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As teses liberais para o Mercosul
Larissa Rosevics1
Glauber Cardoso Carvalho2
Resumo: As mudanças políticas recentes na América do Sul fortaleceram as vozes liberais, opositoras ao modelo de integração ampliada presente no Mercosul desde o início do século XXI. No Brasil, logo após a saída de Dilma Rousseff do governo, José Serra, então chanceler de Michel Temer, teceu duras críticas ao bloco. Ainda que sem um planejamento efetivo para a área da integração regional, o Ministro da Economia do novo governo de direita, Paulo Guedes, afirmou que o Mercosul não será prioridade da nova gestão, iniciada em 2019. De fato, todo o processo de integração foi esvaziado nos últimos três anos, culminando na denúncia, em menos de quatro meses de governo, ao tratado da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL. Esta, constituída como uma instância eminentemente política, cujo encerramento não acarreta consequências imediatas ao Brasil, difere do Mercosul que se tornou fundamental para as relações comerciais, políticas e sociais de seus membros, fato esse que dificulta uma ação mais rápida e contundente contra a organização. Partindo da premissa de que o Brasil exerce um papel preponderante no desenvolvimento das ações do Mercosul, faz-se necessário compreender quais os principais argumentos presentes no discurso dos grupos políticos em ascensão no país em relação ao bloco e, até que ponto as críticas emitidas minimizam ou até mesmo ignoraram os avanços obtidos pelo projeto de integração regional. A análise proposta destaca três teses defendidas pelos críticos do bloco. A primeira tese utiliza o modelo de integração regional etapista, de inspiração europeia, para desqualificar o projeto mercosulino. A segunda tese enfatiza o caráter comercial do bloco, com destaque à noção de ineficiência das estruturas e mecanismos de integração econômica, como a Tarifa Externa Comum (TEC), o modelo de listas de exceção e o principio de negociação conjunta de acordos comerciais com terceiros países ou blocos. A terceira tese, mais forte entre os membros do governo Bolsonaro, ressalta uma suposta ideologização que o projeto de integração do Mercosul sofreu durante os governos de esquerda na região. O objetivo do artigo, portanto, é apresentar as teses liberais para o Mercosul e refletir sobre seus argumentos a partir da experiência concreta do bloco em seus quase trinta anos de existência.
Palavras-Chave: Mercosul, Integração Regional, teses liberais
Introdução
1 Professora Adjunta do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa “Integração Sul: autonomia e desenvolvimento” da UFRJ e do Observatório de Política Externa Brasileira da UFABC. E-mail: [email protected] 2 Professor da Universidade Estácio de Sá, do Departamento de Economia. Coordenador Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Política para o Desenvolvimento e Membro do Grupo de Pesquisa “Integração Sul: autonomia e desenvolvimento” da UFRJ. E-mail: [email protected]
O Mercosul é resultado da aproximação entre Brasil e Argentina na
década de 1980, bem como do processo de reinserção comercial internacional
dos países da região pós-Guerra Fria. Tendo como membros fundadores Brasil,
Argentina, Paraguai e Uruguai3, seu objetivo econômico inicial foi ampliar o
intercambio comercial entre os Estados, e proporcionar a convergência entre as
suas políticas de liberalização econômica.
Durante a cerimônia de posse do então Senador José Serra (2016) como
Ministro das Relações Exteriores do governo de Michel Temes, em 2016, o tom
do discurso foi de que, a partir daquele momento, iniciava-se uma “Nova Política
Externa Brasileira”, mais próxima das pautas liberais na economia, e mais
conservadoras na política (FRENKE; AZZI, 2017).
Com relação ao bloco regional do Mercosul, Serra (2016) destacou a
necessidade de renovar e corrigir os seus rumos no sentido do livre-comércio.
