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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS II PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Susana Cardoso Braga ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO: entre o erudito e o popular no Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta ALAGOINHAS BA Junho de 2018

ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO · Circe Bittencourt argumenta que as “[...] imagens diversas são produzidas pela capacidade artística humana também nos informam

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS II

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Susana Cardoso Braga

ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO:

entre o erudito e o popular no Romance d’A Pedra do Reino e O

Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

ALAGOINHAS – BA

Junho de 2018

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Susana Cardoso Braga

ARIANO SUASSUNA, UM INTELECTUAL POLIFÔNICO:

entre o erudito e o popular no Romance d’A Pedra do Reino e O

Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História do

Departamento de Educação ─ Campus II,

Alagoinhas, da Universidade do Estado da

Bahia, como requisito final para obtenção

do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva

Banca Examinadora:

____________________________________

Prof. Dr. Paulo Santos Silva (orientador) – UNEB

____________________________________

Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira - UNEB

___________________________________

Prof.ª Dra. Ione Celeste Jesus de Sousa – UEFS

ALAGOINHAS – BA

Junho de 2018

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À minha mãe e ao meu pai...

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Sertão, arguém te cantô,

Eu sempre tenho cantado

E ainda cantando tô,

Pruquê, meu torrão amado,

Munto te prezo, te quero

E vejo qui os teus mistéro

Ninguém sabe decifrá.

A tua beleza é tanta,

Qui o poeta canta, canta,

E inda fica o qui cantá.

(Patativa do Assaré)

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AGRADECIMENTOS

Ao Poder regente do Universo, com o qual cheguei até aqui.

Aos meus pais, irmã, namorado e familiares, que contribuíram com o meu

caminhar, compreendendo os dias nebulosos com os quais me deparei nessa jornada.

Ao professor Dr. Paulo Santos Silva, o melhor orientador que alguém poderia

desejar, por toda a sua enorme paciência, dedicação, apoio humano e compromisso. Um

verdadeiro mestre no melhor e total sentido da palavra.

A professora Drª Ione Celeste Jesus de Sousa (UEFS) e ao professor Dr.

Raimundo Nonato Pereira Moreira (UNEB) pelos conselhos e atenção para com o meu

texto na qualificação e na defesa.

Ao professor Zézito Rodrigues (UNEB), às professoras Drª Rosângela Miranda

(Ifbaiano) e Ms Zélia Malheiro (UNEB) e a todos os profissionais e professores do

campus VI da Universidade do Estado da Bahia, que de alguma maneira colaboraram

para o meu crescimento até aqui.

Ao prof. Dr Carlos Newton Júnior, professor de estética da Universidade Federal

de Pernambuco, estudioso e grande conhecedor da obra e vida de Ariano Suassuna, que

compartilha igualmente um amor por sua figura e legado, o qual muito gentilmente me

cedeu material de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa.

À Fundação Joaquim Nabuco, pelo carinho com o qual fui recebida na pesquisa

realizada em Recife.

Aos meus amigos, que muito me deram apoio nos momentos de tormento, com

carinho especial a Valquiria Oliveira, pelo diálogo em horas de melancolia e a Márcia

Kelly pela tradução do resumo.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), pela

concessão da bolsa, sem a qual a pesquisa sofreria danos.

Por fim, a todos que confiaram na minha pesquisa, capacidade e dedicação e ao

povo sertanejo do qual faço parte.

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RESUMO

Analisam-se, com base na obra o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do

Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Vilar Suassuna (1927 – 2014), a construção e a

interpretação que o autor faz do Nordeste, utilizando-se da cultura popular e da memória

individual e coletiva. Ariano Suassuna transita entre a história e a ficção, ao conceber

um herói que constrói um mundo a partir dos delírios em meio à realidade e à fantasia,

apresentando um sertão belo, mesmo diante da crueldade, denunciando o descaso das

autoridades e a miséria do povo, mas sugerindo um universo que vive do sonho, do riso,

da poesia e da imaginação. Alter ego de Ariano Suassuna, Quaderna, seu personagem,

reconfigura a realidade com elementos que mesclam à cultura popular, a ibérica e a

greco-romana em perspectiva universal. O universo sertanejo suassuniano foi possível

graças à compreensão que se tem da realidade apresentada pela verdade da ficção. O

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é uma maneira de

contar a história e organizar a memória do Nordeste, considerando suas crenças, mitos,

vivências, sofrimentos e alegrias; é a história da sociedade a partir da visão de um

individuo que ao longo da vida a absorve e a toma para si. Além das fontes ficcionais,

empregam-se aqui depoimentos, documentários, jornais e revistas.

PALAVRAS-CHAVES: Ariano Suassuna. Sertão. Pedra do Reino. História. Literatura.

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ABSTRACT

It was analyzed, based on o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do

Sangue do Vai-e-Volta, by Ariano Vilar Suassuna (1927 – 2014)), the construction and

interpretation that the author does about the Northeast, using popular culture and

individual and collective memory. Ariano Suassuna transits between history and fiction,

when he conceives a hero who builds a world out of delirium amidst reality and fantasy,

presenting a beautiful sertão, even in the face of cruelty, denouncing the neglect of the

authorities and the misery of the people, but suggesting a universe that lives from the

dream, the laughter, the poetry and the imagination. Alter ego of Ariano Suassuna,

Quaderna, his character, reconfigures reality with elements that combine popular

culture, Iberian and Greco-Roman in a universal perspective. The suassuniano sertanejo

universe was made possible by an understanding of the reality presented by the truth of

fiction. The o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta is a

way of telling the story and organizing the memory of the Northeast, considering its

beliefs, myths, experiences, sufferings and joys; is the history of society from the

perspective of an individual who, throughout life, absorbs and takes it for himself. In

addition to the fictional sources, are used here statements, documentaries, newspapers

and magazines.

KEYWORDS: Ariano Suassuna. Sertão. Pedra do Reino. History. Literature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 10

CAPÍTULO I. ARIANO SUASSUNA: A TRAJETÓRIA DE UM SERTANEJO

ARMORIAL, 18

1. Origens, 19

2. Os novos mundos de Suassuna, 21

3. “Tornar-se” Ariano Suassuna, 33

CAPÍTULO II. SUASSUNA E AS PEDRAS NO CAMINHO: POLÍTICA E

CRIAÇÃO LITERÁRIA, 44

1. Conflitos oligárquicos: da Paraíba ao cenário nacional, 44

2. A história e as pedras de um reino, 53

CAPÍTULO III. O SERTÃO TRANSFIGURADO DE SUASSUNA: ENTRE AS

PEDRAS E UM REINO, 68.

1. O Mito de “Pedra Bonita”, 70

2. O Nordeste suassuniano, 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 94

FONTES, 96

REFERÊNCIAS, 98

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INTRODUÇÃO

O objetivo desta dissertação é analisar a interpretação do Brasil, com foco no

Nordeste brasileiro, realizada pelo escritor e dramaturgo Ariano Vilar Suassuna (1927 –

2014), utilizando como fonte o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue

do Vai-e-Volta. Discute-se a perspectiva da cultura erudita em relação à cultura popular,

combinando fatos históricos e práticas do cotidiano. O resultado dessa combinação

revela-se em sua prosa romanesca e em sua dramaturgia. A obra aqui escolhida consiste

na fusão das diversas áreas nas quais a arte do autor se manifesta.

Parte-se da premissa de que o conhecimento histórico se baseia nos vestígios

deixados pelo homem, feitos pelo próprio homem em suas experiências no tempo, seja

ele disso consciente ou não, como nos adverte Marc Bloch.1

Para Holien Bezerra:

O objetivo primeiro do conhecimento histórico é a compreensão dos

processos e dos sujeitos históricos, o desenvolvimento das relações que se

estabelecem entre os grupos humanos em diferentes tempos e espaços. Os

historiadores estão atentos às diferentes e múltiplas possibilidades e

alternativas apresentadas nas sociedades, tanto nas de hoje quanto nas do

passado, que emergiam da ação consciente ou inconsciente dos homens;

procuram apontar para os desdobramentos que se impuseram com o

desenrolar das ações desse sujeito.2

Circe Bittencourt argumenta que as “[...] imagens diversas são produzidas pela

capacidade artística humana também nos informam sobre o passado das sociedades,

sobre suas sensações, seu trabalho, suas paisagens, caminhos, cidades e guerras”.3 Os

registros, ao serem examinados historiograficamente, tornam-se não o passado, mas

uma representação deste na contemporaneidade. Portanto, entende-se que, no terreno da

verossimilhança, a literatura é capaz de representar uma dada realidade com coerência.

Desde a origem do movimento dos Annales (1929), a historiografia vem cada

vez mais abrindo espaços novos para a pesquisa histórica. A "Nova História Cultural",

nos anos de 1980, ampliou as possibilidades de pesquisa. A partir dos problemas

enfrentados nas décadas de 1960/1970, retomou-se o que já havia sido definido pelos

1 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução: Bernardo Leitão [et al.]. Campinas: Editora da

Unicamp, 1990, p. 108. 2 BEZERRA, Holien Gonçalves. “Ensino de História: conteúdo e conceitos básicos”. In: KARNAL,

Leandro (Org.). História na Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2007, p.

42. 3 BITTENCOURT, Maria Fernanda Circe. Ensaios de História: fundamentos e métodos. São Paulo:

Cortez, 2004. p. 353 – 354.

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Annales na década de 1930, quando surgiram questionamentos a respeito das certezas

metodológicas e dos objetos sobre os quais o historiador se debruça. Com o intuito de

conciliar novos domínios de investigação, a historiografia toma para si outros campos

de estudos, como a psicanálise e a literatura.

Diante das circunstâncias que se apresentaram, o historiador passou a ver na

literatura uma alternativa fecunda de pesquisa: o mundo das representações presentes no

universo da ficção e dele a possibilidade em se extrair o “real”. Passou-se ao uso de

recursos existentes na ficção, dentre eles a narrativa e a subjetividade do indivíduo, que

ganha destaque e se torna mesmo indispensável ao processo de escrita da história.

A historiadora Sandra Pesavento, importante referência nacional nos estudos

dessa modalidade, reconheceu a relevância da literatura para o historiador, pois,

segundo ela, trata-se de um discurso privilegiado por representar o acesso ao

pensamento de diferentes épocas com base em personagens que habitam o campo das

possibilidades do real, preenchendo-se, assim, lacunas acerca das experiências vividas.4

Vários historiadores têm explorado esse campo de investigação. Sidney

Chalhoub, em Machado de Assis, Historiador, analisa o Brasil do século XIX a partir

das obras Machadianas.5 Nicolau Sevcenko, por sua vez, toma a literatura como objeto

da história em Literatura como Missão. Investiga o período da belle époque, com foco

na vida intelectual do Rio de Janeiro, tendo como figuras centrais os escritores Lima

Barreto e Euclides da Cunha.6

Outros estudos, semelhantes aos exemplos acima, mostram como as pesquisas

relacionadas à história e à literatura têm despertado o interesse da historiografia,

mostrando novas possibilidades que cabem ao historiador explorar.

Em pouco mais de 600 páginas, o livro que esta dissertação se propõe a analisar

retrata as aventuras e/ou desventuras do personagem Pedro Diniz Quaderna, em cuja

trajetória críticos reconhecem influências e semelhanças, em sua construção, com

acontecimentos presentes na vida do autor. Ariano Suassuna utiliza-se da força da

literatura e da liberdade que esta lhe possibilita para relacionar ficção e realidade.

O tempo literário é fluído. Nele, existe a possibilidade da coexistência de

diversos períodos em um mesmo espaço. A Pedra do Reino, em um primeiro momento

4 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história. Disponível em:

https://journals.openedition.org/nuevomundo/1560 Acesso em: 17 abril de 2018. 5 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

6 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira

República. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999.

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apresenta dois tempos centrais: o tempo da escrita do livro (1958-1971) e o tempo de

sua narrativa (1935-1938).

Acoplados a estes tempos centrais, o livro ainda realiza aberturas a eventos que

combinam o passado próximo e o passado distante, anteriores à vida da personagem e

do autor. Ariano Suassuna busca integrar ambos ─ personagem e autor ─ de alguma

maneira, dando sentido a eles no decorrer da narrativa.

O movimento sebastianista do século XIX, ocorrido nas Pedras do Reino, mais

precisamente no ano de 1838, um século antes dos fatos narrados no romance, encaixa-

se como parte do quebra-cabeça em que Ariano Suassuna utiliza-se de fatos da história

nacional para a construção de seu "castelo" literário.

Outros dois autores se utilizaram dos acontecimentos que envolveram as Pedras

do Reino na produção literária: o precursor da temática, Araripe Júnior, ao escrever O

Reino Encantado: crônicas sebastianistas (1878) e José Lins do Rego, com Pedra

Bonita (1938) e Cangaceiros (1953), o que demonstra a relevância do tema na literatura

e na memória nacional.

Ariano Suassuna escreve sua Pedra do Reino em um momento que coincide com

a vigência da Ditadura Civil-Militar no país (1964-1985), o que, segundo o autor, possui

relação com a narrativa do livro. Na obra, estabelecem-se nexos entre o período

autoritário do governo Vargas (1930 – 1937) e o ditatorial de 1964, o que aparece de

forma transfigurada na criação literária do autor.

Transcorreram aproximadamente três décadas de intervalo entre os

acontecimentos que ligam o primeiro evento ao último (1930 – 1964). Também na obra

é possível ver referências às perseguições políticas a grupos comunistas, o que ocorre

em ambos os momentos, deixando de lado as especificidades de cada período.

A pesquisa procura dar conta da vida de Ariano Suassuna e dos marcos

temporais a ela ligados. Desde a infância cercado pela cultura popular, ele a recriou em

chave erudita, o que culminou no Movimento Armorial nos anos de 1970, alcançando

reconhecimento nacional e aclamação do autor pelo público e pela crítica.

Em 16 de junho de 1927, dia de Corpus Christi, no então palácio do governo

estadual da Paraíba, nascia Ariano Vilar Suassuna. Assinalado desde os primeiros anos

de vida pela tragédia do assassinato do pai, em razão das agitações políticas que

marcaram o país ao final da Primeira República, com a Revolução de 1930, Ariano

Suassuna transformou esse fato no núcleo de todo o seu viver e de grande parte de sua

obra, o que deixa claro em diversos momentos ao longo de seu itinerário de homem

público.

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A figura paterna irá direcionar, mesmo após a morte, e em decorrência desta,

importantes decisões familiares e seus consequentes acontecimentos. É pela perda dessa

figura central que a família se vê obrigada a mudar-se para Taperoá.

Com o correr dos anos, cresce a vontade de recriar a imagem do pai. Ele passa,

portanto, a ter maior interesse pelas tradições e cotidiano do povo, identificando-se a

partir de então como sertanejo, se não por nascimento, por desejo.

Sua produção mescla esses dois caminhos principais: o sertão nordestino com o

povo, o qual reconhece como “seu”, e a figura paterna, que Ariano Suassuna constrói

para si. Essas opções se tornam claras quando nos deparamos com muitas de suas

principais produções, que vão desde o teatro até às artes plásticas: Uma mulher vestida

de sol (1947), O auto da compadecida (1955), A história do amor de Fernando e Isaura

(1956), O santo e a porca (1957), A farsa da boa preguiça (1960), além das

Iluminogravuras e coletâneas de poemas escritos e reescritos durante toda a vida.

Do conjunto de suas realizações, destaca-se como maior produção, tanto em

volume quanto em relevância, o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue

do Vai-e-Volta (1971).

Levando mais de uma década para a sua finalização, desdobrando-se entre os

anos de 1958 e 1971, data de sua publicação, A Pedra do Reino começa com anotações,

quando Ariano Suassuna buscava informações e tomava notas para a escrita de um livro

em homenagem a seu pai, João Suassuna (1886 – 1930). O autor, em várias

oportunidades, nas entrevistas concedidas ao longo da vida, declarou que a carga

emocional necessária a esse empreendimento não lhe era suportável, o que o impediu de

prosseguir. Não obstante, aqueles rascunhos primários seriam o começo do livro.

A Pedra do Reino se torna, tanto nas palavras de seus críticos como do próprio

Ariano Suassuna, sua principal obra. Primeiro, por tratar-se da tentativa de reunir todas

as formas em que sua arte ganha voz: teatro, romance, poesia, artes plásticas e a arte

inspirada na musicalidade e poesia do Romanceiro Popular. Segundo, porque foi nesse

trabalho que Ariano Suassuna procura expiação de seus fantasmas e angústias

relacionados à perda do pai, pois ali se encontram inseridas referências que ligam a vida

de Ariano Suassuna ao da personagem central, Quaderna.

O livro tem como foco a região Nordeste do país, mais especificamente o Sertão,

moldado pela perspectiva de Suassuna, que o enxerga pedregoso, árido, áspero, que

sobrevive por meio da resistência de um povo que encontra, porém, na poesia o

significado da luta diária.

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Esse sertão abrange, especialmente, os estados de Pernambuco, Paraíba e Rio

Grande do Norte. Trata-se de um recorte geograficamente reduzido e transfigurado. A

redução traz consigo uma densa carga de afetividade, pois a esse espaço ligam-se as

origens e as vivências do autor.

Esse ambiente é classificado por Quaderna, protagonista de Ariano Suassuna,

como o “coração do Nordeste”, as “duas províncias mais sagradas do Império do Brasil,

a Paraíba e Pernambuco, às quais somente o Rio Grande do Norte pode ser ajuntado em

absoluto pé de igualdade”. Com essa visão, interliga essas três regiões à história e à

vida de seus outros personagens.

Ariano Suassuna é, em sua maneira de encarar e representar a realidade, um

escritor que buscou retratar o Brasil com as peculiaridades do chamado "Brasil Real",

Para isso, extraiu da cultura popular as cores e as formas para pintar o cenário de suas

obras, em um eterno contar e recontar de histórias.

Sua ligação com o popular e seus escritos enquanto registros históricos norteiam

algumas inquietações as quais este trabalho busca compreender: até que ponto o popular

se insere na obra de Ariano Suassuna?

A interação que possui com esses universos ambíguos gerou intensos

questionamentos acerca de suas fronteiras socioculturais no decorrer de sua vida,

engendrando em sua figura um exemplo do processo de circularidade e movimento de

informações entre a cultura letrada e a do povo.

Os estudos que incluem o popular no universo de Suassuna são os mais diversos,

todavia se encontram em maior parte na área das letras. Aqui, visa-se uma abordagem

de caráter historiográfico, diferente dos estudos literários, ao se relacionar história e

literatura, tomando-se esta última como registro documental para a pesquisa histórica.

Busca-se, dessa forma, apreender a visão de um intelectual, que, ocupando-se da

esfera popular como matriz, a aborda por meio de uma configuração erudita. Assim,

questiona-se a possibilidade de se enxergar em Suassuna e no Movimento Armorial,

uma tentativa de representação da cultura popular a partir de remanescente de uma

tradição ibérica. Com base na hipótese de que A Pedra do Reino sirva a tal propósito,

reafirma-se a perspectiva da importância da literatura como registro de diversos

elementos da história e da cultura do país.

Estabelecer princípios que norteiam a pesquisa é passar por teorias elaboradas ao

longo da história. É necessário, portanto, compreender os processos de troca cultural,

exemplificando aquilo que Ginzburg denomina de "circularidade cultural" entre a

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grande e a pequena cultura, conforme Bakhtin.7 Ginzburg traz na figura de

Menocchio a exemplificação do processo de circularidade da cultura que existiu na

Europa pré-industrial entre as classes dominantes e as classes subalternas, onde o

moleiro friulano, torna-se um filtro entre os dois grandes grupos sociais. Algo

semelhante ao que observamos no processo que Ariano Suassuna toma para si, indo de

um extremo a outro, entre o universo erudito e popular, não permanecendo fixo em

nenhum dos espaços. 8

Peter Burke, ao retratar o processo de transformação da Europa pré-industrial,

traz à luz atores sociais que se tornaram importantes como veículos de transmissão

nesse mesclado espaço social.9 Andarilhos, charlatões, artistas de rua, palhaços, amas de

leite, mulheres, um grupo de filtros transmissores, que circulavam de um extremo a

outro, absorvendo, reinventando e (re)transmitindo em sua própria visão de mundo,

elementos que permaneceram perpetuando-se de maneira que não se pode prever ou

controlar.

O processo em que a reinvenção de símbolos e manifestações ocorre é algo

maleável dentro do universo popular. É possível enxergar novos cenários dentro de

tradições já consagradas em que o povo se torna “guardião” de cada elemento que

compõe as reminiscências da memória ao longo do tempo, através de costumes, da

oralidade, das transformações de elementos clássicos, que não possuíam mais espaços

na sociedade moderna.

O Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta,

enquanto objeto e a principal fonte desta análise, é uma obra em que o autor revela

aspectos históricos, memorialísticos e culturais da população do Nordeste brasileiro que

buscou retratar. Deve-se ter em consideração a impossibilidade de retratar tal espaço em

sua pluralidade cultural e histórica. Os fatos aqui apresentados referem-se ao “Nordeste

de Ariano Suassuna”, limitado geográfica e poeticamente, conforme os interesses do

escritor. Toda uma arte, experiências e construção social do Nordeste sertanejo são

percebidas ao longo das páginas do livro.

Durante o longo processo de produção da obra, Ariano Suassuna procurou

retratar os eventos sebastianistas ocorridos nas Pedras do Reino no século XIX, com

7 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François

Rabelais. São Paulo: Hucitec Editora, 1987. 8 GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela

inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. Trad. dos poemas: José Paulo Paes. Revisão Técnica: Hilário

Franco Jr. ⸺ São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 9 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500 – 1800. Trad. Denise Bottmann. 2ª

ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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base nos escritos de Antônio Attico de Souza Leite, e como veio a ressoar na memória

popular.10

Após aposentar-se como professor da Universidade Federal de Pernambuco,

Suassuna desenvolveu um projeto denominado aulas-espetáculos, as quais ministrou até

o fim de sua vida. Grande parte dessas aulas encontra-se disponível e se constitui em

fonte para a análise de seu pensamento no universo da literatura e das artes.

Acervos de jornais de distintos períodos retratam momentos conturbados de sua

história, como as críticas das quais seu pai e família foram alvos. Os periódicos são,

portanto, outro corpo de fontes indispensáveis para a análise aqui proposta. Eventos

ligados ao sucesso de crítica e público, suas peças teatrais e o filme A Compadecida

(1969), este último contando com a assessoria de Ariano Suassuna, integram o corpus

documental. O filme, de grande repercussão internacional, já apresentava elementos que

seriam incorporados pela estética no Movimento Armorial.

A imprensa é um terreno fecundo, por possibilitar a investigação da visão de

diversos grupos e seus interesses. Vista como processo, a memória de Suassuna,

carregada de emotividade, considerando-se o que antecedeu e que sucedeu ao

assassinato do pai, é capaz de esclarecer e suscitar questionamentos a respeito da

concepção da figura dos indivíduos envolvidos. Por essa razão foi considerada nesta

abordagem, porém, com a devida cautela.

Em sua carreira, tanto em vida quanto postumamente, Ariano Suassuna foi

positivamente reconhecido pela crítica literária, tanto nacional quanto internacional, o

tornando uma figura de destaque na literatura. Sua obra, especialmente aquela voltada

para a dramaturgia, é vista como um importante legado e seu Romance d’A Pedra do

Reino, um dos maiores registros ficcionais da literatura brasileira.

O próprio Ariano Suassuna transforma-se em fonte jornalística, haja vista os

vários registros pessoais que realizou em periódicos do país. Deve-se chamar a atenção

para seu “Almanaque Armorial do Nordeste”, pequeno compêndio literário produzido

por ele em um curto espaço de dois anos (1972 – 1974), onde o autor, em uma espécie

de diário semanal, publicava posições, pensamentos e ideias a respeito dos mais

variados assuntos, tendo o Nordeste e sua cultura, como foco principal. Suassuna se

10

Antônio Attico de Souza Leite (1835 – 1877) Foi deputado provincial (1873-1877). Escreveu o

trabalho, Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de

Pernambuco, à Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco, do qual era membro.

Postumamente, com a supervisão de seu filho Solidônio Attico de Souza Leite, resultou na obra

“Fanatismo Religioso - Memorias sobre o Reino Encantado na Comarca de Vila Bela”, sendo o primeiro

trabalho a respeito do evento e memória da Pedra do Reino, de São José do Belmonte (PE), que inspirou o

épico romance escrito por Ariano Suassuna.

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enxergava, ou desejava que assim fosse visto, como o defensor da cultura nacional,

cavaleiro errante que evitaria o colapso diante das garras sanguinárias da “globalização”

e da “aculturação”.

Os meios para a pesquisa ainda se estendem as entrevistas, produções artísticas,

trabalhos acadêmicos onde o foco varia entre sua figura, seus trabalhos ou o Movimento

Armorial. Ariano Suassuna transformou-se em um ícone da cultura pop. Grande parte

desse acontecimento se deve ao fato da proliferação midiática de suas entrevistas e

aulas-espetáculos. Nelas, o autor propaga suas ideias a respeito da cultura nacional e do

mundo letrado por meio da comicidade e de uma linguagem acessível.

O primeiro capítulo desta dissertação, Ariano Suassuna: a trajetória de um

sertanejo armorial, ocupa-se da construção da formação intelectual e do universo

artístico de Ariano Suassuna. A coexistência entre o popular e o erudito em uma mesma

figura ao longo de sua trajetória. Procura-se mostrar o contexto de criação do autor,

destacando os fatos e os momentos que marcaram seu processo de desenvolvimento,

desde os seus primeiros anos até a fase adulta e sua consagração.

No segundo capítulo, Suassuna e As Pedras no Caminho: política e criação

literária, analisa-se o tempo da narrativa a partir do enredo do romance e os demais

tempos históricos que nele se desenvolvem. A problematização em torno da relação

ficção/memória, através da vivência da personagem Quaderna, encontra-se explorada

nesta seção. Discute-se ainda como a literatura se insere enquanto fonte para a pesquisa

histórica.

O debate exposto propõe a análise das diversas faces e fases da vida de Ariano

Suassuna relacionadas às memórias do escritor, à luz dos fatos históricos. São tópicos

deste capítulo a identidade do Ariano Suassuna poeta, dramaturgo, romancista e artista

plástico, assim como o Ariano Suassuna criança, adulto, estudante de direito, professor

universitário. Explora-se o conhecimento biográfico, necessário à construção do perfil

de um indivíduo, pensado aqui como uma fusão de seus diversos “eus”.

Já o terceiro capítulo, O Sertão Transfigurado de Suassuna: entre as pedras e

um reino, tem por objetivo a análise da obra fonte, a releitura do universo popular e sua

ressignificação em chave erudita, tendo Ariano como filtro e interprete dessa dicotomia

e da fusão entre esses universos.

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CAPÍTULO I

ARIANO SUASSUNA: A TRAJETÓRIA DE UM SERTANEJO ARMORIAL.

O título deste capítulo visa exprimir a dualidade presente na figura de Ariano

Suassuna, cuja trajetória intelectual foi marcada pela cultura popular, que termina por

incorporar-se ao seu universo letrado, reconhecendo-se como sertanejo em seu

caminhar.

O sentido de Armorial remete a um Livro para registro de brasões de armas.

