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FCU - 23 APRENDIZAGEM E CURRÍCULO M. Helena Silveira 1 , José Cubero, Fernando Antônio S. Amorim, Protásio D. Martins e Alexandre T. P. Alho Universidade Federal do Rio de Janeiro Dep. Engenharia Naval e Oceânica - EE/UFRJ Caixa Postal 68508; 21945-970 Rio de Janeiro, RJ 1 [email protected] Resumo.  Ao rever e aprofundar a análise do conceito currículo, não como elenco ou rol hierarquizado de disciplinas distribuídas entre professores ou proposta de grades horárias, mas como uma grande antevisão programática das atividades que os estudantes terão de desempenhar  para desenvolver habilidades teórico-práticas e tornar próprios os conhecimentos social e historicamente acumulados, cada professor vai se perceber como componente do corpo docente, na tarefa coletiva de formar engenheiros, sendo levado a reexaminar fins, objetivos e práticas dentro da ampla teia interrelacional que vai constituir um curso. O ensino historicamente tem sido uma forma de reprodução das estruturas sociais. Isso fica claro ao analisar as mudanças na cultura lendo Durkheim, toda a escola de Pierre Bourdieu, professor do College de France, e tantos outros. O re-exame crítico de práticas centenárias evidencia que as "atitudes dogmáticas" da instituição escola têm sido dominantes. Na Idade Média quando se instituiu nas universidades a disputa verbal entre alunos, esta era centrada mais na retórica ou na capacidade argumentativa do que na contraposição teórica. Sempre se manteve uma faixa de autoridade capaz de monopolizar, ou até manipular, intelectualmente os estudantes, visto que havia a intenção de manter verdades indiscutíveis. Ao longo dos séculos permaneceu esse espaço  sufocado e sufocante.  A universidade atual herdeira da tradição científica e humanística do Renascimento, deveria incorporar o saber sobre as coisas (todas as ciências básicas) e o saber sobre o homem e a  sociedade (ciências humanas e da cidadania) para uma formação científico-realista em que o homem seja, simultaneamente, visto como parte da natureza e produtor/organizador do trabalho e da cultura. Ao delinear um projeto inter, multi, pluri – e transdiciplinar, o que não quer dizer que todos pretendam conhecer tudo o que foi historicamente acumulado, a universidade impartirá uma educação crítica, recuperando os “pontos de viragem” nas relações da história das ciências e da  filosofia para que haja clareza quanto à inexistência de verdades inamovíveis, visto que os conhecimentos se constituem por contraposições teóricas e pela comprovação da interdependência entre saber e poder. Palavr as -chave:  aprendizagem, currículo.

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APRENDIZAGEM E CURRÍCULO

M. Helena Silveira1

, José Cubero, Fernando Antônio S. Amorim,Protásio D. Martins e Alexandre T. P. Alho

Universidade Federal do Rio de JaneiroDep. Engenharia Naval e Oceânica - EE/UFRJ

Caixa Postal 68508; 21945-970 Rio de Janeiro, RJ1 [email protected] 

Resumo.  Ao rever e aprofundar a análise do conceito currículo, não como elenco ou rol 

hierarquizado de disciplinas distribuídas entre professores ou proposta de grades horárias, mas

como uma grande antevisão programática das atividades que os estudantes terão de desempenhar  para desenvolver habilidades teórico-práticas e tornar próprios os conhecimentos social e

historicamente acumulados, cada professor vai se perceber como componente do corpo docente, na

tarefa coletiva de formar engenheiros, sendo levado a reexaminar fins, objetivos e práticas dentro

da ampla teia interrelacional que vai constituir um curso.

O ensino historicamente tem sido uma forma de reprodução das estruturas sociais. Isso fica claro

ao analisar as mudanças na cultura lendo Durkheim, toda a escola de Pierre Bourdieu, professor 

do College de France, e tantos outros. O re-exame crítico de práticas centenárias evidencia que as

"atitudes dogmáticas" da instituição escola têm sido dominantes. Na Idade Média quando se

instituiu nas universidades a disputa verbal entre alunos, esta era centrada mais na retórica ou na

capacidade argumentativa do que na contraposição teórica. Sempre se manteve uma faixa de

autoridade capaz de monopolizar, ou até manipular, intelectualmente os estudantes, visto que haviaa intenção de manter verdades indiscutíveis. Ao longo dos séculos permaneceu esse espaço

 sufocado e sufocante.

