

rituais funerários tomaram conta da aldeia (Santa Isabel). Todavia, pude atestar através

do que vivenciei lá a partir desta entrega à Glória, o quanto esta metodologia de retorno

é algo agradável, visto que ela mostrava emocionada as fotos para algumas pessoas que

estavam em sua casa no momento em que eu as entreguei, e percebia que estas pessoas

também pareciam gostar das fotografias. E alguns meses mais tarde, em agosto de 2018,

tive notícias por meio de um grupo da aldeia Santa Isabel em um aplicativo de mensagens

de que as fotos que havia tirado de Dona Xandoca em janeiro de 2017 tinham sido muito

apreciadas por todos. Presentear com fotos, sem dúvida é uma maneira feliz de estabelecer

relações e trocar ideias (SOARES KARIPUNA, LÓPEZ GARCÉS, KARIPUNA, 2018).

Contudo, o caso é que o antropólogo, e mesmo o autoantropológo, não pode reter

as imagens somente para si. Elas são em parte suas, por eles as ter realizado, mas são

igualmente ou o são ainda mais e em alguns casos são integralmente de quem elas

retratam, por conta disto a importância da devolução das imagens. E o motivo pelo qual

elas devem ser devolvidas varia de acordo com o contexto em que são realizadas. Por

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13

exemplo, para os Mebêngôkre-Kayapó a fotografia não captura sua imagem corporal, mas

a imagem da sua alma, enquanto para nós Karipuna elas capturam o nosso corpo e

imortalizam nossas vivências, portanto, para nós a devolução corresponde a uma questão

ética e de respeito, visto que a última vez que estive no Uaçá, pude presenciar o momento

em que uma indígena Karipuna lamentou o fato de outro indígena de um outro povo de

Oiapoque ter etnografado uma festa e não ter devolvido as imagens. Ressaltando-se a

necessidade que há de guardar para si as imagens de seus rituais, de suas festas e do

cotidiano (CABRAL, 2016).

IMAGENS PALIKUR E GALIBI-MARWORNO

Como indígena e autoantropóloga, as imagens de minha autoria são somente

sobre nós, (Karipuna do Amapá), e sobre paisagens do Uaçá e desenhos Karipuna.

Entretanto, meu pai, o senhor Francisco Xavier Soares, que não é indígena, realizou

viagens ao Oiapoque – AP e a Guiana Francesa na década de 1990, e em 1992 realizou

imagens com os Palikur (do Brasil e do Departamento Ultramarino15) e com os Galibi-

Marworno. Estas imagens ficaram por anos guardadas em um álbum que não se costuma

folhear, e elas foram realizadas por uma questão turística, de se guardar recordações de

momentos de uma viagem. Entretanto, quando as mesmas foram cedidas a mim, elas

tomaram uma nova finalidade, uma finalidade antropológica16, o que demonstra, portanto,

que imagens sofrem ressignificações a partir do contexto no qual se inserem, o que pode

se relacionar ao que Guerreiro Ramos (1996) diz sobre a perspectiva na redução

sociológica e ao que Simmel (2006) diz sobre a distância e a imagem:

A perspectiva em que estão os objetos em parte os constitui. Portanto, se

transferidos para outra perspectiva, deixam de ser exatamente o que eram... O

sentido de um objeto jamais se dá desligado de um contexto determinado

(GUERREIRO RAMOS, 1996).

Quando vemos um objeto tridimensional que esteja a dois, cinco, dez metros

distante, temos uma imagem diferente a cada vez, e, a cada vez, uma imagem

que estará “correta” a seu modo e somente nesse modo... (SIMMEL, 2006).

15 Guiana Francesa. 16 As imagens sobre os Palikur e os Galibi-Marworno são de contexto antropológico ao invés de autoantropológico

pelo fato de não ser membro de tais povos.

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14

Ou seja, perspectivas e distâncias configuram diferenças situacionais, diversificam os

contextos. E cada contexto a partir do qual a imagem se inseri possui as suas

características e as suas subjetivas que são inerentes a quem as realizou e a quem e ao que

elas retratam, portanto, as imagens e seus contextos carregam significado e história.

Figura 10: Pastor Palikur Paulo Orlando e pastor Raimundo Damasceno em frente à igreja Assembleia de Deus no dia

de sua reinauguração, aldeia Kumenê. Terra Indígena Uaçá. Foto: Francisco Xavier Soares. Acervo pessoal. 1992.

Figura 11: Mulheres Palikur no rio Urukauá, aldeia Kumenê, Terra Indígena Uaçá. Foto: Francisco Xavier Soares.

Acervo pessoal. 1992.

Figura 12: Mulheres Galibi-Marworno, cidade de Oiapoque - AP. Foto: Francisco Xavier Soares. Acervo pessoal.

1992.