Estudiosa do Movimento Armorial e da obra de Ariano Suassuna, Idelette Muzart

Fonseca dos Santos vai além, definindo Armorial como um substantivo que designa a

coletânea de brasões da nobreza de uma nação ou província. A utilização do termo

como adjetivo, conforme passa a ser utilizado por Ariano Suassuna, constitui-se,

portanto, um neologismo.11

Ariano Suassuna assim definiu a Arte Armorial:

A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a

ligação como o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do

Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música da viola, rabeca ou pífano que

acompanham seus “cantadores”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas,

assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com

esse mesmo Romanceiro relacionados.12

O escritor ressalta a relação do Movimento com a literatura do Nordeste,

presente nos folhetos das feiras, por unir nele três formas distintas de arte: a poesia, a

xilogravura e a música, tornando a obra uma bandeira cultural a respeito da

interpretação do Nordeste.

Entre os motivos da escolha do termo, encontram-se, segundo Idelette, três

pontos principais. Primeiro, o fator estético. Conforme Ariano Suassuna, o termo

Armorial é uma palavra que canta, ligada a heráldica, na perspectiva dos esmaltes

limpos, nítidos, pintados em metal ou esculpidos em pedra cercados por símbolos. Ele

relaciona tal conceito às particularidades das construções barrocas e sertanejas do

11

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna e o

Movimento Armorial. 2ª ed. Campinas – SP: Editora da Unicamp, 2009. 12

VASSALO, Ligia. O Sertão Medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1993, p. 28.

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19

Brasil, a concretização do termo à transmissão da ideia ao plano do real. Por último,

alude às insígnias do povo, sua literatura, símbolos, identidade, música e poesia, que

são, segundo essa concepção, límpidos, reluzentes, coloridos, festivos.13

1. Origens

Em diversos relatos, ao longo de sua vida, Ariano Suassuna (1927-2014)

demonstrou desconforto com as consequências decorrentes da morte prematura do pai,

João Suassuna (1886-1930), ex-governador da Paraíba e, à época, opositor do

governador João Pessoa (1878-1930).

João Suassuna foi assassinado por motivos políticos, durante uma emboscada na

cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, no contexto da Revolução de 1930. Sua

morte efetivou-se em represália ao assassinato do governador da Paraíba, João Pessoa,

ocorrido naquele mesmo ano, durante o episódio conhecido como a “Guerra de

Princesa” (1929-1930).14

O coronel Zé Pereira, personalidade de destaque na política do Nordeste e do

país, tornou-se líder de um movimento que entrou em confronto com as forças do

governo da Paraíba representadas por João Pessoa.

José Pereira figurava como líder de diversos chefes da oposição estadual. Eles

não viam com bons olhos as ações de João Pessoa, entre as quais a de tentar centralizar

os departamentos do poder público e desvincular a máquina administrativa do estado do

controle dos coronéis. Tais medidas tornaram-se impopulares frente aos líderes políticos

estaduais, que levaram a cabo ações contra o seu governo.

A crescente indignação de lideranças paraibanas, durante o mandato de João

Pessoa, em decorrência da proibição de reeleição de candidatos a cargos no governo, do

desarmamento dos coronéis e da “Guerra Tributária”, resultou na deflagração da

"Guerra de Princesa". De acordo com Inês Rodrigues, com a tentativa de combater a

crise econômica que assolava o estado, João Pessoa buscou favorecer o comércio local,

com maior incentivo aos produtos e produtores da Paraíba quando em 17 de novembro

de 1928, promulga-se a Lei Tributária de 1928, regulando a exportação e importação de

13

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular. 14

Segundo Inês Rodrigues, embora o evento do conflito de Princesa tenha ocorrido em 1930, os

preparativos, bélicos, políticos e financeiros se iniciaram no ano de 1929. RODRIGUES, Inês Caminha L.

A Revolta de Princesa: poder privado x poder instituído. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

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mercadorias, onde, com o Imposto de Incorporação, colocava uma barreira sobre os

produtos que possuíam procedência fora do estado.15

Diante do cenário propício ao conflito, um grupo de coronéis insatisfeitos,

feridos em seu orgulho, se junta a um segmento de comerciantes endinheirados e

descontentes. Nessas circunstâncias, o coronel José Pereira torna-se o homem certo para

aquela liderança.

Segundo Rodrigues, seu prestígio ultrapassava os limites do estado, sua

personalidade, gentil e polida, angariava a simpatia de um grande número de indivíduos

a ele devotados, pessoas que, inclusive por sua ajuda, se encontravam ligadas ao

governo e a suas forças militares, o que acabou lhe favorecendo.

Em decorrência das baixas e derrotas que o governo do estado vinha sofrendo

frente aos rebeldes de Princesa, numerosas foram as atitudes tomadas com o intuito de

conseguir modificar a situação.

O conflito teve fim com o assassinato de João Pessoa (1930). Embora o crime

possuísse razões passionais, a ele foi atribuída toda a carga política daquele conturbado

momento da história do país. A Guerra de Princesa revelou-se além de um conflito

armado, uma guerra de egos, psicológica e midiática.

Ambos os lados buscavam, principalmente por meio da imprensa, difamar o

oponente, as brigas entre a União, jornal apoiador do governo e o Jornal do

Commercio, opositor, serviam para inflamar os descontentamentos e a população palco

da disputa. Diante desse contexto, João Pessoa e João Dantas, travaram uma disputa

através da imprensa, dando abertura ao ódio pessoal.

Com a divulgação de documentos íntimos, cartas amorosas entre ele e sua

amante, a professora e poetiza Anayde Beiriz (1905 – 1930), apreendidas por meio da

invasão de um apartamento pertencente a João Dantas, pela polícia da Paraíba,

desencadeou uma sucessão de acontecimentos em um efeito dominó. A divulgação das

cartas tornou-se um verdadeiro escândalo na época, Anayde e seu romance com João

Dantas era um episódio paradoxal para a sociedade da época. Espirito livre, Anayde,

representava tudo o que conflitava com o conservadorismo da classe a qual João Dantas

pertencia.16

15

RODRIGUES, Inês Caminha L. A Revolta de Princesa. 16

AMARO, Lays & LIMEIRA, Emanuel. Anayde Beiriz e João Dantas - Um Romance nos Anos 30

(2014). Documentário 18’ 39”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=B7gr0EUzpbw

Acesso em: 19 abr de 2018.

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A transmissão da memória relativiza a história com suas variações. Há alegação

de que João Pessoa jamais autorizou a invasão e a divulgação das cartas pertencentes a

João Dantas, tornando alvo inocente de seu opositor. Em contrapartida, muitos

reconhecem legitimidade no ataque a Dantas, diante de todo o acúmulo de ofensas a sua

família.

A morte do governador João Pessoa desencadeia reviravolta exacerbando a

situação conflituosa. O poder do estado, que até então colecionava insucessos frente aos

rebeldes, presencia a vitória dos rebelados em decorrência daquela morte. Simpatizantes

e apoiadores do movimento de Princesa transferem-se de lado. A imagem de João

Pessoa, transformado em mártir, causa tamanha comoção popular que ganha não

somente as ruas do estado da Paraíba, mas as ruas do país, contexto que contribuirá para

a eclosão da Revolução de 1930.

Toda essa situação, de grande impacto para a história nacional, também causará

uma imensa transformação na vida de Suassuna e sua família.

2. Os novos mundos de Ariano Suassuna

O pequeno Ariano Suassuna contava com a tenra idade de 3 anos quando a

ausência da figura paterna lhe foi imposta, situação que marcou toda a sua trajetória de

vida, tanto em âmbito familiar, quanto no que tange à trajetória literária.

A romancista cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), umas das escritoras de

destaque da literatura nacional e amiga de longa data de Ariano Suassuna, ratifica, em

um documentário intitulado O Sertãomundo de Ariano Suassuna, um retrato difundido

em relação ao ser de Ariano Suassuna e à sua perda paterna:

A Personalidade de escritor dele se formou muito com essa tragédia, se

desenvolveu muito com essa tragédia, como que tocou as fibras mais

importantes do coração dele. Olha, é difícil à gente dizer, porque o escritor

sublima as coisas, o autor, um pintor, sublima o sujeito, o pai dele morreu

assassinado, ele vai pintar, não pinta o pai sendo assassinado, mas o pai

assassinado tá ali. De forma que essa tragédia da família do Ariano deve ter

refletido muito na literatura dele, nos livros ele é ele, mas ele é também o

fruto daquele, de todo aquele ambiente em que ele se criou e foi vítima.17

A morte do pai significará uma drástica mudança. O acontecimento não afetou

somente a vida do menino Ariano Suassuna, mas também a de toda a família, que foi

17

MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004). Documentário, 60’24”. Disponível

em: https://www.youtube.com/watch?v=Xgfu4eDuzE0 Acesso em: 20 de Jan de 2017.

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estigmatizada enquanto membros pertencentes de um clã “vencido”, representantes do

sertão arcaico e esquecido.

Uma nova realidade se apresentou à família Suassuna, que, desde a morte do

governador João Pessoa, se viu obrigada a constantes mudanças por conta das

perseguições e represálias sofridas. Com o falecimento do patriarca, João Suassuna, a

família que ainda resistia na fazenda Acauhan, liderada por Dona Rita Vilar Suassuna

— viúva aos 34 anos de idade —, viu-se a cada dia em situação preocupante, em

especial após a terrível seca de 1932, que trouxe consigo o estrago à propriedade. A

viúva se estabeleceu com os filhos, no mesmo ano da tragédia, na cidade de Taperoá,

sertão da Paraíba, onde recebia auxílio da família materna.18

Sobre ela, Ariano Suassuna

revelou que o maior desgosto que alguém podia dar à mãe era ficar se lamuriando da

vida: “Ela foi muito forte. Usou luto a vida inteira, mas não deixou a gente usar”.19

Acauã, pássaro habitante do sertão, que tem em seu canto o prenúncio de maus

presságios, era também o nome da propriedade adquirida por João Suassuna no ano de

1919 (Acauhan).20

Após sua saída do governo da Paraíba (1928), tornou-se a residência

da família. Típica moradia sertaneja do século XVII, segundo Tavares, localizada no

atual município de Sousa, no estado da Paraíba, a 427 quilômetros da capital, além de

ter sido pouso de tropeiros no passado, guardava em si forte importância histórica “[...]

Ali dormiu Frei Caneca, após ser preso no Ceará durante a [...] Confederação do

Equador”.21

Ariano Suassuna nasceu em 16 de junho do ano 1927. Em um dia de Corpus

Christi. Esse fato possivelmente influenciou o autor, o que se revela na atmosfera

mística e religiosa que permeia a sua obra, e conforme relata o próprio Ariano Suassuna,

de forma notadamente idealizada:

18

Segundo recorda Tavares, a nomenclatura de “sertão”, com a qual se designa Taperoá compreende uma

realidade mais figurativa do que geográfica, localizando o sertão mais além “Embora seja considerada

uma cidade sertaneja, Taperoá fica a oitocentos metros de altitude [...] O Sertão propriamente dito se

situa mais além [...] Esta área em geral chamada Alto Sertão, mas o termo não se deve à altitude, e sim

ao fato de ser a parte mais remota do estado”. TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna. Rio de

Janeiro: Editora José Olympio, 2007, p. 23-24. 19

VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Editora

Zahar, 2007, p. 11. 20

“Acauã” é também a música de composição de Zé Dantas e interpretação de Luiz Gonzaga, que

relaciona o mito popular que liga sua figura e seu canto ao mau agouro: “Acauã, acauã vive cantando/

[...] No silêncio das tardes agourando/ Chamando a seca pro sertão [...] Acauã/ Teu canto é penoso e faz

medo/ Te cala acauã/ Que é pra chuva voltar cedo [...] Toda noite no sertão/ Canta o João Corta-Pau/ A

coruja, mãe da lua/ A peitica e o bacurau/ Na alegria do inverno/ Canta sapo, gia e rã/ Mas na tristeza

da seca/ Só se ouve acauã [...]”. DANTAS FILHO, José de Sousa. Acauã. Disponível em:

https://www.letras.mus.br/luiz-gonzaga/8238/ Acesso em: 16 abr 2017. 21

TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna, p. 10.

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23

Nasci num dia de Corpus Christi, às 16h. Naquele 16 de junho de 1927, a

procissão estava passando na frente do palácio do governo onde meu pai

[João Suassuna] era governador e onde minha família morava, quando todos

pararam para receber a notícia do meu nascimento. Ali por perto havia uma

velhinha, uma dessas velhinhas típicas do Nordeste, uma figura linda, cabeça

bem branquinha, com casaco de mangas compridas e saia até os pés, que

disse na hora: “Esse menino só pode ter um futuro de santidade”. O que

mostra como essas velhinhas do Nordeste são fracas no ramo da profecia.22

Após a morte de João Suassuna e a mudança da família para Taperoá, Ariano

Suassuna encontrou ali a matéria principal daquilo que conduziu e foi a base de todo o

seu trabalho: a cultura popular do Nordeste, à qual somou o trauma de sua vida: a morte

do pai.23

No Nordeste, as cidadezinhas sertanejas do interior não diferem muito entre si.

Fora as diferenças de localização, sotaques e tradições, que variam de lugar para lugar,

dando-lhe vida própria, elas não são idênticas, porém parecidas em sua atmosfera. São

comunidades em que o tempo passa devagar, em que as pessoas interagem de maneira

distinta dos grandes centros urbanos.

É comum, ainda no século XXI, encontrar ornando essas cidades uma pracinha,

com suas tardes e noites de convívio social e uma igreja. É característico da vida dessas

localidades as construções relacionadas à fé católica ou católica sertaneja, como

denominado por Ariano Suassuna.

Taperoá era, em sua época, uma dessas cidadezinhas do interior do Nordeste

brasileiro. Ela se transformou no cenário do universo suassuniano, o palco de seu teatro.

Mesmo nas obras em que não a cita diretamente, pode-se perceber, em sua descrição, a

silhueta característica desta cidade, tão importante para o autor.

Adriana Victor, secretária de impressa de Ariano Suassuna, entre os anos de

1995 e 1998, e Juliana Lins, co-autora de diversas obras de cunho biográfico,

publicaram Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Entre os diversos relatos a respeito

do autor, descrevem o apreço que Ariano Suassuna demonstrava por Taperoá, terra a

qual chamava de sua, embora não tendo nela nascido.24

A identificação com a pequena cidade do interior pernambucano fazia com que o

autor de o Auto da Compadecida sentisse por aquele pedaço de chão o aconchego

22

DIAS, Maurício Santana. “No meio do caminho tinha a Pedra do Reino”. Entre Livros, São Paulo, a. 1,

n. 3, jul, 2005, p. 30-35. 23

Carlos Newton Júnior identifica na poesia de Ariano, como este mesmo já declarou “ser a sua poesia a

fonte profunda de tudo o que ele escreve inclusive o romance e o teatro”, elementos tanto dessa figura

paterna, quanto do reino perdido de sua infância. NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino: a

poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife: Editora da Universitária da UFPE, 1999. 24

VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico.

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24

daquilo que caracteriza o que se reconhece como lar, conforme suas numerosas

declarações de natureza autobiográficas.

Em Taperoá, Ariano Suassuna seguiu o seu cotidiano de menino. Além do

aprendizado das primeiras letras, faz questão de ressaltar o uso assíduo da biblioteca do

pai e do gosto crescente pela literatura, além das caçadas e das expedições às fazendas

ao redor. Entre elas, a Fazenda Malhada da Onça é uma de suas referências. Sua

importância é de tal ordem que se transfigurou na “Fazenda Onça Malhada” em A

Pedra do Reino.

Ariano Suassuna elaborou, assim, uma fusão espacial no seu processo de

rememoração que se exprime na sua produção ficcional. Ele recorda Acauhan, ao se

lembrar do pai e de sua primeira infância e se reporta à sua época de menino, por volta

dos 7 anos, na fazenda Malhada da Onça, em Taperoá. Com base nesses dois “lugares

de memória”, Ariano Suassuna construiu a ficcional “Fazenda Onça Malhada”, onde o

personagem Quaderna viveu sua vida de menino.

Nesses primeiros anos de aprendizado e construção interior, duas figuras se

destacaram como “[...] seus primeiros mestres de literatura: seus tios Manuel Dantas

Villar — meio ateu, republicano e anticlerical — e Joaquim Duarte Dantas —

monarquista católico”. 25

Mais uma vez, sua realidade foi transportada para a ficção:

Clemente e Samuel personagens de A Pedra do Reino foram inspirados nesses dois tios

de Ariano Suassuna.26

A trajetória intelectual de Ariano Suassuna passou pelo processo de formação do

indivíduo ligado ao ensino secular e às tradições populares, entrelaçando-se na figura de

uma só pessoa. O contato com as culturas que emanam do povo se deu bem antes do

escritor estabelecer relações com o mundo das letras. Naquele momento a sua formação

processava-se no âmbito do que considerava o “Brasil real”, que posteriormente viria a

ser “deturpada” pelo “Brasil oficial”.27

Com sete anos de idade, eu vi o primeiro desafio de cantadores em Taperoá,

no sertão da Paraíba, [...] levado a essa peleja por um irmão meu, Lucas

Suassuna. E, dos dois cantadores que estavam se enfrentando nesse dia, um

25

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. 14ª ed.

Rio de Janeiro: José Olympio, 2014, p. 20. 26

SUASSUNA, Ariano. “Programa Roda Viva, TV Cultura” em 06/05/2002. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=mW4zTJq7k0M&t=229s Acesso em: 30 de maio de 2016. 27

Ariano em sua teoria que gira em torno do indivíduo frente ao Brasil Real x Brasil Oficial, sempre em

declarações, ao longo da vida, remete a um pensamento do escritor brasileiro Machado de Assis.

“Machado de Assis tem uma frase que sempre me impressionou muito. Ele sempre dizia que o país real é

bom e revela os melhores instintos, mas o país oficial é caricato e burlesco”.

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era um grande cantador, Antônio Marinho. E eu tive um choque muito

grande. Foi uma coisa que me impressionou muito, não só pelos desafios,

nem pelos improvisos, mas porque Antônio Marinho cantou um folheto que

ele sabia decorado. Aquilo me impressionou muito.28

Após esse primeiro contato, que tanto lhe impressionou, Ariano Suassuna

declarou que recebeu um impulso decisivo. Ele descobriu na biblioteca deixada pelo

pai uma variedade de clássicos da literatura universal. Essa descoberta proporcionou-lhe

os primeiros contatos com a matéria do mundo:

Imediatamente depois, houve um outro conhecimento que me levou a me

ligar ainda mais profundamente a essa arte popular brasileira. Meu pai era um

grande entusiasta dos cantadores e dos poetas populares. Ele tinha um amigo,

um escritor cearense chamado Leonardo Mota, que era pesquisador dessa arte

popular. Pesquisava os cantadores e os folhetins. Um dos livros de Leonardo

Mota é dedicado a meu pai [...] um livro chamado Sertão Alegre. E, no corpo

do livro mesmo, ele cita meu pai como uma das pessoas que forneciam

versos de cantadores a ele; meu pai era uma das fontes de Leonardo Mota.

[...] Por isso eu comecei a respeitar essa tradição popular, talvez eu não

respeitasse se não a tivesse visto como objeto de livro.29

A presença na biblioteca paterna de obras sobre a arte popular fez com que ele

reconhecesse no pai um entusiasta e admirador dessa cultura. Conforme o próprio

Ariano Suassuna admitia, a biblioteca do pai o influenciou muito.30

Talvez a cultura

popular não fosse tão marcante em sua obra se não estivesse presente ali a imagem do

pai e o desejo de encontrar na escrita alguma maneira de ligar-se a ele.

O conhecimento da arte dos mamulengos, vista em Taperoá, no mercado

popular, foi importante na trajetória do escritor. Ao reportar-se à sua formação, afirma

que esse conhecimento fundiu-se ao literário que ele vinha adquirindo, pois Ariano

Suassuna reconheceu ali, na representação teatral dos bonecos, a manifestação de

histórias universais e, com isso, sua ligação com outras épocas.

Em seu trabalho pioneiro a respeito do teatro de Ariano Suassuna, Lígia Vassalo,

em O Sertão Medieval: origens europeias do teatro de Ariano Suassuna, apresenta o

exame dos aspectos medievais que perpassam a obra do escritor, na perspectiva de sua

28

DIDÍER, Maria Thereza. “Conversa sobre o popular e o erudito na cultura do Nordeste”. Projeto

História, PUC-SP, São Paulo, v. 18, mai 1999. Disponível em:

https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10999/8119 Acesso em: 20 jan 2017. 29

Ibidem. 30

“Foi de uma influência fundamental, a biblioteca que ele nos deixou”. MACHADO, Douglas. O

Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004).

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26

dramaturgia, que transporta tais elementos da literatura popular do Nordeste para o

ambiente culto.31

Ainda que Lígia Vassallo tome como suporte a perspectiva do universo das

Letras, sua obra se ocupa de aspectos historiográficos que mostram a permanência de

características da cultura medieval no Nordeste brasileiro, as quais se constituem em

referências básicas para a dramaturgia de Suassuna. Como já referido, algumas

lembranças que marcaram a infância do autor em Taperoá acabaram refletindo em sua

visão de mundo, a exemplo do espetáculo teatral de bonecos, “mamulengos”.

Lígia Vassalo demonstra como esse tipo de teatro, juntamente com outras

manifestações, são exemplos das reminiscências culturais europeias no Sertão. Segundo

a autora, apesar de sua origem imemorial, o espetáculo cômico aparece em diversos

registros e em distintas épocas como na trama de Dom Quixote, de Cervantes, ou na

vida cotidiana no Rio de Janeiro do século XVIII, conforme apresentado por Luiz

Edmundo em O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, conforme ressalta a autora.32

Por meio de piadas, diálogos e a reprodução de um universo onde a obscenidade

e a violência são encontradas, além de seu caráter popular, reforça-se a ideia de que os

mamulengos estariam ligados à farsa e a commedia dell’arte.

Já Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, ao definir o

mamulengo, proporciona a visão da importância deste para as camadas populares em

regiões do Nordeste. A classificação do autor ocorre, inclusive, em Pernambuco,

revelando assim uma visão próxima daquilo que Suassuna teria presenciado na Paraíba,

diante da contiguidade entre ambos os estados. Conforme Cascudo:

Espécie de divertimento popular em Pernambuco, que consiste em

representações dramáticas, por meio de bonecos, em pequeno palco, alguma

coisa elevado. Por detrás de uma empanada, esconde-se uma ou duas pessoas

adestradas, e fazem que os bonecos se exibam com movimento e fala. A

esses dramas servem ao mesmo tempo de assunto cenas bíblicas e de

atualidade. Tem lugar por ocasião das festividades da igreja, principalmente

nos arrabaldes. O povo aplaude e se deleita com essa distração,

recompensando seus autores com pequenas dádivas pecuniárias. Os

mamulengos entre nós são mais ou menos o que os franceses chamam

marionette ou polichinelle. [...] Puppet-shows como o chamou Henry Koster,

João Redondo, (Rio Grande do Norte, João Minhoca, no Rio de Janeiro [...]

Don Cristóbal Espanha, Hans Wurts na Alemanha, Punch na Iglaterra, Jean

Klassen na Áustria, Hans Pikelharing na Holanda, Karagauz na Túrquia,

Pupazzi, Guignol, foram aplaudidos em toda a Europa desde a Idade Média.

Tiveram e tem teatrinho em Paris e Londres, exclusivos. Egípcios tiveram

seus mamulengos. Os gregos denominavam-nos neuro-spata; simulacra,

31

VASSALLO, Ligia. O Sertão Medieval. 32

EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis – 1763 – 1808. Brasília: Senado Federal,

Conselho Editorial, 2000.

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27

imagungulae em Roma, barattini italianos. Difícil apurar o povo que não o

possui ou possuiu. Luís Edmundo (No Tempo dos Vice-Reis, 447, Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 163, tomo (109) documenta a

popularidade dos títeres na capital brasileira do séc. XVIII. O mamulengo é

verdadeiramente o Guignol, o pupazzi italiano. As figurinhas são animadas

pela mão do encenador [...] Fantoche Ricardo em Portugal.33

De acordo com Tavares, foi em Taperoá que Ariano Suassuna teve contato com

pessoas idosas, especialmente mulheres, que, embora desconhecessem o universo

letrado, era por meio da oralidade que recitavam longos poemas aos quais

denominavam de cantigas velhas, termo e cenário, inclusive reconstruídos em A Pedra

do Reino.

Ariano Suassuna teria posteriormente descoberto que tais cantigas estavam

ligadas a antigos romances ibéricos, preservados por meio da oralidade no decorrer dos

séculos.34

Em Peter Burke, vê-se que em uma Europa pré-industrial, onde a maior parte da

população era analfabeta, era possível às mulheres desempenharem o importante papel

de transmitir a cultura popular por meio da difusão de histórias.35

Nobres e eruditos tinham em suas mães, irmãs, esposas, que em sua grande

maioria, embora nobres, não estavam inseridas naquilo que Bakhtin denomina de

"grande cultura". Havia ainda as amas de leite, camponesas, através das quais

possivelmente se estabelecia contato com as baladas e estórias populares. Walter

Benjamin, em O Narrador, ao lamentar-se das transformações que o mundo passava

diante da modernidade, revive poeticamente lembranças de um passado romântico, no

qual as pessoas transformavam o ato de contar histórias, em uma coletiva transmissão

de experiências, adornando o mundo de outrora agora em ruínas substituído pelo

progresso e suas relações egoístas.36

É possível que a influência das mulheres que guardavam as histórias do povo

tenha conduzido à valorização do feminino na obra de Ariano Suassuna. Nela, as

mulheres não são vistas como personagens insignificantes ou que se submetem a

vontades masculinas de maneira passiva, como comumente imagina-se que ocorra na

realidade do sertão. Na verdade, utiliza-se de artimanhas para conseguirem o seu

intento. 33

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro,

2010, p. 72. 34

TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna. 35

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. 36

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.

Obras escolhidas vol. I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasilense, 1987.

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28

Dois exemplos ambíguos retratam bem essa realidade da obra de Suassuna: a

Virgem Maria, a Compadecida em O Auto da Compadecida (1955), e Caroba, em O

Santo e A Porca (1957). A primeira ao utilizar-se da imagem da pureza e da

benevolência, através da transmissão da ideia de passividade, consegue modificar o

destino de condenação das demais personagens, salvando-as do inferno. A personagem

Caroba, por sua vez, é revestida da imagem popular do pícaro, se utilizando da astúcia

para alcançar seus objetivos.

Em Taperoá, segundo o texto O Teatro, o circo e eu, Suassuna se viu diante de

uma de suas maiores paixões e encantamentos na vida: O Circo, que para ele seria uma

estranha representação de metáforas na vida.37

Herdeiros da Commedia Dell'Arte,

comédia ao estilo pastelão, os palhaços modernos advêm de uma tradição de artistas

andarilhos que perambulavam de cidade em cidade, apresentando-se tanto em cortes

quanto em praças públicas.38

Segundo Burke, artistas de entretenimento, ambulares e mascates, em trupes ou

sozinhos, com características próprias, roupas coloridas, chamativas e codinomes em

sua maioria cômicos, viajavam de lugar em lugar acreditando que mudar o público era

mais fácil que mudar o repertório.39

Ainda em Burke, verifica-se a importância dessas personagens na circulação de

elementos culturais, de cidade em cidade, por meio das apresentações que realizavam,

tanto para as camadas populares, como para as abastadas, alguns tornando-se famosos.