 A universidade atual herdeira da tradição científica e humanística do Renascimento, deveria

incorporar o saber sobre as coisas (todas as ciências básicas) e o saber sobre o homem e a

 sociedade (ciências humanas e da cidadania) para uma formação científico-realista em que o

homem seja, simultaneamente, visto como parte da natureza e produtor/organizador do trabalho e

da cultura. Ao delinear um projeto inter, multi, pluri – e transdiciplinar, o que não quer dizer que

todos pretendam conhecer tudo o que foi historicamente acumulado, a universidade impartirá uma

educação crítica, recuperando os “pontos de viragem” nas relações da história das ciências e da

 filosofia para que haja clareza quanto à inexistência de verdades inamovíveis, visto que os

conhecimentos se constituem por contraposições teóricas e pela comprovação da interdependênciaentre saber e poder.

Palavras-chave:  aprendizagem, currículo.

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1.  INTRODUÇÃO À QUESTÃO DO CONHECIMENTO

As relações estudantes-conhecimento são o fulcro da reflexão sobre currículo. Niels H. Bohr ao destacar aimpossibilidade de separar o observador e o objeto na física atômica recolocou em questão o estatuto do próprio ato deconhecer definido na tradição clássica ocidental. Em cada experiência, apontava ele, o físico escolhe um ânguloespecífico. Os diferentes ângulos são complementares, portanto, necessários — inexistindo um ponto de vista geral a

 partir do qual se possa vislumbrar a totalidade do real. Não há uma ciência superior às demais, no pensamento atual.O conhecimento é uma forma de produção, não pode ser encarado apenas como reprodução do "saber do

mestre". O estudante não poderá vir a ser um competente profissional, sem ter analisado criticamente as atividades profissionais que desempenhará, aprendendo a enquadrá-las em contextos cada vez mais amplos na sociedade em quevive e nas diversas teias de relações sociais, econômicas e políticas do mundo.

O professor, na posição tradicional do dono de uma verdade que quer transmitir, transforma o espaço escolar num "limbo", lugar sem ação, onde apenas se aguarda que o tempo passe, à espera do Juízo Final, como os não-marcados pelo batismo na tradição cristã.

A cultura é o processo culminante da existência humana, a ciência é um dos múltiplos aspectos desse processo.A compreensão da ciência como uma das alternativas de uma concepção filosófica do saber não vem sendo incluída nadiscussão das diretrizes para formular um currículo, isso leva ao estabelecimento de um mosaico em que há apenas umasuperfície aparentemente una. Não há interesse em promover o questionamento de componentes para buscar a semprecitada interdisciplinaridade, que se sabe ser imprescindível para a melhoria da graduação. As análises científicas têm de

se fundamentar numa opção filosófica, que também estará mantida sob crítica permanente, em revisão dinâmica narelação com os avanços das pesquisas e das elaborações teóricas.O conceito de conhecimento é um produto do conhecimento, toda a discussão resultará truncada se se partir 

apenas da lógica formal, visto que tudo implica os estágios anteriores e resulta do acúmulo de experiências e reflexões.Pelo enquadramento que vem sendo feito na reflexão sobre currículos num enfoque único de viés gerencial-

administrativo-operacional busca-se, possivelmente, afastar grande parte dos professores de sua função de intelectuais,que participam do exercício coletivo da razão, quando na crítica se engendram, interminavelmente, visto que amobilidade da cultura obriga a rever-se sempre no mundo concreto.

O país vive hoje uma crise de projeto, estamos todos retidos por falsos determinismos que se queremindiscutíveis. A indefinição, a "flexibilidade da LDB" vem permitindo a formulação fragmentária de diretrizes — comcaráter regulador e normativo — elaboradas sem exame das instâncias legislativas ou da sociedade. Os princípios e osfins da educação (Art. 2º, Art. 3 º), que garantiriam por seus incisos "pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas,respeito à liberdade e apreço à tolerância, valorização da experiência extra-escolar, vinculação entre educação escolar,

trabalho e práticas sociais", foram obscurecidas ou apagadas pelas regulamentações e pela seleção dos financiamentos.A aparente neutralidade da economia que parece apenas buscar racionalizar custos e oferecer educação paratodos encobre inúmeras outras determinantes.

