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APRENDER EM COMUNIDADE José Pacheco

Aprender Em Comunidade

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livro de José Pacheco

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  • APRENDER EM COMUNIDADE

    Jos Pacheco

  • A todos os educadores ainda capazes de sonhar,

    aos annimos construtores da educao necessria e urgente,

    a todos os educadores que fazem de sua vida o testemunho de que possvel

    um mundo melhor.

  • Eu queria uma escola que cultivasse a curiosidade de aprender

    que em vocs natural.

    Eu queria uma escola que educasse seu corpo e seus movimentos: que

    possibilitasse seu crescimento fsico e sadio. Normal.

    Eu queria uma escola que lhes ensinasse tudo sobre a natureza, o ar, a

    matria, as plantas, os animais, seu prprio corpo. Deus.

    Mas que ensinasse primeiro pela observao, pela descoberta, pela

    experimentao.

    E que dessas coisas lhes ensinasse no s o conhecer, como tambm a

    aceitar, a amar e preservar.

    Eu queria uma escola que lhes ensinasse tudo sobre a nossa histria

    e a nossa terra de uma maneira viva e atraente.

    Eu queria uma escola que lhes ensinasse a usarem bem a nossa lngua,

    a pensarem e a se expressarem com clareza.

    Eu queria uma escola que lhes ensinassem a pensar, a raciocinar,

    a procurar solues.

    Eu queria uma escola que desde cedo usasse materiais concretos

    para que vocs pudessem ir formando corretamente

    os conceitos matemticos, os conceitos de nmeros, as operaes...

    pedrinhas... s porcariinhas!

    ... fazendo vocs aprenderem brincando...

    Oh! meu Deus!

    Deus que livre vocs de uma escola em que tenham que copiar pontos.

    Deus que livre vocs de decorar sem entender, nomes, datas, fatos...

    Deus que livre vocs de aceitarem conhecimentos "prontos",

    mediocremente embalados nos livros didticos descartveis.

    Deus que livre vocs de ficarem passivos,

    ouvindo e repetindo, repetindo, repetindo...

    Eu tambm queria uma escola que ensinasse a conviver,

    a cooperar, a respeitar, a esperar,

    a saber viverem em comunidade, em unio.

    Que vocs aprendessem a transformar e criar.

    Que lhes desse mltiplos meios de vocs expressarem

    cada sentimento, cada drama, cada emoo.

    Ah! E antes que eu me esquea: Deus que livre vocs

    de um professor incompetente.

    (Carlos Drummond de Andrade)

  • A expresso escola de comunidade procura significar

    o desenquistamento isolacionista da escola tradicional.

    Escola, no futuro, ser um centro comunitrio.

    A escola no se reduzir a um lugar fixo murado.

    (Lauro de Oliveira Lima)

  • Cartas brasileiras

    o redigir estas 25 cartas, escritas no Brasil e para figuras que marcaram este pas,

    Jos Pacheco tem uma inteno clara recordar aos educadores do presente que no

    podem ignorar o patrimnio de ideias e experincias do passado. Deste modo,

    inscreve as suas prprias propostas educativas no tempo longo da Histria, evitando cair em

    modas ou novidades, sempre inteis, sempre passageiras. Uma pergunta atravessa todas as

    missivas: porque que falhmos? Por que razo no conseguimos pr em prtica os nossos

    ideais? A pergunta dura, inquieta-nos, desassossega-nos, mas tem de ser feita.

    A adopo do gnero epistolar muito interessante. Permite-lhe criar uma intimidade

    ficcional com autores falecidos e, por esta via, aproximar-se do leitor, torn-lo cmplice das

    cartas que escreve. Define, assim, um espao de jogo, entre ele, os autores e os leitores,

    chamando, uns e outros, para uma conversa sobre os caminhos e descaminhos da escola. O

    exerccio feito com uma sensibilidade particular e convida cada leitor a assumir a sua prpria

    responsabilidade pelas coisas da educao.

    As cartas adoptam, invariavelmente, uma mesma estrutura: primeiro, a crtica, a

    indignao, a injustia que cometemos ao no reconhecer um determinado legado; depois, a

    abertura, a esperana, a crena em novas possibilidades; no fim, um breve apontamento

    biogrfico sobre o destinatrio da carta. Jos Pacheco no nos fecha numa inevitabilidade,

    num discurso de lamentaes resignadas, mas tambm no se deixa vencer pela ingenuidade

    ou pelas iluses. Ao pr-nos diante dos problemas, abre-nos portas, convida-nos a entrar e

    a descobrir que a Escola no tem de ser sinnimo do modelo escolar inventado na segunda

    metade do sculo XIX e que perdura at aos dias de hoje.

    im, aquilo que designamos por escola com prdios escolares, salas de aula, quadro

    negro (ou verde ou branco), mobilirio escolar, horrios, alunos agrupados por nvel

    etrio, progresso por sries de acordo com avaliaes e exames, etc. relativamente

    recente na histria da humanidade, comeou a difundir-se h cerca de 150 anos. No por

    acaso que a esmagadora maioria dos destinatrios de Jos Pacheco nasceu, justamente, neste

    A

    S

  • perodo curto de inveno e consolidao do modelo escolar: o mais antigo Alessandro

    Cerchiai (n. 1877), a mais nova Maria Nilde Mascellani (n. 1931). Apenas escapam a este

    critrio trs autores dos sculos XVI e XVII (os padres Manuel da Nbrega, Jos de Anchieta

    e Antnio Vieira) e dois autores da primeira metade do sculo XIX (Antnio Conselheiro e

    Rui Barbosa). Todos os outros nasceram entre 1877 e 1931, isto , naquele meio sculo em

    que o modelo escolar se transforma na nica maneira de conceber e de praticar a educao das

    crianas. Como se no fosse possvel educar de outro modo

    Os autores a quem Jos Pacheco se dirige pertencem s primeiras geraes que

    conheceram a escola (o modelo escolar), como alunos e, nalguns casos, como professores. O

    mal-estar que revelam em muitos dos seus escritos o mesmo que Adolphe Ferrire traduz,

    magistralmente, no prlogo obra-propaganda da Educao Nova Transformemos a escola,

    originalmente publicada em 1921. Conta-nos o pedagogo suo que um dia o Diabo desceu

    Terra e descobriu, indignado, que as pessoas eram felizes. No podia ser. A sua misso era

    causar a infelicidade. Depois de muito procurar, encontrou a soluo para reverter este estado

    de coisas: criar a escola. E assim surgiu esta diablica instituio que os educadores mais

    ousados querem mudar para que, no seu lugar, aparea uma Escola Nova.

    Jos Pacheco faz parte desta linhagem de educadores. Nestas cartas vai-nos falando

    das comunidades de aprendizagem que apresenta de forma lcida e avisada. Ele sabe que o

    conceito de comunidade polissmico e que nele se abrigam, por vezes, ideologias que

    fecham os alunos nos seus meios e culturas de origem. Mas a educao nunca pode ser para

    fechar, tem de ser, sempre, para abrir, para nos abrir a novos mundos, a novas possibilidades.

    Ele sabe, tambm, que a palavra aprendizagem tem sido torturada e utilizada para fins

    diversos e contraditrios, como nesse princpio to equvoco da aprendizagem ao longo da

    vida que vem infestando a educao com lgicas de empregabilidade, de capital humanos

    e outras afins. Mas a sua aproximao bem diferente e define-se, desde logo, na citao de

    Lauro de Oliveira Lima, na pgina inicial do livro: A escola no se reduzir a um lugar fixo

    murado.

    Jos Pacheco conhece, melhor do que ningum, a importncia da escola, da escola

    pblica, participativa, inclusiva. Mas tem conscincia de que, para cumprir as suas promessas,

    a escola tem de deixar os muros, a pedagogia predial, e construir-se como um lugar de

    liberdade. Permitam-me um jogo que, na verdade, no est na etimologia da palavra. J

    alguma vez pensaram que aprender pode ser interpretado, to simplesmente, como o contrrio

    de prender? Aprender desprender, dar os instrumentos de conhecimento e de cultura que

    permitam a cada um alargar as suas margens de liberdade.

    s palavras de Jos Pacheco tm a fora de uma experincia notvel, a Escola da

    Ponte, que tem despertado tanto interesse e curiosidade no Brasil. Como Verglio

    Ferreira, professor e escritor, que reconheceu no final da sua vida: Levei quarenta A

  • anos a explicar coisas aos alunos. Ficou-me assim o vcio de explicar, mesmo o inexplicvel.

    Precisava agora de outros quarenta anos para desaprender a explicao do que expliquei.

    Esta atitude d-lhe uma liberdade de palavra, e de escrita, que nos cativa. Os seus escritos

    nunca caem numa medocre dicotomia entre os tericos e os prticos. A melhor educao,

    como estes textos to bem traduzem, est sempre num terceiro lugar, habitado por

    educadores e professores que fazem, e que refletem sobre o que fazem, que pensam, e que

    procuram ser coerentes, na ao, com aquilo que pensam.

    Agir? Sim, agir, como escreve Ansio Teixeira em grito de 1947: H cem anos os

    educadores se repetem. Esvaem-se em palavras, esvamo-nos em palavras e nada fizemos.

    Atacou-nos, por isso mesmo, um estranho pudor pela palavra. Estamos possudos de um

    desespero mudo pela ao. A educao nunca acaba, nunca est pronta. No dia em que

    estivermos satisfeitos com a Escola que temos, nesse dia, deixaremos de ser educadores.

    Porque somos feitos de inquietao, de procura, da vontade de ir sempre mais alm. Porque

    o que d sentido s nossas vidas o dilogo, a viagem, o caminho. Escrever preciso.