Figura icônica desse cenário eram os palhaços, populares tanto nas cortes quanto

nas tavernas e praças públicas, por vezes sendo os mesmos indivíduos. Demonstrando,

assim, entre outras coisas, além do palhaço, a diversidade que existia nesses grupos

andarilhos de entretenimento, por vezes maltrapilhos e pobres, algo que lembra a

diversidade dos tipos nos circos sertanejos da década de 1930, presentes na infância dos

meninos do sertão de Taperoá, dentre eles Ariano Suassuna.40

Contando Ariano Suassuna com cerca de 15 anos de idade, a família mudou-se

definitivamente para o Recife, onde seus irmãos mais velhos já residiam e estudavam, e

ele, dos dez aos quinze, passou a maior parte do tempo vivendo no internato do Colégio

37

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. NEWTON JÚNIOR, Carlos (Org.). Rio de Janeiro:

Editora José Olympio, 2008. 38

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. 39

Ibidem. 40 Ibidem.

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29

Americano Batista.41

Como o próprio Ariano relata em suas lembranças no texto, Três

histórias de trem:

[...] Ali, no Colégio, eu passava boa parte do tempo sonhando com o dia em

que teria o direito de voltar, de trem, para casa. Viera estudar em 1937,

interno, com dez anos de idade; e, principalmente durante os dois primeiros

anos de internato, não era raro eu acordar, de madrugada, na cama do

dormitório do internato, com lágrimas nos olhos: é que despertara com o

apito do trem soando na madrugada. Aquele apito parecia acentuar a solidão

e a saudade de casa, lembrando-me que, ali, eu estava preso e exilado, e que,

noutro lugar ⸺ para onde eu deveria ir de trem ⸺, estavam me esperando as

pessoas e os lugares amados, dos quais eu fora apartado um dia, de maneira

tão brusca e em tão pouca idade.42

Foi também no Colégio Americano Batista que Ariano Suassuna descobriu a

“sua” segunda biblioteca, continuando assim a caminhada no universo literário. A

terceira biblioteca foi a do Ginásio Pernambucano, posteriormente Colégio Estadual de

Pernambuco, em 1943, ano seguinte ao estabelecimento da família no Recife. A partir

daquele momento, viu-se mais e mais impossibilitado de fixar-se novamente no Sertão,

tornando-o um território de sonhos e imaginação, habitado por seus mitos e lendas;

significados e símbolos; morada da sua memória. É possível que isso tenha contribuído

para que a saudade da aurora do tempo se incorporasse mais em sua literatura. Não o

sertão real, mas o sertão da memória, modificado pelas transformações do tempo e das

recordações.

Sua vida literária iniciou-se, marcada pela melancolia, com a publicação do

poema Noturno, em 7 de outubro do ano de 1945, contando Ariano Suassuna com a

idade de 18 anos, embora já tendo demonstrado em outros momentos sua afinidade com

o universo das letras.43

Aquele não era, ainda, o autor do teatro cômico reverenciado em

todo o país, mas o autor influenciado pelo romantismo inglês, em especial, pelos

“poetas metafísicos”, fazendo da morte, da solidão e da perda elementos sempre

presentes em seus poemas, o que resultou numa visão trágica do mundo.44

A esses

elementos, juntou-se a existência de uma aura religiosa, também presente em muitos de

seus escritos.

41 Segundo Tavares, embora a família fosse, como a maioria das famílias sertanejas, tradicionalmente

seguidora do catolicismo, a mãe de Ariano, dona Rita Dantas, converte-se ao protestantismo após sua

mãe, Afra Dantas Vilar, ser operada e segundo a sua visão, salva por um cirurgião norte americano e

protestante. Ariano por sua vez, irá por razão do casamento com Zélia, regressar à religião católica,

dando-lhe, todavia visão própria. TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna 42

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial, p. 198. 43

DIAS, Maurício Santana. No meio do caminho tinha a Pedra do Reino. Entre Livros, São Paulo, a. 1, n.

3, jul, 2005, p. 30-35. 44

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino.

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30

Envolto nesse mundo, Suassuna sentiu-se exilado contra a sua vontade e

solitário. Foi na poesia que encontrou a maneira de externar toda a melancolia que, para

ele, o mundo parecia ter. Estando "exilado", seu maior desejo foi retornar ao reino

perdido ─ o reino utópico de sua infância ─, e nele encontrar a beleza, o amor e a

poesia, todos atrelados à figura do pai:45

Noturno

Têm para mim Chamados de outro mundo

As Noites perigosas e queimadas,

Quando a Lua aparece mais vermelha.

São turvos sonhos, Mágoas proibidas,

São Ouropéis antigos e fantasmas

Que, nesse Mundo vivo e mais ardente

Consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém os vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas

E escuto essas Canções encantatórias

Que tento, em vão, de mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,

A Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:

Passaram-me por cima da cabeça

E, como um Halo escuso, te envolveram.

Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,

A ventania me agitando em torno

Esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,

Ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida

E nossos pés a Ela estão ligados.

Deixa que teu cabelo, solto ao vento,

Abrase fundamente as minhas mãos…

Mas, não: a luz Escura inda te envolve,

O vento encrespa as Águas dos dois rios

E continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?46

No ano seguinte à publicação de Noturno, Ariano Suassuna entrou na Faculdade

de Direito do Recife, que se incorporou à Universidade Federal do Pernambuco, como

estudante do curso de Direito. Posteriormente, voltou a esta universidade onde lecionou

durante muitos anos na condição de professor de Estética.

Embora jamais tenha exercido a profissão para a qual havia estudado, a

universidade forneceu a Ariano Suassuna um campo fértil para encontrar-se consigo

mesmo, permitindo o desabrochar do artista e a formação intelectual que lhe faltava,

através do convívio com outros jovens e novos universos literários. Descobria-se ali o

45

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, do exílio e o reino. 46

VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico, p. 30-31.

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31

Ariano palhaço, teatrólogo, romancista, ligado à cultura popular, o que fez dele "o

imperador sagrado da Pedra do Reino".

Foi na universidade que Ariano Suassuna encontrou jovens que, como ele,

possuíam interesses semelhantes na arte e na literatura. Eram aspirantes artistas,

escritores, atores, poetas, pintores e romancistas. Foi na faculdade também que Ariano

Suassuna encontrou uma figura primordial, necessária à sua lapidação: Hermilo Borba

Filho (1917 – 1977). Mais velho e mais experiente no teatro, tornou-se o líder do grupo

de jovens do qual Ariano fazia parte. Como dizia Ariano Suassuna, Hermilo era o “[...]

abridor de veredas e apontador de caminhos”.47

Foi através de Borba Filho que Ariano Suassuna tomou contato com a poesia e o

teatro de Garcia Lorca, representando um marco na vida do autor de O Auto da

Compadecida, pois através da arte de Lorca, Ariano Suassuna enxergou a possibilidade

do trabalho de um intelectual que unia, em sua composição, o universo popular e o

erudito.

Além disso, o trabalho de Lorca tornou-se significativo diante das semelhanças

que Ariano Suassuna reconhecia entre a Espanha e o sertão nordestino brasileiro.

Proveniente de um pequeno lugarejo (Fuente Vaqueros) no sul da Espanha, local que

tinha por característica uma intensa miscigenação de culturas, dentre elas a árabe, a

cigana, a judia e a castelhana. Com esses povos vinham os mitos, as histórias de

cavaleiros e os diversos tipos populares, e o pensamento de um resgate catalão e

heroico. Tal contato com um misto de culturas proporcionou a Lorca decisivas

influências no seu trabalho como escritor.48

É possível que Ariano Suassuna enxergasse no autor espanhol uma imagem de si

e da realidade do Nordeste, que a um misto de culturas que ali havia chegado com os

conquistadores portugueses, se somaram as culturas dos negros africanos e dos povos

indígenas.49

Assim como Lorca, Ariano Suassuna graduou-se em Direito e Filosofia e,

enquanto este tinha por matriz as raízes populares encontradas no Romanceiro Popular

Nordestino, Lorca produzia importantes obras a partir do Romanceiro Popular Cigano.

Naquele momento, a identificação com a poesia do escritor espanhol impulsionou

Ariano Suassuna a deixar de lado a poesia melancólica inglesa.50

47

COSTA, Luís Adriano Mendes. Antônio Carlos Nóbrega em acordes e textos armoriais. Campina

Grande: EDUEPB, 2011. 48

VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. 49

Ibidem. 50

VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico.

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32

A união desses jovens liderados por Borba Filho gerou importantes frutos para o

teatro e a arte nacional. Em 1946, criam o TEP (Teatro de Estudantes de Pernambuco),

que visava, através de uma dramaturgia ligada a assuntos nacionais, diminuir a distância

entre o povo e a elite. Eles pretendiam também elaborar uma roupagem atualizada para

o teatro no país.

Esse caminho representava algo novo, já que as interpretações do teatro

pernambucano das décadas passadas privilegiavam a dramaturgia estrangeira. Aqueles

jovens buscavam a boa interpretação por meio de temáticas universais inseridas no

contexto brasileiro e folclórico.51

Por conta dessa realização, encontra-se outra semelhança com as ideias de

Lorca. Assim como o poeta espanhol, após retornar de suas viagens pela Espanha,

produziu La Barraca, grupo teatral universitário ambulante, onde realizou montagens

de peças de autores espanhóis consagrados, propósito semelhante ao de Suassuna e seus

jovens companheiros.52

Foi no TEP que Ariano Suassuna, juntamente com outros jovens estudantes, teve

oportunidade de lançar suas primeiras peças teatrais ao público. O grupo teve atividade

ativa até o ano de 1953, quando muitos membros se formaram e seu principal líder,

Hermilo Borba Filho, partiu para São Paulo.

Alguns anos se passaram e em 1960, (re)surgiu o grupo teatral, intitulando-se

herdeiro do TEP. Era o Teatro Popular do Nordeste. Com maior maturidade,

levantavam bandeira contra um teatro estéril e fugaz, sem ligação com a realidade local.

Com manifesto datado de 1961, o grupo foi completado por poetas, pintores, músicos e

escritores.

Todavia foi o Teatro Adolescente do Recife que lançou Ariano Suassuna no Rio

de Janeiro, repercutindo em todo o país, quando em 1956 foi encenada O Auto da

Compadecida, por ocasião do I Festival Nacional de Teatro Amador. Na edição

comemorativa do livro, lê-se em sua introdução:

O grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais,

realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundação

Brasileira de Teatro, foi a representação pelo Teatro Adolescente do Recife,

sob a direção de Clênio Wanderlei, do Auto da Compadecida, de Ariano

Suassuna. Se a interpretação era boa, considerado aquilo que se pode exigir

de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto, até

certo ponto, inexperientes, o que, por outro lado, tinha a vantagem de dar ao

espetáculo um tom de simplicidade, de despojamento, de espontaneidade, que

51

VASSALLO, Lígia. O Sertão Medieval. 52

TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna.

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33

correspondia ao espírito da peça e se enquadrava, no estilo de apresentação

que mais lhe convinha, a verdade é que foi o texto em si o causador do

entusiasmo despertado.53

A obra, que tem origem em folhetos da cultura popular, se torna um marco na

vida literária do escritor. Seu sucesso foi tanto, que ganhou duas versões para o cinema.

A primeira, em 1969, contando com a supervisão de Ariano Suassuna, foi mais fiel à

obra original e à estética armorial que, naquele momento, vivia, segundo Idelette

Santos, sua fase preparatória, entre 1946 e 1969.54

Esse período teve início com a

formação do grupo de jovens artistas universitários e a formação dos grupos teatrais que

buscavam uma aproximação por trilhas da erudição com a cultura popular. Tal período

também compreendeu a transformação e a descoberta que Ariano Suassuna fez de si

mesmo, e de seu acesso a novos universos e realidades literárias.

A segunda produção do Auto da Compadecida ocorreu no ano de 2000. Embora

o filme tenha fugido mais da estética e da ideia armorial da primeira, pode-se ressaltar

que a imagem de pícaro de João Grilo tornou-se mais acentuada que na primeira versão.

Seu sucesso gerou mais repercussão que a primeira, proporcionando ainda maior

destaque a obra de Ariano Suassuna, fazendo com que o autor declarasse, em diversos

momentos ao longo da vida, ser um autor de poucos leitores e de livros pouco

conhecidos, salvo O Auto da Compadecida, obra levada a outras partes do mundo,

tornando o autor conhecido internacionalmente.

3. “Tornar-se” Ariano Suassuna

Segundo Carlos Newton Júnior, Acauhan tornou-se o “reino encantado” de

Ariano Suassuna, que guardava, entre outras coisas, a inocência perdida da infância,

talvez por estarem ali registrados os momentos felizes e as últimas e poucas memórias

da figura paterna.

O autor de Auto da Compadecida preservou em Acauhan o Éden ao qual jamais

retornará, o símbolo de sua eterna busca do pai, para ele o rei idolatrado, livre de

máculas. É possível entender a partir de sua poesia a maneira como ele vislumbrava

Acauhan e qual a imagem que constrói em homenagem ao pai, a quem declarava amor e

devoção.

53

SUASSUNA, Ariano. O Auto da Compadecida. 36ª ed. São Paulo: Editora Agir, 2014, p. 5.

54 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular.

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34

O poema não deixa de ser uma “acusação”:

Aqui morava um rei quando eu menino

Vestia ouro e castanho no gibão,

Pedra da Sorte sobre meu Destino,

Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,

Quando ao som da viola e do bordão,

Cantava com voz rouca, o Desatino,

O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia

Eu me vi, como cego sem meu guia

Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.

Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa

Espada de Ouro em pasto ensanguentado.55

As famílias sertanejas eram marcadas por ligações de parentescos reais ou

simbólicas, o que formava grandes clãs. Com a morte do pai, Ariano Suassuna passou a

fazer parte de um clã destituído e teve que carregar esse estigma, marca de uma

mudança em consequência da qual sua família passou a ocupar o lado vencido.56

Pierre Bourdieu alerta para a necessidade de reconstruir o cenário social em que

o indivíduo atua, lugar caracterizado por uma pluralidade de campos, pois “[...] os

acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço

social”.57

Analisar as questões que marcaram a vida de Ariano Suassuna, tanto do ponto

de vista pessoal, quanto acadêmico e literário, é buscar entender as interseções que

constroem e regem a vida do indivíduo e que o torna resultado de todas as complexas

identidades que o constituem nos mais diversos campos sociais.58

A construção de uma trajetória e de sua representação demonstra, entre outras

coisas, a relação com o contexto que o cerca. Portanto, a história de vida de um

indivíduo pode ser vista como um recurso para o estudo social, que leva o pesquisador

tanto a questionamentos, quanto ao encontro de possíveis soluções para o

esclarecimento das indagações acerca de um determinado contexto histórico. Constitui-

se, assim, a possibilidade de enxergar o passado por meio da existência do outro.59

55

SUASSUNA, Ariano. “Fazenda Acahuan (lembranças de meu pai)”. In: Seleta em Prosa e Verso.

SANTIAGO, Silviano (Org.) Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2007, p. 12. 56

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Pai, do exílio e o reino. 57

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Usos e abusos da história oral. FERREIRA Marieta de

Moraes; JANAÍNA, Amado (Org.) Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1999, p. 190. 58

Ibidem. 59

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”.

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Segundo Philippe Lévillain, “[...] a biografia de um rei ou de um general, não se

confunde com a história dos acontecimentos em que um e outro se envolveram. Mas é

difícil manter-se a distinção”.60

Torna-se possível ao historiador encontrar na biografia,

a partir da análise da construção do indivíduo dentro da sociedade, a porta de entrada

para a compreensão de um contexto e como ele se converte na representação de uma

época. Nesse sentido, entender tanto o contexto de criação da obra suassuniana, quanto

a vivência social do criador, é uma das tarefas de reconstrução do passado, aspecto ao

qual o historiador deve estar atento.

Embora grande parte das obras de Ariano Suassuna descreva cidades que se

assemelham à atmosfera de Taperoá, é possível enxergar em A História do amor de

Fernando & Isaura uma exceção a essa característica presente nessas construções dos

cenários de Suassuna.

A obra propõe uma releitura da lenda de Tristão e Isolda na perspectiva do

Nordeste enquanto cenário, conforme o próprio Ariano Suassuna declarou. Todavia, o

Nordeste aqui apresentado não é o mesmo a que se está habituado nas obras de Ariano

Suassuna, aquele em que se retrata o sertão, mas sim o seu oposto: aquele da região da

zona da mata.

Ao realizar tal distinção, compreende-se que essa região, segundo o olhar de

Ariano Suassuna, encontra-se dividida entre polos, que ele denomina de macho/fêmea,

conforme o texto Encantação de Guimarães Rosa. A Zona da Mata, com suas paisagens

onduladas e suaves seria o lado feminino, já o sertão estaria ligado ao hemisfério

masculino, com seu solo rude, seco, pedregoso, áspero, endurecido em meio à realidade

do cotidiano.61

A História do Amor de Fernando e Isaura ganha vida enquanto proposta de um

ensaio no processo de autodescoberta de Ariano Suassuna em seu papel de romancista.

A obra será o prólogo, que servirá de experimento para A Pedra do Reino.

Como reflexo da criação de A Pedra do Reino, Ariano Suassuna, em diversos

momentos de sua vida, se declarou um cangaceiro ineficaz ou um palhaço frustrado,

deixando evidente que as frustrações que vivenciou em diversas áreas de sua vida foram

recriadas na literatura. Anna Paula Soares Lemos, em seu trabalho intitulado Ariano

Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino (2006), identificou entre os

arquétipos de Ariano Suassuna, os papéis de Profeta, Rei e Palhaço, que, embora

60

LÉVILLAIN, Philippe. “Os Protagonistas”. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 141-184. 61

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial.

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presentes em toda a sua obra, ficam visivelmente característicos em seu Romance d’A

Pedra do Reino, através do personagem Quaderna. 62

A análise comparada de falas tanto de Ariano Suassuna, como as de Quaderna,

permite perceber diversas semelhanças biográficas entre criador e criatura, a exemplo da

paixão pela arte circense em ambos. Manifesta-se Ariano Suassuna:

Já declarei várias vezes que sou um Palhaço e Dono-de-Circo frustrado. Meu

trabalho de escritor, de professor, de falso profeta fraco e pecaminoso, de

cangaceiro sem coragem, de organizador de espetáculos armoriais de música

e de dança, de cavaleiro sem cavalo e de criador de cabras sem terra, não

passa da tentativa de organizar um vasto circo.63

Diz Quaderna, a certo momento do inquérito ao Juiz Corregedor, em duas

situações:

[...] Sempre tive vontade de ter um Circo, e a hora é essa!64

[...] O Circo era o jeito que eu tinha de transformar toda essa Literatura, todo

esse Teatro de Rua em Literatura-de-estrada, isto é, uma Literatura cavaleira

e epopeica”.65

Torna-se comum e viva a presença do circo ao longo de A Pedra do Reino,

desde a Estranha Cavalgada Moura até a empreitada que Quaderna realiza com seu

sobrinho Sinésio, O Alumioso, em busca do tesouro perdido dos García Barreto. Declara

Ariano Suassuna:

O palhaço Gregório inclusive teve um papel muito importante em minha

vida, né?! Ele era o grande palhaço do Circo Estringuine66

, o circo que ia lá a

Taperoá. Eu fiquei de tal maneira agradecido a Gregório, que eu não sei se

vocês repararam, mas no Auto da Compadecida, eu coloquei um palhaço pra

representar o autor. Porque eu considero o Palhaço a figura típica e

emblemática do ator.67

O circo se tornava uma atração de destaque, pois, tratando-se de uma sociedade

marcada pela oralidade, aquele teatro popular ali presente adentrava de maneira mais

livre o cotidiano das pessoas.

Para Antônio Cândido, em A personagem de ficção, a escrita permite ao autor a

transfiguração da sua realidade, e dos que nela habitam, para o mundo da imaginação,

62

LEMOS, Anna Paula Soares. “Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino”.

(Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006). 63

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial, p. 210. 64 SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, p. 606. 65

Idem, 452 – 453. 66

O Circo Estringuine, encontra-se também presente em A Pedra do Reino, relacionada a primeira

experiência sexual das personagens Quaderna e Arésio. 67

MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004).

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em um processo de busca por verossimilhança articulando fantasia e realidade, de modo

a estampar a complexidade da existência tanto no universo imaginário quanto no

universo físico e psicológico. Nesse processo, a memória do autor se torna peça

fundamental, aliada à imaginação, no ato de criação: “[...] o romance se baseia, antes de

mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício manifestada através

da personagem”.68

Embora as personagens de Ariano Suassuna se apresentem às vezes de um modo

grotesco e exagerado, considerando daquilo que concebemos como a realidade, sua

expressão é a manifestação do mundo pelo olhar transformador do artista ao interpretar

o mundo.69

Apesar de na esfera literária Ariano Suassuna ser um autor mais conhecido

primeiramente por seu teatro e pelos romances, foi a poesia que deu início a esse

processo, e o que proporcionou sua transformação enquanto escritor. O próprio Ariano

Suassuna declarou que sua poesia era a fonte profunda de tudo aquilo que escreveu.70

Sobre A Pedra do Reino, afirmou ter sido construída através de um poema contido no

folheto XLIV do romance, A Visagem da Moça Caetana: 71

Eu não sei se você já reparou aquilo é um poema, e eu escrevi aquele poema,

consciente do que “tava” escrevendo, quer dizer, até o ponto em que a gente é

consciente, porque se você olhar bem, ali está, todo o núcleo da Pedra do

Reino, “tá” certo? Então aquilo ali pra mim é o capítulo mais importante da

Pedra do Reino, é aquele, que se chama a “Visagem da Moça Caetana”,

porque ele contém, uma exposição do centro vital do romance, e uma

exposição que aí foi talvez, foi talvez não, foi com certeza involuntária,

aquilo é uma, é como que uma soma de toda a minha literatura, tudo que eu

procuro com a minha literatura, quando ela diz assim: “você está tentando em

vão reedificar seus dias para sempre destroçados”, é isso mais ou menos que

eu tendo com a literatura.72

No trecho “vão reedificar [...] seus dias para sempre destroçados” é possível

perceber que a literatura foi a maneira encontrada pelo escritor para fazer justiça a si e à

sua família, pela morte do pai, assim como pelos estigmas aos quais foram condenados.

Mas foi o Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta

sua grande realização, sua “[...] terrível história de amor e de culpa; de sangue e de

68

CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 40. 69

A relação entre o exagero e o grotesco que caracterizava a cultura popular nos períodos de liberdade a

que tinham direito, durante o período do carnaval, buscando com isso demostrar de maneira inversa e

critica através da comicidade a sociedade em que viviam, é discutida por Bakhtin em A cultura popular

na Idade Média e no Renascimento. 70

NEWTON JÚNIOR, CARLOS. O Pai, do exílio e o reino. 71

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 305. 72

MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna (2004).

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justiça; de sensualidade e violência; de enigma, de morte e disparate [...]” como declara

Quaderna.73

A literatura é, por vezes, o caminho pelo qual procura fazer-se a justiça,

autores que por esse caminho expõe as chagas de uma época.74

A poética popular de Ariano Suassuna se constrói com a soma do desejo de

concretizar seu maior intento, o de fazer justiça diante da morte do pai, e tal qual o

personagem Quaderna, que percebendo não possuir talento para as armas, resolve

conquistar a coroa roubada, a glória de sua família, através da literatura, tornar-se autor

da maior obra da literatura brasileira, agraciada por seus grandes mestres da literatura

nacional, José de Alencar e Euclides da Cunha.

Ariano Suassuna busca, na construção literária, fazer justiça a sua família e

assim bradar e se vingar do assassinato do pai, por ele considerado covarde, conforme

declara:

Na década de 1950 tentei escrever uma biografia de meu Pai, a "Vida do

Presidente Suassuna, Cavaleiro Sertanejo". Chamei-a assim porque sempre

vi Suassuna como um Rei e Cavaleiro: entre outras coisas ele tinha três

Cavalos de sela, todos com nomes de Cangaceiros do grupo de Lampião:

Passarinho, Bom-Deveras e Medalha. Não consegui escrever o livro, por

causa da carga de sofrimento que ele me acarretava.75

O desejo de exorcizar-se de seus fantasmas ainda não seria realizado. Não havia

outra alternativa ao escritor, além de deixar de lado o trabalho a que se prontificara

realizar na vida. Todavia, algum tempo depois, Ariano Suassuna passou a tomar as

notas do que se tornaria a representação física de seu amadurecimento, como também o

que pretendia como a grande síntese de todo o seu trabalho de até então, a sua obra-

prima. Essa iniciativa resultou no Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue

do Vai-e-Volta. Nela, há transfigurações tanto do universo interno, quanto externo,

tornando-a atemporal.

O trabalho criador seria o encontro, em graus variáveis, da memória, da

observação e da imaginação. Trata-se de uma situação complexa, que nem mesmo o

próprio autor seria capaz de determinar a proporção que cada elemento toma no

processo de produção, separando aquilo que é consciente e do que é inconsciente.76

73

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 35. 74

GAY, Peter. Represálias Selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave

Flaubert e Thomas Mann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 75

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. 76

CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção.

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Embora se possa perceber nas palavras de Quaderna ecos da voz de Ariano

Suassuna, jamais se deve confundir a realidade de um indivíduo com a realidade criada

e recriada de um personagem. Como adverte Mário Vargas Llosa, a ficção não deve ser

confundida com a realidade, todavia faz parte desta. O escritor ao "mentir" expressa

distintas verdades, pois a própria realidade é transformada, a partir do momento em que

compreendemos que “as coisas não são como vemos, mas como as recordamos”.

Escrevem-se os romances e com eles modifica-se a vida, de forma que os fatos sejam

embelezados ou piorados.77

Aí, à medida que eu ia crescendo, essas ideias iam cada vez mais se

enraizando no meu sangue. Eu ouvia, decorava e cantava inúmeros folhetos e

romances que me eram ensinados por Tia Filipa, por meu Padrinho-de-crisma

João Melchíades Ferreira, e pala velha Maria Galdina, uma velha meio

despilotada do juízo, que nos frequentava.78

Eis que ao se observar a fala de Quaderna, que tal qual Ariano Suassuna cresce

em meio a folhetos de cordel da arte popular e aos velhos que transmitiam por meio da

oralidade as cantigas antigas, e também igualmente a Ariano Suassuna, alimenta um

desejo de vingança, no processo de formação da sua personalidade.

Quaderna, assim como Ariano Suassuna, nas palavras de Newton Júnior, faz

parte de um clã vencido e, diante desse fato, tenta poeticamente transformar a história

de sua família, que de fanáticos religiosos e assassinos convertem-se nos verdadeiros

representantes da "raça brasileira".79

A Pedra do Reino seria a maneira que Ariano Suassuna encontrou para

conseguir preservar a imagem paterna presente, já que sua existência lhe era negada. O

processo de preservação e construção dessa memória e com que o escritor transformasse

o pai em um herói sertanejo, cavaleiro andante, defensor da honra e da justiça.