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15

As imagens com os Palikur e os Galibi-Marworno, demonstradas nesta pesquisa

nunca foram vistas, pelos membros destes povos, uma vez que meu pai não retornou mais

ao Oiapoque e a Guiana Francesa. Todavia, possuo como pretensão restituir de alguma

forma tais imagens a seus povos de origem, o mais breve possível que isto possa ocorrer.

As fotos dos Palikur representam momentos dos mesmos no cotidiano das

aldeias, nelas as crianças estão a brincar; as mulheres estão no rio, estão a cuidar das

crianças e a cozinhar; é possível verificar a confecção da cestaria; famílias são retratas;

assim como é possível observa-los a conversar e em suas interações na igreja, uma vez

que os Palikur do Brasil são pentecostais da Assembleia de Deus. Já as imagens sobre os

Galibi-Marworno são poucas e se concentram somente sobre momentos deles na

residência do dentista Luís Amanajás, que os atendia em Oiapoque17.

Figura 13: Encontro dos Palikur do Brasil com os Palikur da Guiana Francesa. Foto: Francisco Xavier Soares. Acervo

pessoal. 1992.

17 Refiro-me a todas as fotografias realizadas por Francisco no contexto dos povos indígenas de Oiapoque e Guiana

Francesa em 1992, as que estão no então artigo e também as que não puderam estar.

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16

Figura 14: Família Palikur em sua residência na Guiana Francesa. Casal Suzana e Felisberto e seus filhos. Foto:

Francisco Xavier Soares. Acervo pessoal. 1992.

Figura 15: Indígenas Galibi-Marworno na casa de Luís Amanajás na cidade de Oiapoque. Foto: Francisco Xavier

Soares. Acervo pessoal. 1992.

Meu pai morou por um ano com o pastor Raimundo Damasceno em Oiapoque,

pastor que atuava entre os Palikur, e logo após se tornou vizinho do mesmo, além de ter

uma grande amizade com o senhor Luís Amanajás. E ao estar em suas residências passou

a interagir com os indígenas de Oiapoque. E a partir de tais interações passou a visitar

algumas aldeias, nunca esteve nos Galibi-Marworno, porém esteve uma vez nos

Karipuna, nos Galibi Kalinã e no Kumenê com os Palikur do Brasil e diversas vezes com

os Palikur da Guiana Francesa. Sendo as relações de meu pai para com os indígenas uma

relação de amizade. E em meio a este contexto as fotografias expostas neste artigo foram

realizadas, assim como tantas outras que não constam aqui também o foram.

As fotos dos Galibi-Marworno demonstram as pessoas deste povo em momentos

de refeição na casa do dentista Luís, e a única foto que não é de um destes momentos de

refeição é a imagem 1518 que demonstra a maneira típica que os povos indígenas de

Oiapoque costumavam sentar, as mulheres sempre muito eretas com as pernas esticadas

18 Ao todo são quatro fotos com os Galibi-Marworno, as outras duas fotografias que não constam no presente artigo

demonstram mulheres e homens Palikur a jantar.

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17

e o tecido das saias presos entre as pernas, enquanto os homens sentavam igualmente

eretos, porém de pernas trançadas, e este era um costume da época em que não haviam

móveis tais como cadeiras e sofás nas aldeias, e os indígenas ou tinham de se sentar no

chão ou em esteiras sobre o mesmo, e estas mesmas esteiras também eram utilizadas como

camas.

As imagens sobre os Palikur são mais diversificadas, e a imagem 10 demonstra

o pastor Damasceno com Paulo Orlando (pastor Palikur que por longos viveu na casa de

meus avós maternos e estudou na escola da aldeia Santa Isabel), juntamente com outros

membros do povo. Segundo informações de Francisco, esta fotografia foi realizada no dia

da reinauguração da igreja Assembleia de Deus que a no Kumenê, em tal ocasião houve

uma grande festa e Paulo Orlando chegou mesmo a mandar sacrificar um boi para a

ocasião. Visto que os povos de Oiapoque, quando nas aldeias, geralmente consomem

carne de gado somente em momentos especiais (rituais e outros festejos), se alimentando

mais comumente de peixes, carne de jacaré e quelônios.

Enquanto a imagem 11 mostra as mulheres Palikur em canoas a beira do Urukauá

em suas típicas saias e camisetas de mangas compridas que são utilizadas somente no

Brasil. Visto que de acordo com Machado (2017):

O vestuário feminino na aldeia (Kumenê) segue estritamente os padrões

direcionados pela igreja evangélica, portanto, a parte de baixo é sempre saia

comprida, que se estende abaixo dos joelhos. A blusa, nunca de alcinhas

(MACHADO, 2017).

O que demonstra um padrão de vestuário semelhante ao já anteriormente mencionado

conjunto de verés (nota de rodapé 14), porém bastante diferente do modo como as Palikur

da Guiana Francesa, as Karipuna e as Galibi-Marworno atualmente costumam se vestir.