    Antnio Nvoa

    Braslia, 31 de Julho de 2014

  • Apresentao

    Nesta obra, o Prof. Jos Pacheco volta a utilizar o gnero textual epistolar de

    Para Alice, com amor. S que, ao contrrio de l, em que se dirigia exclusivamente, e

    de maneira emocionante, netinha preparando-a para a entrada na escola, aqui so

    muitos os destinatrios e com grande variedade de caractersticas, tanto em termos do

    tempo (do sc. XVII ao XXI), do espao (atividades nos mais diversos estados

    brasileiros, sendo que alguns tambm no exterior), da profisso (educadores, em sua

    maioria, mas tambm socilogos, antroplogos, padres, lderes comunitrios, poetas,

    msicos, jornalistas, juristas, mdicos etc.). Todavia, todos com uma peculiar

    contribuio a dar na construo do Aprender em Comunidade, garimpada com muito

    rigor, preciso e paixo pelo Autor.

    Um aspecto formal do livro que cabe destacar que alm, propriamente, das

    cartas, o Prof. Jos Pacheco nos presenteia com um relevante complemento: Biografia

    e Bibliografia (incluindo obras do destinatrio, obras sobre ele e pginas da internet).

    Esse complemento difere um pouco do gnero textual carta, mas de grande ajuda (at

    porque, devo confessar, algumas das pessoas a quem se dirige eram desconhecidas

    para mim tambm...).

    O eixo central da obra o Aprender em Comunidade, a ideia riqussima de

    Comunidade de Aprendizagem. E, bem ao estilo do autor, no parte de definies e

    postulados. Vai dando elementos para essa construo: como se em cada uma das

    cartas fossem disponibilizados elementos, peas para que cada leitor possa montar o

    seu mosaico, fazer a sua elaborao, a sua construo, a sua viso. Paralelamente, da

    mesma forma, ao longo de todo o livro, trs teses so afirmadas. A primeira a relativa

    ao resgate da memria, a superao da ditadura do presente e da novidade (no

    sentido festivo, miditico). A segunda, a absoluta necessidade da atitude de

    indignao frente ao modelo escolar desumano, predominante e historicamente dado.

    A terceira, o combate ao Complexo de Vira-Lata (Nelson Rodrigues), essa mania que

    os brasileiros tm de s valorizar o que vem do exterior.

    Por tudo isto, as cartas podem ser caracterizadas como tendo aquele sentido

    proftico, isto , de denncia e de anncio. No devemos mais tolerar este paradigma

    disciplinar instrucionista do currculo, que faz com que tantas e tantas crianas,

    concluam to precocemente que no so boas para o estudo. Sabemos que a

    introjeo da culpa um dos mais perversos mecanismos de dominao. Nesta medida,

    tendo ou no conscincia disto, muitos educadores esto contribuindo para a intolervel

    situao prevista por Josu de Castro, qual seja, termos dois tipos de pessoas na

    sociedade: os que no comem porque no tm o que comer, e os que no dormem, de

    medo dos que no comem! Que venham as Comunidades de Aprendizagem!

    Ao mesmo tempo em que demonstra profundo conhecimento pedaggico (e da

    cultura brasileira), o Prof. Jos Pacheco revela-se um menino, no sentido mais radical

    do pulsar de vida, alegria, convico, insistncia e esperana. De fato, parafraseando o

    Grande Mestre, partilhamos esta crena: quem no for como criana, no entrar no

    Reino da Pedagogia! Desejo a todos uma excelente leitura (e novas prticas nela

    inspirada)!

    So Paulo, inverno de 2014

    Prof. Celso dos S. Vasconcellos

  • O porqu de algumas cartas

    Talvez devido minha origem as chamadas cincias exatas dou por mim a

    usar metforas da Fsica. Por exemplo, o conceito de inrcia: perante os trgicos

    efeitos que produzem, por que razo as escolas e os professores no mudam?

    Ou o de resilincia: por que razo alguns mudam, apesar dos imensos

    obstculos que se lhes deparam? Que estranha energia os anima? Se a maioria

    cultiva a resistncia mudana conceito caro s cincias da educao

    como e porque acontece a mudana de alguns?

    Em 1905, o fsico Einstein criou uma frmula: e=mc. Ensaiei a sua adaptao,

    dado que a Pedagogia vem adotando conceitos da Fsica. E assim ficou: a

    energia (e) de alguns resultante de uma mudana (m) operada por contgio (c)

    combinado com um determinado contexto (c). A mudana acontece pelo

    exemplo dos educadores a sua prxis coerente com os valores dos seus PPP.

    Acontece quando esse contgio se associa ao contexto, no qual a educao

    pode e deve acontecer, isto , a comunidade.

    Desde h mais de quarenta anos, assisto a tentativas de reformas e inevitvel

    falncia de reformas que no ousam operar rupturas. Manifesto a perplexidade

    que levou Einstein a afirmar que insistir no errado sintoma de loucura. E

    formulo perguntas consideradas incmodas. O que se aprende dentro de um

    edifcio escolar, que no possa ser aprendido fora dos seus muros?

    O espao de aprender todo o espao, tanto o universo fsico como o virtual,

    a vizinhana fraterna. E quando se aprende? Nas quatro horas dirias de uma

    escola-motel? Duzentos dias por ano? Que sentido faz uma idade de corte, se

    no existe uma idade para comear a aprender? A todo o momento aprendemos,

    desde que a aprendizagem seja significativa, integradora, diversificada, ativa,

    socializadora. O tempo de aprender o tempo de viver, as vinte e quatro horas

    de cada dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias (ou 366) de cada ano.

    Urge rever os conceitos de espao e tempo de aprendizagem, para que os

    paidagogos no mais conduzam as crianas da comunidade para a escola,

    mas as libertem da recluso num gueto escolar e as devolvam comunidade,

    na qual a escola constitui um nodo de uma rede de aprendizagem colaborativa.

    Enquanto a comunicao social faz eco de discurso de polticos, que nos falam

    de desenvolvimento sustentvel e dos saberes e competncias para fazer face

  • a um mundo incerto e em mudana acelerada, os profissionais da educao

    reproduzem prticas fsseis. Assistimos perpetuao de uma gesto

    centralizada do sistema, impedindo que as escolas assumam a dignidade da

    autonomia e se constituam em elementos orgnicos de comunidades de

    aprendizagem. Num tempo em que se proclama o reconhecimento das

    diferenas, o ato pedaggico mantm-se cativo de um fordismo tardio, ainda que

    se enfeite a sala de aula com novas tecnologias.

    Mas tenho motivos para ser esperanoso. De uma escola agonizante, vejo

    emergir prticas protagonizadas por educadores, que compreenderam que

    escolas no so edifcios. Congratulo-me com a iniciativa de universidades, que

    se assumem como multidiversidades e desenvolvem estudos em torno do

    conceito de comunidade de aprendizagem. Aprendo com educadores, que

    aprendem com outros educadores, mediatizados pelo mundo, sabendo que no

    se trata de levar a comunidade para a escola, ou de fazer visitas de estudo

    comunidade, pois ningum visita a sua prpria casa... Talvez essas prticas

    anunciem ter chegado o tempo de novas construes sociais, de uma outra

    escola. Talvez esteja em curso a to esperada ruptura paradigmtica.

    No restrinjo o mbito da interveno educacional aos contributos da pedagogia,

    embora faa uso corrente dessa palavra. Prefiro falar de cincias da educao,

    pois nelas concorrem at cincias como a Etologia. E, nessa perspectiva,

    poderei afirmar que o Brasil dispe de um esplio cientfico invejvel. Entre

    muitos outros, que poderia citar, evoco: na Psicologia, e escolanovista Helena

    Antipoff; na Sociologia, o corajoso Florestan Fernandes; na Medicina, a genial

    Nise da Silveira; na Antropologia, o incontornvel Darcy Ribeiro; na Pedagogia,

    o proftico Lauro de Oliveira Lima... Muitos dos grandes educadores brasileiros

    esto ausentes deste inventrio. Que o leitor acrescente outros nomes, faa

    garimpagem de sebo, pois eu poderia ter includo Cmara Cascudo, Herculano

    Pires e outros ostracizados, cujas memrias foram assassinadas, cujas obras os

    professores de hoje no leram, ou mesmo os nomes ignoram. provvel que

    alguns (poucos) sejam identificados. Porm, os seus contributos ainda no

    fertilizaram as prticas. Freire includo...

    As suas propostas tm diferentes origens e filiaes: no Positivismo, na Escola

    Nova, na Educao Libertria, na Antroposofia, na Teoria Crtica... Definem-se

    como: montessorianos, steinerianos, espritas, anarquistas, neo-marxistas, ou

  • no enquadrados em qualquer destas tribos. Tm em comum a crtica da velha

    escola e o apontar da necessidade de a substituir por comunidades de

    aprendizagem, expresso que surge pela primeira vez na obra de Lauro, mas

    que, no pout pourri de tendncias e prticas, se manifestou no Brasil desde o

    incio do vigsimo sculo.

    Algum tempo atrs, a minha amiga Maria Amlia, da Casa Redonda de

    Carapicuba, presenteou-me com um esboo elaborado por Lauro de Oliveira

    Lima, no incio da dcada de 1960. Isso mesmo: nos anos sessenta! A viso

    percussora do Mestre Lauro impressiona. Embora marcado pela poca, o

    esboo antecipou em trinta anos os primeiros estudos conhecidos sobre

    comunidades de aprendizagem de origem anglo-saxnica e catal. O meu

    espanto foi maior, quando li a produo cientfica brasileira disponvel sobre

    comunidade de aprendizagem. As referncias bibliogrficas e as prticas

    estudadas so quase todas importadas. Mais ainda: apercebi-me de um absoluto

    desconhecimento da produo terica do Lauro e de outros brasileiros por parte

    dos autores dos estudos. Sndrome do vira-lata na comunidade cientfica

    brasileira?