Ainda criança, Ariano Suassuna teve contato, por meio de seu tio, Joaquim

Duarte Dantas, com a história de Dom Sebastião, O Desejado, que povoará a

imaginação do garoto, dando-lhe, a partir de então, composições que lhe acompanharão

no decorrer da vida. Ariano Suassuna funde a mística presente na história de Dom

Sebastião à figura paterna e alimentou a ideia esperançosa de que este rei sertanejo um

dia retorne para os seus. Da memória de João Suassuna reconstituiu fragmentos e desses

fragmentos ergue o seu castelo literário, com seu rei.

77

LLOSA, Mário Vargas. A verdade das mentiras. Trad. Cordelia Magalhães. São Paulo: ARX, 2004, p.

23. 78

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 89. 79 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino.

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Um rei como D. Sebastião ou Carlos Magno da França. Na sua dedicatória de A

Pedra do Reino, lê-se:

Em memória de JOÃO SUASSUNA,

José de Alencar, Jesuíno Brilhante, Sylvio Romero, Antônio Conselheiro,

Euclydes da Cunha, Leandro Gomes de Barros, João Duarte Dantas, Homero

Torres Villar, José Pereira Lima, Alfredo Dantas Villar, José Lins do Rego e

Manuel Dantas Villar,

Santos poetas, mártires, profetas e guerreiros do meu mundo mítico do

Sertão, oferece, dedica e consagra, ARIANO SUASSUNA.

Nessa passagem fica clara a importância de certas personagens para o autor, e

como a maior delas, João Suassuna, encabeça as demais, a exemplo do icônico Carlos

Magno, o rei herói e seus Doze Pares da França.

No ano de 1990, Ariano Suassuna tornou-se um dos imortais e em seu discurso

de posse da Academia Brasileira de Letras, declarou:

Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino

que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto

da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que

escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo,

buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos

outros, das palavras que o pai deixou.80

Naquele ano de posse, contava Ariano Suassuna com 63 anos. A sua fala

emotiva, ao evocar a morte do pai, mostra o quanto o peso daquela fatalidade era forte e

presente em sua vida e como a imagem trágica ainda preservou-se no mundo de

Suassuna, como ele também declarou no mesmo discurso: “[...] Em algumas ocasiões

lanço mão do riso para me defender, porque, como sertanejo, não gosto de ser visto

dominado pela emoção”.

Carlos Newton Júnior, em obra já citada, demonstra os passos que fizeram

Ariano Suassuna utilizar-se do cômico, deixando de lado a melancolia característica das

influências dos poetas ingleses, para lançar mão do riso, utilizando-se da farsa e da

mentira e assim representar as tragédias sombrias da humanidade, transforma o seu

mundo interior com temáticas universais.81

O próprio Suassuna se declarava um grande

mentiroso, que através da criação tornava o riso uma maneira de engabelar seus

80

SUASSUNA, Ariano. “Discurso de posse da Academia Brasileira de Letras”. Disponível em:

http://www.academia.org.br/academicos/ariano-suassuna/discurso-de-posse Acesso em: 12 de mar de

2017. 81 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino.

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ouvintes, como se descobrisse no riso uma forma de encontrar e dizer aquilo que

desejava.

A universidade representou o encontro de Suassuna com a possibilidade de

desenvolver de maneira diversa sua arte. A partir dali seus trabalhos passam a refletir o

mundo triste não somente pela face da melancolia como também pela comédia,

tornando-o um artista tragicômico, que absorve o sofrimento do mundo e o externa por

meio do riso.

Segundo Tavares, Ariano Suassuna credita dois fatos importantes em sua

mudança de postura: o primeiro foi a influência de João Cabral de Melo Neto, para que

ele se dedicasse à comédia: “Você é muito engraçado conversando, mas só quer

escrever coisas trágicas”; o segundo, seria o encontro de sua vida: teria o amor por

Zélia lhe lançado o raio de sol necessário para que o fizesse sair da escuridão na qual

havia imergido e que creditava ao mundo.82

No dia 18 de outubro de 1970, o concerto Três Séculos de Música Nordestina:

do Barroco ao Armorial, da Orquestra Armorial, realizado na Igreja de São Pedro dos

Clérigos, no Recife, oficializou o movimento que dava corpo a todos os esforços de

Ariano Suassuna e seus companheiros, desde os teatros amadores do tempo da

faculdade até os encontros, na vida adulta, do Gráfico Amador, para realizar uma arte

erudita com raízes populares.

Na ocasião, houve a apresentação de trabalhos de diversos artistas das mais

distintas áreas, entre eles Ariano Suassuna, que despontava como romancista. Em 1971,

com os armoriais ainda em atividade foi lançada a obra Romance d’A Pedra do Reino e

o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.83

Aí eu imaginei, congregar, um grupo de artistas, pra que nós juntos, nós

procurássemos, cada um em seu campo, uma arte erudita brasileira

fundamentada na raiz popular da nossa cultura. Essa era a Arte Armorial.

Agora, ao mesmo tempo, com o Movimento Armorial, eu pretendia fazer do

nosso trabalho, uma ponto de lança pra gente lutar contra esse processo de

descaracterização e vulgarização da cultura brasileira.84

82

TAVARES, Bráulio. Abc de Ariano Suassuna. 83

“[...] No ano seguinte, a segunda exposição de arte armorial, realizada na Igreja de Rosário dos Pretos,

em 26 de novembro de 1971, confirmava a proclamação de Suassuna”. SANTOS, Idelette Muzart

Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular, p. 21. 84

MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Ariano Suassuna, (2004).

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Diferentemente do Movimento Modernista de 1922, houve pouca repercussão da

crítica e da imprensa locais quanto ao Movimento Armorial (1970). Sua maior

sonoridade se deu em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Segundo Newton Júnior, somente após a recepção do Sul e Sudeste foi que

alguns veículos locais noticiaram o Movimento, cuja concepção visava retratar e

enaltecer a cultura popular nacional, focada no Nordeste, em especial, Pernambuco.85

Os registros de jornais do período comprovam a maior receptividade que Ariano

Suassuna possuía no sul do país, com enfoque no Rio de Janeiro, onde se encontram, ao

longo dos anos, notas das produções teatrais com as obras do autor.

Em 1971, o movimento, ainda em sua primeira fase, apresentaria um segundo

concerto, com o agora Quinteto Armorial, no dia 26 de novembro, na Igreja Rosário dos

Pretos.86

Segundo Luís Costa, além da apresentação musical, ocorreu juntamente uma

exposição de artes plásticas, em madeira, cerâmica, desenho e tapeçaria.87

Nota-se certo desacordo por parte de seus estudiosos em referência às fases do

movimento e divergindo-se sobre se ele teria ou não se findado. É fato que, tendo em

Ariano Suassuna um de seus fundadores e maior representante, a vida do Movimento

estaria ligada a própria vida do autor.

Em seu importante e pioneiro trabalho sobre o Movimento Armorial, Idelette dos

Santos declara a dificuldade em demarcar uma época de encerramento de suas

atividades.88

Para a autora ele apenas se transforma, não mais sendo um movimento

cultural, mas torna-se uma referência estética e histórica.

Todavia, ela entende o ano de 1981 como um marco decisivo para Ariano

Suassuna e também para o Armorial. É nesse momento que Suassuna, em uma carta

publicada no Diário de Pernambuco, declara se afastar da vida pública e literária.

Ariano Suassuna afirma encontrar-se em um momento de reflexão. A Pedra do

Reino, como ele mesmo dirá posteriormente, tornou-se um equívoco de interpretação do

Brasil. O autor que escreve a obra na ânsia de combater a visão vitoriosa do governo

pernambucano sobre Princesa, em um maniqueísmo entre o bem e o mal, credita ao

município rebelado a alcunha de “Nova Canudos”, percebe no momento de isolamento,

85

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada. 86

O Quinteto Armorial foi uma nova experiência de Ariano Suassuna, que em conflito com Cussy de

Almeida, representou uma cisão dentro do próprio Movimento. Enquanto Almeida defendia uma unidade

musical do movimento, Ariano advogava a presença dos instrumentos populares na música Armorial,

apresentando dessa maneira, características mais próximas da realidade sertaneja. COSTA, Luís Adriano

Mendes. Antônio Carlos Nóbrega em acordes e textos Armoriais. . 87

Idem. 88

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética Popular

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em um exame de consciência que “[...] no caso de Canudos, eram tropas urbanas [...] a

serviço dos privilegiados, acabando um arraial popular, e Princesa não era. Eram

privilegiados da cidade, lutando contra privilegiados do campo”.89

Ao se associar o silêncio de Suassuna ao do Movimento compreende-se a

importante relação e a simbologia que ele possui frente ao Armorial, não somente em

sua construção, mas no campo da representatividade.

89

SUASSUNA, Ariano. Programa Roda Viva.

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CAPÍTULO II

SUASSUNA E AS PEDRAS NO CAMINHO: POLÍTICA E CRIAÇÃO

LITERÁRIA.

1. Conflitos Oligárquicos: da Paraíba ao cenário nacional.

Recife, 1930. É assassinado o presidente do estado da Paraíba, João Pessoa. Em

um contexto de desentendimentos políticos, sua morte abrirá uma fenda, impossível de

ser fechada, ao menos do ponto de vista de Ariano Suassuna.

Um turbilhão de transformações acaba por alterar as estruturas do poder político

no estado. Trata-se de um capítulo corriqueiramente lembrado, em função de sua

relevância para a história nacional, um cisma entre a “velha república” em seus últimos

momentos de agonia e a “nova” que surgia. Um passado que então passa a ser visto

como arcaico.

O presidente paulista, Washington Luís (1869 – 1957), foi deposto no golpe

contra o governo federal, pelos rebeldes em outubro de 1930, em momento próximo ao

fim de seu mandato.

Com as crescentes desavenças entre São Paulo e Minas Gerais, a deterioração

das conhecidas estruturas econômicas, sociais e políticas, as oligarquias dissidentes,

gaúcha e paraibana, se unem a Minas Gerais formando a Aliança Liberal, grupo que

tinha como objetivo vencer os paulistas nas eleições daquele ano.

Embora o plano não tenha obtido o êxito pretendido durante o percurso da forma

que era esperado, Getúlio Vargas, todavia, alcança o poder, levando por fim à ruptura

do eixo São Paulo-Minas Gerais.

Segundo Boris Fausto, essa situação é um “Reflexo e ao mesmo tempo parte

constitutiva de um conjunto de transformações que ocorrem na sociedade brasileira [...]

das principais linhas da estrutura econômica e social da República Velha”.90

A dominação do setor agroexportador cafeeiro, durante a Primeira República,

não deve ser vista com características lineares. As inúmeras crises enfrentadas, somada

90

FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org). Brasil em Perspectiva.

Rio de Janeiro: Ed Bertrand Brasil, 20ª ed. 1995, p. 227.

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à superprodução do produto e as diversas oscilações do mercado externo, decorrentes de

eventos como a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) e a Grande Depressão de 1929,

ocasionaram conjuntamente rupturas dentro da própria estrutura oligárquica.

Essa realidade demonstra, dentre outras coisas, a grande dependência em relação

ao capital externo, tanto por ter no exterior a maior soma de seu mercado consumidor,

como aos empréstimos concedidos ao país.

A política de valorização do café, iniciada em 1906, demonstrou-se ineficiente

com o decorrer das décadas, pois tanto a União quanto os estados não foram capazes de

arcar com os encargos financeiros ocasionados por ela.

Embora tal sistema tenha conseguido garantir uma significativa rentabilidade do

setor cafeeiro, daquele momento até 1930, se apresentou falho em diversos aspectos.

Dentre os motivos que acarretaram tal situação, além dos fatores financeiros, havia a

deficiência em atender às necessidades da sociedade que se transformava e da tímida

classe média que surgia, ansiando por mudanças no meio político e econômico, ainda

que não possuísse peso social significativo nesse novo cenário.

O corpo social brasileiro, durante a Primeira República, não pode ser

simplificado como uma engrenagem que se limite somente ao setor agroexportador.

Mesmo como setor forte, encontrava-se sujeito à monocultura, que se deparava com as

oscilações do mercado internacional, o que demonstra sua grande dependência a uma

esfera maior.

As disputas políticas em torno da presidência da República, em suas primeiras

décadas, não apresentavam opções viáveis em contraposição aos grupos dominantes do

café e de seu poder econômico. Deixando de lado, inclusive, antigas oligarquias que na

dança das cadeiras do poder, perdiam posições no jogo de interesses.

Tal característica, ausência de novas possibilidades, se dava inclusive pela

realidade atípica do Brasil, onde a pequena industrialização urbana estava diretamente

ligada à burguesia agrária, o que fazia com que todo o setor oligárquico, e onde seu

poder alcançasse, acabasse sendo legitimado pelo Estado, tamanho o seu poder e

influência.

Todavia, deve-se encarar o fato de que, embora houvesse predominância desse

setor na liderança política e econômica do país, gerando como consequência

desequilíbrio de poder, em relação aos outros grupos e facções dos demais estados, elas

existiam e representavam interesses financeiros afastados da hegemonia do café.

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Ocorre, portanto, um encontro de forças entre as aspirações dessa tímida classe

média e de oligarquias afastadas dos grandes centros do poder, algumas em declínio,

contra os senhores do café, até aquele momento mandatários da política do país. Esse

novo grupo que se forma dentro de uma mescla de posicionamentos, interesses e

aspirações, se une com um objetivo maior, o de romper a estrutura de poder hegemônico

da “Velha República”.

A sucessão presidencial, em 1929, e suas disputas marcam a história do período,

a partir de uma expressão mais ampla por meio da formação da Aliança Liberal.

A Aliança Liberal reflete estas características do sistema social existente.

Ela nasce de um acordo entre Estados cujos interesses não estão vinculados

ao café, mas a forma regional das reinvindicações não é destituída de

significado. Pelo contrário, a regionalização se expressa nas condições

políticas em que se dá a cisão da classe dominante, no fim da década de 20.

[...] A Aliança [...] é soma das reinvindicações de vários grupos

desvinculados da economia cafeeira.91

.

Deve-se raciocinar, todavia, que esse processo de disputas políticas e o

movimento de 1930 são episódios que, embora tenham ocorrido em um curto espaço de

tempo, não sofreram uma ação direta de causa e efeito, já que, segundo Fausto, as forças

do primeiro evento não são exatamente as que lideraram a revolução.92

Ou seja, a

formação da Aliança Liberal não seria suficiente para explicar por completo a tomada

do poder central.

O percurso dessa ruptura é marcado por intrigas familiares e políticas,

assassinatos, propagandismos, conflitos armados e as consequências advindas das

próprias modificações de uma época.

Na cidade da Paraíba, então capital do estado de mesmo nome, em 22 de outubro

de 1928, João Pessoa (1878 – 1930) toma posse do cargo de governador, substituindo a

João Suassuna (1886 – 1930), graças à influência do então senador e ex-presidente da

república, Epitácio Pessoa (1865 – 1942).

Líder político da Paraíba, Epitácio, percebendo a redução de seu poder e

controle sobre a política do estado, indica para candidato ao governo seu sobrinho João

Pessoa, substituindo assim a ameaça que a chapa sucessora de João Suassuna passara a

representar. Conforme relatos da época, inclusive na imprensa periódica, havia uma

grande tensão entre o patronato intelectual e de liderança de Epitácio Pessoa, contra o

91

FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”, p. 234. 92

Ibidem.

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ex presidente João Suassuna, que tentava criar seu próprio território eleitoral a partir da

candidatura ao senado e da indicação de candidato próprio ao governo do estado, como

retrata o Correio da Manhã em 1926. “Com insistência se fala na possibilidade do sr.

João Suassuna deixar o governo da Parahyba, renunciando, a fim de ser eleito

senador”93

Segundo o historiador José Octávio Arruda Mello, Epitácio se sente afrontado,

após a declaração de Zé Pereira, que compondo a chapa de Suassuna, alega ser seu

poder somente simbólico para os mandos políticos do estado.94

Todavia a influência de Epitácio se mostra maior, com o apoio do presidente

Washington Luiz. João Pessoa é então lançando como presidente do estado, para coibir

o avanço das forças opositoras à figura de líder estadual de seu tio. Claro foi o

descontentamento de João Suassuna, frente aos acontecimentos. Novamente O Correio

da Manhã relata:

O sr João Suassuna é, como governador da Parahyba, presidente da

commissão executiva. Devia nesse caráter presidir a convenção que escolheu

o senhor João Pessoa para seu successor. Mas porque não pode fazer seu

candidato e sim o sobrinho do sr. Epitácio, resolveu não comparecer. E os

trabalhos foram dirigidos pelo sr. José Gaudencio.

Tudo fez o sr Suassuna para que a convenção não se reunisse senão em julho

ou agosto, quando o ex-presidente da República estivesse na Europa. 95

É evidente que as eleições daquele ano já transmitiam a insatisfação local de

muitos membros da elite que João Suassuna representava. Era ele a representação da

figura de um coronel, suas ideias e intentos claros diante de seu descontentamento frente

ao poder que pretendia alcançar.

João Pessoa foi eleito, seguindo o desejo de Epitácio Pessoa. Em seu discurso de

posse, provoca o descontentamento da plateia dos líderes locais, por enfrentar com

“novas ideias” o poder consolidado de antigos chefes políticos.

Senhores deputados, agradeço cordialmente a vossa manifestação. Recebo-a

primeiro com a demonstração pública das disposições em que vos achais de

colaborar dentro das vossas funções constitucionais com o novo governo e

depois com a promessa de que essa colaboração não faltará enquanto for boa

a gestão dos negócios públicos. (...) Não há democracia sem boas eleições,

93

Correio da Manhã “No mundo político: sr Suassuna”. Rio de Janeiro, 03 Out de 1926, p. 04. 94

GOULART, Geraldo. “PRINCESA do Sertão”. Produção: TV Senado, 2010. Documentário: 02’06”.

https://www.youtube.com/watch?v=AHcIY5-0I9o Acesso em: 18 de agos de 2018. 95

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 maio de 1928, p. 04.

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não há boas eleições sem bom eleitor, não há bom eleitor sem voto

consciente e não há voto consciente sem eleitor independente. 96

Ernani Satyro (1911 – 1986), ex-governador da Paraíba e por oito vezes

deputado federal pelo estado, além de político de destaque no estado, teve importante

papel no universo das letras, sendo membro da Academia Paraibana de Letras e da

Academia Brasileira de Letras. Conterrâneo de Ariano Suassuna, dizia nutrir uma

admiração pela pessoa de João Suassuna, de quem guardava lembranças em sua

infância.

Postumamente tem seus ensaios políticos reunidos e organizados. Em sua

impressão a respeito dos acontecimentos que marcaram a o estado Paraíba no final da

década de 1920, declara em seu discurso, a respeito de João Pessoa:

[...] pregava uma ação vigorosa contra os maus costumes políticos, reclamava

contra as impurezas do voto e a ação dos cabos eleitorais. Por aí, bem se

podia pressentir a tempestade que se aproximava. Seu governo foi uma

pequena revolução [...] modificavam a fisionomia política e administrativa do

estado. 97

De acordo com Fausto, dentre outros pontos, “a grande arma e denominador

comum da Aliança é a defesa da representação popular, através do voto secreto”.98

Essa

questão estava presente nas palavras de João Pessoa, o que demonstra sua inclinação às

ideias defendidas pelo movimento da Aliança Liberal, já em sua posse, modificando o

costume de uma época.

A Aliança Liberal era uma tentativa de coibir a ação das facções até então no

poder e atender às ambições dos grupos políticos “esquecidos”, que não partilhavam na

mesma medida os benefícios do comando central. Assim, buscava-se revigorar o poder

de Epitácio, além das classes médias urbanas que surgiam e passavam, embora ainda

receosamente, a representar um novo papel na sociedade.

Próprio da política dos coronéis, a máquina estatal servia aos interesses dos

líderes locais, gerando submissão paternal para com o coronel de uma determinada

região, impedindo dessa maneira ações imparciais e igualitárias, afinal, ao padrinho não

se ofende e, portanto, não se cobra, conforme a dinâmica do sistema oligárquico e do

coronelismo.

96

Trecho extraído do discurso de posse de João Pessoa em 22 de outubro de 1928, em documentária

GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão. 97

SÁTYRO, Ernani, 1911 – 1986. Série perfis parlamentares nº 61. Seleção e apresentação

FERNANDES, Flávio Sátiro (Org) – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011, p. 155. 98

FAUSTO, Boris. “A Revolução de 1930”, p. 235.

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Dentre as ações pretendidas por Pessoa, as quais muito irritaram os coronéis,

estava o desejo de tomar o controle da máquina burocrática do estado, passível de uma

arrecadação ineficiente e deficiente. Sendo os cargos públicos preenchidos por meio de

indicação, a arrecadação tornava-se seletiva, “pois do amigo não se cobrava”, gerando

grandes dívidas ao governo que não conseguia dessa maneira sanar seus

compromissos.99

Relatado pela história nacional, uma das primeiras mudanças do presidente João

Pessoa foi a tentativa de renovar o quadro político do estado, impedindo a recandidatura

de figuras já tradicionais. João Pessoa a denominava de sadia renovação republicana.100

Era uma tentativa de frustrar e limitar o alcance da influência dos chefes locais,

ultrapassando muitas vezes a do próprio governo estadual.

Contudo, o primo do governador, Carlos Pessoa, foi agraciado pelo próprio João

Pessoa da imunidade de sua imposição, o que aumentou ainda mais a revolta dos líderes

contra o governador, dando-lhes motivo de rechaçar a figura e as imposições de Pessoa.

Em decorrência das diversas medidas e posicionamentos do governo, a exemplo

da retirada de poder dos coronéis, das ações tributárias do estado, da tentativa em

modificar o sistema de funcionamento e favoritismo do estado, Zé Pereira (1884 –

1949) e João Pessoa travam uma luta sem trégua pelo poder na Paraíba.

O Coronel foi apoiado de maneira não declarada pela administração federal, que

não via com bons olhos as mudanças e a inclinação do novo governador às ideias da

Aliança Liberal. Havia ainda o descontentamento de parte dos parentes de João Pessoa,

devido à preferência de Epitácio por ele. O coronel em vida negaria tal apoio por parte

do governo federal:

Comecei com setecentos e cheguei a ter um exército de dois mil homens, dos

quais apenas oitocentos estavam bem armados. E quanto a essa história que

anda espalhada por aí, de que Washington Luís e Júlio Prestes me ajudavam

com armas, é mentira. Eles nunca me amparam em momento nenhum da luta.

Quem me auxiliou foi um grupo de amigos particulares da Paraíba, de

Pernambuco e de São Paulo. 101

Zé Pereira tomou para si as dores dos coronéis, em especial, como o próprio

viria a declarar anos depois, a do ex-presidente do estado João Suassuna, a quem dizia

devotar grande estima, ao qual João Pessoa havia proibido a recandidatura.

99

RODRIGUES. Inês Caminha L. A Revolta de Princesa. 100

GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão. 101

O Cruzeiro, “A Campanha de Princesa”, Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1949, p. 98.

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Como consequência, em fevereiro de 1930, Zé Pereira proclamou o Território

Livre de Princesa, com hino e bandeira próprias, símbolos de sua pretensa autonomia

territorial e política. O levante, embora aparentasse fraco em face das forças do governo

estadual, foi subestimado por João Pessoa. No entanto mostrou-se resistente, em

especial por meio da rede de relações e respeito que o coronel Pereira possuía.

O conflito de interesses entre as forças políticas da Paraíba foi o princípio do que

culminaria na Revolta de Princesa e com ela a notoriedade das mortes de três Joãos

ligados ao mandonismo do estado, João Pessoa, João Dantas e João Suassuna.

Colocando em andamento o projeto de reerguer as finanças do estado, mesmo

que para isso mudasse o tradicional sistema de arrecadação seletiva e da tributação

comercial, João Pessoa ia assim de encontro aos interesses dos coronéis e dos

comerciantes locais.

Através da Lei nº 673, de 17 de novembro de 1928, João Pessoa “obrigou” aos

comerciantes paraibanos, em especial do interior, a comercializarem os produtos

oriundos do litoral do estado. Com um rígido sistema para a arrecadação de tributos

passa a distinguir as mercadorias importadas por meio do Porto de Cabedelo (PB), entre

as trazidas por via terrestre do estado vizinho do Pernambuco, até então livres de

quaisquer tarifações.102

Esse episódio foi denominado de “Guerra Tributária”, a primeira que João

Pessoa enfrentaria e que teria prosseguimento com o conflito de Princesa. O confronto

teve seu principal espaço de manifestação nas páginas de dois periódicos: o Jornal do

Comércio, pertencente aos primos enciumados do presidente, os Pessoa de Queirós, e A

União, órgão oficial do governo do estado, que via com bons olhos e defendia as ações

da nova administração.

Por meio do conflito, prosseguiu uma tentativa cada vez maior, por parte de João

Pessoa, de desprestigiar o poder dos coronéis, chegando ao limite do desarmamento

destes.

Embora as medidas do governador tenham proporcionado resultados

satisfatórios à economia do estado, possibilitando o saldo de compromissos financeiros,

não foi o suficiente para impedir o descontentamento da classe dominante nos tempos

passados.

Entre os descontentes destacava-se José Pereira Lima, como já mencionado, tido

como um dos maiores coronéis do Nordeste, cujo prestígio ultrapassava a esfera

102

GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão.

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51

estadual, atingindo o âmbito federal. Com importantes negócios no vizinho

Pernambuco, Zé Pereira foi grandemente prejudicado com a política de João Pessoa,

não só financeiramente, mas simbolicamente.103

Antecessor a João Pessoa, o governo de João Suassuna representou uma política

de poder e autonomia em relação aos coronéis, desvinculando-se do controle que

Epitácio representava na política da Paraíba.104

Ariano Suassuna, em seus depoimentos refere-se à força que Zé Pereira

representava, a liberdade que o governo de seu pai proporcionou aos chefes políticos.

Revelando a maneira como se dava o jogo de poder, alcançando a intimidade do espaço

familiar, uma possibilidade de laços estreitados de forma mais segura, o afetivo: “Zé

Pereira era prestigiado por todos os governadores, inclusive por meu pai, ele era

inclusive padrinho de minha irmã mais velha, Selma, e eram amigos pessoais, e meu pai

no combate ao cangaceirismo, dava todo o prestígio a Zé Pereira”.105

João Pessoa embora fruto da estrutura social dominante, se esgueira para fora

desta, onde seus valores estavam aquém do sistema organizacional conhecido. Não se

pretende, a partir disso, sugerir que João Pessoa tenha sido um “revolucionário”

disposto a mudar todo um conjunto de práticas e normas enraizadas historicamente na

sociedade, especialmente em uma região como o Nordeste.

Deve-se compreender o novo governador como um homem fruto de seu tempo,

possível resultado das transformações que o país passava, reflexo de uma sociedade

com traços urbanos que surgiam timidamente. Eventualmente, há de se reconhecer a

própria história de sua figura: filho de um modesto funcionário público, advinda do lado

materno, sua ligação com uma nobreza passada e com a tradição oligárquica. Derivou

também do lado materno, em companhia de um tio militar, a oportunidade de residir em

um significativo número de cidades absorvendo vivências e experiências diversas.

As atitudes e pensamentos de João Pessoa na Paraíba, considerados

insubordinadas por uns e renovadoras por outros, foram ganhando repercussão nacional.

Somou-se a essa circunstância a negativa do governador em apoiar a chapa oficial do

governo de Washington Luís, juntamente, e mais uma vez, sob a influência de Epitácio

Pessoa, o que acarretou sua indicação à Aliança Liberal.