A imagem 13, de acordo com Francisco, representa o encontro dos Palikur do

Brasil com os Palikur da Guiana Francesa, quando os primeiros chegam ao Departamento

Ultramarino. Segundo o autor da imagem, nesta época era costume os Palikur da Guiana

Francesa virem saudar os do Brasil quando os barcos se aproximavam do porto. Todavia,

observo que dos Palikur do território francês apenas crianças aparecem na imagem, o que

me remete as palavras de Carvalho (2014) que diz que a criança indígena é sujeito ativo

na sociedade em que se insere e que elas são sempre as primeiras que recebem os

visitantes nas aldeias. E em contextos como antropóloga, lembro-me de um trabalho de

campo em um acampamento do MST (Movimento dos Sem Terra), em que de maneira

não proposital as crianças foram as primeiras que nos receberam e terminaram se tornando

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18

um dos agentes principais da pesquisa, e esta característica da criança é algo muito

ressaltado por Carvalho (2014) em seus estudos com as crianças Kaingang.

Já a imagem 14 representa um casal Palikur da Guiana Francesa com seus filhos

em sua residência, Francisco costumava frequentar sua casa. E na última vez que estive

na aldeia Santa Isabel tive a oportunidade de conhecer a mulher representada na foto,

Dona Suzana, juntamente com um dos meninos da imagem, que hoje já é um homem

adulto, também conheci sua esposa e filha, um bebê que recebeu o mesmo nome da avó

(Suzana). Visto que observo que entre nós, os Karipuna, é um costume se dar o nome de

algum parente já falecido ou idoso ao bebê que nasceu (todavia, isto não é uma regra),

portanto, imagino que algo semelhante também deva ocorrer entre os outros povos

indígenas de Oiapoque e entre os Palikur do lado francês, o que ocasiona a existência de

nomes tradicionais. Porém, retornando-se a questão deste encontro, Suzana, seu filho, sua

nora e sua neta, estavam em Santa Isabel em decorrência dos ritos funerários pela morte

de Dona Xandoca. Eles haviam vindo da Guiana Francesa apenas para isso, e apesar do

momento de dor, foi interessante conhecer as pessoas que eu sempre via nas fotografias

em casa, mas que jamais havia visto pessoalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não houve neste artigo como descrever toda a riqueza de detalhes presentes nas

imagens demonstradas na pesquisa, muito menos como relatar de maneira mais profunda

as histórias que carregam tais fotos, as histórias que levaram as mesmas a serem realizadas

ou as histórias daqueles, daquelas e daquilo que elas retratam. Todavia, as encaro como

uma etnografia visual sobre os aspectos do modo de viver dos povos indígenas de

Oiapoque. Elas são etnografias de dois períodos distintos19 (1992 e 2016 a 2018),

realizadas em contextos diferentes e sobre o olhar de duas pessoas de origem díspares

(origem indígena e origem não indígena), mas que também são duas pessoas que se

relacionam de modo muito particular (parentesco). E desta forma entre semelhanças e

diferenças todas as imagens se entrelaçaram para um mesmo fim. E como assinala Cabral

(2016) há a presença do tempo na imagem, mas particularmente também ressaltou que há

19 As fotografias realizadas por Francisco, quando dadas a mim passaram a constituir um contexto etnográfico.

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19

a presença do imprevisível e nisto mais uma vez retomo a ideia da modificação dos

contextos e das contextualizações, inserindo-se ainda os diferentes olhares fotográficos:

O tempo todo somos observados por diferentes olhares, em diferentes ângulos,

cada olhar que se fecha e abre são como flashes que registram, que eternizam

momentos na memória e ou simplesmente não capturam nada: a questão é que

cada olhar irá para uma direção, a partir dele defendemos teses, chegamos a

conceitos e ou pré-conceitos (CARVALHO, 2014).

A tentativa deste artigo foi o de etnografar (ou ao menos realizar uma síntese

etnográfica) tendo-se como ponto central a imagem fotográfica para com relação as

relações e os pontos de vista que os autores das imagens mantiveram e mantêm para com

os povos indígenas de Oiapoque e alguns de seus aspectos e modos de vida, ressaltando-

se também a identidade dos próprios autores. Todavia, também se compreende que tal

objetivo cabe a mais de um estudo, por ser algo que pode ser ainda mais esmiuçado (visto,

não houve como trabalhar todas as imagens, e muitas ainda permanecem inéditas), assim

como abordado de outras maneiras, sendo esta, portanto, uma síntese auto etnográfica e

etnográfica dos povos em questão. E o indígena, possui o costume, de transmitir aos filhos

e filhas as tradições de sua cultura, e através de conversas com minha mãe, que é

Karipuna, e com meu pai, da época em que ele esteve com os indígenas de Oiapoque, é

que esta pesquisa se construiu, e desta forma a oralidade indígena se materializa em

escrita que também é indígena.

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