    Por que razo tomei a iniciativa de escrever este livro? Para suscitar o interesse

    pelo conhecimento da biografia e da obra de educadores brasileiros ignorados

    pelos educadores brasileiros. Para procurar entender por que falharam as

    nobres tentativas de mudana tentadas por Freire, Florestan e tantos outros

    grandes mestres. No desenvolvimento deste desiderato, deparei-me com a

    existncia de um denominador comum nas obras desses mestres: cada qual a

    seu modo, referindo, ou no, a palavra comunidade, apontaram para a

    necessidade de aprender em... comunidade.

    Ao longo de um ano, fui registrando reflexes sob a forma de cartas. Vejo, agora,

    que redigi um enunciado de perplexidades. Os vinte e cinco extintos destinatrios

    das missivas anunciaram novos modos de aprender, mas quase todos

    mantiveram as suas prticas ancoradas no modelo de ensinar que denunciaram,

    semelhana dos vivos, que tomam conscincia da falncia do velho modelo e,

    paradoxalmente, nele insistem. certo que a herana totalitria do Vargas, que

    liquidou os intentos da Nise, bem como o tempo dos generais, que exilou Freire,

    explicam parcialmente esse paradoxo. Mas continuo perplexo perante tentativas

  • de melhorar o que j no pode ser melhorado, perante as prxis de educadores

    que ainda confundem educar com escolarizar.

    As cartas, que compem este livro, so portadoras de boas e ms notcias do

    mundo dos vivos. E, como referi, so mensageiras de mais um propsito: o de

    dar a conhecer educadores finados talvez ignorados pelos educadores vivos.

    No seguem a ordem cronolgica das existncias dos educadores a quem as

    dirigi. A primeira age como justificao de serem dirigidas queles que j no

    esto entre ns. A segunda foi produto de impulso, a reao a medidas polticas,

    que significam retrocesso. semelhana das iniciais, as restantes cartas

    seguem o exemplo do Vieira, que, num dos seus sermes, coloca Antnio de

    Bulhes a falar com os peixes, porque os homens o no ouvem falar. Isso

    mesmo: enviei cartas aos mortos, por me parecer que os vivos desaprenderam

    de escutar. Espero estar errado na minha concluso e, por isso, dessas missivas

    dou conhecimento ao eventual leitor.

    J no me recordo de quem ter escrito que, junto com Ansio Teixeira, Paulo

    Freire e Darci Ribeiro, Lauro de Oliveira Lima formam o quarteto mais fecundo,

    frtil e injustiado da histria da educao em nosso pas, mas sei que li algo

    assim. E no so apenas estes os injustiados. Temos registros de muitos mais.

    Neste livro encontrareis alguns. Que me perdoem os excelentes pedagogos

    vivos, se optei por conversar com aqueles que j no so deste mundo. E que

    eu seja perdoado pelos mortos merecedores de referncia, mas cuja evocao

    no consta destas pginas.

    Quando a eternidade se aproxima, enquanto o discernimento no se esvai por

    completo e a calma se harmoniza com a urgncia, no encontro modo mais fcil

    de conversar com futuros companheiros do que atravs de missivas enviadas

    para lugares etreos, na esperana de que tambm venham a ser lidas por

    educadores sensveis. Na singela inteno de despertar os educadores

    brasileiros para o rico patrimnio legado pelos mestres de antanho se resume

    este exerccio epistolar. Portanto, estas cartas tambm so dirigidas ao

    educador que existe em cada um de ns. Faamos delas bom proveito,

    comeando por ler as obras dos mortos, para delas extrair elementos teis para

    os projetos dos vivos.

    No foi minha inteno escrever um ensaio sobre comunidades de

    aprendizagem. Optei pelo tom coloquial, acessvel a todo e qualquer leitor, ao

  • que junto a sugesto de abordagens mais aprofundadas, ditas cientficas, que

    as escolas e as universidades podero (e devero) produzir. Mas, nas

    entrelinhas destas cartas, talvez o leitor encontre contributos para repensar a

    escola e conceber uma nova construo social, que, efetivamente, eduque e seja

    agente de desenvolvimento humano sustentvel. Poder, mngua de melhor

    designao, dar-lhe o nome de... comunidade de aprendizagem.

  • So Luiz, Abril de 2013

    Prezado Antnio,

    Em So Lus do Maranho, longe da Lisboa onde Santo Antnio havia nascido,

    quiseste lembrar o santo casamenteiro, atribuindo ao sermo proferido nessa

    data a designao de Sermo de Santo Antnio aos Peixes. Estvamos em 13

    de junho de 1654. Trs dias depois, embarcaste para Portugal, escondido no

    fundo de uma nau. Estava no auge a luta dos jesutas contra a escravizao dos

    ndios e tu ias procurar apoio no outro lado do mar.

    Esse teu sermo revelador da tua ironia e da capacidade de observao dos

    vcios dos colonizadores e dos esbirros da Inquisio, que lograste ludibriar

    recorrendo a alegorias. Jesuta inteligente e moralista exmio, deitaste mo a

    metforas memorveis, que, se eram ajustadas crtica dos costumes da

    sociedade do sculo XVII, continuam atuais quiseste pregar aos peixes,

    enquanto os homens no te quisessem escutar.

    Permite, meu Vieira pregador, que transcreva um excerto do teu primeiro

    sermo: Pregava Santo Antnio e, como erros de entendimento so dificultosos

    de arrancar, no s no fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar

    contra ele e faltou pouco para que lhe no tirassem a vida. Que faria neste caso

    o nimo generoso do grande Antnio? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia?

    Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudncia ou a covardia

    humana; mas o zelo da glria divina, que ardia naquele peito, no se rendeu a

    semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o plpito e o auditrio, mas

    no desistiu da doutrina. Deixa as praas, vai-se s praias; deixa a terra, vai-se

    ao mar, e comea a dizer a altas vozes: J que me no querem ouvir os homens,

    ouam-me os peixes.

    Este trecho to eloquente (e atual!), que qualquer peixe, por menos atento que

    seja, lhe conferir significado. Porm, o mesmo no sucede com os homens. A

    educao brasileira, que, em recuados tempos, sofreu os efeitos da Inquisio,

    continua cativa de novas inquisies. Se no, repara Reconhecendo que os

    alunos da escola pblica esto em desvantagem, se instituiu bonificao de

    20% sobre a nota do vestibular, para usufruto dos pobres coitados, que foram

    objeto de mau trato pedaggico. Acreditas que j so formados professores

    especializados em bullying? E a desigualdade perpetua-se por via de uma

  • tradio hierrquica. Imagina que, nas pobres escolas que ainda temos, existe

    hierarquia at na hora de urinar, ou defecar. Essas escolas tm banheiro de

    alunos separado de banheiro de professores. verdade, isso te asseguro!

    Presumo que nos lares dos ilustres pedagogos dessas escolas tambm haja

    banheiros separados, encimados por dsticos como: banheiro de papai,

    banheiro de mame, banheiro de filhos

    Outro Antnio (o amigo Nvoa) tem denunciado a pobreza das prticas, mas

    parece que, tambm, somente os peixes lhe do ouvidos. Tal como fez o Mestre

    Agostinho da Silva, outro portugus no Brasil. Tentava concretizar os teus

    princpios que o homem no foi feito para trabalhar, mas para criar e que a vida

    deve ser gratuita na Braslia da dcada de 1960, quando a ditadura o afastou

    da companhia do Darcy e fez abortar projetos de uma escola humanizada.

    Mas fica sabendo, caro Vieira, que o sonho no esmorece. Na mesma Braslia,

    acontecem encontros de educadores, que j pensam e fazem a educao

    necessria. Sei que estars conosco, em esprito. Requiescat in pace!

    PS: Acaso tenhas acesso terrena literatura, espreita uma coleo de livros, que nos falam de

    eminentes educadores brasileiros e que o MEC disponibilizou para download gratuito (depois te

    explicarei o significado da sigla e do estrangeirismo). Tomars conscincia de que no ests s,

    bem como da riqueza da produo cientfica no campo da educao. Porm, no te entusiasmes

    demasiado, pois a maioria dos professores brasileiros desconhece esse valioso patrimnio.

    ...........................................

    Padre Antnio Vieira

    Biografia:

  • Braslia, Agosto de 2013

    Querido Darcy, escutei o teu apelo, j quando o cncer consumia o teu ltimo

    sopro de vida. Vi-te sofrer o exlio, enquanto o teu pas dormia distrado, sem

    perceber que era subtrado em tenebrosas transaes. Vo sacrifcio o teu,

    porque as escolas continuam a no ensinar. A lei, que fizeste aprovar nos idos

    de 96, continua sendo letra morta. Imagina que os autores de uma anunciada

    reforma creem que o sistema ir melhorar com boletins e reprovaes, ou

    quando, pelo menos um perodo por dia seja dedicado ao desenvolvimento de

    atividades interdisciplinares. Leste bem, Darcy: um perodo por dia! Ou quando

    houver espao para que professores trabalhem por projetos em algumas

    disciplinas. Em algumas disciplinas! Ou, ainda, quando no ltimo ciclo, os alunos

    sejam protagonistas do prprio aprendizado. Somente no ltimo ciclo acontecer

    a emancipao social e cidad dos alunos (sic!).

    triste, caro Darcy, verificar que aqueles que detm o poder de mudar no

    entendam que, junto com Ansio Teixeira, Paulo Freire e Lauro de Oliveira Lima,

    tu formas o quarteto mais fecundo, frtil e injustiado da histria da educao

    em nosso pas. lamentvel que ousem afirmar que, h dcadas, foi implantada

    a chamada progresso continuada, quando, na verdade, ela nunca foi

    implantada. lamentvel que continues ostracizado e que equvocos entre

    avaliao e classificao gerem inteis mudanas de conceito para nota. Que

    se promovam inteis alteraes na cartesiana segmentao em ciclo. Que se

    confunda trabalho de projeto com caricaturas de trabalho de projeto

    Os nossos governantes lamentam que apenas 34% dos alunos apresentem

    conhecimento adequado ou avanado em portugus e 27% em matemtica; ou

    que, na 8 srie, 23% estejam com nvel adequado e avanado em portugus e

    10% apresentem esse resultado em matemtica, mas cometem o despudor de

    ressuscitar medidas que, no passado, deram origem a esse descalabro. So

    medidas de retrocesso, que perenizam o velho paradigma escolar, reprodutor de

    oprimidos e opressores, que o malogrado secretrio de educao Paulo Freire

    tanto denunciou. Medidas de manuteno do desperdcio de dinheiro e de gente,

    que serviro para perpetuar o analfabetismo, numa escola que j produziu mais

    de 30 milhes de analfabetos.