103

RODRIGUES, Inês Caminha L. A Revolta de Princesa. Além de sua influência ser retratada em

jornais do período é homenageado por Ariano Suassuna em A Pedra do Reino, como uma das grandes

figuras brasileiras, em uma analogia aos 12 pares da França. 104

GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão. 105

Trecho extraído do discurso de posse de João Pessoa em 22 de outubro de 1928, em documentário GOULART, Geraldo. PRINCESA do Sertão.

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As relações oligárquicas de poder na Paraíba não fugiram às regras dos demais

estados. A “Velha República” perpetuou-se, em muitos aspectos, como uma extensão da

dominação presente no Império. O Nordeste que, em um passado não tão distante,

dominara a economia do país e consequentemente sua política, perdia espaço para a

política do café na região Sudeste em relação ao governo central, sua participação

política permanecia na representação de líderes estaduais, que se ligavam à hegemonia

dos estados de São Paulo e Minas Gerais. No caso da Paraíba, Epitácio Pessoa era tal

representante, ex-presidente da República.

A negativa de apoio à chapa oficial irá reverberar posteriormente, quando, com o

conflito de Princesa, o governo central se colocou em apoio aos amotinados da Paraíba,

negando a ajuda necessária ao poder oficial.

Conforme propõe o historiador Edward Carr, torna-se indissolúvel e sem sentido

a separação entre os acontecimentos que regem a vida do indivíduo e aqueles que

acarretam o cotidiano e as transformações da sociedade.106

É fato que o assassinato de

João Pessoa ocorreu por motivos passionais, mas não se pode negligenciar que a mão de

João Dantas ao puxar o gatilho carregava muito mais que intrigas amorosas.

É possível se considerar a hipótese de que os ânimos de amargura alimentados

desde a posse de João Pessoa, considerada “subversiva”, seus pensamentos diante das

transformações políticas e suas atitudes não canônicas de administração até a revolta de

Princesa, acabaram por envolver a figura de João Dantas, por razões de caráter pessoal,

narrativa encontrada em jornais da época.

RECIFE, 26 (A, A) – Está sendo ouvido na Chefatura de Polícia o dr. João

Duarte Dantas. Confessa que matou o presidente João Pessoa por uma

questão de honra pessoal. Declarou [...] estar o presidente movendo

campanha de difamação a sua honra pessoal. Acrescentou que não está

arrependido, pelo contrário está tranquilo e aguardando a ação da justiça.107

João Pessoa foi transformado em mártir, em um contexto de uma histeria

coletiva, e João Dantas em um louco assassino, vingativo e suicida: “É certo que havia

entre o morto e o assassino ódios antigos. Toda a gente, mesmo muitos dos adversários

do sr. João Pessoa, apontava João Duarte Dantas como oposicionista feroz e capaz de

eliminar o presidente da Paraíba”.108

106

CARR, Edward Hallet. “A Sociedade e O Indivíduo”. In: O Que é História?. Trad.: Lúcia Mauricio de

Alverga. Rio de Janeiro: Editora Paz & Terra, 3ª ed., 1982. 107

Correio Paulistano. São Paulo, 27 de julho de 1930, p. 02. 108

Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 27 de julho de 1930, p. 04.

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O documentário, Princesa do Sertão, uma produção da Tv Senado, que narra os

motivos que desembocaram na Revolta de Princesa, desde a posse de João Pessoa até o

conflito em si e suas consequências, contando inclusive com a participação de Ariano

Suassuna.

O documentário é concebido sob a perspectiva de um de embate entre ideias e

convicções, concentrando o grupo dos “vencidos” e dos “vencedores”. Embora a figura

de João Pessoa seja colocada como central é possível se distinguir o posicionamento de

ambos os lados, a imagem que se perpetuou, sob a perspectiva oficial, e como esse

cenário é e pode vir a ser questionado.

Suassuna, juntamente com familiares e partidários de Zé Pereira, expõe o clã do

Pessoa como o grupo vilão, em especial por meio da deslealdade em relação à morte de

seu pai, já que os algozes de sua casa não possuíam a hombridade de fazer a “justiça”

pelas próprias mãos, mas pela covardia de um pistoleiro, conforme acentua Newton

Júnior:

Eram adversidades de toda ordem. O ambiente político, cada vez mais

agressivo, caracterizado por ameaças que punham em risco a segurança dos

filhos, obrigava-a a se deslocar de um lugar para outro, à procura da acolhida

e da proteção de parentes e amigos. Deslocamentos que, a rigor, se iniciaram

já com as primeiras perseguições políticas anunciadoras da Revolução de 30,

quando João Suassuna ainda era vivo.109

A política da Paraíba compôs um retrato do cenário agitado que o país

atravessava. As consequências se alastraram por décadas. Ariano Suassuna tornou-se

um filtro desse resultado, transmitindo reminiscências em sua literatura.

2. A História e As Pedras de Um Reino

No Folheto L: Interrogatório, em Galope – Os Três Irmãos Sertanejos, que

integra o romance aqui analisado, a personagem Quaderna em resposta a uma das

inúmeras indagações do Corregedor, referente ao processo ao qual enfrentava, declara

ter uma visão política própria, adaptada à dinâmica de sua realidade, a do sertão.

Quaderna, portanto, se identificava como Monarquista de Esquerda. Para ele, “as

Fazendas sertanejas são Reinos, os fazendeiros são Reis, Condes ou Barões, e as

109

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada: Iniciação à Obra de Ariano Suassuna.

Recife: Editora Artelivro, 2000, p. 17.

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histórias são cheias de Princesas e cavaleiros; de filhas de fazendeiros e Cangaceiros,

tudo misturado!”.110

Mais ou menos, Excelência! Eu preferia que o senhor anotasse exatamente

como eu disse, Monarquista de Esquerda! Meu sonho é fazer do Brasil um

Império de Belo Monte de Canudos, um Reino de república-popular, com a

justiça e a verdade da Esquerda e com a beleza fidalga, os cavalos, os

desfiles, a grandeza, o sonho e as bandeiras da Monarquia Sertaneja!111

Ao analisar trechos como estes em A Pedra do Reino, identifica-se uma

aproximação entre o desejo da personagem, em seu ideal de sociedade, e a visão popular

que Canudos passa a representar após a obra de Euclides da Cunha. Em uma coletânea

de textos escritos pelo próprio Ariano Suassuna e organizados pelo professor Carlos

Newton Júnior, já referida aqui, é possível identificar no texto Canudos, nós e o mundo,

no qual Ariano Suassuna estabelece as relações entre os acontecimentos que marcaram

o aglomerado sertanejo e sua representação como reduto do povo, seu desejo por

igualdade.112

Assim como ocorreu em Canudos, outras partes do mundo sofrem com a

dominação e o massacre dos poderosos, quando as massas vão de encontro aos seus

interesses.

Em Canudos, a bandeira do divino usada pelos seguidores de Antônio

Conselheiro era a do Divino Espírito Santo ⸺ a bandeira do nosso povo,

pobre, negro, índio e mestiço. Povo que o Brasil oficial, o dos brancos e

poderosos, mais uma vez (e como já sucedera em Palmares e Contestado),

iria esmagar [...] Como era de esperar, a “justiça” dos poderosos também ali

cortou a cabeça do Brasil real. E os acontecimentos de Canudos continuaram

a se repetir a cada instante. Em todos os lugares [...] nossos inumeráveis

“arraiais de Canudos” [...] Mas temos que [...] ampliar a imagem [...] no

plano internacional para dizer que, diante de países ricos e poderosos como

os Estados Unidos ou a Rússia, o chamado Terceiro Mundo é um imenso

arraial de Canudos , pobre e injustiçado [...] que estão sendo esmagados ou

humilhados.113

Ao mesmo tempo em que o imaginário de Quaderna, em sua definição de

Monarquista de Esquerda, se apega à representação de símbolos de um passado

Europeu, transfigurados para a linguagem popular do Nordeste, muitos dos quais

incorporados pela estética Armorial.

110

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 350 –

351. 111

Idem, p. 355. 112

SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. 113

Ibidem, p. 275 – 276.

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55

Embora jamais tenha se envolvido diretamente em política, incorporando tal

característica em diversos de seus discursos, Ariano Suassuna, desde o seu nascimento,

encontrou nesse meio importantes referências em sua trajetória de escritor.

A definição de Quaderna como um “Monarquista de Esquerda” e seu desejo de

criar um império popular parece retratar os pensamentos de Suassuna, que embora

possua pareceres e visões conservadoras em relação ao desenvolvimento e o cotidiano

da sociedade é oriundo de um grupo oligárquico, no decorrer de sua vida, se apresentou

como “defensor” do povo, participando do quadro do governo de Miguel Arraes, ou

ainda em defesa de figuras políticas ligadas às ideias de esquerda.

Segundo Newton Júnior, das cinco lembranças que Ariano Suassuna conservou

do pai, quatro encontram-se ligadas à fazenda Acauhan. Todas essas lembranças, de

acordo com ele, foram recriadas literariamente no romance O Rei Degolado (1977),

através das reminiscências do personagem-narrador Pedro Quaderna, que se confunde

com as do próprio Suassuna.

A trama desenvolvida em O Rei Degolado, na medida em que se considera a

continuação da trajetória biográfica do personagem Quaderna, torna possível declarar

também presentes e reconstruídas no Romance d’A Pedra do Reino.

Para Newton Júnior, João Suassuna era o retrato da nova realidade que se

instalava no país, em que o patriarcado rural perdia espaço para as novas forças políticas

que se instauravam através do meio urbano, representada pela Revolução de 1930. João

Suassuna é, portanto, o perfil da figura oligárquica, um poder que emana do mundo

rural e que se favorece do jogo das relações do poder oriundos daquele universo.

Exilado no Recife, o Sertão já se apresentava como uma imagem, para Ariano

Suassuna, algo tal qual o Sião para os hebreus ⸺ a terra de origem sagrada e distante

⸺, analogia reforçada inclusive pela semelhança sonora entre as palavras “Sertão” e

“Sião”.114

Na visão de Albuquerque, a construção do Nordeste como espaço da saudade,

fruto do resgate de um passado, se desenvolve da necessidade de recuperar a glória de

outrora, agora em ruínas.115

Ariano Suassuna irá experimentar o processo de transição entre o arcaico e a

modernidade, memórias construídas a partir de relatos e de experiências ao longo de boa

parte da vida. Essa saudade dará origem a muitas produções artísticas, influenciado

tanto por sua história pessoal como pela construção da região, sendo o Recife uma

114

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada, p. 61. 115

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. 5ª ed. São

Paulo: Cortez, 2011.

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importante referência, a partir do contanto e conhecimento com autores clássicos como

Gilberto Freyre. Ariano Suassuna se reconhece na saudade e transforma-a em arte. Para

Albuquerque:

A saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços

queridos de seu ser, dos territórios que que construiu para si. A saudade

também é um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que

perdeu suas referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que

perdeu historicamente sua posição, que viu os símbolos de seu poder

esculpidos no espaço serem tragados pelas forças tectônicas da história.116

A descrição que Carlos Newton Júnior realiza em O Circo da Onça Malhada:

iniciação a obra de Ariano Suassuna, de como haveria sido a sua infância, se assemelha

em muito ao que o autor de O Auto da Compadecida faz com Quaderna, em A Pedra do

Reino: “[...] os anos intensamente vividos em Taperoá, marcaram para sempre o futuro

escritor, [...] numa feira [...] é o lugar onde trava contato com um rol de personagens

que o acompanharão durante toda a vida”. 117

É perceptível que a busca do pai torna-se para Suassuna, a busca de sua própria

identidade. As tragédias familiares de sangue, que ele descreve em suas primeiras peças,

e que prossegue com ímpeto na Pedra do Reino e a vida confusa de diversos

personagens, caracterizaria uma realidade pessoal do autor.

Segundo Le Goff, a memória estaria não somente ligada às lembranças

acumuladas, mas estas se entrelaçariam ao processo de reconstrução por meio da

releitura de vestígios através do espaço social em que o indivíduo se desenvolve.118

Ariano Suassuna transforma a Pedra do Reino em um trabalho autobiográfico,

um diário que tem por objetivo retratar a necessidade do autor de contar a sua história,

expressar as memórias guardadas, a ótica dos “vencidos”. Ariano Suassuna, dessa

maneira, deseja transformar os perdedores em “vencedores”. Reflete, nesse processo,

uma recontagem, que vai além de si, pois passa por uma abordagem e releitura da

história do Nordeste e do país.

As autobiografias são constatações de vidas e a representação dessas em um

determinado contexto social. Segundo Philippe Lejeune, “A indústria editorial não pode

se interessar senão por um pequeno número de histórias de vida: de escritores

conhecidos [...] ou testemunhos de impacto”. 119

116

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p. 78. 117

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada, p. 25. 118

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 119

LEJEUNE, Philippe. Mémoires de vie et identité. Le Groupe Familial, nº 147, abil – junho de 1995.

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Nessa ótica, Suassuna guarda em si e traduz as consequências de um evento, a

história de um grupo, o capítulo da história de um país e transforma o coletivo em

particular.

A compreensão de um autor e seus pensamentos por meio da literatura que

produz é analisada por Peter Gay, que, evocando o exemplo de autores clássicos, chama

a atenção para a reprodução da visão do mundo destes, transfigurado através da

literatura.120

A trajetória de Ariano Suassuna, e o papel que cumpre na literatura, em muito se

aproxima de diversos intelectuais, inclusive aos retratados no livro de Peter Gay,

Represálias Selvagens. Provenientes de famílias abastadas, alguns escritores do século

XIX buscavam de alguma maneira defender aquilo que acreditavam como senso de

justiça, reconstruindo pelas palavras o retrato de uma época e denunciando as práticas as

quais considerou injustas.

A esses escritores era reservado o direito de se utilizarem da imaginação e da

liberdade de criação: “[...] o romancista sério [...] devia limitar-se estritamente a

personagens plausíveis e vivendo em ambientes plausíveis e participando de

acontecimentos plausíveis”.121

O Romance da Pedra do Reino aproxima a realidade e a fantasia. Em um artigo

comemorativo aos 80 anos de Ariano Suassuna, Carlos Newton Júnior publica um breve

parecer a respeito da construção do universo mítico de Ariano Suassuna. No texto,

destaca o romance como pedra fundamental da visão deste a respeito de sua biografia e

a de sua família:

[...] Ariano faz de sua obra um grito de protesto e uma desesperada tentativa

de recuperação de uma mundo que lhe foi confiscado pela inapelável trama

do destino [...] Quem se lembraria, hoje, de João Suassuna e da injustiça de

que foi vítima, não houvesse sido eles resgatado para a história pelo poder da

literatura? 122

Nas palavras do próprio Suassuna, em discurso de posse da Academia Brasileira

de Letras, ele se coloca como “[...] aquele mesmo menino que, perdendo o Pai

120

A literatura aqui é uma porta de entrada ao psíquico dos escritores, a composição que dão do mundo

externo através do interno, retratando autores realistas que buscaram a máxima proximidade e

verossimilhança da sociedade de sua época. GAY, Peter. Represálias Selvagens. 121

GAY, Peter. Represálias Selvagens, p. 13. 122

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Universo Mítico de Ariano Suassuna. Continente, Pernambuco, ano

VII, nº 78, junho 2007, p. 13 – 15.

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assassinado [...] passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do

que faço e do que escrevo [...] buscando recuperar sua imagem”.123

A grafia da palavra “Pai” com inicial maiúscula é apenas mais um indício da

grandiosidade e importância com a qual Ariano Suassuna enxerga a João Suassuna, não

somente o pai do menino injustiçado por uma ausência forçada, mas o homem honrado,

portador das mais altas qualidades humanas, que mesmo assim não impediu de ser

desconfigurado e desrespeitado por um erro historiográfico ao qual Ariano Suassuna

buscou reajustar com o seu olhar através da literatura.124

A despeito disso, no entanto, Suassuna em uma entrevista no ano de 2000,

esclarece não ser o Romance d’A Pedra do Reino uma vingança, mas “[...] uma

tentativa de recuperação. Por isso eu acho o nome Pedra muito importante é como se eu

encaixasse uma pedra angular para erguer um monumento ao meu pai”.125

De acordo com Le Goff, monumento é “[...] um sinal do passado [...] é tudo

aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”. O historiador ainda chama a

atenção para a incorporação de significados à ideia de monumento que, desde a

Antiguidade, tende a se especializar em dois sentidos, sendo um deles “[...] um

monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em

que a memória é particularmente valorizada: a morte”.126

Ainda que hipoteticamente a ideia de vingança não tenha perpassado a cabeça de

Suassuna, a referência às Pedras do Reino está além de seu romance. Não pode ser

negligenciado o fato de que ao escolher a ligação com tal arquitetura natural, Ariano

Suassuna associa em alguma medida a lembrança de João Suassuna à memória da

história do Nordeste. Duas tragédias irreparáveis, em ambos os casos a morte de

indivíduos inocentes.

A despeito da tragédia, ela não é somente uma lembrança evocada na obra de

Suassuna, em seu Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.

Possui raízes profundas na construção daquele povo. Além dele, Euclides da Cunha

retorna o fato em Os Sertões (1902), bem como José Lins do Rego, em Pedra Bonita

(1938).

123

SUASSUNA, Ariano. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Discurso de posse.

http://www.academia.org.br/academicos/ariano-suassuna/discurso-de-posse Acesso em: 20 de jan de

2017. 124

SUASSUNA, Ariano Vilar. Ao Sol da Prosa Brasileira. [Outubro/ 2000]. São Paulo: Caderno de

Literatura Brasileira. Ano II, nº 10, p. 22 – 51. 125

LE GOFF, Jacques. “Documento/ Monumento”. In: ____ História & Memória, p. 535. 126

Ibidem, p. 535.

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Em uma análise a respeito da vida e da trajetória de intelectuais brasileiros entre

a primeira e a segunda metade do século XX, Sergio Miceli traça um panorama de como

as transformações políticas pelas quais o país vivia acarretaram mudanças na vida

cultural, no papel político da classe dirigente no Brasil.127

As modificações que a Revolução de 1930 trouxe não envolviam somente as

movimentações pós tomada de poder, mas abrangiam todo um sistema que já

apresentava sinais de colapso e decadência, a “Velha República” estava se consumindo

em seus próprios acordos e desacordos.

Ariano Suassuna, mesmo vindo a se inserir em um fluxo já em andamento,

torna-se elemento resultante das consequências desses polvorosos tempos. Em sua obra,

Miceli discute a trajetória de diversos intelectuais, cujas vidas foram transformadas.

Uma das situações analisadas diz respeito à ausência da figura paterna, fator que foi

decisivo em relação a Suassuna.

Miceli define como nomandismo familiar as mudanças estratégicas das famílias

em declínio financeiro, com o intuito de reerguerem-se socialmente. “Naquelas

situações em que o declínio resulta do desaparecimento da figura paterna (falecimento,

absenteísmo, separação dos pais)”.128

A esse fenômeno também cabia o processo do apoio que os parentes, em fase

crítica, buscavam em familiares mais abastados, por meio de uma rede de relações

parentais. Agregado a esses episódios, havia uma feminização do lar, onde as mulheres

(mãe, tias, irmãs), comumente tomavam para si a responsabilidade financeira da casa,

na medida em que:

[...] os esforços por parte da mãe em busca dos recursos dos parentes

abonados que possam completar os rendimentos que aufere mediante

trabalhos de baixa rentabilidade (costura, doçaria, bordado, flores de papel

etc.), com vista a propiciar aos filhos oportunidade de escolarização capazes

de sustentar o processo de desclassificação social.129

Após a morte de João Pessoa, a família Suassuna passa a ser perseguida, tendo

como alvo direto seu patriarca, acusado de envolvimento e mandatário do crime. Teve

início uma caçada pública à figura de João Suassuna.

O Jornal O Imparcial, a exemplo de diversos outros jornais do país, publicou em

08 de setembro de 1930 matéria a respeito do assassinato do presidente João Pessoa e

127

MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920 – 1945). São Paulo: Difel/ Difusão

Editorial S.A., 1979. 128

Idem, p. 98. 129

Idem, p. 99.

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acusou de cumplicidade do caso o então deputado João Suassuna: “Foram denunciados

como autores do bárbaro crime, o bacharel João Dantas e seu cunhado Moreira Caldas e

como cúmplices os srs. Júlio Lyra e João Suassuna”. 130

Em O Correio da Manhã, lê-se: “Em perpetração do odiosíssimo homicídio,

João Duarte Dantas foi o braço que executou, mas outros responsáveis diretos podem

ser encontrados, entre os quais devem ser salientados o deputado João Suassuna”.131

Esse tipo foi o procedimento seguido por outros diversos jornais pelo país.

Em 09 de outubro daquele mesmo ano, em busca de defesa nas cortes da capital

do país, João Suassuna é assassinado por um pistoleiro contratado como acerto de

contas. Todavia, o assassinato do patriarca não encerrou as perseguições à família

Suassuna. Dona Rita, agora mãe e viúva, passa, portanto, ao posto de líder de família e

decide por fim buscar apoio em Taperoá, onde residem seus parentes.

A exemplo do que sugere a ideia das pretensões almejadas pelas famílias

decadentes, conforme análise de Miceli, Rita Vilar Suassuna, ao buscar o apoio parental

em Taperoá, não vai atrás somente do suporte financeiro, já que, após a morte de João

Suassuna, enfrenta diversas intempéries e com elas a perda de patrimônio. Ela quer dar

aos filhos a oportunidade de proteção tanto de vida, não perpetuando os cadáveres,

como de possibilidades que as relações familiares ligadas as de poder proporcionavam,

conforme Miceli sugere, facilitando os caminhos por meio das redes de relação do

poder.132

O acerto de contas por meio da política das balas, lavando a honra de famílias,

era algo comum no cotidiano da época. Ao se deslocar para o Rio de Janeiro, após

acusações de um possível complô envolvendo o assassinato de João Pessoa, Suassuna

em uma carta de despedida à esposa, diante da consciência de uma presumível tragédia,

pede-lhe que encerre o ciclo de possíveis fatalidades que poderia arrastar sua família

depois de morto, mas alegando inocência contra as acusações sofridas. Em trechos de

sua carta, João Suassuna declara:

Não sei que destino nos esteja afinal reservado, nessa fase extrema e

gravíssima da vida nacional [...] em que os deixo pobres e expostos a

verdadeiros martírios, numa época em que é incerto e negro o futuro da pátria

brasileira [...] resolvi escrever estas declarações e deixa-las, com outros

documentos da minha defesa [...] Se me tirarem a vida, os parentes do

presidente João Pessoa, saibam todos os nossos que foi clamorosa injustiça –

130

FERREIRA, João Pires. “O Assassino do Presidente João Pessoa”. O Imparcial, São Luíz, 08 set de

1930, p, 01. 131

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 03 de set. de 1930, p. 03. 132

MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil.

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61

eu não sou responsável, de qualquer forma, pela morte dele nem de pessoa

alguma neste mundo. Não alimentem, apesar disso, ideia ou sentimento de

vingança contra ninguém. Não se façam criminosos por minha causa.133

É relato presente tanto na voz de Ariano Suassuna, de familiares, quanto de

estudiosos, que tal carta ao expressar a esposa o seu último desejo. Faz com que ela

impeça o impulso do desejo de vingança, característico do período. Evitando que seus

filhos e familiares levassem a história em curso adiante somando o número de cadáveres

à narrativa.

Mês polvoroso, outubro de 1930 ainda traria consigo dissabores aos Suassuna.

Aos três dias daquele mês a Aliança Liberal, reestruturada após a morte de João Pessoa,

dá início às incursões armadas. Estoura a “Revolução”. Ariano Suassuna guarda na

memória a visita que ele juntamente com o irmão João e a mãe fizeram a João Dantas.

Este morreu naquela mesma semana, atestado como suicídio. A forma misteriosa de sua

morte representava mais uma das retaliações que a família sofria e sofreria como

consequência da morte de João Pessoa.

No Nordeste, a partir do estado da Paraíba, as tropas rebeldes se disseminariam.

[...] era 3 de outubro, ia estourar a Revolução de 30; as tropas da Paraíba

depuseram o governador, tomaram o poder e desceram para cá. Aqui,

tomaram a cadeia e, na madrugada do dia 6, João Dantas foi encontrado com

a garganta cortada, na cela do terceiro andar da Detenção. Até hoje a gente

tem certeza de que ele foi assassinado e o outro lado diz que foi suicídio.134

As causas “misteriosas” pelas quais se deram a morte de João Dantas serviriam

de inspiração a Ariano Suassuna, duas décadas depois, para a trama da Pedra do Reino,

ao narrar o assassinato de Dom Sebastião Garcia Barreto, padrinho de Quaderna.

A imaginação do romancista, como já mencionado, não produz o real, mas parte

deste, transfigurando em uma nova realidade. Na figura de Dom Sebastião, em A Pedra

do Reino, é possível identificar a imagem paterna de um rei morto, mesmo diante de sua

grandiosidade, somado ao episódio da misteriosa morte de João Dantas, relatada

posteriormente como mais um assassinato de toda essa trama.

Em uma entrevista à revista carioca O Cruzeiro, de 08 de outubro de 1949, Zé

Pereira descreve os fatos que antecederam seu rompimento com o então governador

133

Trecho da carta de João Suassuna a sua esposa Rita Suassuna in SÁTYRO, Ernani. Série perfis

parlamentares nº 61, p. 157 - 158. 134

SUASSUNA, Ariano Vilar. Ao Sol da Prosa Brasileira, p. 22 – 51.

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João Pessoa.135

A narrativa do coronel, que se torna um sobrevivente, é um contraponto

à narrativa dos vitoriosos. Assim como a família Suassuna, Zé Pereira se junta ao clã

dos “vencidos”, mais um representante do “arcaísmo” do interior paraibano.

Em nota introdutória, o repórter deixa claro a reclusão vivida pelo coronel, após

os fatos, afastando-se do tumulto causado pela vida pública, “[...] Zé Pereira era um

homem rico, mas perdeu tudo que tinha na campanha de 30”, inclusive através de saque

realizado em sua propriedade, por mãos de pessoas conhecidas.136

“Zé Pereira gosta de viver distante de repórteres, sabendo fugir a perguntas de

maneira bastante diplomática, sem criar antipatias” o que revela o seu caráter

ponderado, pelo qual possuía grande admiração e respeito social, particularmente entre

seus correligionários.137

Durante sua trajetória política, o rompimento com o governo de João Pessoa

desencadeou um efeito em cascata, levando o estado da Paraíba a uma guerra civil e

política, influenciando posteriormente o imaginário do próprio Suassuna e sua escrita da

Pedra do Reino.

[...] Foi deputado em quatro legislaturas, a última em 1930, quando as

panelas da política brasileira começaram a ferver.

[...] Foi então organizada a nova chapa de representantes paraibanos que

teriam de formar a bancada do Estado na Câmara. ⸺ Dessa chapa ⸺ diz Zé

Pereira ⸺ não constava o nome de João Suassuna ex-Presidente do Estado,

motivo por que se deu o rompimento dos amigos de Suassuna com João

Pessoa.138

Princesa transformou-se ao mesmo tempo no último reduto que buscava

conservar a estrutura política e social como forma de preservar a ordem, ao mesmo

tempo desencadeando acontecimentos que culminaram na morte de João Pessoa,

angariando forças à Aliança Liberal levando à “Revolução” de 1930.