Para isso, Serra (2016) enfatizou a necessidade de promover a aproximação
com a Aliança para o Pacífico, de aprofundar as relações com o México (país
com o qual o Mercosul já tem um acordo comercial assinado) e, sobretudo, de
concluir o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Ou seja, em sua
visão, estava na hora da retomada de um modelo de integração econômica já
conhecido, o “regionalismo aberto”, que tornou-se a tônica do processo de
integração regional durante a década de 1990.
Também é possível perceber como o discurso de Serra (2016) enfatiza a
aproximação bilateral com a Argentina, que naquele momento passava
igualmente por mudanças políticas em direção à direita, com a eleição de
Mauricio Macri para presidente. Contudo, esse posicionamento foi realizado em
detrimento ao dialogo plurilateral existente no Mercosul, que conta com a
presença de Uruguai, Paraguai e, mais recentemente, da Venezuela, país que
vinha recebendo duras críticas dos políticos de direita brasileiros que não
concordavam com a entrada do vizinho ao norte no bloco.
3 Atualmente, são Estados membros do Mercosul: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A solicitação de adesão da Bolívia aguarda a aprovação do Congresso brasileiro, e a participação da Venezuela foi suspensa em 2016. O Mercosul também conta com os seguintes Estados associados: Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname.
Em 2018, no Brasil, o conturbado processo eleitoral, mostrou que a
clivagem entre projetos também se materializaria na exploração do cenário
regional. Apresentados como tomados pela ideologia que se procurava
combater, os processos de integração não ocuparam parte significante do parco
debate, tampouco dos planos de governo. Ficou claro, já nos primeiros oito
meses do governo eleito de Jair Bolsonaro, que este não convergiu plenamente
com as diretrizes estabelecidas por Temer, especialmente em relação as
questões ambientais e de Direitos Humanos.
No que diz respeito ao Mercosul, dentro da análise da política externa
brasileira é possível registar que os interesses se mantiveram semelhantes,
ainda que o ambiente regional tenha entrado em um processo de deterioração
diante da forte tendência liberalizante e conservadora própria das elites que se
locupletam no poder. Destacam-se três pontos nessa questão: a) a necessidade
de aprofundamento dos processos regionais dentro da visão de livre comércio;
b) a constante reafirmação no discurso de que houve o uso ideológico do
Mercosul, bem como do Ministério das Relações Exteriores e dos outros
processos regionais, por parte dos governos do Partido dos Trabalhadores; e, c)
a necessidade de uma conclusão bem-sucedida do acordo com a União
Europeia, tanto quanto a construção de novos acordos preferenciais com outros
países e blocos, com destaque para os países do Pacífico abrigados na já citada
Aliança para o Pacifico e no reestabelecimento de relações especiais com os
Estados Unidos de Donald Trump.
As criticas feitas pelos ministros José Serra (2016) e Ernesto Araújo
(2019) ao Mercosul não são novas. Estruturado como uma União Aduaneira
imperfeita, objetivando tornar-se um Mercado Comum, o bloco é alvo de
contestações por parte de diferentes setores da elite e da mídia. A elite
econômica, especialmente aquela ligada aos investimentos estrangeiros,
acredita que o acordo com a União Europeia favorecerá seus negócios. A elite
política busca promover-se ao lado de um governo que mostra desajustes
impopulares. E a imprensa, guiada pela grande mídia que ainda controla as
comunicações de massa e, de uma forma geral, parte das classes altas e médias
que se acham direcionadas a um perfil de direita, tanto no Brasil quanto nos
países da região, adquiriu hábitos e discursos contrários aos processos
progressistas que o continente viu florescer no começo do século XXI.
Visando identificar e analisar as ideias e os discursos por detrás desse
cenário, ou se há uma estratégia dentro dos grupos políticos liberais em
ascensão no Brasil, para com o Mercosul, são exploradas no texto três teses
liberais referentes ao bloco: 1) a tese “etapista”, que fundamenta os problemas
do Mercosul dentro das dificuldades de acompanhar um processo de
desenvolvimento similar ao modelo europeu de integração; 2) a tese da
ineficiência da estrutura da integração econômica, que requeria menos
mobilização institucional e mais liberdade; 3) e a tese da ideologização do bloco,
ocorrida durante os governos progressistas na região, e que tenderiam a ser
plataformas para sua perpetuação no poder.