  • Ficamos sem saber se os nossos reformadores agem por ignorncia ou loucura.

    So ignorantes aqueles que desprezam a produo cientfica, que ignoram a

    existncia de prxis coerentes com a tua Lei de Bases, quem toma decises

    desprovidas de bom senso. Tambm um sbito acesso de loucura pode ter

    acontecido, pois j o sbio Einstein nos avisava que a maior insanidade

    continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.

    Essas e outras inteis medidas so apregoadas na comunicao social, com

    pompa e circunstncia, despudoradamente, como de algo srio se tratasse. Eu

    sei que custa a crer, caro Darcy, mas verdade. Se no me engano, foste tu

    quem fez esta afirmao: o Brasil, ltimo pas a acabar com a escravido tem

    uma perversidade intrnseca na sua herana, que torna a nossa classe

    dominante enferma de desigualdade, de descaso. No desesperes. Fica

    sabendo que j muitos educadores e escolas so sensveis aos teus apelos.

    Depois de tenebrosos tempos, luminosos tempos ho-de vir. Ainda que,

    entretanto, milhes de jovens sejam condenados ignorncia e ao sofrimento,

    por via de desastrosas polticas pblicas.

    Sei que te confessas ateu. Mas, se alguma influncia tiveres junto de Deus,

    pede-Lhe que perdoe os nossos governantes, porque eles no sabem o que

    fazem.

    ........................................................

    Darcy Ribeiro

    Biografia:

  • Macei, Abril de 2013

    Armanda querida, fizeste com a Ceclia o par de mulheres que, numa sociedade

    machista, subscreveu o Manifesto de 1932. Gesto pleno de significado de uma

    militante feminista, que criticava feministas, aquelas que viam no homem um

    inimigo da mulher. Tambm foste arrojada nas inovaes que ousaste. Na

    fundao da Escola Proletria de Meriti, introduziste uma novidade no mundo

    das escolas a merenda escolar. A Escola Mate com Angu, como ficou a ser

    conhecida, foi uma das primeiras da Amrica Latina a servir merenda escolar,

    reflexo da tua preocupao com o bem-estar das crianas. Sabias ser difcil

    aprender com o estmago vazio. Sem que lhe desses essa designao,

    viabilizavas a escola em tempo integral. Atrada pelas teses da Escola Nova,

    transformaste o cho da escola num laboratrio, bem ao modo de Montessori.

    Antecipaste em um sculo a prtica de um contra-turno em que as crianas

    completavam o dia de aula com o cultivo da horta e a criao de animais.

    Pagaste elevado preo por toda a tua ousadia, querida Amanda. Quando

    presidente da Associao Brasileira de Educao e integrante da Aliana

    Nacional Libertadora, sofreste a perseguio da polcia poltica e acompanhaste

    a Olga Prestes nas prises do Getlio.

    As agruras da priso no esmoreceram o teu entusiasmo, os teus ideais. E a

    cidade de Duque de Caxias te deve a criao da primeira biblioteca pblica. Na

    Biblioteca Euclydes da Cunha, pugnaste pela valorizao da obra de autores

    brasileiros e desenvolveste formas criativas de mobilizao da comunidade.

    Sabemos que tentaste retomar as atividades na direo da tua escola e que as

    autoridades te impediram que o fizesses. Diante das dificuldades para manter a

    escola em funcionamento, tentaste transferi-la para o governo estadual. Porm,

    no houve receptividade da parte do governo, que recusou manter a instituio

    nos moldes em que fora concebida. Mais uma vez, a burocracia deitou a perder

    uma oportunidade de revitalizao educacional.

    Cr, minha amiga, que a via sacra da educao brasileira se perpetua por obra

    da ignorncia do poder pblico, a mesma ignorncia que enfrentaste e que

    atravessou todo o sculo XX, deixando um rastro de analfabetismo, excluso,

    infelicidade. O sistema no assegura o acesso a todas as crianas em idade

    escolar e o sucesso a cada uma delas. Confunde educao integral com uma

  • escola em tempo integral, que nem isso chega a ser. Busca superar crises

    atravs de reformas setoriais, ou por via de medidas de poltica educativa que

    no ousam operar rupturas paradigmticas. E, porque ainda padece da

    sndrome do vira-lata, o Brasil exilou Freire e despreza os contributos dos seus

    excelentes educadores, enquanto importa novas tecnologias do hemisfrio

    norte.

    Mas, au bout du chagrin, une fentre ouverte une fentre claire (as senhoras

    da tua gerao sabiam ler o Paul luard...) uma janela de esperana se abre

    sobre uma desoladora paisagem. Num cenrio de mudana, novas construes

    sociais emergem de um sistema educativo doente, outra educao se mostra

    possvel. E as comunidades de aprendizagem surgem, no como enfeite de tese,

    ou paliativo para a precria situao, mas como uma das possveis alternativas

    escola que ainda temos.

    Foram precisos mais de oitenta anos para que alguns dos anseios inscritos no

    manifesto, que subscreveste, pudessem concretizar-se, atualizar-se num

    terceiro manifesto. J o leste? Encontrars uma cpia desse documento anexa

    a esta carta. Sei que irs gostar de o ler.

    .........................................

    Armanda Alberto

    Biografia:

  • Florianpolis, Maio de 2013

    Aqui estou, na tua querida Florianpolis, querido Mestre Agostinho. Como em Salvador,

    Braslia, ou Joo Pessoa, bem acompanhado das tuas sbias palavras, atravs das

    quais demonstravas que, mais importante do que educar, evitar que os seres humanos

    se deseduquem: cada pessoa que nasce deve ser orientada para no desanimar com

    o mundo que encontra volta. Acreditavas sermos capazes de reencontrar o que em

    ns extraordinrio e que poderemos transformar o mundo. Mas em vo pugnaste por

    transformar o mundo, por encontrar tratamento dos males da educao, pois partiste de

    Braslia, quando a ptria me andava distrada em tenebrosas transaes e a ditadura

    levou Darcy ao exlio. Quiseste trocar o lema ordem e progresso por liberdade e

    desenvolvimento, mas deixaste no incio do incio um projeto de universidade, que

    continua to ancilosada como quando partiste.

    Etimologicamente, educar significa levar de um lugar para outro. E a palavra crise do

    grego Krisis designa o momento crtico, no qual o mdico, aps fazer o diagnstico da

    maleita, deve tomar uma deciso: qual dever ser o tratamento? Quarenta anos aps a

    tua despedida do Brasil, a educao da tua segunda ptria continua deriva, perdida

    entre modas e reformas, pois quem a pode transformar no tem poder e quem tem poder

    no a transforma.

    Sofreste as consequncias da tua desobedincia, da coerncia, como atesta o teu credo

    pedaggico: a vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida

    e cada um dos outros pudesse ter esse espetculo extraordinrio de ver pessoas

    diferentes sua volta e no, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que

    gostam de mandar nos pases, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece algum

    diferente se ofendem, acham que est fugindo das regras, saindo da vida que deve ter.

    Sabias que escolas so pessoas, comunidades feitas de pessoas, que aprendem umas

    com as outras. E que o desenvolvimento dessas comunidades depende da diversidade

    de experincias das pessoas que as integram, bem como requer que todos os membros

    que a constituem se envolvam num esforo de participao, da produo conjunta de

    conhecimento, vizinho a vizinho, numa fraternidade aprendente.

    medida que ias traduzindo para a lngua brasileira a obra de Montessori e a de Oundle,

    compreendias que a criao de uma comunidade de aprendizagem pressupe a

    reconfigurao das prticas escolares, uma indispensvel ruptura paradigmtica. E, de

    algum modo, ousaste a ruptura, gesto potico de quem aprendeu a arte de colocar o

    sonho em ato, porque, como dizias, poeta aquele que cria na vida alguma coisa que

    na vida no existia. Criaste tertlias e oficinas, viveste aquilo em que acreditavas. Se

  • vivesses nos dias de hoje, certamente, farias de cada biblioteca, de cada praa, ou lan

    house, lugares de aprender.

    Antes de voltar a Portugal quando a ditadura destruiu o projeto da faculdade sonhada

    para Braslia estiveste muito bem acompanhado por Ansio, Darcy e outros amigos do

    sul, lanando sementes de mudana na educao, no reconhecimento de que no

    existe alternativa concretizao de utopias. E eis que elas regressam e se anunciam

    em Braslia. Quando puderes, l o Manifesto lanado por educadores para quem tu

    continuas a ser inspirao. Educadores que no deixaram morrer a criana grande que

    os habita, que percebem o significado da entronizao da criana na Festa do Divino,

    objeto de muitas das tuas reflexes. Em Floripa e outros lugares do Brasil que amaste,

    essa celebrao mantida por gente que sabe que nascemos para criar e que a vida

    deve ser gratuita.

    ....................................

    Agostinho da Silva

    Biografia:

  • Matinhos, Maio de 2013

    Amigo Fernando, venho trazer-te notcia do terceiro manifesto, embora creia

    que, nesse lugar etreo onde subiste, no careas de informao e presuma que

    possas presenciar tudo quanto na Terra acontece. Dirijo-me a ti, que pugnaste

    por uma nova poltica de educao, que redigiste e, em 1922, foste o primeiro

    signatrio do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova. A ti, que estiveste

    presente no malogrado manifesto de 1959 e partiste sem veres frutos do teu

    rduo labor. No desanimes, caro Fernando, porque o terceiro dos manifestos

    no ter o destino que tiveram os anteriores. De onde me vem esta certeza?

    perguntars. De ver surgir iniciativas e projetos que, notoriamente, operam uma

    profunda ruptura com o paradigma de escola do sculo XIX. E de assistir ao

    encontro de muitas e variadas gentes, irmanadas num mesmo propsito. No teu

    propsito.