2.  POR UM PROJETO PEDAGÓGICO

Cada instituição educativa tem de ser encarada como uma forma de participação na vida social, como agentemodificador da realidade, nunca como elo numa cadeia de retransmissão de ordenamentos, depósito de valores einformações a serem repassados ou como lugar para se conseguir a titulação que garanta a obtenção e realização deobjetivos profissionais individuais. A universidade tem de buscar a dinamização dos processos sociais para além de seuslimites, convocando a participação de outros agentes sociais começando pelos estudantes cujas aspirações e críticasrenovam a reflexão.

O desenvolvimento de propostas curriculares está vinculado ao processo de desenvolvimento filosófico-

 político do país, da sociedade e da cultura num tempo dado. A referência ao contexto histórico social leva a tornar explícitos os fins pelo quais se propõe ou se implementa determinado tipo de curso de graduação.Existe uma necessidade imperiosa de re-examinar e articular uma programação moderna de ensino-

aprendizagem, conjugando ciência e filosofia, sem se subordinar à lógica do mercado e a seus modismos, tentandoreduzir índices de evasão, estimulando e apoiando a socialização do saber, ensinando-aprendendo a sentir, pensar,querer, agir, compartilhar. Isso é trabalho educativo.

Pela própria experiência todos sabem que o conhecimento não é autogerado, sempre há trocas com autores delivros, nas discussões quando se contrapõem teorias, quando se expõem opiniões ouvindo objeções, quando se quer quealguém auxilie na logicização, quando se espera ser avaliado positivamente. Sempre é preciso o outro.

A caminhada se faz do interpessoal para o intrapessoal. É preciso certo tempo para que haja segurança de queocorreu uma aprendizagem, para que cada um torne seu aquilo que já estava elaborado. Quando isso ocorre háapropriação do saber. Nesse processo se vai produzindo conhecimento, podendo alargá-lo, abrindo novas alternativasque terão de ser submetidas ao controle social dos grupos que investigam os mesmos campos. Isto é apenas uma

reafirmação do já sabido — mas tem de levar a mudanças profundas no trabalho pedagógico, na prática da sala de aulaou de laboratório. Especialmente, na avaliação.

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 Não há racionalidade que justifique a idéia de transmissão do conhecimento por quem o detém para quem delenão dispõe. O saber foi constituído ao longo dos séculos, histórica e socialmente — oralmente e por registros escritos oudesenhados, na atividade viva, na troca entre pessoas.

 Na universidade além da análise científica o aluno tem de compreender seu próprio percurso, poder evidenciar após cada sessão quais as habilidades intelectuais que desenvolveu e como pode incluir o novo no seu repertório.

Os professores das engenharias foram dos primeiros a apontar, com clareza, que os problemas não estão emqualquer empobrecimento da inteligência, nem nos meios de comunicação de massa. Há anos examinam a inadequaçãodas metodologias em relação a esta geração, cujos pais já viveram a Revolução Cultural, pós-Segunda Guerra Mundial.

 Nem a bomba atômica, nem os astronautas, nem a fecundação "in vitro", nem as micro-cirurgias orientadas pelo vídeoabalaram as certezas pedagógicas. As aulas continuam iguais.

O professor se percebendo como corpo docente, se faz membro de um coletivo, co-responsável pela formaçãodo agir-pensar das novas gerações ao exercitar seu trabalho-vida levando a considerar   combinações, estratégias,

 possibilidades, margens de erro/acerto e regras que regulem democraticamente as relações entre todos.

Os grupos de professores de um curso ou departamento, debatendo com os estudantes, para organizar uma proposta curricular terão de trabalhar com duas vertentes simultâneas: o estado da arte dos diversos componentesnecessários à graduação: — incluindo os conteúdos atualizados, a interdisciplinaridade, os processos de produção dosconhecimentos e as tendências de transformação; — as ciências da educação, incluindo a discussão de métodos,distribuição de alunos por turmas conforme as opções metodológicas, as necessidades de materiais, as diversas formasde avaliação adequadas aos modos de obtenção de desenvolvimento intelectual em cada disciplina, a organização dotrabalho em rede, teia ou constelação, etc.