Ainda de acordo com O Cruzeiro, o coronel José Pereira foi durante muito

tempo perseguido pelo novo governo, perdendo praticamente tudo após os

acontecimentos de 1930 se afastando da política e da vida pública, ressurgindo

novamente nos anos de 1940 e 1949, ano de sua morte. Por fim, uma vida menos

tumultuada que os 146 dias do cerco de Princesa.

135

O Cruzeiro, “A Campanha de Princesa”, p. 98. 136

Ibidem, p. 98. 137

Idem. 138

Idem.

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63

Os acontecimentos de 1930 reorganizaram as alianças e embora “com uma base de

apoio fraca e limitada [...] foi se implantando com a indicação de interventores”,

causando fragilidade nas elites regionais de cada estado em que o movimento se

apossava.139

A dança das cadeiras representou uma ruptura, provocando “novas” antigas

relações. O que justifica a permanência tanto de práticas, como de nomes do antigo

regime que renasciam agora como liberais. Segundo Silva:

Não havia por que as elites políticas estaduais aderirem a um movimento que

desalojava seus membros mais representativos [...] Adesão que, uma vez

vitorioso o movimento, não foi difícil conseguir. Isto por conta de uma lógica

própria da política coronelística: ficar sempre que possível ao lado de quem

estava no poder .140

Vinte e oito anos depois dos episódios de 1930, em 1958, tem início a produção

do Romance d’A Pedra do Reino, através das notas que o autor começa a realizar.

Todavia, em mais de uma oportunidade Suassuna declara que a gênese da Pedra do

Reino é anterior a este momento.

A necessidade de erguer um Castelo Literário, e transformar João Suassuna em

sua pedra fundamental, o alçando ao posto de Rei, era uma constante na vida de Ariano

Suassuna. Aos olhos de um leitor um pouco mais atento e conhecedor da biografia do

autor será fácil notar esse paralelo entre Quaderna, o personagem central do romance e

Ariano Suassuna.

Segundo o próprio Ariano Suassuna, no princípio da década de 1950, em uma

primeira tentativa frustrada, teve a intenção de escrever uma biografia a respeito de seu

pai, Vida do Presidente Suassuna, Cavaleiro Sertanejo. Finalmente, “[...] em 1958,

comecei a tomar notas para um romance longo, que era a Pedra do Reino. Fiz mais de

uma versão d’A Pedra”.141

A segunda tentativa, igualmente malograda, vai para o

âmbito da poesia, ele inicia sua carreira literária através desse caminho, mas não

consegue transmitir em palavras a dor que alega sentir em Cantar do Potro Castanho.

O Brasil mais uma vez tornara-se palco de tempos difíceis. O ano de 1964

aproximava-se e Ariano Suassuna agora homem adulto, pai de família e já consagrado

139

SILVA. Paulo Santos. Âncoras da Tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso

histórico da Bahia (1930 – 1949). Salvador: EDUFBA, 2000, p. 251. p. 28. 140

Idem, p. 25 e 29. 141

O trabalho de Ariano, em todas as esferas, guarda como característica o processo de constante reescrita

que o autor faz, onde muitos destes, mesmo após a publicação, são reescritos na busca daquilo que

considera melhorias, e diante das transformações sofridas pelo próprio autor, enquanto indivíduo ao longo

da vida.

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autor de peças teatrais, se via em meio a novas incursões políticas que tumultuariam a

escrita da história nacional.

A década de 1960 iniciava-se sob a égide do Cinema Novo e das mais diversas

aspirações artísticas e culturais. Uma vez mais se buscava o retrato e a alma, a essência

e representação daquilo que seria a “verdadeira” imagem do homem brasileiro. O

mundo bipolarizado fomentava a indissolubilidade entre cultura, arte e política.

Nesse momento, “[...] a defesa da cultura nacional [...] abriu portas

especialmente no campo das artes, para vertentes românticas, que se inspiraram no

resgate da identidade de um suposto homem autêntico do povo brasileiro para implantar

o progresso e a revolução”.142

Mas qual seria a representação desse homem brasileiro? Em um momento em

que o marxismo era abordado a partir de um viés romantizado, o retorno ao passado e o

encontro com as raízes do país, onde o povo, sua arte e seu cotidiano, era o caminho a

ser seguido. Era através dele que esses grupos de artistas engajados pretendiam

conclamar a revolução popular.

Representante de um romantismo melancólico frente à modernidade que não

podia ser impedida, Walter Benjamin tornara-se leitura obrigatória daqueles tempos.

Como exemplo, segundo o cineasta Eduardo Coutinho, em relação à nona tese de

Benjamin, a qual faz alusão em um de seus filmes. 143

[...] Essa tese de Benjamin é das mais representativas do romantismo

marxista; ela expressa bem o sentimento de vários intelectuais artistas diante

da inexorabilidade do progresso, como foi o caso de brasileiros nos anos 60,

que há um tempo pretendiam revolucionar a sociedade em direção ao futuro e

buscavam para tanto o encontro com as raízes do passado, em meio a um

acelerado processo de modernização e urbanização da sociedade.144

Embebidos de ideias semelhantes àquelas que nortearam os modernistas a

respeito da “brasilidade”, o sujeito que desenhavam como os agentes de transformações

eram as figuras dos pescadores do litoral, das comunidades ribeirinhas, do camponês

nordestino, do emigrante, que embora muitas vezes fugisse de sua terra de origem,

carregava consigo sua autêntica essência.

142

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 66. 143

A 9ª Tese de Benjamin que explana a respeito da filosofia da história. Baseado em uma tela de Paul

Klee, intitulada Angelus Novus (1920), Benjamin defendia a ideia de que o Anjo da História estava sendo

levado pelo vendaval do progresso e embora não quisesse seguir, se vai, mas de costas, contemplando a

História, em sua ruína. Disponível: www.rae.com.pt/wb2. Acesso: 30 de novembro de 2017. 144

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro, p. 95.

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Esses homens também estavam nas cidades na condição de operários fabris

oriundos desse grupo original. Isso se reflete nas produções artísticas que tinham o

objetivo de atingi-los. Para isso viam no teatro um meio para alcançar de forma didática

e conquistar as massas, como expressão da realidade nacional, fundindo arte e política.

Segundo Ridenti, um artigo talvez tenha marcado esse novo período engajado

“O Teatro Como Expressão da Realidade Nacional” (1959) do ator e teatrólogo

comunista Gianfrancesco Guarnieri. Dentre outros pontos, Guarnieri defendia a

construção de uma dramaturgia nacional e a “lei dois por um”, a qual obrigava a

apresentação de uma produção nacional após duas estrangeiras, o que acabava

estimulando os autores e os textos nacionais.

O incentivo ao teatro nacional juntamente com uma cultura envolta com o

marxismo em sua visão romantizada e a idealização nacional de um momento pré-

industrial podem ser compreendidas indiretamente como um estímulo ao

desenvolvimento teatral de Ariano Suassuna.

Ainda segundo Ridenti, buscava-se a arte popular dentro do CPC: “Os

movimentos culturais do pré-64 sofriam influências do PCB, de diversas correntes

marxistas e do ideário nacionalista e trabalhista da época”.145

O movimento cultural do CPC, incorporando conceitos e diretrizes do PCB, não

se restringia ao eixo Rio-São Paulo. Estava presente nas principais capitais do país, em

particular a partir dos anos de 1960 com a crescente agitação política do país.

Recife, nomeada a cidade vermelha, em correspondência com a sua tradição

comunista, ao tempo do Golpe de 1964, tinha na chefia do governo do estado o

advogado Miguel Arraes, aliado do presidente deposto João Goulart. Antes do golpe,

sua administração foi marcada pelo apoio à população carente, opondo-se aos interesses

e abusos dos usineiros da região.

Embora existisse certa liberdade de expressão no CPC, dentro do PCB, era

inevitável não se interligarem:

[...] especialmente nos anos 60, havia uma ligação íntima entre expressão

política, artística e cientifica ⸺ todos voltados para a revolução brasileira ⸺

que conduzia os jovens engajados das classes médias a militar no cinema e

no teatro ou em qualquer outra arte no jornalismo, na universidade [...] sendo

essas opções encaradas como formas de realização de projetos coletivos e

não essencialmente como opção individual de carreira.146

145

RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro, p. 77. 146

Idem, p. 92.

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Os grupos teatrais amadores e itinerantes se multiplicavam pelo país, o próprio

Ariano Suassuna já havia vivido uma experiência semelhante em sua vida na época da

faculdade de Direito. Nesse momento ele encontra um campo fértil que possibilita o

desenvolvimento de suas habilidades no âmbito literário e teatral, juntando-se a outros

jovens estudantes, interessados nos mais variados campos da arte, além da literatura,

música, teatro e pintura.

Esse grupo de jovens inexperientes passa a ser liderado por Hermilo Borba

Filho, mais velho e intelectualmente à frente de seus colegas universitários, os

direcionou na retomada, em 1946, do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) “[...]

direcionada [...] para encenação de [...] clássicos da dramaturgia universal; direcionada

também para a pesquisa em prol de um teatro brasileiro novo, de raízes nordestinas e

populares”.147

Foi através de Borba Filho que Ariano Suassuna tomou conhecimento do artista

espanhol, Garcia Lorca e, à semelhança dele, decide orquestrar juntamente com seus

companheiros um teatro itinerante, se espelhando em seu trabalho de resgate da cultura

popular da Espanha, realizar algo próximo no Brasil.148

Anos depois, Borba Filho escreveria um artigo no Diário de Pernambuco, em

defesa de Ariano Suassuna, agora escritor consagrado:

Trata-se no que se refere a Ariano Suassuna de um Professor de alta

categoria, de um artista raro, [...] (sua peça “Auto da Compadecida” tornou-

se clássica ainda em vida do autor, encenada e publicada em vários países da

Europa, Ásia e América. Seu romance “A Pedra do Reino” foi um arrasador

sucesso nacional, por muita gente considerado como um novo marco da

nossa literatura de ficção), do líder de um movimento do qual não se pode

[...] lhe tirar os méritos [...] por uma filosofia que compreenda e revele o

homem brasileiro, por uma estética que, sendo particular, por isto mesmo se

projeta no plano universal, por uma arte que seja latino-americana [...]

brasileira, isto na música, no teatro, no cinema, no romance, na poesia, na

escultura”. 149

Para Michael Pollak, existem ligações entre a memória e a formação social do

indivíduo.150

A partir dessa questão, podemos perceber que por meio da memória de

alguém se torna possível ao averiguar a construção que uma pessoa faz de si, seja ela

consciente ou inconsciente e de que maneira ela transmite isso ao mundo.

147

NEWTON JÚNIOR, Carlos. O Circo da Onça Malhada, p. 43. 148

Idem. 149

FILHO, Hermilo Borba. “Ariano & Denner”. Diário de Pernambuco. Recife, 13 de abril de 1972. 150

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,

1992, p. 200 – 212.

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Assim, podemos encarar a identidade social de alguém como um reflexo de sua

memória, algo íntimo e intrínseco à pessoa. Por outro lado, deve-se pensar que por

tratar-se de uma construção, embora íntima e individual, ela parte do meio ao qual o ser

se insere, sendo por isso uma troca na relação entre sujeito/ sociedade e vice-versa.

Deve-se encarar que embora os vestígios da história de um indivíduo guardem

em si a essência, tais lembranças são fluidas. “Se destacamos essa característica

flutuante, mutável da memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar

também que, na maioria das memórias, existem marcos ou pontos relativamente

invariantes e imutáveis”.151

Como o próprio autor diz, tais marcos podem representar o coletivo, o

individual, ou ambos ao mesmo tempo. Na representação da memória, ao ser externada,

pode o indivíduo estar ou não presente no relato dessa exteriorização, sendo esta última

situação ocasionada quando o sujeito toma para si uma memória e a reconstrói. Isso

ocorre, pois ao longo da vida, tamanho foi o contato dele com diversos relatos, o que

leva a memória a um processo de construção através do direcionamento que o grupo que

a incorpora realiza. Ainda que de maneira inconsciente, ela torna-se parte da tradição de

um povo. A isso Pollack denomina de Memória herdada.

Em seus constantes relatos ao longo da vida, Ariano Suassuna faz de sua

memória um berço fértil para a sua imaginação teatral e literária, mas também a torna

fonte de pesquisa na busca de reconstruir e a sua biografia e a de sua família.

Entre o vivido e a memória herdada, apresentada e representada por Ariano

Suassuna, há uma fusão, que se incorpora ao seu propósito de apresentar uma nova

imagem da tragédia que envolve sua família. Sua obra o Romance d’A Pedra do Reino e

o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, efetiva suas intenções.

151

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social, p. 200 – 212.

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CAPÍTULO III

O SERTÃO TRANSFIGURADO DE SUASSUNA: ENTRE AS PEDRAS E UM

REINO

Nas histórias que correm pelas estradas empoeiradas do Nordeste, trazidas pelas

“[...] ventanias guerreiras do Sertão: o cariri, o vento frio e áspero das noites de serra, e

o espinhara, o vento queimoso e abrasador das terras incendiadas”, fatos se misturam a

fantasias, mitos e lendas são recriados, narrativas antigas emergem em um novo

espaço.152

Entre a ficção e a realidade são muitas as versões que giram em torno dos

acontecimentos que se sucederam em Pedra Bonita, as conhecidas Pedras do Reino. A

primeira referência histórica da qual se conhece registro do movimento é a do

historiador Antônio Attico de Sousa Leite, sob o título de Memoria sobre A Pedra

Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de Pernambuco,

publicado originalmente no ano de 1875, sob a responsabilidade do Instituto

Arqueológico e Geográfico de Pernambuco.

Após a história, a literatura se encarregou de perpetuar a memória assinalada do

Sertão. O Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta foi o

terceiro título a abarcar os acontecimentos envolvendo os “fanáticos” de Pedra Bonita

(1836 – 1838). A obra de Ariano Suassuna possui dois antecessores no universo das

letras, Araripe Júnior e José Lins do Rego.153

No ano de 1878, o advogado e escritor cearense Araripe Júnior (1848-1911),

publicou O Reino Encantado: Crônicas Sebastianistas. Em 1938, um século após o

evento messiânico, José Lins do Rego (1901 – 1957) dá inicio ao ciclo de temáticas

relacionadas ao cangaço, aliado ao flagelo das massas provocado especialmente pelas

secas e pela exploração dos poderosos, sendo o misticismo messiânico com a distorção

do catolicismo em forma de fanatismo, a consequência.

152

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 115. 153

Na obra Os Sertões, Euclides da Cunha traz uma referência ao movimento de “Pedra Bonita”, todavia

diferente de Araripe Júnior e especialmente de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, ele não aborda uma

linguagem poética, seu trabalho encontra-se em um âmbito cientifico e positivista. Todavia é Euclides um

dos grandes influenciadores na obra e visão de mundo de Ariano Suassuna, a incorporação do Brasil

Oficial x Brasil Real.

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Tal qual Ariano Suassuna, José Lins do Rego admite a influência da cultura

popular e do sertão em suas obras. Segundo Alfredo Bosi, Lins do Rego “[...] sempre se

declarou um escritor espontâneo e intuitivo”, deixando claras as influências presente em

suas narrativas: “Os cegos cantadores, amados e ouvidos pelo povo, porque tinham o

que dizer, tinham o que contar. [...] quando imagino meus romances tomo sempre como

modo de orientação o dizer as coisas como elas surgem na memória, como o jeito e as

maneiras simples dos cegos poetas”.154

São eles, os cantadores, os aedos sertanejos, que em uma sociedade iletrada

tornam-se os principais transmissores da cultura popular, levando a sua maneira as

histórias que os antigos contam.

Nascido e criado nesse contexto, com seus sujeitos, histórias, cheiros, sons,

cores, rituais, práticas, costumes e aqueles modos de vida tão típicos da cultura popular

sertaneja, assim como Ariano Suassuna, do Rego embora também não pertencente às

camadas populares, pode absorver dela fortes traços, que são encontrados em suas

criações ficcionais.

Todavia, a obra de Lins do Rego possui uma linha própria, característica dos

romances da década de 1930.155

Além das práticas do dia-a-dia, José Lins do Rego

propõe uma leitura social dos fatos e do cotidiano. Tanto em Pedra Bonita (1938)

quanto em Cangaceiros (1953), em diversas passagens há um retrato cru da sociedade

ao longo dos romances, perfil distinto em relação ao de Pedra do Reino, que se constrói

muito mais sob a influência das ideias surrealistas, criadas a partir de imagens que se

atrelam à realidade, característica marcante na obra de Ariano Suassuna.

Tendo como palco uma região fronteiriça e afastada dos grandes centros, o

movimento messiânico de Pedra Bonita ocorre no sertão do Pajeú, onde se encontra o

município de São José do Belmonte no estado do Pernambuco. O espaço geográfico

aqui é, portanto, um facilitador, tanto por conta das frágeis condições sociais, quanto

pela preservação de tradições que se configuram em um processo de longa duração,

154

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2ª ed. 5ª reimpressão. São Paulo: Editora

Cultrix, 1975, p. 448. 155

Segundo Cândido, a busca da interpretação do país e da “descoberta” de um perfil próprio, antes vistos

como possíveis manchas, agora se transformam em singularidades que merecem ser exaltadas que teve

um sutil início durante o romantismo e se firmou durante o Modernismo, mas é após as transformações de

1930 que ele é marcado com forte característica “[...] Pode-se dizer que o Modernismo veio criar

condições para aproveitar e desenvolver as intuições de um Silvio Romero, ou um Euclides da Cunha

[...] sob este ponto de vista, o decênio mais importante é o seguinte, de 1930 [...] nesse decênio de

intensa pesquisa e interpretação do país”. CÂNDIDO, Antônio. Literatura & Sociedade. 9ª ed. Rio de

Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006, p. 130 a 132.

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diante das poucas e lentas transformações que ocorrem. Palco fértil para a

imaginação, a fé exacerbada, o desespero, a loucura e a exploração.

O mito de Pedra Bonita tem origem em um fascínio e adoração transmitida

especialmente através da oralidade e do cordel, e tem sua gênese em histórias advindas

de Portugal. Após a morte de El-Rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir no

Marrocos (1578), se cria o precedente do mito do Sebastianismo. Solteiro e sem

herdeiros diretos, D. Sebastião foi sucedido por um tio Cardeal, já em idade avançada,

D. Henrique, que veio a falecer dois anos após assumir o trono.

Portugal, passou então para o domínio espanhol, situação que perdurou por seis

décadas. Com a sujeição ao país vizinho e a crescente insatisfação da população

lusitana, difunde-se o mito do retorno do jovem monarca, salvador e restaurador do

trono e da glória portuguesa de outrora.

Segundo Antônio Cândido, encontra-se em Portugal a base de nosso

“cosmopolitismo”, e sua interação com o local, na busca de nossa própria identidade e

auto reconhecimento e afirmação: “[...] Todo o nosso século XIX, apesar da imitação

francesa e inglesa, depende literalmente de Portugal, através de onde recebemos não

raro o exemplo e o tom da referida imitação”. 156

1. O Mito de “Pedra Bonita”:

Conta a história, incorporada inclusive nas narrativas escritas por Ariano

Suassuna e por José Lins do Rego, que no ano de 1836, um astucioso beato de nome

João Antônio dos Santos, apareceu em torno da cidade de Pajeú, com pedrinhas

brilhantes, as quais dizia serem diamantes oriundos de uma lagoa mágica próxima às

Pedras do Reino, onde Dom Sebastião lhe aparecera por meio de uma visão, revelando

ser a construção rochosa as torres de uma catedral encantada.157

Munido de um folheto, que contava a vida e a morte heroica do jovem monarca,

associando este elemento a uma sociedade predominantemente iletrada, ao seu poder de

persuasão e a ânsia da população fustigada e injustiçada, marcada tanto pelas histórias

como pela religiosidade, vão crescendo o prestígio mais a crença em torno de João

Antônio. O número de pessoas que passou a seguir o profeta começou a preocupar as

156

CÂNDIDO, Antônio. Literatura & Sociedade, p. 119. 157

LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de

Villa Bella, Província de Pernambuco. Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco.

Recife, Tomo XI, 1904. , p. 217 – 248.

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autoridades locais, que inquietas recorreram ao padre Francisco José Correia de

Albuquerque, que persuadiu João Antônio, o qual partiu para o sertão.158

Dois anos após o ocorrido, eis que surge o cunhado de João Antônio, João

Ferreira, que se auto proclama rei. Várias são as atrocidades cometidas por essa nova

figura, entre elas a poligamia passa a ser permitida, sendo a primeira noite de cada noiva

pertencente ao rei, os moradores em geral eram proibidos de saírem da nova

aglomeração, apenas a alguns era dado o direito de se deslocarem, sendo dessa forma

responsáveis na procura por novos seguidores.159

Condenados à privação de alimentos e ao isolamento, eram submetidos a rituais

religiosos nos quais conseguiam “ver” a Dom Sebastião, por meio de uma bebida

estimulante e alucinógena. “[...] Ali, todos beberam um líquido, dado pelo Rei, ao qual

chamavam Vinho Encantado, certa composição de jurema e manacá: tem a propriedade

do álcool e do ópio, ao mesmo tempo”.160

Com o tempo, João Ferreira começou a disseminar a ideia de que para a vinda

do tão esperado desejado, seria necessário que as Pedras do Reino fossem banhadas em

sangue por meio de sacrifícios, como meio de convencimento afirmava que todos

aqueles sacrificados renasceriam para a glória de novos tempos. Quem era aleijado,

voltaria andando, quem era pobre, teria riquezas, quem era negro, se tornaria branco,

quem era doente se tornaria sadio, até mesmo os cachorros assassinados voltariam como

dragões para assim destruírem os poderosos.161

Estava acordado, em uma única ação, D. Sebastião ressurgiria, os justos seriam

recompensados e os cruéis poderosos seriam punidos. O dia 14 de maio de 1938 foi a

data nomeada para o início da chacina.162

Os primeiros sacrifícios se deram de maneira voluntária. De acordo com a

narrativa, o pai do próprio João Ferreira ofereceu a cabeça para ser decapitado, na

configuração do episódio havia pais e mães que ofertavam a vida de seus filhos. No

entanto, muitas pessoas acabaram involuntariamente assassinadas em nome da fé louca

158

LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de

Villa Bella, Província de Pernambuco. Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco.

Recife, Tomo XI, 1904. , p. 217 – 248. 159

Idem. 160

Em SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 67.

A narrativa é semelhante à descrita por Antônio Attico Leite, em LEITE, Antônio Attico de Souza.

Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella, Província de

Pernambuco. Revista do Instituto Archeologico e Geografico de Pernambuco. Recife, Tomo XI, p. 217 –

248, 1904. 161

Idem. 162

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.

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72

e exacerbarda do Sebastianismo. Segundo Quaderna, personagem de Ariano Suassuna,

em conformidade com a descrição de Antônio Attico Leite, assim caracteriza o

acontecimento:

[...] no dia 14 deste mês Maio – oh que dia infeliz e horroroso! – o Rei,

depois que deu muito vinho a todos, declarou que “El-Rei Dom Sebastião

estava muito desgostoso e triste com seu Povo”. “E por quê?”, perguntaram

os homens, muito aflitos, e as mulheres todas muito chorosas. “Porque são

incrédulos! Porque são fracos! Porque são falsos! E finalmente porque o

perseguem, não regando o Campo Encantado e não lavando as duas torres da

Catedral de seu Reino com o sangue necessário para quebrar de uma vez este

cruel Encantamento!”, proferiu o Rei. Ah, meu Amo e meus Senhores! O que

depois disso se seguiu é horrível!163

Conforme a visão memorialística de Leite, no decorrer de três dias muitas vidas

foram ceifadas, homens, mulheres, crianças e cães, 53 almas banharam as Pedras do

Reino, com seu sangue. Com o tempo a putrefação dos corpos tornou o lugar

insuportável aos sobreviventes, o que acarretou o deslocamento do acampamento.164

No dia 17 de maio, um dos seguidores do feroz rei, Pedro Antônio, irmão do

primeiro profeta João Antônio, amotina-se contra João Ferreira, dizendo que em

conversa com D Sebastião, este exigia o sacrifício do próprio rei. João Ferreira é então

assassinado, por seus próprios seguidores. Pedro Antônio “sobe ao trono”, no entanto,

seu reinado não duraria mais de um dia, pois distante dali, o aglomerado sertanejo era

traído.

Um vaqueiro, de nome José Gomes, pertencente à família dos Vieira que ali se

instalara, assustado com os terríveis acontecimentos, foge em busca de ajuda na

tentativa de impedir a continuidade da insanidade que tão próximo assolava as vítimas

de um louco fanático. Segundo o relato de Attico Leite, o estado ao qual retorna a

fazenda do comissário Manoel Pereira é deplorável, quase irreconhecível:

De repente aproxima-se, e ajoelha-se diante do comissário um indivíduo [...]

a quem a primeira vista não era fácil reconhecer-se, por achar-se imundo,

andrajoso, desfigurado, e assustado, como se viesse fugindo de uma dessas

prisões subterrâneas, em que os poderosos barões da idade média

costumavam por a pão e água os seus mais rancorosos adversários.

O indivíduo, que se achava aos pés do comissário [...] Era José Gomes, o

vaqueiro que, há mais de vinte dias, desaparecera, abandonando a fazenda

Caiçara, e agora prorrompia em suplicantes vozes:

“⸺ Valha-me meu amo, e perdoa-me pelo amor de Deus”. 165

163

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 78. 164

LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de

Villa Bella, Província de Pernambuco. 165

Idem, p. 227.

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Ao final de mais um fatídico e derradeiro dia, sob a liderança do novo rei, o

povo é surpreendido pela tropa do fazendeiro Manoel Pereira da Silva, Major da Guarda

Nacional.166

Embora em desigualdade, a tropa encontrou resistência por parte dos

sebastianistas, que lutaram seminus, armados de facões e cacetes, até a morte de Pedro

Antônio, sob os gritos inflamados de “Salve El-Rei D. Sebastião!”. Houve baixa de

ambos os lados, inclusive os dos irmãos do comissário Cypriano e Alexandre Pereira,

tendo o próprio Manoel saído ferido da batalha.167

Entre os devotos sobreviventes, as mulheres foram soltas, os órfãos distribuídos

entre aqueles que concordassem em criá-los, já os homens enviados à prisão,

terminando seus dias por lá, em esquecimento.168

O episódio com um misto entre a religião, política e loucura, serviu de base para

o início de um ciclo de lendas que retratam e marcam a história do Sertão. Como já

mencionado, autores buscaram retratar o povo e o cotidiano do Nordeste brasileiro. Dois

nomes se destacam, José Lins do Rego e Ariano Suassuna.

Enquanto Bentinho, personagem de Lins do Rego, é o bisneto do traidor do

“Santo”, como é retratado na obra, Quaderna é o bisneto do fanático, tido como louco.