    Cr que compreendo a tua apreenso. A universidade que ajudaste a fundar em

    So Paulo, semelhana de outras universidades, parece adotar nas suas

    prticas o aforismo olha para o que eu digo, no olhes para o que eu fao,

    contribuindo para a prossecuo de polticas educativas equivocadas e a

    manuteno de um modelo epistemolgico que, em vida, tu tanto contestaste.

    Perdoa a franqueza, amigo Fernando, mas nunca vi gente to contraditria como

    a dos teus pares. gente com grande responsabilidade na definio de polticas

    educacionais e, se a universidade referncia matricial, prejudicial o exemplo

    que os acadmicos do s escolas, o exemplo da incoerncia entre a teoria que

    colocam nas teses e as prticas que desenvolvem. Quando observo prticas

    hbridas, ou mesmo contraditrias, temo pelos consequncias. Sabers explicar-

    me como possvel ser terico scio construtivista e prtico de dar aula? E ser

    possvel ensinar mtodos ativos num contexto de passividade? , exatamente,

    isso, que por l se faz.

    Presumo que, no teu eterno descanso, ters muito tempo livre (ainda que o

    tempo seja iluso, inveno dos terrqueos). Por isso, me atrevo a ocupar um

    tempo a contar-te um episdio, que ilustra o que acabo de dizer. Aps uma

    palestra, fui interpelado pelo palestrante seguinte: Vou fazer a prxima palestra

  • e estou sem saber o que fazer. Acabaste de dizer que aula intil e prejudicial.

    E a palestra que preparei sobre planejamento de aula.

    Manifestei-lhe a minha perplexidade: Tu, que s professor universitrio, sabes

    que aula intil e prejudicial. Por que no o dizes?

    Eu sei que tens razo concluiu, pesaroso , mas eu no poderei dizer isso aos

    professores, porque...eu dou aula na minha faculdade.

    Saudoso Fernando, a educao do teu Brasil continua cativa de atavismos. Os

    contributos do Paulo, do Florestan, do Lauro e de outros insignes pedagogos

    tm sido trocados por teorias importadas do hemisfrio Norte. As comunidades

    de aprendizagem tm sido objeto de estudo, a partir de uma matriz terica

    estrangeira e isso talvez isso se deva ao desconhecimento da presena desse

    conceito nas obras de autores brasileiros. As prticas de comunidade de

    aprendizagem so escassas e tomam por referncia experincias realizadas na

    dcada de 1990, nos Estados Unidos e na Espanha. Os acadmicos que as

    implementam ignoram que, ainda que sob outras designaes, j na dcada de

    1960 (no Brasil) e na de 1970 (em Portugal), foram desenvolvidas prticas com

    as caratersticas de comunidade de aprendizagem. Essa ser, creio, uma das

    formas possveis de novas construes sociais, para que a velha escola possa,

    finalmente, implodir. Porm, as escolas onde os acadmicos vm introduzindo

    projetos com essa designao mantm-se ancoradas no modelo de escola

    tradicional.

    O Paulo falava da necessidade do contato pessoal, fsico, com a realidade, para

    alm dos muros da escola. Tal como o teu amigo Florestan, socilogo consciente

    dessa necessidade, e que, por agir em coerncia com os seus princpios tantas

    vezes tiveste de proteger e acompanhar nos interrogatrios a que o DOPS o

    submetia. Mas, enquanto a pliade educacional da tua gerao defendia que a

    educao deveria ser pensada a partir das comunidades, de modo que os

    processos de aprendizagem assumissem um papel transformador nas

    sociedades, ainda h quem creia que o modelo escolar o nico modelo de

    educao e que a escola edifcio o nico lugar onde se pode aprender.

    Fernando, estou a falar de comunidades de aprendizagem. Para que elas

    surjam, no basta que uma instituio de ensino superior (nunca ouvi falar de

    ensino inferior, mas, se h ensino que se diz superior...) oferea um projeto de

    extenso s escolas, ou que estas abram as suas portas, para que as famlias

  • nelas entrem. Participar no consiste apenas intervir em reunies, ou pertencer

    a uma associao de pais e mestres. preciso que os muros das escolas sejam

    derrubados, que catracas e cmeras de vigilncia sejam desativadas, para

    darem lugar a amplos espaos de fraterna vizinhana, para que as novas

    geraes aprendam no contexto das suas comunidades.

    Recentes produes consideradas cientficas vo em outra direo. E preocupo-

    me com o rumo que a aplicao desses produtos do engenho humano esto a

    tomar. Parece que a universidade, que tanto buscaste transformar, se mantm

    ancorada num modelo epistemolgico de novecentos. Peo que sejas paciente

    na leitura de insignificantes registros crticos, que aqui deixo, e que me digas de

    tua justia.

    A produo acadmica, que toma por objeto a comunidade de aprendizagem,

    consagra o princpio do dilogo igualitrio. Mas, de que modo o dilogo igualitrio

    princpio que estabelece que, nos espaos de tomadas de deciso, a

    comunicao deve se basear pela fora dos argumentos, e no por posies de

    poder que cada pessoa ocupa poder ser conciliado com a manuteno de

    uma gesto de escola hierrquica? E, se a capacidade de aprender e de

    apreender de diversas maneiras se d ao longo da vida, por que razo em

    grande parte ela se subordina ao tempo escolar? Se existe uma inteno de

    transformar as relaes entre as pessoas em outra lgica que no a da

    competitividade, mas a da cooperao, porqu manter nas experincias em

    curso os rituais de uma escola competitiva, seletiva, excludente?

    Quando se assume que, em comunidade de aprendizagem, se busca trabalhar

    a gesto da escola em uma perspectiva democrtica, participativa e dialgica,

    por que se institui uma comisso gestora da escola, se esta no substitui os

    rgos de gesto tradicionais? De que modo a gesto escolar ficar mais

    democrtica e compartilhada, atravs da introduo (ou intruso...) de um rgo

    de gesto paralelo aos rgos de gesto tradicionais, que so quem detm o

    poder efetivo na escola?

    muito reducionista a definio do conceito e a utilizao do grupo interativo

    como recurso para a reviso de contedo j trabalhado em sala de aula. A

    presena de diferentes pessoas em espaos de aprendizagem, numa sala de

    aula ou fora dela, prtica h muito tempo utilizada em escolas que prescindiram

    da acelerao da aprendizagem, de classes de reforo e de outros

  • dispositivos de educao compensatria. Nestas escolas, os jovens aprendentes

    no so distribudos por grupos previamente estabelecidos pelo professor, mas

    pela auto-organizao, em funo de objetivos comuns e contemplando a

    heterogeneidade. As equipes assim constitudas so acompanhadas por tutores,

    que asseguram a mediao da aprendizagem, que o desenvolvimento dos

    diferentes projetos requer.

    Atividades como as tertlias dialgicas, a biblioteca tutorada, ou os grupos

    interativos so considerados inovao. S-lo-o? E se afirmarmos que, desde

    h muito tempo, vm sendo desenvolvidas em escolas com projetos? certo

    que essas atividades podero constituir-se em excelentes contributos para a

    melhoria das aprendizagens... se no forem meros dispositivos de complemento

    curricular.

    No faz sentido que a leitura de um livro, no contexto de uma tertlia literria

    dialgica seja remetida para o domnio da sala de aula. Nem se percebe por que

    razo a biblioteca tutorada um espao aberto em horrio contrrio ao da sala

    de aula. Por que razo a biblioteca no utilizada durante as aulas? Ou, melhor

    dizendo, por que no substituir a aula por uma permanente aprendizagem,

    realizada a todo o momento e em mltiplos contextos sociais?

    Caro Fernando, se no teu etreo descanso, existe o hbito de orar, reza para

    que as mentes dos teu colegas universitrios se iluminem.

    ..............................................

    Fernando Azevedo

    Biografia:

  • Natal, Junho de 2013

    Prezado Joo, que nos falavas de quantos morrem sem nunca terem vivido, fica

    sabendo que ainda se morre no Brasil de morte igual, da mesma morte severina:

    a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos

    vinte. Enquanto releio o teu desabafo Escolas so usinas, que engolem gente

    e vomitam bagao medito sobre a cruel atualidade das tuas palavras: o que

    fizemos de meio sculo de histria? Aqui, na Terra, caro Joo, esto jogando

    futebol em estdios que custam milhes, enquanto se morre de fome um pouco

    por dia, porque a morte severina ataca em qualquer idade, e at gente no

    nascida.

    Gostaria de poder dar-te boas notcias da educao, mas essas so poucas.

    Delas no falam os jornais, apenas te darei notcia de professores atentos

    tragdia. Escutemos a Ellen, conversando com os seus alunos sobre o que

    querem ser:

    Uma boa parte quer ser mdica, outra parte quer ser engenheira e no

    identifiquei algum querendo ser professor. A comunidade na qual se localiza a

    escola que trabalho tem altos ndices de violncia. Descobri que alguns alunos

    gostariam muito de ser pedreiros Mas porqu sonhar com uma profisso to

    rdua e de pouca remunerao? Fiquei sem entender! At que um daqueles,

    que sonham em ser pedreiro, teve d de mim e resolveu explicar o motivo de

    muitos quererem essa profisso.

    Tia, a senhora sabe o que e o que faz um pedreiro?

    Pedreiro o profissional que trabalha na construo civil. No deverias tentar

    ser doutor, criaturinha?