O objetivo com a análise é refletir até que ponto essas críticas, cunhadas
como liberais, minimizam ou até mesmo ignoram os avanços obtidos pelo projeto
de integração regional do Mercosul em seus quase trinta anos de existência.
1 A tese do modelo “etapista”
Na Europa do pós-guerra, reconstruída com dinheiro americano que
flutuou com o Plano Marshall, a conjuntura política estava propícia para o
desenrolar de negociações em torno de uma aproximação comercial-produtiva.
O empenho que os países do continente colocaram para sua reconstituição
como potência fez com que o projeto de integração evoluísse e se tornasse um
paradigma, um modelo para os acordos regionais e também a base de novas
interpretações do fenômeno da integração.
Dentre esses, o modelo “etapista”, teorizado pelo húngaro Bela Balassa
(1964), então funcionário do FMI, pressupõe que a integração econômica entre
os Estados se dará de maneira gradual e linear, em cinco etapas formativas de
um bloco econômico, marcadas pela intensidade da liberalização comercial e,
posteriormente, pelo aprofundamento político institucional com assimilação
completa de políticas comunitárias. As etapas se iniciam com o estabelecimento
de uma “Área de Livre-Comércio”, seguida pela “União Aduaneira”, com o
estabelecimento de uma Tarifa Externa Comum (TEC) e pelo estabelecimento
de um “Mercado Comum”, já com livre circulação da produção, do capital e de
pessoas; e chegaria, em seguida, à uma União Econômica, com coordenação
de políticas monetária e fiscal e uma moeda única; o último passo seria atingir a
Integração Econômica total, com uma autoridade supranacional com decisões
vinculativas aos membros, nas quais que seriam unificadas todas as políticas
públicas econômicas, tais como as políticas sociais, monetárias, fiscais e
externas. Para isso, a criação da moeda comum e o fortalecimento das
estruturas supranacionais se fariam necessárias. A trajetória da integração
econômica europeia foi o modelo inicial e seguiu, em grande medida, o modelo
“etapista”, ainda que com suas contradições internas e forte interesse político
dos Estados membros do bloco. O projeto do Mercado Comum do Sul, firmado
em 1991, esteve desde o inicio baseado no modelo “etapista”. Seu próprio nome
transmite mais um objetivo do que a realidade dos acordos negociados naquele
momento.
A figura institucional do Mercosul, ainda que pensada para promover a
integração econômica, acabou por concentrar em sua estrutura, todos os demais
processos de integração regional dos países do Cone Sul, que tiveram como
objetivo na década de 1990 a harmonização de interesses nas diferentes áreas,
em prol da do fortalecimento regional para a abertura comercial. É nesse sentido
que são criados, dentro do Mercosul, diversas reuniões ministeriais4,
4 Atualmente, o Mercosul conta com as seguintes instancias de diálogo ministerial: Reunião de Ministros de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (RMA); Reunião de Ministros de Cultura (RMC); Reunião de Ministros de Economia e Presidentes de Bancos Centrais (RMEPBC); Reunião de Ministros de Educação (RME); Reunião de Ministros de Indústria (RMIND); Reunião de Ministros do Interior e da Segurança (RMIS); Reunião de Ministros de Justiça (RMJ); Reunião de Ministros de Meio Ambiente (RMMA); Reunião de Ministros de Minas e Energia (RMME); Reunião de Ministros e Altas Autoridades de Ciência, Tecnologia e Inovação (RMACTIM); Reunião de Ministros e Autoridades de Desenvolvimento Social (RMADS); Reunião de Ministros de Saúde (RMS); Reunião de Ministros de Trabalho (RMT); Reunião de Ministros de Turismo (RMTUR); Reunião de Ministras e Altas Autoridades da Mulher do MERCOSUL (RMAAM); Reunião de Autoridades sobre Povos Indígenas (RAPIM); Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do MERCOSUL e Estados Associados (RAADH); Reunião de
responsáveis por promover o diálogo entre os governos dos países membros,
bem como propor normas.