É interessante analisar que embora os lados sejam contrários, tanto em Pedra Bonita

quanto em Pedra do Reino, julgam-se ambos. No entanto, a ideia de Quaderna é limpar

a honra de seus antepassados, buscando o reconhecimento de sua família. Já Bentinho

procura se livrar da maldição que acredita carregar em sua família, já que foi por culpa

de seu antepassado, traidores de “homem santo”. “[...] Teria que aparecer um novo

santo na Pedra, teria que aparecer uma criatura da família Vieira, que desse o corpo e a

alma para o santo purificar [...] Daquela casa saíra um Vieira há quase cem anos para

trair o santo da Pedra Bonita”.169

Em José Lins do Rego e Ariano Suassuna, embora o primeiro apresente um

cenário marcado pelas questões sociais e politicas que envolve a rede de poder e

166

Segundo Antônio Attico Leite “O Comissário, Major Manoel Pereira Silva, mais tarde coronel e

comandante superior dos municípios de Flores, Iganzeira e Villa Bella, era um dos mais belos caracteres

que tem tido os sertões e desta província”, havendo um tecer de elogios e como sua figura era uma

representação de toda a honra que um indivíduo possua nas esferas de sua vida. Um “libertador” a altura.

LEITE, Antônio Attico de Souza. Memória Sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de

Villa Bella, Província de Pernambuco, p. 231. 167

Ibidem, p. 239. 168

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Editora

DOMINUS S.A., 1965. 169

RÊGO, José Lins. Pedra Bonita - 7ª ed – Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

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exploração no Nordeste, ambos partem de uma linguagem poética, diferentemente da

linguagem utilizada por Attico Leite, ou ainda a de Euclides da Cunha, em Os Sertões.

No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações

graníticas da costa de alteiam, em formas caprichosas, na serra Talhada,

dominante, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo

anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas e pique. No

âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário – a

Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades

religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali

congregou toda a população dos sítios convizinhos e, agrimpando-se à pedra,

anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei d.

Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas

pela ação miraculosa do sangue de crianças, esparzido sobre ela em

holocausto, o grande rei inrropia envolto de sua grande fulgurante,

castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os

que houvessem contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de necrose... 170

2. O Nordeste suassuniano:

Grande influenciador da visão de mundo que Ariano Suassuna abraça e cria para

si, Euclides da Cunha narra o episódio da Pedra do Reino, em uma curta passagem,

como exemplo do fanatismo sertanejo em oposição ao texto “Monte Santo”, onde a fé é

utilizada como mecanismo para bons resultados.

Em oposição aos dois episódios também podem ser encarados como um embate

entre a fé oficial e a fé popular, onde o primeiro é marcado pelo sangue, a crueldade o

segundo estaria ligado aos esforços de um pároco, auxiliado pela população local com o

intuito de colaborar para a preservação da espiritualidade do povo. Sobre o “Monte

Santo”, narra Euclides:

No fim do século passado, porém descobriu-a um missionário – Apolônio de

Todi [...] Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos

trabalhos e o auxilio franco que lhe déramos os povoadores dos lugares

próximos. [...] por fim, o sermão terminal da penitencia, exortando o povo a

que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em tão

grande desamparo das coisas espirituais [...] disse que de hoje em diante não

chamariam mais serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo”.171

Mesmo diante de todo rigor e cientificidade que marca a obra euclidiana, fruto

do positivismo da época, o relato de Os Sertões é marcado por tropeços de seu autor, se

170

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Editora Três, 1984, p. 63. 171

Ibidem, p. 63.

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comparado ao registro histórico. Primeiramente, ao relatar o derramamento de sangue

do povo em Pedra Bonita, Euclides da Cunha faz referência somente ao assassinato de

crianças, enquanto o que é conhecido é que entre os assassinados estão não somente

eles, mas também mulheres, homens e até mesmo cães.

Em uma entrevista ao Canal Futura, Ariano Suassuna revela seu contato e

fascínio pela narrativa dos acontecimentos de Pedra Bonita, através do texto de Antônio

Attico Leite.172

Segundo o autor, o pensamento inicial para a escrita da Pedra do Reino

seria uma coletânea de contos, partindo da ideia do artista Aloísio Magalhães que

aconselhou Ariano Suassuna a aproveitar “[...] as histórias que costumava contar para os

amigos”.173

Na produção dos contos, Quaderna era tratado como uma figura secundária,

Ariano Suassuna tinha por intuito dar voz à história de Sinésio, contudo, ainda segundo

o autor, Quaderna se impôs ganhando cada vez mais espaço, tomando o romance para

si.174

É totalmente aparente o mundo alucinado da personagem central, algo

compreensível na obra de Ariano Suassuna, que sempre declarou ter um apreço pelos

loucos, diante da originalidade que esses apresentam em sua visão de mundo.

Quaderna se define, apesar da condição de preso, como o verdadeiro Rei do

Brasil, herdeiro de uma nobre linhagem, sendo a paterna a de maior estirpe, a qual tem

início com os eventos de Pedra Bonita.

[...] eu, Dom Pedro Diniz Ferreira Quaderna, sou o mesmo Dom Pedro IV,

cognominado, “O Decifrador”, Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe,

Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do

Brasil [...] sou nada mais, nada menos, do que descendente, em linha

masculina e direta de Dom João Ferreira-Quaderna, mais conhecido como El-

Rei Dom João II, “O Execrável”. 175

Quaderna é o palhaço-narrador, mestre de cerimônias, que nos apresenta um

palco da vida, onde os mais variados personagens desfilam suas histórias, em uma

ciranda armorial.

172

CANAL FUTURA – “Sala de Aula/ Sebastião Encantado”. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=lzPDkPujWWA Acesso em: 04 de mar de 2018. 173

CARRERO, Raimundo. “Ariano, O Enigmático, e as revelações da “Pedra do Reino””. Diário de

Pernambuco. Recife: Caderno 03 (o arquivo não possui paginação, pois trata-se de um recorte do arquivo

pessoal de Ariano Suassuna, concedida pelo professor Carlos Newton Júnior, professor de estética da

UFPE). 174

Idem. 175

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 33 -

34.

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A narrativa tem início no ano de 1938, segundo Quaderna, o “Século do Reino”.

Porém, o princípio dos acontecimentos nos remete a uma tradição advinda do século

XVI, com o desaparecimento de Dom Sebastião, rei de Portugal e como ela ganhou

força no sertão do país, através do movimento Sebastianista.

A ideia do messianismo é algo presente desde a Antiguidade em diversas

religiões, inclusive politeístas, há registros já na Pérsia por meio do zoroastrismo. No

mundo ocidental ela é concebida e consolidada através da profecia do nascimento do

escolhido, na crença judaico-cristã, o filho do Deus Yavé. A partir daí, dois outros mitos

messiânicos se destacam, refletindo a força do Cristianismo, a do Rei Arthur, na Grã

Bretanha e a de D. Sebastião, no mundo ibérico.

O estudo e curiosidade de temas relacionados a tal movimento social tem

mexido com a imaginação dos mais variados grupos, desde historiadores, literatos,

folcloristas a estudiosos da cultura popular.

Uma ideologia que se apresenta como maniqueísta, com interpretações quase

sempre, igualmente maniqueístas. Em uma definição de fronteiras, entre “nós” e os

“outros”, sendo “nós”, aqueles que enxergamos por dentro, crentes de uma fé maior,

lutando, ou a visão de quem está de fora, tendo os participantes do movimento com o

olhar negativo de loucos, sanguinários, fanáticos, bandidos, ou positiva de maneira

paternalista, como ingênuos, místicos etc.176

O mito possui caráter transcendental e consegue penetrar na alma humana,

passando a fazer parte da cultura de um povo, que diante das desesperanças e sacrifícios

criam um novo mundo, cercado de fantasias. “[...] as crenças messiânicas e milenaristas

alimentam-se da – e continuamente realimentam a – cultura popular, reinventando-se

durante os surtos, sem nunca apagar-se completamente da memória dos aflitos”.177

O messianismo se manifesta em um conceito de coletividade e mútuo interesse

dos indivíduos envolvidos, onde, na grande maioria das vezes, se busca suplantar as

tragédias da vida e a procura por justiça.

Embora tal dicotomia abale diversas regiões e grupos em todo o país, ao longo

de sua história, sendo ou não de caráter sebastianista, o Nordeste foi um terreno fecundo

176

ZALUAR, Alba. “Os Movimentos 'Messiânicos' Brasileiros: Uma Leitura” In: Anpocs, O Que se Deve

Ler em Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Cortez/Anpocs (1986), p. 146. 177

Idem, p. 142.

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para tais ações, graças a elementos sociais, políticos, geográficos e econômicos, como já

relatado anteriormente.178

Trata-se de um espaço onde a massa subalternizada de sertanejos, excluídos do

universo político e social, concentra nos movimentos religiosos de caráter popular um

escudo, ainda que inconsciente, um respaldo místico que poderia legitimar a

“desordem” social.

A sociedade sertaneja guarda em sua religião traços próprios, de uma posição

mais prática oriunda do cotidiano, que aquela litúrgica e erudita, que se torna apenas

resquício no dia a dia. Assumindo uma posição marginalizada do mundo oficial, em que

a Igreja e seus sacerdotes estavam distantes das regiões periféricas, o povo abraçava os

“homens santos”, que representavam em sua figura e linguagem as calamidades vividas

e presenciadas e o alívio dos males.

A interpretação popular que o povo faz da religião, modificando-a de acordo

com seus interesses e vivências, não é um processo novo. Em O Queijo e Os Vermes,

por meio da figura de Monocchio, Ginzburg demonstra como a posição da Igreja não

estava de acordo com o interesse das camadas populares e evidencia uma autonomia,

ainda que inconsciente, em relação ao seu modo de pensar:

[...] uma cultura popular original e autônoma, permeada por valores

religiosos. Nessa religião popular, concentrada na humanidade e pobreza de

Cristo, teriam sido fundidos, de forma harmoniosa, o natural e o sobrenatural,

o medo da morte e o impulso em direção à vida, a tolerância às injustiças e a

revolta contra a opressão.179

Na obra O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de

Janeiro, 1830-1900, da historiadora Martha Abreu, é claro como o encontro dos ritos

oficiais em uma sociedade predominantemente iletrada, em um contexto singular, toma

rumos próprios gerando novas releituras do catolicismo.180

Ao longo de suas 17 edições, o Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do

Sangue do Vai-e-Volta, sendo a última no ano de 2017, póstuma ao seu criador, altera

178

Dentre os movimentos religiosos-populares de caráter milenarista e messiânico o Nordeste abriga a

“Revolta de Juazeiro”, Ceará (1914), que embora não possuísse raízes sebastianistas, trabalhava com a

ótica de um “messias” carismático, tido como defensor da população, o Padre Cícero, popular “Padim

Císo”. Movimento da Serra do Rodeador (1817 – 1820) e o de Pedra Bonita (1835 – 1838) ambos no

estado do Pernambuco. Por último, sendo um dos mais conhecidos movimentos religiosos e populares da

história nacional, “Canudos” (1896-1897), no estado da Bahia. 179

GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes, p. 14. 180

ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-

1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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uma tradição em relação às demais. Pela primeira vez a Editora José Olympio, não foi a

responsável pela publicação, e sim a Nova Fronteira.

Ariano Suassuna sempre se considerou, e foi considerado, um autor de trabalhos

inacabados. Poemas, peças teatrais e sua própria obra-prima, estiveram em um constante

processo de reescrita e transformações, uma necessidade que o autor carregou consigo,

segundo o próprio, na tentativa de dar o melhor de si.

Em sua primeira edição, A Pedra do Reino foi escrita de maneira direta, sem

qualquer espécie de divisão. Somente trazia os folhetos que caracterizavam o estilo

ligado ao cordel. Posteriormente, o autor passou a dividi-lo em livros, do primeiro ao

quinto. Por último, com o intuito de abarcar com seu romance todas as características

artísticas, o tornando a mais completa ideia de armorial, Ariano Suassuna intitula as

partes de “prelúdio”, “chamada”, “galope”, “tocada” e “fuga”.

[...] eu escrevo e reescrevo muito [...] eu procuro dá o máximo de mim, eu só

entrego uma obra pra publicar, quando eu acho que eu fiz, o máximo de mim.

Assim mesmo, A Pedra do Reino foi publicado [...] se você pegar uma

primeira edição da Pedra do Reino, o romance é escrito direto, depois eu

dividi em cinco livros, e atualmente se você olhar essa edição aí e as edições

mais recentes [...] mas agora procurando ligar ao espirito da música eu

chamei “prelúdio”, “galope”, “chamada”, “Derrepente” “Tocada” e

“Fuga”.181

Ainda segundo Carlos Newton Júnior, tanto a primeira quanto a segunda edição

estariam desprovidas do agrupamento de folhetos em livros, sendo somente a partir da

terceira tal alteração.

Em uma situação de auto reflexão, A Pedra do Reino, embora busque reunir todo

o trabalho de uma vida, nas diversas esferas da arte humana e da vivência do indivíduo,

apontando problemas ligados a questões religiosas, filosóficos, da vivência humana,

sociais e políticos, causa posteriormente em seu autor um embate de sentimentos.

Ariano Suassuna, ao declarar que comete equívocos históricos e julgamentos

emotivos, respalda-se nas futuras engulhas da história, transformando a Pedra do Reino

em uma obra introdutória do seu trabalho póstumo, Romance de Dom Pantero no Palco

dos Pecadores.

Em uma obra na qual defende a história de sua família e a tradição do país em

uma releitura do Nordeste brasileiro, sua cultura e história, Ariano Suassuna se vê entre

equívocos. Dentre os momentos de dores do escritor, constatar que a representação de

181

PROGRAMA IMAGEM DA PALAVRA. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=QoKMFszPz-A Acesso em: 01 de Dez de 2016.

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sua Ilumiara não atende a seus anseios e suas interpretações de vida, sempre mutáveis

lhe causam profunda reflexão e vazio. 182

[...] Cometi um erro histórico em A Pedra do Reino... Eu digo em A Pedra

que a Guerra de Princesa e Canudos são similares. Está errado!... Em

Princesa, era a burguesia urbana contra a burguesia rural (representada pelo

meu pai); enquanto em Canudo, era a burguesia urbana contra o pobre, mas

eu não conseguia enxergar isso. Ainda bem que, em literatura, existe licença

poética!183

É consenso entre críticos e estudiosos que A Pedra do Reino é uma das

importantes obras da literatura do Nordeste e Brasileira. Após seu lançamento, Ariano

Suassuna declara em seu Almanaque Armorial do Nordeste a alegria de ver sua obra

recriada nas mãos de diversos artistas e ser ela inspirada na arte do Nordeste.184

Posso dizer, honestamente que, hoje, um dos maiores motivos de orgulho que

tenho, como escritor, é o fato de meu romance A Pedra do Reino estar

inspirando a criação de inúmeros quadros, talhas e desenhos, feitos por

artistas do Nordeste, assim como recebendo em prosa, em música e em verso

a homenagem de nossos Poetas [...] Para um escritor como eu, ver seu livro e

seus personagens recriados, reinterpretados assim, é algo novo e, as vezes,

estranho.185

Para Albuquerque, é o Nordeste, dentre outras coisas, fruto da estereotipização,

tanto no que diz respeito a imagens positivas quanto negativas. Um processo de

recriação, diante das transformações do país e ruínas da região nordestina, desencadeada

a partir da crise social que assola a região.

182

Ariano, em referencia à arte rupestre brasileira, “[...] passou a chamar [...] de “ilumiaras” [...] [para]

identificar conjuntos artísticos diversos, surgidos a partir da integração de vários gêneros (pintura,

escultura, arquitetura etc.) e que pudessem ser compreendidos como locais de celebração da cultura

brasileira [...] ao caracterizar toda sua obra como uma “ilumiara”, portanto deixava claro que cada parte

dela, mesmo que mantivesse a sua unidade e seu valor de obra independente, comporia um conjunto

artístico maior, uma espécie de “obra total”. NEWTON JÚNIOR, Carlos. A Pedra do Reino e A Ilumiara.

In: SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Vai-e-Volta. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 17ª ed. 2017. 183

NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. O Cabreiro Tresmalhado: Ariano Suassuna e a Universalidade

da Cultura. São Paulo: Palas Athena, 2002. p. 31. 184

O Almanaque Armorial do Nordeste é uma coluna semanal escrita por Ariano Suassuna no Jornal da

Semana, em Recife, entre dezembro de 1972 a junho de 1974. Uma espécie de diário público, onde o

autor em seu primeiro escrito diz que carregado de incertezas irá publicar uma diversidades de temas sem

estar preso, o que fará semanalmente é “[...] conversar e pensar em voz alta, no maior descuido e

liberdade possíveis [...] Assim, minha vida, minhas opiniões, minhas atitudes e minhas ideias , perante o

mundo, serão mais ou menos retratadas aqui, aos poucos [...] neste Almanaque Armorial do Nordeste” 185

SUASSUNA, Ariano. “Almanaque Armorial do Nordeste”. Jornal da Semana, Recife. Ano I de 27 a

23/ 12/ 1972 nº 1. p. 33.

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No processo de “invenção” da região, o autor desloca para a primeira metade do

século XX, onde os primeiros discursos acerca daquele território o descrevem como o

‘espaço da saudade’.

[...] O Nordeste é uma espacialidade fundada historicamente, originada por

uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram realidade

e presença. [...] Antes que a unidade significativa chamada Nordeste se

constituísse perante nossos olhos, foi necessário que inúmeras práticas e

discursos “nordestinizadores” aflorassem de forma dispersa e fossem

agrupados posteriormente”.186

Concomitantemente ao declínio da força hegemônica do Nordeste, do mundo

rural e de suas elites, havia o antagonismo do sudeste, diante do crescimento econômico

por meio do café, dos primeiros raios da burguesia industrial e do mundo urbano.

A sociedade dava sinais de mudança, onde os embates entre a tradição e o

moderno levaram intelectuais do Nordeste a transformar o cenário arcaico pré-

capitalista, por meio do lirismo literário, na poesia da saudade, cantando a um mundo

rural seus costumes e sua herança.

[...] contribuirão decisivamente as obras sociológicas e artísticas de filhos

dessa “elite regional” desterritorializada, no esforço de criar novos territórios

existenciais e sociais, capazes de resgatar o passado de glória da região, o

fausto da casa-grande, a “docilidade” da senzala, a “paz e estabilidade” do

Império. [...] O Nordeste é gestado como o espaço da saudade dos tempos de

glória, saudade do engenho, da sinhá, do sinhó, da Nega Fulô, do sertão e do

sertanejo puro e natural, força telúrica da região.187

A década de 1930 transforma o Nordeste em espaço da denúncia. Autores como

Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos retratam um Nordeste, que

vai além das lembranças, destacando as injustiças sociais e a miséria, em um desejo de

transformação, olhando para o futuro.

Segundo Albuquerque, “[...] a influência do pensamento marxista vai ser

decisiva para a emergência desta nova forma de ver e dizer o Nordeste, seja artística,

seja politicamente”.188

Suassuna nasce nesse processo de transição da visão do Nordeste, na luta entre o

arcaico e o moderno e o envolvimento de sua família. Sua obra é marcada pelo caminho

da saudade, o cantar a um passado glorioso, a morte do pai, a construção de um reino

186

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p. 79. 187

Idem, p 46 – 47. 188

Idem, p. 208.

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encantado em ruinas. Mas sua obra também denuncia a pobreza, se utiliza do cômico

para retratar as mazelas sociais do sertão, de uma sociedade patriarcalista, marcada pela

seca, pelas distinções sociais.

As Pedras do Reino são marcadas por meio da justaposição natural de rochas,

formando uma espécie de anfiteatro natural, portanto, divinos em sua origem. Dentro

desse espaço duas se destacam, como torres de um castelo ou de uma catedral, anfiteatro

autêntico aos cultos sebastianistas.

A pedra é de forma simbólica e funcional o elemento que acompanha o ser

humano durante seu vagar pela Terra em seu processo de evolução. Segundo o escritor e

jornalista cearense Claúdio Aguiar:

[...] Foi através dela que os possíveis seres de uma civilização anterior ao

estágio que ora conhecemos, esculpiram as mais assustadoras e

deslumbrantes formas de entidade, sobre as quais, à falta de maiores

explicações, os estudiosos levantaram as mais mirabolantes conclusões.189

É possível examinar, ressaltando em diversas esferas do percurso da humanidade

em sua construção, momentos em que as pedras pelo do caminho ganham importância e

destaque como, por exemplo, Stonehenge, A Grande Muralha da China e As Grandes

Pirâmides do Egito, as pedras por onde pisamos revelam nossas histórias.

Stonehenge, na Inglaterra, permanece um mistério até os dias atuais, suscitando

as mais diversas explicações entre a ciência e os mais inquietantes devaneios.

Relacionada ao universo místico na história da Grã-Bretanha é considerada por muitos,

anterior à população celta.

Stonehenge tal qual a Pedra do Reino, em uma das muitas explicações que

possui, liga-se à ideia do sobrenatural da figura lendária de um Grande Rei, que voltaria

para restaurar o seu reino de Glória e reestabelecer o triunfo dos mais humildes.

Uma possível releitura do messias Judaico, Jesus Cristo, que ao ressuscitar do

reino dos mortos, promete aos que seguirem o seus ensinamentos a morada eterna no

Paraíso celeste, onde não há fome, peste, doenças ou qualquer tipo de moléstia e onde a

justiça maior prevalece. Sofrer no plano terreno para alcançar algo maior na vida eterna,

onde “os humilhados serão exaltados”.190

É através de Pedras que Javé transmite suas leis ao povo judeu, posteriormente

espalhadas ao mundo cristão: “Então, disse o SENHOR a Moisés: Sobe a mim, ao

189

AGUIAR, Claudio. “O Realismo Mágico d’A Pedra do Reino”. Jornal do Commercio, Recife. 23 jan.

1972 (arquivo pessoal de Ariano Suassuna, cedido pelo profº Drº Carlos Newton Júnior). 190

A Bíblia Sagrada Livro de Ezequiel 21: 26 (Velho Testamento).

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monte, e fica lá; e dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos que tenho escrito,

para os ensinares”.191

Já no Novo Testamento, Jesus é apresentado pelo apóstolo Paulo como a pedra

angular da igreja, “[...] Jesus Cristo é a principal pedra [...] no qual todo o edifício, bem

ajustado, cresce para templo santo no Senhor”.192

E Cristo ergue sua igreja

simbolicamente em uma rocha, “Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta

pedra edificarei a minha igreja”.193

Ao contrário do que possa parecer em um primeiro momento, o Movimento

Armorial não nasceu grande, tornou-se grande. Distintamente do Movimento

Modernista (1922), encabeçado por intelectuais, em sua maioria pertencentes à elite

paulista.

O Armorial surge como um pequeno evento ligado a Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE), pelo Departamento de Extensão e Cultura da universidade,

dirigido por Ariano Suassuna, nomeado em 1969 pelo então reitor Murilo Guimarães.

Sua gestão se estende até o ano 1973.194

O desdobramento do Movimento é um ponto que chama a atenção. Durante toda

a década de 1970, é possível ver em jornais de diversos pontos do território nacional a

receptividade encontrada, dando conta da trajetória e especialmente dos frutos daquele

novo movimento literário.

Domingo passado, 18 de outubro, na Igreja de São Pedro dos Clérigos a

Orquestra Armorial de Câmara (do Conservatório Pernambucano de Música)

apresentou um programa denominado “Três Séculos de Música Nordestina

do Barroco ao Armorial.195

Ainda segundo, Aguiar é em A Pedra do Reino que Suassuna,

[...] Aliando a nossa realidade social, política, histórica e cultural mesclada

de diversas influências, a um estado de criação ainda muito mais forte e

sedutor – o sonho de um Reino [...] SUASSUNA partiu por um estilo régio,

contando estórias de sabor épico, lírico, satírico, tragicômico, não lhe

faltando tiradas de erudição entremeadas de rasgos delirantes da nossa

literatura de cordel.196

191

A Bíblia Sagrada. Livro de Êxodo 24:12 (Velho Testamento). 192

A Bíblia Sagrada. Epistola de Paulo aos Efésios 2:20-21. (Novo Testamento). 193

A Bíblia Sagrada. O Santo Evangelho Segundo São Mateus 16:18 (Novo Testamento). 194

Nesse período Ariano, torna-se membro fundador do Conselho Federal de Cultura (1967 a 1973) e do

Conselho Estadual de Cultura do Pernambuco (1968 a 1973). 195

Jornal do Commercio. Nasceu a música da gente. Recife, 25 out. 1970, p. 6. 196

AGUIAR, Claudio. O Realismo Mágico d’A Pedra do Reino.

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O Nordeste é o mundo para Suassuna, em suas obras, ele transfere os dramas

humanos do cotidiano, para a realidade do Sertão. Como já declarado, em entrevista,

para Ariano Suassuna, os problemas humanos se reproduzem sempre os mesmos, tendo

como divergência apenas o tempo e o espaço, portanto, os fatos que envolvem a Pedra

do Reino poderiam ter ocorrido, em qualquer parte do mundo, diante disso, é explicável

o encantamento que reveste a história, que carregado na poeira do Sertão, cria vida nas

diversas vozes que o reproduz, está aí, seja em Portugal ou em território brasileiro, o

encantamento do outro.

[...] o ser humano não muda, o que muda são as circunstâncias em torno dele,

evidentemente ele é afetado por sua realidade, pelo seu tempo e pelo lugar

onde ele vive, mas na essência e no fundamental o ser humano permanece o

mesmo. Então eu acho que aquela história da Pedra do Reino, é uma história

capaz de atingir todos os lugares do mundo e capaz de atingir todos os

tempos que o mundo venha a viver, por que ela toca num problema humano,

que é esse desejo de se alçar acima de si mesmo, em busca de uma realidade

maior do que a realidade que nos cerca, o Sebastianismo vem daí”.197

Ao reproduzir os acontecimentos da Pedra do Reino, Ariano Suassuna entra em

um universo que vai além do sertão que conheceu em seu cotidiano. Ele transporta todo

um conhecimento e realidade humana. Ariano Suassuna constrói seu reino encantado do

sertão, entre o real e místico, um mundo em sua mente, que transpõe a realidade.

Diversas são as passagens do Romance, em que se torna clara a compreensão do autor,

em relação à transcendência da alma humana, seja no Nordeste, em Portugal ou no resto

do mundo. Em um diálogo entre os personagens Quaderna e Samuel no Folheto XXXIV:

Marítima Odisseia de um Fidalgo Brasileiro se lê:

⸺ Mas Samuel, o sebastianismo não é assunto Português?

⸺ Tanto faz dizer Português como Brasileiro, Quaderna! Por outro lado, a

história de Dom Sebastião, O Desejado, transcende os limites puramente

individualistas e nacionais para ser um Mito humano: o do homem sempre

desejoso de se transcender, alçando-se, pela Aventura, pelo delírio, pelo

risco, pela grandeza, pelo martírio, até o Divino! [...].198

Outra passagem traz referência ao casamento do profeta da Pedra do Reino, João

Antônio, que se aproveita da ingenuidade existente em todo indivíduo, para conseguir

seu objetivo:

197

“Sala de Aula/ Sebastião Encantado”. CANAL FUTURA. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=lzPDkPujWWA Acesso em: 04 mar de 2018. 198

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 214.