    Ele sorriu e respondeu:

    Tia, pedreiro quem vende pedra de crack. Aqui, na comunidade, quem vende

    mais pedras ganha mais, tem participao nas vendas. A senhora no v

    alguns alunos com celulares de ltima gerao e cordo da moda? Compram

    com o dinheiro da comisso da venda.

    Neste momento, meu mundo desabou completamente.

    E, quando se justifica uma ajuda a professores que querem mudar o seu mundo,

    melhorar a escola, cr, caro Joo, que se contrata mais polcias e se constri

    mais prises

  • Outro Joo me confidenciou que a diretora da escola o chamou, para lhe sugerir

    que levasse o seu filho para uma escola particular, porque aquela s tinha aluno

    marginal, aquele aluno que a escola-usina vomita como bagao, na ignorncia

    de que o marginal regressar, armado de fuzil de assaltar, ou j cadver, exibido

    nos jornais e na tv.

    A curiosidade levou-me at escola dos ditos marginais. Contornei altos muros

    e dispositivos de proteo. Passei por jardins cobertos de lixo. Desemboquei

    num ptio repleto de avisos de proibies, entremeados de grades. Por detrs

    de outras grades, o olhar inquisidor de uma funcionria fuzilava o visitante (os

    olhos de outra funcionria estava pousado no facebook). Escutei os gritos de

    professores, dando aula. Vi jovens alheios aula, bocejando, usando celular,

    acondicionando fones nos ouvidos.

    Em pleno sculo XXI, o da suposta valorizao de minorias, num lugar remoto

    do nosso Brasil, escuto narrativas de culturas destrudas. Como aquela que nos

    fala de um astrnomo que visita uma aldeia, instala a sua luneta e convida um

    jovem indgena a espreitar constelaes.

    Consegues ver a constelao de escorpio? pergunta o astrnomo.

    No. Eu vejo a da ona responde o indgena.

    Decorridos dois anos, o cientista reencontra o mesmo jovem na universidade. E

    renova a pergunta: Ento, meu jovem, j consegues ver o escorpio?

    O jovem indgena responde: Consigo ver o escorpio, sim mas deixei de ver a

    ona.

    Houve um dia em que o escorpio matou a ona. E, agora, Joo?

    ......................................................

    Joo Cabral de Melo Neto

    Biografia:

  • Macap, Junho de 2013

    Que afirmao audaz fizeste, amigo Milton: comunicao troca de emoo. E

    como me emociona poder falar-te, por teres deixado na Terra um rastro de amor

    incondicional. Porque, apesar de teres sofrido na negra pele um duplo

    ostracismo, te mantiveste semeador de paz. O teu exemplo nos ajuda a continuar

    pugnando pelo fim de um tempo em que ainda existem duas classes sociais, as

    do que no comem e as dos que no dormem com medo da revoluo dos que

    no comem. bem verdade que, se na pr-histria os homens das cavernas

    viviam em bandos para se defenderem dos predadores, hoje os homens vivem

    em bandos para depredar. Mas no te trago lamentaes nesta carta. Trago-te

    esperana. No tarda, a geografia brasileira ser outra. Na humana geografia

    deste pas, acontecer cidadania plena atravs do aprender em comunidade.

    Caro amigo, esse aprender em comunidade pressupe uma outra formao de

    professores. Gegrafo eminente, sabes que aquela que vem sendo feita orienta-

    se por velhos princpios (do Oriente geogrfico, isso mesmo, que a linguagem

    reproduz cultura) e permanece colonizada por pedagogias vindas do Norte

    (norteia-se...). Mas j o Freire, na sua Pedagogia da Esperana, recomendava

    que o educador brasileiro no se norteasse, que se suliasse. Se os professores

    brasileiros estudam os autores do Norte, por que desconhecem os do Sul?

    Compreenderiam que a proposta da italiana Montessori foi reinterpretada por

    Agostinho da Silva, que o iderio de Pestalozzi foi posto em prtica pelo

    Eurpedes, aprenderiam o Piaget abrasileirado pelo Lauro, ou o pragmatismo do

    norte-americano Dewey adaptado pelo Ansio.

    Aprender em comunidade requer a adoo de princpios trans-formadores. a

    cultura pessoal e profissional do educador que est em causa. Ter-se- de

    entender que a teoria no antecede a prtica e que a dificuldade sentida na

    prtica que justifica a busca de teoria, com vista a uma prxis coerente. um

    erro pensar que a teoria precede a prtica, assim como agir na prtica

    desprezando a teoria. A necessria reelaborao cultural requer alterao de

    padres atitudinais, que so complexos e de modificao gradual. Nesses

    processos de transformao, urge considerar um renovado conceito no campo

    da formao: o isomorfismo. Dito em cdigo restrito: o modo como o professor

    aprende o modo como o professor ensina. intil capacitar o formando em

  • alfabetizao, ou servir-lhe o Piaget em dez aulas, porque quem o capacita

    nunca praticou e, quando o professor voltar sala de aula, o Piaget j l no

    estar... E que, na gnese das comunidades, se priorize a necessidade da

    transformao do professor-objeto de formao em professor-sujeito no contexto

    de uma equipe de projeto. Tudo isso tu sabias, caro Milton, ainda que nunca o

    tivesses escrito. Os teus mritos no foram reconhecidos, como no o foram os

    de muitos outros brasileiros, por via da sndrome do vira-lata, que afeta at os

    menos distrados.

    Quando perguntaram a Orson Wells como havia conseguido, em seu primeiro

    filme, realizar uma obra-prima nunca superada na histria do cinema, diz-se que

    ter respondido: Por ignorncia, porque eu achava que se podia fazer tudo em

    cinema. Na mesma linha de raciocnio e na inteno de provocar a curiosidade

    dos mais distrados, cito o teu contemporneo Freire: criar o que no existe ainda

    deve ser a pretenso de todo sujeito que est vivo. Isto : reelaborar o conceito

    de comunidades de aprendizagem construir um indito vivel... mas integrando

    contributos tericos de brasileiros. Sem enjeitar os contributos anglo-saxnicos

    e catales, claro. E, se deste modo me pronuncio porque tive a desagradvel

    surpresa de achar escassas referncias a autores brasileiros nas bibliografias de

    teses e de raramente encontrar as suas obras nas bibliotecas das faculdades de

    pedagogia. Os professores foram privados do acesso a essas obras e a maioria

    dos diplomados nem os nomes de ilustres educadores brasileiros conhece.

    Perderam-se entre a ditadura do Vargas e os calabouos do DOPS...

    A experincia humana no poder continuar a ser destruda pelo modelo

    civilizacional que os poderosos de ontem e de hoje impuseram a frgeis

    criaturas, que apenas conseguem identificar o que os separa e no o que os une.

    No condomnio de luxo, como nas favelas, foram destrudas as redes de

    vizinhana, a convivncia fraterna. Mas, se verdade que existem comunidades

    espirituais, procura aquela onde o Floriano e o Moreira Csar habitam na

    eternidade e diz-lhes que o esprito de Canudos no morreu.

    ................................

    Milton Santos

    Biografia:

  • Canudos, Julho de 2013

    Infeliz Antnio, terias ensejo de ensinar aritmtica, portugus, geografia, francs,

    latim, e de cultivar o teu maior prazer: o estudo das lendas populares da idade

    mdia, mas no conseguiste ficar muito tempo nas escolas de fazenda, ao

    servio dos bares. Abandonaste o ofcio de professor, para peregrinar pelo

    serto e te expores a conspiraes e calnias. Tarde te iniciaste na arte de

    ensinar e escassos foram os anos em que te dedicaste a uma docncia precria

    e mal remunerada, pois buscaste sustento em profisses de mais generosos

    proventos. Soube que foste escrivo, solicitador e at advogado sem diploma.

    At ao dia que no quero recordar-te por ser dolorosa lembrana , em que te

    decidiste pela errncia no interior do Cear, restaurando e construindo capelas,

    igrejas, cemitrios.

    Atento s pregaes do padre Ibiapina, estudavas os textos sagrados e

    espalhavas o Evangelho entre o povo humilde, de quem escutavas preces e a

    quem davas consolao. Da o cognome que te conferiram: Conselheiro. No

    sei, meu caro Antnio, se terias conscincia das invejas e da ira que esse teu

    agir despertava junto de eclesisticos e latifundirios. Os poderosos no

    perdoavam a fuga de sbditos, que te seguiram e te ajudaram a fundar o arraial

    do Bom Jesus. De imediato, te acusaram de assassino. Mas, porque provaste a

    tua inocncia, o teu prestgio cresceu entre a massa de deserdados. Essa

    humilde e castigada gente projetava na tua pessoa a esperana de libertao de

    um cativeiro de sculos, s mos de bares e coronis.

    Aquela fazenda abandonada s margens do rio Vaza-Barris foi anunciada como

    a terra prometida aos miserveis, s prostitutas e aos jagunos, que semeavam

    o terror no serto da Bahia. E era tal a tua f, que as prostitutas viraram mulheres

    de virtude; to grande o teu exemplo. E os jagunos se transformaram em

    paladinos da justia. Deste o nome de Belo Monte ao povoado que viria a ser

    conhecido por Canudos. Franciscano pedreiro, que eras, como o santo de Assis,

    que tambm foi pedreiro construtor e reconstrutor de templos, iniciaste a

    construo de uma igreja, congregando almas dispersas, banindo o uso do vil

    metal, instituindo a propriedade comum.

  • No te perdoaram a utopia de um Brasil sem violncia, sem prostituio fsica ou

    espiritual, sem corrupo. O genocdio perpetrado por um exrcito manipulado

    por polticos da mesma estirpe dos de hoje mataram o teu sonho de uma

    sociedade justa. Os poderosos do sculo XIX negaram a quinze mil seres

    humanos o direito a uma vida digna. Os poderosos do sculo XXI mantm o

    mesmo inquo sistema, que nega o direito educao a um tero da populao

    brasileira. Mas o que importa reter, caro Antnio, que, talvez pela tua origem

    de pedagogo, intuitivamente deste origem a algo que, na atualidade, poderamos

    chamar de comunidade de aprendizagem. Acolheste a heterogeneidade social e

    cultural, asseguraste incluso, criaste condies de satisfao de necessidades

    bsicas, concretizaste um projeto de desenvolvimento humano sustentvel.