Para reunir as duas vertentes num projeto consistente é preciso ter em conta que pesquisas recentes de órgãosinternacionais de análise da educação têm divulgado a necessidade de considerar a determinação de objetivosconstruídos cientificamente reunindo prática e teoria, tendo em vista que a retenção de conhecimentos avaliadaestatisticamente indica que se guarda em circunstâncias idênticas de atividade de estudo:

10% do que é lido 20% do que é ouvido

30% do que é visto 50% do que é visto-ouvido

70% do que é debatido 90% do que é praticado e explicado (pelo aluno)

Isso indica que ao organizar grupos de alunos há que considerar também a forma de trabalho:. Em tutoria tradicional — o professor atenderá de 1 a 5 alunos por turma

. Em grupos de discussão — de 5 a 15 alunos

. Em turmas — de 15 a 32 alunos

. Em auditório — mais de 32 alunos por classe.

As escolhas se fazem em função, das aptidões e da prática dos professores, considerando a existência ou não de

estágios de formação para a docência, visto que as propostas e o acompanhamento dos estudantes são distintos em cadacaso e dependem da incorporação de algumas técnicas específicas. Nos grupos de auditório a interação entre docente eestudantes, e mesmo entre estes, é muito reduzida. Esse grupo numeroso empurra e condena o professor à prática daconferência. O estudante nessa aula usa predominantemente a audição com possibilidade de apreender apenas 11% doque foi comunicado (UNESCO) enquanto que se houvesse uso da visão poderia chegar a 83%, inicialmente. Isso exigere-pensar a prática.

Ao serem discutidos os objetivos conceituais para estruturar os currículos é preciso partir do debate dasquestões de multi-, inter-, pluri- e transdisciplinaridade para evitar superposições teóricas ou lacunas que podem vir aser extremamente comprometedoras quando todos os professores julgam que alguém já desenvolveu esta ou aquelahabilidade intelectual e o aluno, às vezes, sequer domina o código em que o professor se expressa.

Fundamental é o trabalho de nuclear conceitos essenciais à profissão como um todo e estabelecer relaçõesentre as disciplinas e os níveis em que serão trabalhadas, determinando número de aulas, formulando horários, etc.

Ao apontar relações, buscando traçar pela historização dos pontos de viragem dos conceitos, as intersecções,

recortes, setorizações, inclusões, exclusões na organização do conhecimento como campos de saber e no exame dodesenvolvimento das tecnologias, torna-se explícito o projeto. (Nota 1)O percurso não passa, apenas pela inclusão de objetos e tecnologias, mas pela busca de que o estudante

desenvolva o maior número de habilidades intelectuais e práticas. A multiplicidade de produtos oferecidos comoeducativos — livros, imagens, software, computadores, vídeos — têm tido origem mais numa luta pelo domínio domercado e das máquinas do que de conhecimento de teorias psicopedagógicas ou das necessidades do aluno de ser intelectualmente desafiado para se inserir no processo de aprendizagem científica da vida moderna.

Antes de formalizar uma proposta de currículo é imprescindível examinar a coerência do trabalho e manter asquestões dos alunos em formação no centro da reflexão, inserindo-as no contexto social e econômico do país. É precisoconsiderar todas desde as mais simples às mais complexas, porque todas têm de ser elementos determinantes no projetoe no processo de ensino e aprendizagem.

Debatidas as linhas gerais que sustentam o projeto curricular, os participantes do grupo, inclusive estudantes,em pequenos grupos mistos, têm que elaborar uma sucinta reflexão sobre as condições concretas do que se deseja

mudar, justificando as objeções ao que existe. Além disso, será preciso examinar relações dos grupos e as hierárquicas,os espaços de uso múltiplo, a iluminação, a aeração, a higiene e a manutenção, os serviços, etc. Traçado o quadro doslimites reais, haverá o re-exame dos componentes curriculares, das atividades, da definição de matérias ou disciplinasobrigatórias, eletivas, facultativas, opcionais, estágios supervisionados, de grades horárias, de calendário, de atribuição

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de carga por professor, de rodízio por períodos, de prazos, de atendimento e orientação de alunos por todos os professores, visto que esse é um constituinte do estatuto de professor, distinto do trabalho de manutenção dasinformações de caráter de gerência e dos dados estatísticos.