Naquele momento do início da década de 1990, com economias recém-
saídas de anos de processos ditatoriais, encerrada uma década de guerra e,
crise monetária, moratórias, cercada de instabilidade política, vulnerabilidade
econômica, Brasil e Argentina foram também inseridos no mundo que precisava
se “modernizar”.
Encerrada a etapa não-democrática, estava claro que a aproximação
entre os dois maiores países do subcontinente deveria ocorrer ainda que sobre
pressão do “sucesso” que estava sendo o caminhar da Europa. A principal
inspiração para os países do Cone Sul estava no Velho Continente, que após 30
anos de aprofundamento do seu processo de integração regional, caminhava a
passos largos para a criação da união econômica e monetária.
Esse foi o momento no qual mais se sentiram os efeitos dos processos de
globalização do capital financeiro, a pressão por maior abertura das economias
e a necessidade constante de mais mercados (GILPIN, 2004). Como fim da
Guerra Fria, os governos da região adotaram o discurso em prol da redução do
Estado nacional e do controle de gastos e metas econômicas, que faziam parte
da agenda do chamado Consenso de Washington, responsável com que muitos
países em desenvolvimento encontrassem no regionalismo aberto, ditado pelo
BID e pela CEPAL, um meio de adaptar-se às novas regras, denominadas de
neoliberais, do mercado internacional
As críticas que seguem esse lado, enfatizam que os países sul-
americanos, por incapacidade ou desvio dos governos, não conseguiram
aprofundar o processo integrativo e se mantém estruturados como uma União
Aduaneira, chamada de “imperfeita”, sem lograr alcançar nem ao menos o seu
próprio título de Mercado Comum (ALMEIDA, 2016).
Está claro que o aprofundamento do processo de integração econômica
entre os membros do Mercosul oscilou ao longo das décadas de 1990 e 2000,
Ministros e Altas Autoridades de Privacidade e Segurança da Informação e Infraestrutura Tecnológica (RAPRISIT)
em grande medida devido às crises econômicas que atingiram a região, mas que
a estrutura intergovernamental que marca sua trajetória foi a principal
responsável por não abrir mão do poder de mando e de seus diversos níveis de
autonomia no que tange avançar na resolução de políticas comuns e na
existência de um ente supranacional.
Cabe, nesse sentido, ressaltar que adotar o modelo de integração
europeu como parâmetro para avaliar (se perfeito ou imperfeito) o processo de
integração sul-americana, é ignorar as diferenças políticas, econômicas,
históricas e sociais das duas regiões, bem como a dinâmica interna de
negociação, de tomada de decisão e suas trajetórias de desenvolvimento.
2 A tese da primazia da integração econômica
A crítica que esta inserida por detrás do discurso de que o Mercosul deve
manter-se em seu viés comercial, enfatiza o seu surgimento, como destacado
no ponto anterior, porém, esquece de que o projeto de integração regional no
Cone Sul teve sua origem na aproximação entre Brasil e Argentina, ainda nos
anos 1980, com o objetivo de dirimir as desconfianças existentes entre os
projetos nucleares dos dois países e, antes disso, com a necessidade de busca
de fontes alternativas de energia para a crise implantada pelos choques do
petróleo, que resultaram na criação da hidroelétrica de Itaipu, então, uma das
maiores do mundo.