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[...] o Visionário escritor, improvisado em Profeta, ensinava que quando João

se casasse com Maria, aquele Reino desencantaria, conseguiu ele, graças à

ignorância da população e à bem conhecida tendência que o espírito humano

tem para abraçar o maravilhoso e o fantástico.199

Nessa busca, com o objetivo de retratar o individuo, a alma humana nessa

composição de sertão, Ariano Suassuna vai lançar, em a Pedra do Reino, um olhar que

se volta para si mesmo, se volta para perpetuar a ideia do que a vida existe por meio da

metáfora do universo sertanejo. Segundo Quaderna:

[...] o próprio Mundo me aparece como larga estrada sertaneja, um Tabuleiro

seco e empoeirado, onde, por entre pedras, cactos e espinhos, desfila o

cortejo luminoso e obscuro dos humanos ⸺ Reis, valetes, Rainhas, cavalos,

torres, Curingas, Damas, peninchas, Bispos, ases e Peões.200

A representação emerge de alguns personagens com inicial maiúscula pode vir a

simbolizar o destaque que cada figura possui na ciranda humana da vida para Suassuna.

Toda a obra é perpassada por símbolos que retratam a imagem e criação do autor em

relação a esse sertão selvagem, místico, esse reino encantado, divino, que percorre os

tempos entre Deus e o Diabo.

Se a Pedra do Reino é a transposição do mundo mental de Suassuna, sua

interpretação da realidade torna-se a constatação de que, para o autor, a vida e os seres

humanos e suas problemáticas são um constante mistério, difícil ou impossível de ser

decifrado.

O Nordeste é em grande parte descrito como um ambiente rural, embora sua

geografia, paisagens, características sociais e cotidianas tenham se transformado, em

especial a partir do século XX. Ainda assim seu território é um espaço/tempo povoado

por um imaginário que organiza sua vivência diária a partir daquilo que o cerca.

Baseado nessa ideia, compreendemos a construção cosmogônica que o

personagem Quaderna realiza. Em seu livro intitulado O queijo e os vermes, o

historiador italiano Carlo Ginzburg, constrói a partir do relato da vida de Domenico

Scandella, conhecido como Menocchio, o retrato tanto de um período de transição,

como de uma figura que encarna tal processo.201

199

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 72. 200

Idem, p. 241. 201

GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes.

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Quaderna, ainda que condenado, necessita ter sua história ouvida, se possível

pelo maior número de pessoas, transmitindo assim suas ideias e pensamentos,

defendendo-se das injustiças de poderosos.

Quaderna membro-fundador e sacerdote daquilo que denomina Igreja Católico-

Sertaneja, encontra suas divindades e misticismo, vinculados ao seu cotidiano. Uma

fusão entre a liturgia oficial e aquela criada pelo povo. Em uma passagem do romance,

após tomar o vinho sagrado, Quaderna, em um monólogo, espécie de profecia, discursa

a respeito do que espera do futuro e dos traidores da Pedra do Reino:

[...] Quando chegar o Século do Reino, e for anunciada a Vigília de fogo, o

Senhor enviará a Coluna de brasas sobre o acampamento e o território dos

estrangeiros e criminosos e poderosos aliados aos seus. A Onça de fogo do

Sertão destruirá seus Exércitos, despedaçando as rodas dos carros-de-

combate, e todos os traidores serão arrojados do Sertão para o fundo do Mar.

Dirão assim os Estrangeiros: “Fujamos dos Brasileiros e outros latinos, por

que o Deus do Fogo peleia a favor deles e contra nós!202

.

Essa passagem se assemelha à passagem do povo hebreu, pelo Mar Vermelho,

após a saída do Egito, fugindo da perseguição do exército do Faraó, onde, após a

passagem dos escolhidos, Deus fecha o Mar afogando os inimigos. Seriam, portanto, os

brasileiros e latinos, na visão do personagem-narrador Quaderna, os verdadeiros povos

eleitos do Senhor.

Na Bíblia Sagrada, no Velho Testamento, em seu segundo livro Êxodo, se lê sob

o título “A passagem pelo meio do mar”:

[...] E ia entre o campo dos egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era

escuridade para aqueles e para estes esclarecia a noite; de maneira que em

toda a noite não chegou um ao outro. Então, Moisés estendeu a sua mão

sobre o mar, e o Senhor fez retirar o mar [...] e o mar tornou-se em seco, e as

águas foram partidas. E os filhos de Israel entraram pelo meio do mar em

seco [...] E os egípcios seguiram-nos, e entraram atrás deles todos os cavalos

de Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros até o meio do mar. E aconteceu

que, na vigília daquela manhã, o Senhor, na coluna de fogo e de nuvem, viu o

campo dos egípcios; e alvoroçou o campo dos egípcios, e tirou-lhes as rodas

dos seus carros, e fê-los andar dificultosamente. Então, disseram os egípcios:

fujamos da face de Israel, porque o Senhor por eles peleja contra os

egípcios.203

Em toda a obra, Suassuna evoca simbologias que sejam capazes de caracterizar o

sertão a partir do universal. Em uma esfera religiosa, esse espaço seria a longa jornada

pela qual o homem encontraria a redenção e se aproximaria de Deus. Em o Auto da

202

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 557. 203

Bíblia Sagrada. “A passagem pelo meio do mar”. Livro de Êxodo. Capítulo 14, versículos 20 – 25.

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Compadecida, o julgamento diante de Jesus Cristo e Nossa Senhora é amenizado

devido às intempéries causadas pelo meio.

Na introdução do simbólico, a onça, expressão de força, desencadeadora de

medo e respeito, povoa toda a obra nas mais diferentes formas, mas sempre ligada ao

sobrenatural.

[...] Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado,

parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser arquejo de

gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados

durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração

dessa Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a raça

piolhenta dos homens. Pode ser, também a respiração fogosa dessa outra

Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, é que há milênios,

acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.204

É também, em sua divindade, aquela que castiga os homens, semelhantes a

diversos deuses ao longo da história da humanidade, se caracteriza pela justiça com ares

de crueldade:

[...] sob o Sol fagulhante do meio-dia, me parece, ele todo, como uma enorme

Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras pedregosas que lhe

servissem de muro [...] estivéssemos todos nós, aprisionados e acuados,

aguardando as decisões da Justiça; sendo que, a qualquer momento, a Onça-

Malhada do Divino pode se precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e

consagrar pela destruição.205

Ao contar a história de sua família, Quaderna deixa claro a representação desse

símbolo místico e de força em seu sangue e no de sua família. Ao retratar os fatos em

torno do massacre da Pedra do Reino, ocasião em que seu bisavô degola inclusive a mãe

de seu filho. A criança milagrosamente teria sobrevivido, por força de um fenômeno

miraculoso, aproxima-se da história de fundação de Roma. Nela, Rômulo e Remo

teriam sido alimentados por uma Loba. O principezinho, continuador da Sagrada

linhagem dos Ferreira-Quaderna, teria sido alimentado por uma onça. Enquanto os

fundadores lendários do antigo Império Romano foram encontrados por um pastor, que

se trata de uma figura importante para aquela sociedade, o avô de Quaderna foi

encontrado por um vaqueiro e criado por um padre, ambos personagens de destaque

para a sociedade sertaneja.

O corpo de minha bisavó Isabel só foi encontrado na manhã do dia seguinte

por um Vaqueiro [...] Assombrado, aproximou-se do lugar de onde vinha o

choro, e viu um quadro estarrecedor [...] Enroladas em suas coxas, havia duas

204

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p.31. 205

Idem, p. 32.

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Cobras-Corais, enormes, de um tamanho como nunca se viu nessa espécie.

Lambendo e farejando o corpo, estavam duas Onças-Pintadas, que correram

assim o intruso apareceu. De cada lado do corpo, havia uma cabeça de

mulher, ambas cortadas pelo pescoço [...] O estranho, porém é que a o

menino sobrevivera e estava perto do corpo de sua jovem Mãe. [...] Mas vá a

ver que são mesmo corretas as versões, correntes aqui no Cariri, de que uma

daquelas Onças era fêmea e teria amamentado o inocente naquele primeiro

dia de vida.

[...] o Vaqueiro se apiedou do menino e levou-o [...] conduziu o inocente a

Flores, entregando-o àquele mesmo Padre Manuel José do Nascimento

Wanderley. 206

Quaderna transpõe todos seus conhecimentos para o ato de criação articulando

entre o local e o universal, dando nova roupagem aos mitos da humanidade, já que

preserva o que é para ele a originalidade e a pureza superior do Sertão. Segundo

Quaderna, a esfinge animal mitológico da Antiguidade “[...] era um cruzamento de grifo

com leoa. Ou, melhor, em termos sertanejos, um cruzamento de Onça, Cavalo e

Gavião”.207

Animais genuinamente nacionais, portanto superiores, já que de acordo com

ele seu correspondente não possuiria a dignidade dos nossos “[...] no Sertão não existem

Tigres, animal estrangeiro, onça falsificada”.208

O Espírito Santo não deveria ser representado por uma “pomba”, segundo

Quaderna um animal tão sem graça, assim como a Trindade, estaria melhor retratada

por uma Onça, o que é apresentado no interrogatório ao Corregedor: “[...] O senhor, [...]

não pode conhecer a tríplice natureza da Onça do Divino, dividida em quatro partes: a

Onça-Pintada, a Onça-Negra, a Onça-Parda e o Gavião-de-Ouro.”209

Para Quaderna nesse Sertão místico está aquilo que há entre a vida e a morte,

onde o ser humano habita, e onde tudo a sua volta simboliza a passagem do homem

sobre a Terra, um pequeno cosmos, rodeados de sinais, pois “[...] havia alguma coisa de

sagrado, escondido e aprisionado nas grades de granito de tudo quanto é pedra sertaneja

por aí afora”. 210

[...] no meu Catolicismo, os bichos servem de insígnias ao Divino são todos

rigorosamente brasileiros e sertanejos [...] na minha linguagem, nunca entram

leões ou águias, bichos estrangeiros, mas sim Onças e Gaviões [...] o Espírito

Santo é um Gavião, bicho macho e sangrador, e não essa pombinha que

sempre me pareceu meio sem graça. Segundo nossas crenças, Sr. Corregedor,

foi a Onça Malhada do Sol Divino que nos fez a mim e ao Mundo, segundo

sua própria imagem.211

206

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 83. 207

Idem, p. 448. 208

Idem, p. 41. 209

Idem, p. 401. 210

Idem, p. 67. 211

Idem, p. 562.

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Sua visão a respeito da simbologia dos animais tem tamanho significado que a

personagem entra em desentendimento com a visão de Euclides da Cunha, por sua falta

de conhecimento e entendimento a respeito do mundo místico do sertão.

[...] diz o Tenente-Coronel Durval de Aguiar que essa terra é constituída,

toda, de “serras de pedra, naturalmente sobrepostas, formando Fortalezas e

redutos inexpugnáveis”. Euclydes da Cunha, plagiando o Tenente-Coronel,

descreve também o Sertão e fala em “alinhamentos de penedias,

caprichosamente repartidos”, que semelham, “de fato, grandes cidades

mortas”, cidades ante as quais o Sertanejo passa “sem desfitar a espora dos

ilhais do cavalo em disparada, imaginando lá dentro uma população

silenciosa e trágica de almas do outro mundo”. E é aí que eu vejo que

Euclydes da Cunha absolutamente não pode ter sido o “Gênio da Raça

Brasileira”. Veja que leviandade, a dele! “Imaginando!” Imaginando, uma

porra! Tem, mesmo! Essa população de almas do outro mundo existe,

mesmo, aqui, em nossas pedras, de noite, de dia e no pino do meio-dia!

Bastariam as Onças, os Gaviões, os Carcarás, os Veados, os Bodes, as Cobras

e os Morcegos sertanejos, para provar que o nosso Reino amuralhado de

pedras está povoado de Deuses e Demônios, de Anjos e Divindades!212

Ao buscar adaptar aquelas histórias que correm as almas humanas, Suassuna

deixa evidente na fala de Quaderna o desejo de demonstrar como sua interpretação dos

fatos e a exclusão dos estrangeiros são legítimas. Ariano Suassuna se auto declarava

Cavaleiro do povo brasileiro, defensor de sua cultura, posição sentida com acréscimos

de devaneios nas falas de Quaderna.

No Romance, a personagem deixa clara a superioridade do povo brasileiro,

justificada por sua miscigenação. Ele possui o melhor de cada nação fundadora. É um

ser original, o homem-castanho, do qual todos os sertanejos descendem.

A verdadeira raça brasileira e legítima a ocupar o trono do Brasil, “[...] legítimos

e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino do Sertão,

que cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do Brasil, de 1835 a 1838,

transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança de sangue e decreto divino”.213

Sua ambição diante da posição do homem-castanho é ainda maior ao declarar ao

corregedor que não seria somente o indivíduo original do povo brasileiro, mas sim da

origem de toda a raça humana, segundo Quaderna declara ao corregedor:

[...] nós, Sertanejos, somos descendentes direitos do Tapuia, do “Homem

castanho inicial”, brotado da terra parda do Sertão num dia em que ela estava

umedecida [...] Aliás, acho essa ideia [...] mais lógica do que as ideias de outras

Mitologias estrangeiras. É muito mais lógico que o Homem-castanho,

emigrante daqui para a África, tenha se tornado negro, lá, pelo calor, tornando-

212

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 574. 213

Idem, p. 34.

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se branco, pelo frio, na Europa, e permanecendo castanho no Egito ou na

Índia.214

Quaderna também declara o desejo de uma nação Castanha, livre de qualquer

influência e mando de usurpadores estrangeiros: “[...] Meu sonho, é fundir os Fidalgos

guerreiros e cangaceiros [...], com os Fidalgos negros e vermelhos do Povo, fazendo

uma Nação de guerreiros e Cavaleiros castanhos e colocando esse povo da Onça-

Castanha no poder!”215

A existência de um catolicismo castanho atrela-se a um Sebastianismo também

castanho, já que seria ele a junção do negro do ibérico. Perspectiva que caracteriza toda

a obra, a crença no retorno messiânico como já discutido anteriormente, possui raízes

antigas e tem no Cristianismo seu grande símbolo. O retorno de Dom Sebastião inspira

e justifica a fé nas extremas ações do povo, no decorrer de toda a obra, o movimento à

história. Quaderna irá sintetizar esses dois extremos em um interesse único, com base

nos ensinamentos de Clemente e Samuel: “[...] unindo eu o Sebastianismo negro de um

e o Sebastianismo ibérico de outro, numa nova espécie de “Sebastianismo castanho”

que realizasse o sonho da Pedra do Reino num futuro ainda mais ensolarado e

acastelado!”.216

Mais uma vez em uma reinterpretação, fusão das diversas informações com que

tem contato, Quaderna expõe sua visão cosmogônica, semelhante a outros povos que

creem na união entre seres divinos e animais, mas não quaisquer animais, mas naqueles

sagrados do Sertão.

Se um Deus qualquer, depois daí, trepa com uma Veada, ou de uma Deusa se

deixa cobrir por um Gavião, nasce um homem ou uma mulher, conforme o

caso. Foi, portanto, dessas trepadas da Divindades tapuias com Onças,

Gaviões, os Bodes, as Cabras, os Veados, e outros bichos, nasceram os Tapuias

castanhos, antepassados diretos dos Sertanejos, e indiretos de todos os outros

homens.217

Sendo um sujeito de considerável instrução para a época, acaba absorvendo

distintas leituras, cria sua própria releitura baseando-se inclusive em seu cotidiano.

Quaderna, em todo seu relato Pedra do Reino, mescla um misto entre o erudito e o

vulgar, havendo uma aproximação com Menocchio em muitos pontos, estando também

214

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 573 215

Idem, p. 276. 216

Idem, p. 238. 217

Idem, p. 574 – 575.

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ligado a um mundo bucólico e a partir dele filtrando e assimilando sua interpretação de

realidade, inclusive no que se refere à esfera religiosa.

Assim, na sua linguagem densa, recheada de metáforas ligadas ao cotidiano.

Menocchio explicava sua cosmogonia tranquilamente, com segurança, aos

inquisidores estupefatos e curiosos (caso contrário, por que teriam conduzido

um interrogatório tão detalhado?).218

Próprio de comunidades rurais, em especial em um espaço que sofre as

intempéries da vida e tem a forte presença da morte no cotidiano, encontra na religião

um apoio. Seria o sertão, o caminho de espinhos para se conseguir o paraíso. “[...] Pois

este Sertão velho, Sr. Corregedor, talvez seja mesmo a terra-estranha da Morte,

dominada pelos dentes das Onças, pelo veneno das Cobras, das Lacraias e de outros

bichos”.219

Em torno desse antropomorfismo sertanejo, a morte ganha um destaque tanto na

obra, como no cotidiano do sertão, e na vida de todo indivíduo, como ser consciente de

seu fim. Suassuna já declarou em mais de uma entrevista que um poema havia dado

início ao romance, transcrito no Folheto XLIV “A Visagem da Moça Caetana”,

Quaderna encontra a morte, em tom profético em relação ao ódio e ao orgulho que

carregava em seu sangue e a respeito da vida e o que lhe aguardava em seu encontro

com o corregedor.

[...] na sala da Biblioteca uma moça esquisita, vestida de vermelho. O

vestido, porém, era aberto nas costas, num amplo decote que mostrava um

dorso felino, de Onça, e descobria a falda exterior dos seios, por baixo dos

braços [...] dando-lhe uma marca estranha e selvagem. Em cada um dos seus

ombros, pousava um gavião, um negro, outro vermelho, e uma Cobra-coral

servia-lhe de colar. Ela me olhava com uma expressão fascinadora e cruel

[...] Eu, aterrado, indagava de mim mesmo quem era ela. Mas, no fundo, já

sabia: era a terrível Moça Caetana, a cruel Morte sertaneja, que costuma

sangrar seus assinalados, com suas unhas, longas e afiadas como garras.220

No Nordeste, a morte é denominada de Caetana e toma feições de uma mulher,

em A Pedra do Reino, mais uma vez o símbolo da onça ganha formas de poder divino,

agora o da passagem do ser humano.

Suassuna representará mais de uma vez como a vivência de um povo explica sua

crença, fé e a salvação. Em o Auto da Compadecida, a personagem João Grilo defende

218

GINZBURG, Carlo. O Queijo e Os Vermes, p. 101. 219

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 400. 220

Idem, 305.

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os seus e é defendido diante de todos os desafios que o Sertão proporciona, justificando

as ações dos indivíduos. Segundo Albuquerque Júnior, trata-se de:

[...] um Nordeste construído pelo agenciamento de uma série de imagens

bíblicas presentes no catolicismo popular. Imagens que se mesclam com

rituais ibéricos medievais, com crenças e práticas de fundo animistas e

fetichistas de origem indígena, negra ou mesmo europeia, para compor este

mundo onde natureza e homem se fundem como parte da criação.221

Tanto em A Pedra do Reino, em outras obras, como em declarações durante boa

parte de sua vida, Ariano Suassuna viria expressar um embate entre o universo rural e o

urbano, um maniqueísmo que seria descontruído ao longo dos anos. Em seu

catolicismo-sertanejo, a fidalguia e a suposta coletividade do campo seriam desafiadas

pela ganância burguesa e capitalista. O povo possuiria voz e vez e Deus, ser

representado com características pouco ortodoxas, olharia pelos necessitados. Tal

vertente religiosa, segundo Quaderna, seria inclusive superior ao Catolicismo Romano:

[...] Ó Onça Tapuia, Negra e Malhada do Divino do Sertão! Esta República

dominada por Burgueses gordos é, sem dúvida, um grande mal para o

Império do Sertão do Brasil! Ela pretende minar e desmoralizar o Povo da

Onça Castanha e o nosso Catolicismo-sertanejo, esta obra-prima de Deus,

religião mais perfeita e mais antiga do que o Catolicismo Romano! Este, tem

somente vinte séculos, enquanto a nossa sagrada Religião da Pedra do Reino

foi fundada no Deserto sertanejo da Judeia, junto às Pedras do Reino do Sinai

e do Tabor! O Presidente da República, seus cupinchas e os gordos ricos,

entendem que podem governar, trair e vender o Império do Brasil a seu bel-

prazer! No entanto, o Brasil está predestinado para o Monarca Castanho do

Povo, aquele que foi legitimado constituído por Deus para fazer o bem e a

grandeza do Povo Brasileiro!222

Toda essa construção social será denominada por Albuquerque como “sociedade

do couro”. Ariano Suassuna busca retratar esse espaço duro, em que a natureza e aquilo

que ela produz se liga ao indivíduo e como este depende dela e a doma como um animal

selvagem. Em A Pedra do Reino, ele está presente, representando as armaduras que

protegem os cavaleiros do sertão, os cangaceiros e vaqueiros se encontram em meio da

população com seus bens produzidos para atender às suas necessidades.

[...] As esporas, como estrelas de fogo, retiniam suas rosetas, batendo nos

estribos e centelhas nos sapatões de couro castanho, sob as véstias e os canos

poeirentos da calças-perneiras também castanhas, mas providas de fortes

placas de reforço, costuradas a modo de joelheiras nas calças, e de ombreiras

221

ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p. 189 – 190. 222

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 553-

554.

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nos gibões. Os chapelões de couro, de largas abas dobradas e levantadas,

coroavam-se, também, de estrelas e moedas que reluziam.223

O trânsito nesse espaço em que prolifera a imaginação, reage, transformando

tudo o que é sofrimento em poesia. Embora Quaderna delire imaginando a construção

de um reino, tornando-se ele o gênio da raça brasileira. Não sendo um homem de armas

e sim das letras, encontra por meio desse caminho uma forma de alcançar seus

objetivos:

[...] Aquilo tocou fogo em meu sangue imediatamente, porque fora assim que

eu me sentira naquele dia, na Pedra do Reino ⸺ como o Rei e a encarnação

viva do Brasil. Entendi, logo, que, se eu fosse declarado “Gênio da Raça

Brasileira”, meu Castelo poético e perigoso faria de mim, não mais

individualmente, mas de modo “oficial e selado pelo Governo”, Rei do

Brasil.224

Outro episódio em que realidade e fantasia se misturam, em que percebe-se que

o delírio da personagem se fundamenta na realidade de um espaço já existente, tendo ele

portanto, consciência do mundo que o cerca, é em seu depoimento ao corregedor onde

confessa, em relação ao episódio da Estranha Cavalgada Moura, que dá abertura aos

acontecimentos místicos da história do Rapaz do Cavalo Branco, onde os fatos se

modificam por meio de seu estilo régio:

⸺ E é verdade tudo isso? Todas essas roupas fidalgas, essas bandeiras, essas

onças, esses acontecimentos estranhos, tudo isso é verdade ou é “estilo régio”?

⸺ Bem, se o senhor quiser, pode imaginar somente uns cavalos pequenos,

magros e feios, uma porção de gente suja, magra, faminta e empoeirada,

arrastando por aquela estranha Estrada uma porção de velhos animais de Circo,

famélicos e desdentados, numa tropa pobre e amontoada. Para mim, porém,

somente o fecho sagrado da Poesia régia é capaz de dar a medida daquele

evento extraordinário, de caráter epopeico! De fato, Sr. Corregedor, somente

vendo esse pedaço de estrada por onde eles vinham agora é que a gente pode

imaginar bem a cena!225

É possível que o tal estilo régio, que move a transfiguração da realidade em

Quaderna, seja o espelho daquilo que Ariano Suassuna imagina para o seu Sertão. Para

Albuquerque Júnior, o escritor Ariano Suassuna também, semelhante aos seus

antecessores, trabalha com o espaço da saudade e o recria por símbolos, todavia se

difere do movimento sociológico e literário da década de 1930. Segundo o historiador,

Ariano Suassuna assumiu o seguinte papel nesse processo:

223

SUASSUNA, Ariano. Romance d’a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, p. 36. 224

Idem, p. 187. 225

Idem, p. 398 - 399.

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[...] Ele participa como um dos inventores do Nordeste como o espaço da

saudade e da tradição, mas assume um trabalho ficcional, e não como um

trabalho documental, como haviam feito os tradicionalistas do romance de

trinta e da sociologia [...] Seu Nordeste popular, medievalizado, se junta

àquela produção sociológica e literária anterior [...] na invenção, reinvenção e

atualização da série de temas, conceitos, imagens, enunciados e estratégias

que instituem o Nordeste como o espaço oposto ao moderno, burguês, ao

urbano, ao industrial. Nordeste sem espaço público, sem dessacralização da

natureza, sem separação radical entre homens e coisas. Nordeste saudoso, de

um passado mítico, idílico, de pureza, ingenuidade, glórias [...] é um espaço

com saudade de uma dominação tradicional, de códigos sociais [...] a

sociedade capitalista.226

Ariano Suassuna jamais negou a sua exaltação da cultura popular, todavia ela foi

modificada ao longo dos anos, mas foi em A Pedra do Reino, fruto de décadas de

experiências e da trajetória de uma vida em que ele pode apresentar o universo que

havia em sua alma e em sua cabeça, revelando-se o interprete de múltiplas vozes na sua

composição romanesca polifônica acerca do Brasil.

226

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e Outras Artes, p.194.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Torna-se impossível decifrar por meio de uma única dissertação uma obra como

a de Ariano Suassuna. O Romance d’A Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-

e-Volta pode ser compreendido como um trabalho que vem do interior do autor, que

carrega consigo as marcas de uma história pessoal, mas que é também a história do

Brasil, e a história do Nordeste, de seu sertão barroco, da civilização do couro, o sertão

visto, vivido, conhecido e imaginado por ele.

É uma obra memorialística, que trabalha com o espaço da saudade, que transita

entre o coletivo e o individual, em que seu personagem Quaderna reproduz as vivências

sociais de um grupo, e funde em si as diversas culturas que mesclam essa realidade,

carregada de elementos da história universal que se transportam para o local. É acima de

tudo a história da humanidade, por que como o próprio autor declara, o indivíduo jamais

muda, apenas o contexto se modifica.

O ser humano é um ser móvel que altera a si e ao espaço que ocupa. O Nordeste

de Ariano Suassuna não é mais o mesmo das páginas do Romance, mas ainda traz em si

as tradições do passado, com as transformações do presente e um olhar para o futuro.

Percebe-se nesse jogo de realidade e ficção que na construção do discurso

literário é possível reconhecer e tecer também o discurso histórico. Sendo Ariano

Suassuna fruto de um contexto social, de uma elite e de uma região em ruínas, que

guarda a origem de um povo, estigmatizada, interpretada e reinterpretada ao longo de

gerações, ele a elabora por meio da escrita das memórias a partir das influências de toda

uma vida.

A influência maior, a figura que constrói de um pai, justo e injustiçado, o Sertão

de Euclides da Cunha, a transposição do universo pedregoso da Espanha de Cervantes, a

Espanha, que ganha vida na voz de Garcia Lorca. Todos os elementos transportados e

incorporados por Ariano Suassuna na poesia, no teatro, nas artes plásticas, na literatura,

desenham uma nova visão de Brasil, do Sertão e de seu povo, pois eis que surge o

Movimento Armorial.

Ariano Suassuna se utiliza do riso, através da sátira, para apresentar ao público

sua interpretação do anfiteatro da vida. Dessa forma, critica, exalta, demonstra como

enxerga a realidade.

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O Nordeste é para Ariano Suassuna o palco de sua criação por meio de seu povo,

um constante reinventar que justifica a sobrevivência da cultura popular, uma

miscigenação de povos e costumes que dá origem ao melhor, o homem castanho.

Suassuna se autodeclara Cavaleiro, protetor da verdadeira cultura do povo

brasileiro, tal qual outrora Dom Sebastião fora guardião da cristandade encontrando na

arte sua espada de luta.

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