3.  PENSANDO EM PROJETO DE ENGENHARIA

Ao se considerar a formação de Engenheiros, em especial enfocando o engenheiro de projeto (responsável pelaidealização de soluções específicas para problemas específicos, não tornados típicos ou triviais) somos obrigados a

 pensar na capacitação para ação independente, autônoma e inovadora deste profissional que não poderá se apoiar emsoluções prontas.

A projetação em Engenharia exige um alicerce técnico, uma experiência construída em estudo de casos de projeto e uma dose considerável de exercício de criatividade para aventar soluções conceitualmente consistentes. Odesenvolvimento destas idéias, ao longo do processo intelectual, fará com que o engenheiro viabilize tecnicamente a

 proposta inicial, ou a aprimore até que, segundo alguns critérios aceitáveis, alcance um estágio em que se possa oferecer  boas soluções, quiçá ótimas.

Ensinar a atividade da projetação requer método e ferramentas adequados ao exercício intelectual: idealizar,avaliar, aprimorar. O grande valor a ser desenvolvido na disciplina é a crítica e a avaliação, sem os balizadores estreitosda “engenharia pronta e acabada”. Neste sentido projetar é em sí, em cada caso-problema, um exercício de aprendizado,em que as diversas dimensões do problema (social, técnica, tecnológica, econômica, financeira, etc. ) são

 paulatinamente reconhecidas e tratadas (equacionadas) de forma a permitir uma visão cada vez mais rica e complexa

dos fatores que influenciam no problema e na sua solução.Com a complexidade técnica e a rigidez cada vez maior na avaliação da qualidade e no reconhecimento demérito das soluções de engenharia (interdisciplinaridade, impacto econômico e ambiental, relação custo-benefício, etc.),cada vez mais as soluções de projeto em engenharia são de responsabilidade de equipes e, cada vez mais, estas sereportam a grupos sociais maiores, já que são afetados pela implementação das soluções. Tratando-se de trabalhointelectual, intrinsecamente de aprendizado, os atores envolvidos precisam reconhecer a referencia social doconhecimento explorado no projeto, de modo a desenvolver uma perspectiva comum de avaliação e decisão.

O mundo tecnológico experimenta hoje uma velocidade de evolução e incorporação de novos conhecimentosao uso cotidiano das pessoas, impressionante. Isso perpassa a engenharia, indo além de seu domínio técnico profissionalespecífico. Entretanto é o profissional de engenharia o primeiro a ser solicitado para a caracterização de processos e

 produtos que se utilizem deste potencial tecnológico disponibilizado, de forma objetiva e economicamente justificada.Os engenheiros do passado, de todas as formas responsáveis por esta evolução vertiginosa, não trabalharam em suaformação profissional com os aspectos coletivos do “conhecimento de projeto”, que o tornam co-responsável pelas

soluções sem que ele seja capaz de dominar todos os aspectos técnico-científicos abordados em um único problema.Isto ainda é um problema entre cientistas e pesquisadores que lutam para romper as barreiras disciplinares impostas pelasistematização acadêmica do conhecimento humano. Até passado recente a engenharia era feita de forma especializada;os profissionais eram habilitados a tratar de problemas no âmbito técnico de sua especialidade, responsabilizando-sesocialmente por sua atuação como especialista técnico credenciado. Os problemas hoje em dia ganham feições que vãoalém destas especialidades clássicas (engenharia “offshore”, sistemas de energia, comunicações-informática, novosmateriais, exploração em ambientes inóspitos, etc.). A formação de profissionais para atuar neste panorama, o qual tema perspectiva de se intensificar ainda mais, passa a requisitar uma capacidade para a qual não fomos exatamente

 preparados, entretanto ganhamos consciência de sua dimensão e importância para o nosso futuro; o professor deengenharia deve aprender a preparar seu sucessor na pesquisa e no exercício profissional, de forma a esperar que a

 próxima geração, de seus alunos, alcance mais além do que ele mesmo é capaz de avistar ou que lhe pareça provávelchegar.