    O teu sacrifcio no foi em vo. Decorrido quase um sculo aps a tua morte,

    Agostinho da Silva evocaria a tua memria: temos de reorganizar todo o sistema

    educacional com o esprito de descobrimento do sculo XIV e com o esprito que

    foi criativo em Canudos. No sculo XIV, a que Agostinho se reporta, o cabalista

    Rabi Iossef ben-Shalom de Barcelona sustentava, que, em toda transformao

    da realidade, em toda mudana da forma, ou toda vez que o status de uma coisa

    alterado, o abismo do nada cruzado e, por um fugaz momento mstico, torna-

    se visvel. Nada pode mudar sem entrar em contato com esta regio do Ser

    absoluto puro que os msticos chamam de Nada. E o meu amigo Fbio cr que

    aquilo que nos cabe nesta existncia a viagem de retorno a esta regio do Ser

    Absoluto e, com a sua graa, voltarmos transformados, para nos ajudarmos a

    transformar, a melhorar a humanidade.

    Nisso acreditaste, amigo Antnio. E, pelo teu exemplo, nos ajudas a acreditar.

    ...................................................

    Antnio Conselheiro

    Biografia:

  • So Paulo, Abril de 2013

    Amigo Alessandro,

    Mais de um sculo no foi tempo suficiente para dar corpo aos teus ideais, que

    eram os de Zola, de Louise Michel, os princpios de Francisco Ferrer. Cr, caro

    Alessandro, que, nesta segunda dcada do sculo XXI, o teu mestre catalo j

    no acabaria vilmente executado no morro de Montjuic, mas talvez os seus

    desgnios fossem frustrados por sutis modos de impedir que a humanizao da

    escola acontea.

    A Escola Libertria Germinal, que fundaste em 1902, na cidade de So Paulo,

    pouco mais durou do que a de Tolstoi, que o czar das Rssias mandou fechar.

    O sonho de uma escola elementar racionalista, para ambos os sexos

    ingloriamente foi encerrada em 1904. Apesar de veres malogrado o teu intento,

    foste o percursor dos percussores da Escola Nova. Mas, hoje, apenas emprestas

    o teu nome a uma rua de So Paulo, cujos moradores nem sequer sabem quem

    foste, ou o que fizeste. Depois de um breve inqurito de rua, apenas um

    transeunte ensaiou resposta: Alessandro? Isso nome de jogador de futebol,

    no ?

    Na Germinal de 1902, os pais no apenas participavam com uma pequena

    mensalidade, como intervinham na arrecadao de fundos e, de algum modo,

    na gesto do projeto. Decorrido mais de um sculo, os tericos continuam a

    produzir teses sobre a relao escola-famlia, mas as famlias continuam

    marginais vida nas escolas e so frgeis as estruturas de participao.

    Em Novembro de1904, lanavas um derradeiro apelo nas pginas do jornal O

    Amigo do Povo: A praticabilidade e a rapidez dos mtodos aplicados nesta

    escola souberam despertar tantos interesses e tantas simpatias que, hoje, um

    bom ncleo sempre crescente de homens de boa vontade assegura-lhe o

    material escolar para distribuir, gratuitamente, todo ano, aos alunos. Pensai no

    futuro de vossos filhos! Ao que parece, a populao do Bom Retiro no se

    preocupava com a educao dos seus filhos... Nem parece que se importe,

    quando, no sculo XXI, os submetem nefasta influncia de prticas sociais

    denunciadas ao longo de um sculo prdigo em prticas alternativas.

    Amigo Alessandro, existe um pacto de silncio em torno de iniciativas como a do

    Crculo Educativo Libertrio Germinal de So Paulo, da Universidade Popular de

  • Ensino Livre de So Paulo, da Escola Moderna de So Paulo, da Escola

    Moderna de Bauru, todas da primeira dcada do sculo XX. Quem ouviu falar da

    Escola Germinal do Cear, da Escola Social de Campinas, da Escola Operria

    da Vila Isabel e da Escola Moderna de Petrpolis? As faculdades de educao

    no informam aos futuros professores de Porto Alegre que, em 1906, havia por

    l uma escola com o nome de Elise Reclus...

    Eu sei que te custar compreender, mas, no Brasil de 2014, as escolas ostentam

    designaes com referncia a coronis, genocidas, ditadores e torcionrios.

    Uma professora deteve-se em frente sua nova escola. O que a impedia de

    entrar? A blindagem do porto? A catraca? O carrancudo guarda? No. Aquilo

    que a fez parar foi a leitura da placa, que indicava o nome da escola: o nome de

    quem havia torturado e ajudado a matar o seu pai, durante a ditadura. Querido

    Alessandro, ainda vivemos num pas onde escolas celebram a morte da

    memria, onde pesa a herana neocolonialista e outros males sociais,

    perpetuados pela velha escola, reprodutora de desigualdades, analfabetismos,

    excluso.

    Tal como o pas, a escola est imersa numa profunda crise tica e moral, ao

    servio da reproduo de uma sociedade doente. Sei que ser difcil acreditar,

    mas cr que eu li num muro de uma cidade brasileira este dstico: Colgio D.

    a seleo natural. No restam dvidas que, cento e dez anos decorridos sobre

    a tua tentativa de humanizar a escola, nos mantemos na proto-histria da escola.

    E da humanidade.

    ......................................

    Alessandro Cerchiari

    Biografia:

  • Teresina, Agosto de 2013

    Quem diria que um menino de oito anos poderia ser chefe, redator e tipgrafo de

    um jornal? A verdade que esse empreendimento familiar viria a constituir-se

    em ensaio para uma carreira de pedagogo-escritor. Da passagem pela Revista

    do Brasil organizao da coleo pedaggica Biblioteca de Educao, das

    obras sobre a Escola Nova publicao da Cartilha do Povo, o teu labor editorial

    foi intenso e influenciou a gerao do manifesto escolanovista. Os movimentos

    de renovao pedaggica de novecentos so tributrias das iniciativas

    reformadoras, que operaste no Cear. E a tua participao nas conferncias

    nacionais de educao de 1927 e 1928 teve impacto na redao do Manifesto

    dos Pioneiros da Educao Nova, de 1932.

    A tua vasta obra reflete preocupaes, que mantm atualidade, se relevarmos o

    seu carter tecnicista e a situarmos na poca em que a produziste. Os temas

    alfabetizao, universidade, avaliao, ou formao de professores mantm

    atualidade, sobretudo o teu apelo prtica de uma educao integral. No teu

    livro Introduo ao estudo da Escola Nova, afirmas: o tirocnio escolar no pode

    ser mais a simples aquisio de frmulas verbais e pequenas habilidades para

    serem demonstradas por ocasio dos exames. A escola deve preparar para a

    vida real, pela prpria vida. A mera repetio convencional de palavras tende a

    desaparecer. Tudo quanto for aceite no programa escolar precisa ser capaz de

    influir sobre a existncia social no sentido do aperfeioamento do homem. Ler,

    escrever e contar so simples meios. Estou ciente de que a maioria dos

    professores brasileiros nunca te leram.

    admirvel como, j em 1926, escrevias: a escola tradicional no serve o povo,

    e no o serve porque est montada para uma concepo social j vencida.

    Denunciavas a profunda separao existente entre a escola e a vida social.

    Talvez sem o soubesses, intuas a necessidade de desguetizar as escolas e as

    transformar um alfobre de comunidades. Antevias um novo ideal de educao,

    um aprender sem paredes, no convvio com os outros, um ainda mtico implodir

    da tradicional relao hierrquica entre mestre e discpulo, um aprender junto,

    na troca de experincias, de ideias e de sonhos, na perspectiva do

    desenvolvimento da autonomia do educando e dos educadores.

  • Caro Loureno, um fato me inquieta, quando observo a nfase que pes na

    aprendizagem, ainda que condicionada pela tendncia escolanovista da

    centrao no aluno. Na literatura especializada, teses e na diversidade de

    estudos sobre comunidades de aprendizagem, publicados quase cem anos aps

    a tua premonitria obra, abundam referncias a aula, sala de aula, ensino...

    Esses estudos referir-se-o a comunidades de aprendizagem, ou a

    comunidades de ensinagem?

    No dever ser a escola um lugar com potencial educativo, entre outros lugares

    da comunidade onde se aprende? Um nodo de uma rede de comunicao e de

    produo de conhecimento, quer seja real, quer seja virtual, includa num

    contexto cultural especfico? O que impede que assim seja? O medo?

    Surpreende-me que haja professores dizendo ter medo de mudana. Medo de

    qu? De algo que no existe? Medo eu tenho daquilo que existe, medo de uma

    escola que produz analfabetismo, ignorncia, excluso, infelicidade. O medo

    desses professores o desejo das comunidades.

    Que prevalea o desejo. De uma vez por todas, afirmemos que a aberrao que

    d pelo nome de escola deixou de ter utilidade social h mais de cem anos e

    hoje um obstculo ao desenvolvimento humano. Que necessrio conceber

    novas construes sociais, nas quais a educao acontea. Afirmar serem

    necessrias, urgentes e possveis, a sabedoria e a felicidade de todos os seres

    humanos.

    E por aqui me quedo, possudo pelos mesmos dilemas da tua gerao.

    Descansa na paz, que na terrena existncia nos negada.

    .........................................