Ampliar a coordenação política, econômica e militar frente a um mundo
em plena transformação foi a tônica da Declaração do Iguaçu, firmada em 19855,
entre os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, que encerrava um ciclo de
mútuas suspeitas e marcava o início de um processo de consultas que resultaria
na integração regional atual, que envolveu interesses políticos, de consolidação
5 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. REPÚBLICA DA ARGENTINA. Declaração do Iguaçu entre a República Federativa do Brasil e a República da Argentina. Foz do Iguaçu, 30 de nov.1985. Disponível em: https://concordia.itamaraty.gov.br/detalhamento-acordo/3329?IdEnvolvido=19&page=22&tipoPesquisa=2
das democracias; econômicos, de ampliação do mercado exterior dos produtos
regionais; militares, com o processo de consulta dentro da ABAAC; científico e
tecnológico, dentro do processo de pesquisas e fomento à educação resultante
da pauta de aproximação; e, sobretudo, energético, que aproximou também o
Paraguai e o Uruguai, como membros interessados nessa nova conjuntura.
As mudanças em cinco anos foram muitas, e a lógica neoliberal do
momento da entrada em vigor do novo bloco foi capaz de torná-lo dual, ao
mesmo tempo em que é tributário das intenções expressas na Declaração do
Iguaçu, o que significa que o bloco estaria inserido em um projeto de integração
mais amplo, também deu ênfase ao seu caráter econômico – seguindo o preceito
do Mercado Comum Europeu - que passaria a reger as análises quantitativas
sobre o processo, indicando um estupendo vigor nos primeiros anos
No que tange à estrutura da integração econômica do Mercosul, dois
temas são focos de debates. O primeiro diz respeito às listas básicas de
convergência (ou listas de exceção) à Tarifa Externa Comum (TEC), que permite
aos Estados determinar quais produtos, serviços e setores econômicos não
estarão sujeitos temporariamente à TEC, criadas como um instrumento para
minimizar as assimetrias existentes entre as economias maiores de Brasil e
Argentina, e as economias menores de Paraguai e Uruguai.
O segundo tema é a Decisão do Conselho Mercado Comum (CMC)
n.32/2000 sobre o relacionamento externo e as negociações comerciais
extrabloco, que inviabiliza que os Estados membros negociem isoladamente
acordos de natureza comercial, nos quais se outorguem preferências tarifárias,
com terceiros países ou grupo de países fora do bloco. Janina Onuki6 destaca
que, entre 1991 e 1997, a corrente de comércio entre o Brasil e os demais
membros do Mercosul teve um aumento de mais de 300%. Essa tendência se
seguiu por boa parte dos anos 1990 e 2000, conforme gráfico a seguir:
IMPORTAÇÕES E EXPORTAÇÕES DO BRASIL PARA OS PAÍSES DO MERCOSUL,
6 ONUKI, Janina. O Brasil e a construção do Mercosul. In: ALTEMANI, Henrique; LESSA, Antônio Carlos (org.). Relações Internacionais do Brasil: temas e agendas. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2006.
DE 1997-2018
(Dados do Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços, 2019)7
Nas primeiras décadas dos anos 2000, a complexidade das economias
dos países membros do bloco, bem como as prioridades de cada governo,
inviabilizaram avanços em relação as pautas liberalizantes do bloco. As
principais conquistas foram nas esferas política, social, cultural e educacional,
com a criação do Parlasul, do Mercosul Social, do Mercosul Cultural, a
consolidação da estrutura institucional do Mercosul Educacional e do projeto de
MercoCidades, dentre outras iniciativas.
O Mercosul Ampliado (SARTI, 2019, no prelo) significou o fortalecimento
do projeto político de integração regional sul americana, em que o Mercosul,
assim como a Unasul, foram agentes importantes na cooperação política entre
os Estados da região. Nesse sentido, cabe salientar que o bloco ultrapassou seu
caráter comercial e financeiro quando seus países optaram por tornar o Mercosul
o coração de iniciativas políticas em prol da autonomia continental. A mudança
de rumo experimentada pelos países sul-americanos destacou a existência uma
nova geografia, que, ao envolver mudanças na estrutura de poder global, crises
7 Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços do Brasil (MEICS). Séries Históricas. Disponível em: http://www.mdic.gov.br/comercio-exterior/estatisticas-de-comercio-exterior/series-historicas
0,00
5.000.000.000,00
10.000.000.000,00
15.000.000.000,00
20.000.000.000,00
25.000.000.000,00
30.000.000.000,00
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20
01
2000
19
99
19
98
19
97
Brasil - MERCOSUL Exportação Brasil - MERCOSUL Importação
financeiras e ascensão de novos atores, explicitou também a necessidade a
formação de novas organizações, como a Unasul – União de Nações Sul-
Americanas e a Celac – Comunidade de Estados Latino-Americanos e
Caribenhos, projetos políticos capaz de se ajustarem a novos planos
geopolíticos, econômicos e sociais que vão de encontro tanto à ótica instituída
do processo europeu e, consequentemente, do modelo “etapista”, advogado
pelas teorias da integração, quanto do modelo comercialista. (CARVALHO,
2013).