4. 

CRIAÇÃO DE NOVA DISCIPLINA

O relato que se segue é um registro provisório de um processo em curso. O projeto, a implantação e o contínuoaperfeiçoamento da metodologia e das atividades da disciplina de Navegação à Vela do Departamento de Engenharia

 Naval e Oceânica foram, e continuam sendo, trabalhos coletivos. Delas participaram diretamente os autores e os alunose, indiretamente, outros professores com seu entusiasmo, contribuições e apoio, entre estes devemos um agradecimentoespecial a Átila Silva Freire, Maria Helena Silveira, José Cubero Allende e Protásio Dutra Martins Filho.

Durante as discussões iniciais relacionadas à implantação de um projeto no Departamento de Engenharia Navale Oceânica – o Pólo Náutico, que tem como objetivo principal ampliar os empreendimentos da indústria náutica no Riode Janeiro e no Brasil configurou-se a idéia da necessidade de aprender com o corpo – fazer prática de navegação àvela. A disciplina foi concebida como optativa, semestral, de caráter prático com carga horária de 4 horas semanais.Muitos alunos dos primeiros períodos se inscreveram na primeira experiência e logo nas primeiras aulas ficou evidenteque não havia grande diferença no desempenho deles e dos veteranos. Estes últimos podiam até compreender o que

ocorria com os pequenos veleiros utilizados nas aulas e, eventualmente, faziam diagnósticos corretos quando viravamou o barco parava alinhado com o vento e não conseguiam sair da situação. Porém, nenhum deles conseguia utilizar oque havia aprendido em arquitetura naval e hidrodinâmica para resolver os problemas relativos ao equilíbrio daembarcação e ao aumento de desempenho.

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 Na seqüência formulamos objetivos pedagógicos relativos à compreensão dos fenômenos físicos envolvidoscom a condução de embarcações à vela. Nas discussões introdutórias, de caráter conceitual, são utilizados modelosreduzidos e vídeos, servindo como referência para as atividades que serão realizadas no mar.

É indiscutível que todos os alunos passam a ter uma visão mais ampla e profunda do comportamento mecânicodas embarcações. Por outro lado, as dimensões relativas à socialização e ao desenvolvimento de habilidades físicas têmse apresentado como ganhos secundários extremamente importantes. Contribuem, sobretudo, para a redução da evasão.

 Nós aprendemos com o corpo. A ordem social se inscreve no corpo, a partir de confrontos permanentes..., diz Bourdieu.(Nota 2)

O primeiro problema que emergiu na disciplina de Navegação à Vela foi a dificuldade demonstrada pela quasetotalidade dos alunos em operar num plano conceitual essencialmente qualitativo. Treinados, durante toda a experiênciaacadêmica anterior, para resolver problemas com forte grau de abstração, no quais deveriam aplicar os modelos eformulações que aprenderam nos livros e nas aulas, raramente são solicitados a enfrentar problemas cuja solução exigedecisões suportadas por avaliações de natureza essencialmente concretas e análises conceituais, que não utilizamformulações baseadas em modelos matemáticos. Esta é, no entanto, a situação mais corriqueira na vida do engenheiro.Tal constatação levou a uma reflexão que nos conduziu a diversas questões relativas a uma aparente contradição entre omodelo tradicional de avaliação por provas e a necessidade de formar as habilidades intelectuais necessárias àsuperação dos desafios que os futuros engenheiros irão enfrentar.

A dificuldade grande em operar conceitualmente no mundo real com o que aprenderam na escola, ou deveriamter aprendido, se apresentou muitas vezes com tal intensidade que se constituiu em um bloqueio. A questão principal, noentanto, se refere às causas de tal dificuldade. Não se trata de aplicar um modelo matemático previamente estudado para

calcular o valor de parâmetros que supostamente representam algum fenômeno físico ou o desempenho de algumsistema mecânico. A questão é usar o que aprenderam para resolver os problemas enfrentados na condução daembarcação. Para fazer isto com sucesso, será preciso superar os limites formais de um modelo educacional que

 privilegia o estudo analítico e fragmentado de métodos voltados para o cálculo de parâmetros, cujo significado físico,freqüentemente, se perde no longo caminho que parte da observação do fenômeno até chegar a uma descriçãomatemática. Perde-se o significado físico porque quase sempre o método de ensino adotado parte da abstração e não daobservação do fenômeno real. Raramente são discutidas, de forma efetiva e consistente, as hipóteses formuladas naconstrução dos recortes que suportam o modelo físico e a escolha dos parâmetros quantificáveis utilizados paradescrever matematicamente o fenômeno. Finalmente, porque se privilegia o adestramento e não a capacidade crítica e odesenvolvimento de habilidades intelectuais.

