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CULTURA 'SOPRO FRIO NAS ORELHAS' A artista fornece uma pinça para que o espectador des atento possa pisar e destruir as obras expostas Totalmente efémeras, as obras de Armanda Duarte perturbam as expectativas do visitante EXPOSIÇAO Entre a presença A e a ausencla RUTH ROSENGARTEN o título, Sopro Frio nas Orelhas, intro duz a no ta dominante desta mostra, paten te no Museu de História Natural, em Lis boa: um sussurro suave e fresco qu nos é soprado, a dar-nos um breve arre pio na espinha: ténue, fugaz e, no entan to, a pr ov oca r em nós uma ressonância so mática. Arrnanda Duarte tem vi ndo, desde al guns anos, a tra bal har com materiais tradi cionalment e identificados como pertencen do a áreas do feminino: lã, fio, farinha ... Es tes materiais remetem, por sua vez, para tra dições frequentemente relegadas pa ra uma autoria anónima: coser, bordar, fa zer bolos. Ela borda estes materiais não de uma perspectiva feminista agressi va e teórica - posição, digamos, con tra a classificação, o nomear, a feitura de ob jectos monolfticos que a teoria feminis identifica ger almente o 90 do -, mas com uma sensibilidade apura da e, percebe-se, intuitiva. Os seus objec tos, frequentemente instalados in situ, limi tam-se a existir apenas onde estão: pai ram algures entre a presença e a ausência. o JOGO DAS PEÇAS A farinha, a que foi dada a forma de co rações numa prateleira de madeira, for ma provo cad ora me nte O Jogo da Bran . ca de Neve; dedais empilhados e enfia dos até 190 centímetros de altura cons tit ue m a Pequena T01Te sem Fim, enquan to Grande Coração de Canela é, na realida de, a toa lha ren dil had a feita no chão, o teci do em xadrez composto por grãos de arroz. A artista fornece um a pinça pa ra que o espectador desatento possa - na esperança de encontrar 'obras' de ar te com um aspecto mais familiar - pi sar e destruir as obras da exposição. (Du rante a inauguração, aconteceram mui tos acidentes deste tipo.) Tenho-te na Pe- le é um a série de lenços coloridos trans pa ren tes cort ad os no centro, ficando ape nas a bainha como contorno frágil des ses quadrados no chão. Encantatór ia é também a obra Inicia ção B, um conjunto de pingos de tin- ta de óleo secos retirados de mesas e cava letes de pin tur a du ran te as aulas que Ar mand a Du arte no Arco. Cuidadosamen te colocados sobre lamelas de v id ro , c o mo as utilizadas nos laboratórios de san gue, destacam-se contra a parede bran ca. Estes espécimes minúsculos - despo jos da activi dade pictórica - lançam refle xos delicados do vidro para a parede, tor nando-se eles próprios numa pintu ra de so mb ra e luz. De maneira desconcertante, este conjun to de obras de pres ença tão frágil e ténue ac tiva o espaço enorme da Sala do Vea do, no Museu de História Natural, em Lis boa - patente até 31 de Janeiro -, de uma forma que poucas (e mais agres si vas) mostras o fizeram até agora: o visitan te é convidado a re pa ra r nas mais peque nas fendas existentes no chão e nas pare des no seu cuidado para não pisar os traba lhos. A obra de Armanda Duarte encer ra um paradoxo raro: totalmente eféme ra - com a beleza de uma asa da borbole ta que ameaça passar a todo o momen to pa r aa inexistência -, provoca no visitan te um a po stura de atenção po uc o. habi tual, perturbando as expectativas de durabi lidade e «coi sidade» com que habitualmen te investimos as obras de arte. _ VIS1\O 28 de Janeiro de 1999

ARmanda Duarte, Visao, 28 Janeiro, 1999

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'SOPRO FRIO NAS ORELHAS'fornece uma pinça para que oespectador desatento possa pisar e destruir as obras expostas

efémeras, as obras de Armanda Duarteas expectativas do visitante

apresençaA •

aausencla

H ROSENGARTEN

título, Sopro Frio nas Orelhas, introa nota dominante desta mostra, pateno Museu de História Natural, em Lisum sussurro suave e fresco que

é soprado, a dar-nos um breve arrena espinha: ténue, fugaz e, no entana provocar em nós uma ressonância so

Duarte tem vindo, desde há alanos, a trabalhar com materiais tradi

e identificados como pertencena áreas do feminino: lã, fio, farinha ... Esmateriais remetem, por sua vez, para tra

frequentemente relegadas pauma autoria anónima: coser, bordar, fabolos. Ela borda estes materiaisde uma perspectiva feminista agressie teórica - posição, digamos, cona classificação, o nomear, a feitura de ob

monolfticos que a teoria feminisidentifica geralmente com o patriarca-

do -, mas com uma sensibilidade apurada e, percebe-se, intuitiva. Os seus objectos, frequentemente instalados in situ, limitam-se a existir apenas lá onde estão: pairam algures entre a presença e a ausência.

o JOGO DAS PEÇAS

A farinha, a que foi dada a forma de corações numa prateleira de madeira, forma provocadoramente O Jogo da Bran.ca de Neve; dedais empilhados e enfiados até 190 centímetros de altura constituem a Pequena T01Te sem Fim, enquanto Grande Coração de Canela é, na realidade, a toalha rendilhada feita no chão, o tecido em xadrez composto por grãos de arroz.A artista fornece uma pinça pa

ra que o espectador desatento possa- na esperança de encontrar 'obras' de arte com um aspecto mais familiar - pisar e destruir as obras da exposição. (Durante a inauguração, aconteceram muitos acidentes deste tipo.) Tenho-te na Pe-

le é uma série de lenços coloridos transparentes cortados no centro, ficando apenas a bainha como contorno frágil desses quadrados no chão.Encantatória é também a obra Inicia

ção B, um conjunto de pingos de tin-

ta de óleo secos retirados de mesas e cava

letes de pintura durante as aulas que Armanda Duarte dá no Arco. Cuidadosamente colocados sobre lamelas de vidro, como as utilizadas nos laboratórios de sangue, destacam-se contra a parede branca. Estes espécimes minúsculos - despojos da actividade pictórica - lançam reflexos delicados do vidro para a parede, tornando-se eles próprios numa pintura de sombra e luz.De maneira desconcertante, este conjun

to de obras de presença tão frágil e ténue activa o espaço enorme da Sala do Vea

do, no Museu de História Natural, em Lisboa - patente até 31 de Janeiro -,

de uma forma que poucas (e mais agressivas) mostras o fizeram até agora: o visitante é convidado a reparar nas mais pequenas fendas existentes no chão e nas paredes no seu cuidado para não pisar os trabalhos.A obra de Armanda Duarte encer

ra um paradoxo raro: totalmente efémera - com a beleza de uma asa da borboleta que ameaça passar a todo o momento para a inexistência -, provoca no visitante uma postura de atenção pouco. habitual, perturbando as expectativas de durabilidade e «coisidade» com que habitualmente investimos as obras de arte. _

VIS1\O 28 de Janeiro de 1999