3 A tese da ideologização do Mercosul
Os discursos que enfatizam um processo de ideologização do bloco
tampouco são recentes. Formado no seio de um projeto de oposição e
contestação do projeto político e social dos governos progressistas e com vistas
a amplificar e denegrir o projeto internacional, tido como errado, as críticas foram
se avolumando e solidificando em um viés de análise que foi alvo dos debates
presidenciais de 2010, 2014 e voltou a ser quando Michel Temer assumiu depois
do golpe civil-jurídico-midiático na presidente eleita Dilma Rousseff.
Seja de acadêmicos, seja da imprensa nativa, a oposição ao projeto de
integração se revestiu, conforme análise realizada por Carvalho (2013), na
maioria dos casos, do tom jocoso e conveniente para o público que os seguia.
[...] Não seríamos tão somente uma das peças de um jogo mais amplo nesse mundo onde tudo se interliga? Vivemos a era do Foro de São Paulo, da UNASUL, da OEA do B, da Via Campesina e de tantas outras entidades que formam um conglomerado político-econômico em oposição a outros, como se a dicotomia esquerda-direita ainda vigorasse ressuscitando as viúvas do pós-Muro de Berlim. (BARBOSA, 2010)
O analista Magnoli (2013), por exemplo, via ameaças comunistas e
percebia que o assessor da presidência Marco Aurélio Garcia era o responsável
por “preservar o regime autoritário cubano e erguer uma barreira geopolítica
entre a América Latina e os EUA”, desde 2003, quando, segundo ele, “a política
brasileira para a América Latina foi transferida da alçada do Itamaraty para a do
lulopetismo, impregnando-se de reminiscências políticas antiamericanas,
terceiro-mundistas e castristas”.
Em texto publicado na revista Política Externa em 2014, pelo ex-
embaixador Rubens Barbosa (2014), como resposta ao texto de Ruy Pereira
(2014), publicado na mesma revista, em edição anterior, a questão da
ideologização do bloco é abordada a partir do argumento de que o Mercosul
sofreu com a partidarização da política externa dos Governos de Lula e Dilma,
perdendo seu objetivo enquanto instrumento de abertura de mercado.
José Serra é um dos políticos que sempre esteve contra o bloco.
Enquanto ainda pré-candidato à presidência pelo PSDB, em 2010, declarou
abertamente que era desfavorável ao Mercosul. Durante sua permanência no
Senado, também fez questão de enfatizar sua percepção de desagrado com o
processo de integração do Cone Sul. Seu próprio site possui todos os seus
pronunciamentos e está repleto de citações. Em 2015, dizia o senador:
“Nós temos – este Senado, esta Legislatura – que revogar o Tratado do Mercosul tal como ele está posto hoje. O Mercosul foi um delírio megalomaníaco, e olha que atravessou vários governos, que pretendeu promover uma união alfandegária entre Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Sabe o que é uma união alfandegária? É uma renúncia à soberania da política comercial. [...] O Mercosul paralisou a política de comércio exterior brasileira.” (SERRA, 2015)
Em seu discurso de posse como Ministro das Relações Exteriores de
Michel Temer, Serra fala de “preferências ideológicas de um partido político e
seus aliados no exterior” (2016).