Sempre que o julgamento relativo à tomada de decisões exigir a construção de relações, nem sempre evidentesentre as características do sistema real e os fenômenos que envolvem a compreensão do comportamento do referidosistema, a dificuldade irá se manifestar, na forma de uma grande insegurança em tomar as decisões.

O sistema educacional não estimula os alunos a pensar e a operar conceitualmente com o que aprenderam.Muito freqüentemente são apresentados a fenômenos físicos extremamente complexos na sua forma mais abstrata - osmodelos matemáticos.

O manejo do barco e a participação em regatas exigem, sobretudo, operações de síntese e decisões rápidas,durante quase todo o tempo de sua formação os alunos são “treinados” a realizar operações de análise, onde raramente

 precisam tomar decisões e utilizam, quase sempre, esquemas rígidos e previamente conhecidos. Raramente sãodesafiados a construir seus próprios esquemas de análise, ou mesmo a desenvolver um modelo matemático a partir deoutros conhecidos ou a selecionar e desenvolver os instrumentos de análise para resolver um problema.

A principal contribuição da disciplina de navegação à vela para a formação de engenheiros navais, ou mesmode outras habilitações, seria a de desenvolver a capacidade de operar qualitativamente com os fenômenos físicosrelativos ao manejo de embarcações à vela, capacitando-os a entender o processo de projeto das embarcações e aencontrar as formas mais adequadas para resolver os problemas relativos à melhora do desempenho. Neste sentido, ocaminho mais indicado parece ser o de trabalhar primeiro num plano conceitual, qualitativo e, sobretudo, global, sem

recortar os fenômenos. Procurar entender o sistema como um todo e entender as relações e conexões entre todas as suas partes.

5.  CONCLUSÕES

A prática de elaboração de curriculum na educação superior é relativamente nova e está muito vinculada ànecessidade de planejamento e organização do sistema de ensino. Entretanto, sua existência é necessária para umaestrutura orgânica dos conteúdos de estudo destinados a conseguir os objetivos. Em algumas ocasiões se convertem emuma camisa de força que não permite a necessária atualização ou em um documento sem valor real porque os

 professores não o consultam, nem utilizam na prática diária.O curriculum para ser efetivo tem que responder em primeiro lugar às necessidades de formar profissionais

 para a sociedade e nas condições sociais de desenvolvimento específico de cada lugar.O processo de formação de profissionais que a Universidade tem a responsabilidade de organizar não pode ser 

realizado sobre opiniões e critérios individuais e independentes de cada professor. Deve responder a uma análise quecomeça pela definição dos objetivos mais gerais que deve obter o graduado. Estes objetivos expressados em habilidadesintelectuais necessárias para atender às necessidades da sociedade no lugar e momento histórico, econômico, social que

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uma Universidade específica está trabalhando deve ser contemplada, assim como o próprio desenvolvimento dosconhecimentos que evoluem e requer uma transformação do curriculum para que esteja sempre na frente e não atrás.

Esta tarefa inicial que chamaremos de definição do perfil do graduado deve realizar-se numa interação entre aUniversidade e as necessidades de desenvolvimento regional e nacional.

 Não se faz um curriculum começando com os conteúdos das disciplinas porque estas não podem ser definidasaté não saber qual a formação final que desejamos.