A tese da ideologização do bloco, presente no discurso do presidente Jair
Bolsonado, no do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, e no do ministro das
Relações Exteriores, Ernesto Araújo, portanto, não é recente.
Em uma retrospectiva das incursões de Bolsonaro contra o Mercosul, a
BBC Brasil (2019) encontrou pelo menos uma dúzia de citações. Relembra a
reportagem que o discurso surge dele ainda deputado, explicando na Câmara
que “a crise econômica de então era fruto da forma como o Brasil, nos governos
do PT, optou por um ‘viés ideológico’ ao fazer negócios ‘não com o mundo, mas,
basicamente, na América do Sul, com o Mercosul’”. Candidato à presidência, o
tom foi o mesmo, porém sem tanta ênfase, salvo para manter o espectro do
temido bolivarianismo em alta. Eleito, o tom do bilateralismo é interrompido pelo
fechamento do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, tido por ele como
essencial para os brasileiros.
Na mesma toada segue o seu super-ministro da Economia – pasta
reformada por Bolsonaro que compreende todas as secretarias ligadas à área
econômica, antes distribuídas entre Fazenda, Planejamento e Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior – Paulo Guedes. No primeiro segundo da eleição
de Bolsonaro, o futuro ministro disse que o Mercosul e a Argentina “não são
prioridade”, que o bloco era “muito restritivo, que o Brasil ficou prisioneiro de
alianças ideológicas e isso é ruim para a economia” e ainda que antes só
negociava com quem tinha “inclinações bolivarianas” (CARMO, 2018).
A tendência dos novos governos eleitos na região, em especial da cúpula
do governo Bolsonaro, de classificar esse Mercosul Ampliado como “ideológico”,
ignorando os avanços obtidos nos últimos vinte anos, faz parte de um projeto
político de afastar a participação cidadã as decisões do bloco.
Conclusão
Apontado como tendo tomado um caminho errôneo, como incompleto e
como ideologizado (para um aspecto negativo), o bloco do Mercosul mantém sua
importância comercial e política na região, tanto para o Brasil quanto para os
menores países. Nesse sentido, é momentaneamente inviável o seu simples
descarte, ou denúncia, como fez o governo brasileiro, em abril, com o Tratado
da Unasul.
Possivelmente, foi instigado pela classe produtora que tem no comércio
regional ganhos relevantes, ou ainda na classe ligada ao círculo internacional,
que enxergou na conclusão do acordo entre o Mercosul-União Europeia,
negociado há pelo menos 20 anos, como uma das principais conquistas de um
governo em franca decadência.
Dois fatos, contudo, permanecem na análise: para quem fala Bolsonaro
quando denigre o Mercosul ou usa o termo “ideologizado”?; e, o que ganham
esses para quem ele fala com um discurso que antagoniza o Brasil com os
vizinhos?
As teses liberais apresentadas para o Mercosul são mais do que análises
acadêmicas na criação e teste de hipóteses em uma pesquisa, são construções
diárias, contínuas, reiteradas e financiadas por um capital que ignora a
sociedade em busca do seu lucro. Nada mais justo que desamarrá-lo de suas
presas, libertá-lo de seus constrangimentos e deixá-lo frequentar quem e onde
quiser. Nessa ótica, liberal (ou neo, ou ultra), ou quaisquer das variações que
nós acadêmicos somos capazes de criar, blocos são prisões, são amarras.
Assim como direitos, assim como a maior contradição de todas, a plena liberdade
também é uma amarra (ou seria armadilha?) de uma sociedade liberal.
Referências
ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Mercosul aos 25 anos: minibiografia não autorizada. Revista Mundorama, mar.2016, Acessado em: 15 set.2019. Disponível em: https://www.mundorama.net/?p=19068
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CARVALHO, Glauber Cardoso. A América do Sul em processo de transformação: desenvolvimento, autonomia e integração na UNASUL. Dissertação. Mestrado em Economia Política Internacional. Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
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