Completado o passo inicial de conhecer o perfil do graduado é necessário separar esses objetivos gerais dosobjetivos específicos necessários para desenvolver as habilidades intermediárias entre as que correspondem aos níveiseducativos precedentes e o nível de conclusão. Considerando neste momento a necessidade de uma adequadadistribuição e organização dos conteúdos (conhecimentos e habilidades intelectuais) para o desenvolvimento dessesobjetivos, procedemos a estruturação nas correspondentes disciplinas e sua organização no tempo, considerando

 precedências de conteúdos de estudos estruturados num período de tempo. Teremos que pensar sempre nesse profissional que vai cumprir sua função social em algum centro de trabalho para que seja capaz de dar soluções deforma criativa aos problemas que se lhe apresentem. Isto só se consegue com um curriculum em cujas disciplinas seconsiderem os objetivos como atividades que permitam a execução das habilidades intelectuais gerais e essenciais e nãoum conjunto de conhecimentos isolados e específicos que se desatualizam logo que o aluno começa a exercer a

 profissão.Deste modo o curriculum é uma ferramenta de trabalho dos professores e um documento de planejamento

efetivo e não um simples documento normativo que garante o cumprimento de alguma disposição ou regulamentação. Ocurriculum bem elaborado é um documento de suma importância e por isto devemos considerá-lo fundamental na

formação do profissional.6.  NOTAS

 NOTA1 - "Uso o termo "conhecimento científico" no sentido mais erudito, incluindo nele a ciência da históriados homens ou a de seus comportamentos".R. Oppenheimer 

 NOTA 2 - Pierre Bourdieu no texto Violência Simbólica e Lutas Políticas, critica a escolásticaaproximadamente nestes termos: a lógica da prática, o encontro com o social, permanece inacessível ao

 pensamento escolástico, que como já dizia Dewey, vê o mundo como objeto de contemplação, derepresentação, um espetáculo, e tem dele um conhecimento de fora, de espectador. As classificações que nósadotamos, definições ou noções ou divisões em disciplinas e especializações, nos usam ao mesmo tempo que

nós as usamos e esta automatização é uma forma de recalcar (obscurecer) as formas e os instrumentos com osquais pensamos. Só a crítica histórica, arma maior da reflexão, pode liberar o pensamento das restrições que seexercem sobre ele levando a encarar como coisas ou fatos, construções historicamente encobertas.“O corpo tendo a propriedade biológica de estar aberto ao mundo, isto é, exposto ao mundo e por istosuscetível de ser condicionado por ele, configurado pelas condições materiais e culturais de existência nasquais está situado desde a origem, é submetido a um processo de socialização de que a individuação é o

 produto, a singularidade do Eu se forjando nas e pelas relações sociais.”As leituras difusas de 20 séculos de platonismo cristianizado levam a ver o corpo não como um instrumento,mas como um obstáculo ao conhecimento e a ignorar a especificidade do conhecimento prático, tratado comosimples empecilho ou início de cientifização, não considerando que o senso prático é o que leva a agir com o é

 preciso sem pensar em regras de comportamento.A visão intelectualista, diretamente ligada ao universo escolástico, esquece o corpo, o põe de alguma maneirafora do jogo.Reafirma Bourdieu “nós aprendemos com o corpo. A ordem social se inscreve no corpo através de

confrontação permanente...”É preciso considerar os condicionamentos impostos continuamente que se tornam indistintos na existênciamaterial pelas surdas e pesadas injunções da "violência inerte" como disse Sartre.

7.  REFERÊNCIAS

[1] Bohr, Niels Henrik - Física Atômica e Conhecimento Humano – Contraponto Ed. Rio de Janeiro, 2000.[2] Bourdieu, P - Méditations Pascaliennes, Seuil, Paris, 1997 - Les Structures Sociales De L'economie, Seuil,

Paris, 2000.[3] Durkheim, E - L'evolution Pédagogique En France, Quadrige, PUF,Paris, 1999.[4] Heisenberg, W - Física E Filosofia - Ed. Universidade de Brasília, Brasília, 1997.[5] Mackenzie et al. - Arte de Ensinar e Arte de Aprender, FGV, Rio de Janeiro, 1974.[6] Saviani, D - A Nova Lei da Educação: Trajetórias, Limites e Perspectivas, Autores. Associados, Campinas,

1997.[7] VV.AA. - Demerval Saviani e a Educação Brasileira, Simpósio de Marília, Cortez Editora, S. Paulo, 1994.[8] VV.AA - Trabalho E Crítica, Anuário da GT da Anped, Ed. UFF, Niterói, 1999.