    Loureno Filho

    Biografia:

  • Rio de Janeiro, Setembro de 2013

    Querida Nise, dizia o Sartre que h dois tipos de pessoas que dizem a verdade:

    as crianas e os loucos. E que os loucos so internados em hospcios, enquanto

    as crianas so educadas. Ambos esto guetizados: os loucos em hospcios, as

    crianas nas escolas. A mesma sorte dos velhos relegados em lares da terceira

    idade. A salutar criatividade da infncia cerceada pela louca velha escola. Mas

    a busca da verdade e da beleza so domnios em que nos consentido ficar

    crianas toda a vida, como nos dizia o sbio Einstein. E as pinturas dos

    considerados loucos, nos quais reconheceste genialidade, deram origem a um

    belo museu, so prova de que nem tudo est perdido. H alguns dias atrs,

    estive no teu Engenho de Dentro, na boa companhia do Vtor e do Ney

    Matogrosso. O Hotel da Loucura vai provando ser possvel, em imprevistos e

    improvveis lugares, retomar o rumo perdido da humanizao, concretizar a

    utopia.

    No discurso sobre educao, a palavra utopia , geralmente, sinnima de

    impossibilidade. Porm, utpico ser algo que indica uma direo, que requer

    intencionalidade e ao. Como diria Quintana, se as coisas so inatingveis...

    ora! / No motivo para no quer-las. Concretizar utopias recriar vnculos,

    rever e re-olhar, reelaborar as prticas reconfigura a metfora do Mito de Ssifo,

    o indito vivel freiriano. A nova educao, que emerge do sonho de todos ns,

    dever formar o cidado democrtico e participativo, sensvel e solidrio, fraterno

    e amoroso, o ser humano dotado de educao integral.

    Todas as teorias esto escritas. Todas as experimentaes, reformas e modas

    j foram ensaiadas. Por isso, importa renovar a denncia da guetizao da

    juventude, a par com o anncio da possibilidade de uma aprendizagem

    participativa e transformadora. Nunca ser demasiada a afirmao da

    possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendam a lidar com um

    conhecimento mutante, na busca da integrao das diversas dimenses do

    humano para garantir condies de se atribuir novos sentidos existncia e

    atender a necessidade do engajamento do sujeito na construo do futuro.

    O que se aprende dentro de um edifcio escolar, que no possa ser aprendido

    fora dos seus muros? O espao de aprender todo o espao, tanto o universo

    fsico como o virtual, a vizinhana fraterna.

  • Pois , querida Nise, por todo o Brasil surgem o que poderei chamar prottipos

    de comunidades de aprendizagem, a partir da escola, embora elas possam ter

    outras origens. Refiro-me a prticas de eco-sustentabilidade, de estmulo ao

    esprito inventivo e criao de solues novas, baseadas no princpio tico que

    nos diz que tudo o que for inovado o deva ser para benefcio coletivo.

    O modelo escolar no o nico modelo de educao e a educao dever ser

    pensada mais a partir das comunidades que serve, do que a partir da instituio,

    de modo a que os processos de aprendizagem tenham um papel transformador

    nas sociedades. A escola o equipamento social mais abundante, uma das

    maiores conquistas do povo, numa rea de escassos quilmetros quadrados,

    encontraremos meia dzia de escolas e apenas um hospital. Mas as

    comunidades de aprendizagem no dependem da existncia de um prdio

    escolar (a pedagogia predial, como o Lauro ironizava) e sim da utilizao de

    prdios e espaos da comunidade, nos quais, os estudantes possam, junto

    comunidade, aprender e exercer cidadania, desfrutando de seus direitos ou

    realizando seus deveres, para o bem de toda a comunidade. Que a escola no

    seja somente interface com a realidade, mas espao onde ocorrem atos

    contributivos do desfazer do abismo entre a realidade escolar e outras

    realidades.

    Tampouco a aprendizagem depende apenas do professor, pois necessria

    uma tribo inteira para educar uma criana. Ainda h quem pense que basta

    decorar matria e vomit-la numa prova, sem perceber que a maior parte dos

    contedos supostamente aprendidos (segundo pesquisas recentes) se esvai da

    memria, alguns meses aps a prova. Alis, uma prova quase nada prova. E na

    sigla IDEB (por seres pessoa sbia, no irias entender, se eu tentasse explicar

    o que seja...), que tanto preocupa professores, escolas e secretarias, e faz

    submeter os pobres alunos a simulados e intensos treinamentos, as letras ID

    no significam (como pretendem alguns) ndice de desenvolvimento, mas

    ndice de decoreba. Creio que esses loucos no diagnosticados no tero lido

    Paulo Freire na universidade. No seu curso de formao, talvez nenhum dos

    seus professores lhes tenham dito que ningum educa ningum, como to pouco

    ningum educa a si mesmo, e que os homens se educam em comunho,

    mediados pelo mundo.

  • Urge rever os conceitos de espao e tempo de aprendizagem, para que os

    paidagogos no mais conduzam as crianas da comunidade para a escola,

    mas as libertem da recluso num gueto escolar e as devolvam comunidade,

    na qual a escola constitui um nodo de uma rede de aprendizagem colaborativa.

    As escolas podero constituir-se em espaos de cultura, lugares onde os

    saberes eruditos se casam com os saberes populares, onde a transformao

    acontece na partilha de conhecimento produzido. Crianas, jovens e adultos

    podero utilizar essas escolas, sempre que desejarem, ou precisarem. Sem

    necessidade de entrar na escola no horrio-padro de aula, ou ter falta por

    chegar atrasado. Sem necessidade de perua e nibus (como j nos avisava o

    Ansio, h dcadas atrs), sem departamentos de transporte escolar, onde se

    esgotam recursos (em funcionrios administrativos, motoristas, seguranas,

    manuteno, combustvel, quando no se constitui em ninhos de corruptos e

    mfias...), se fora a criana a acordar de madrugada e penar longas viagens,

    para ouvir algumas horas de aula, onde quase nada aprende e atravs das quais,

    comea a colaborar com a desertificao das comunidades, que deveria ajudar

    a desenvolver.

    Isso expliquei, em pormenor, a muitos polticos e a gente que se diz professor.

    Disse-lhes que um novo modelo de educao no pode alicerar-se no velho e

    que quilo que novo no devem ser aplicados raciocnios dedutivos. Nada

    adiantou, querida Nise. A loucura benvola daqueles que esto no Engenho de

    Dentro em nada se compara loucura daqueles que, fora do hospcio, insistem

    em manter um sistema falido, gerador de ignorncia e infelicidade. Estes so os

    loucos de que nos falava Einstein. Vo delapidando o errio pblico em projetos,

    pactos, programas, capacitaes, consultorias, assessorias e outras inutilidades.

    A ltima pesquisa dada a conhecer aponta como dado que o desperdcio anual

    de cerca de 56 bilhes de reais. , ou no uma loucura?

    Quero crer, amiga Nise, que, depois de tempos sombrios, h de despontar a

    claridade que ponha fim loucura. Que ter chegado o tempo de, semelhana

    do Jung, o Brasil te encontrar.

    ..................................................

    Nise da Silveira

    Biografia:

  • Aracaj, Setembro de 2013

    Caro Manuel, sem que o soubesses, talvez tenhas sido o primeiro aluno

    especial, num tempo em que a Conferncia de Salamanca nem sequer era

    sonhada. Na tua prova para Lente da Universidade, ficaste aprovado na prova

    escrita, mas a tua gaguez impediu que fosses nomeado professor da

    Universidade. Na segunda tentativa, o auditrio apercebeu-se do teu problema

    na fala e, mais uma vez, no obtiveste a ctedra por gagueira. Mas, se a

    universidade de ento, to medieval como a de agora, perdeu um professor por

    gaguez, o Brasil ganhou um fantstico educador.

    Na pequena aldeia jesuta, alm da Serra do Mar, que viria a tornar-se a maior

    cidade da Amrica do Sul, desenvolveste uma intensa campanha contra a

    antropofagia existente entre os nativos. Dizias nas tuas cartas: andam todos em

    discrdia, comem-se uns aos outros. Combateste a explorao da populao

    local pelo homem branco. Bem mais difcil, suponho, seria a tua misso de

    combate explorao, se a tivesses de empreender nos dias de hoje...

    Foste autor do primeiro texto em prosa escrito no Brasil. O Padre Serafim

    Leite afirmou que o teu "Dilogo sobre a converso do gentio" foi a principal obra

    em prosa do sculo XVI brasileiro. A ti devemos o incio da histria do povo

    brasileiro, a descrio dos costumes. E duras crticas fizeste dos costumes,

    quando te apercebias de que at mesmo muitos religiosos incorriam nos

    mesmos erros dos leigos colonizadores: omnes commixti sunt inter gentes et

    didicerunt opera eorum. A maior parte dos homens tinha a conscincia pesada,

    por possuir escravos, ao que dizias, contra a razo. Apelavas ao teu rei, para

    que mandasse inquisidores ou comissrios, para libertar os escravos. Fica

    sabendo que a Inquisio no o fez, e semeou a morte em nome de Deus.

    Quanto ao rei, quando veio, no agiu contra a vil prtica.

    Os gentios que os jesutas protegeram acabaram dizimados pelas armas do

    homem branco e pelas maleitas que por toda a parte espalhou: entre a sfilis e a

    varola, milhes de vidas se perderam, muitas tribos foram exterminadas. Nos

    dias de hoje, nem seria preciso introduzir a gripe dentro da tribo dos Goitacazes,

    para que a sua cultura fosse extinta. Bastaria levar a energia eltrica, a televiso

    e a escola que ainda temos.

  • Mas basta de desgraas, amigo Manuel, passemos s boas notcias. Sculos

    aps a tua partida, o Brasil foi incapaz de levar s ltimas consequncias as

    nobres intenes de dois manifestos, consentindo a perenizao de uma

    tragdia educacional hoje traduzida em trinta milhes de analfabetos e numa

    profunda crise moral. Mas os educadores, no os emritos, como tu, mas da tua

    tmpera, foram de novo convocados. E partilharam o lanamento do terceiro

    manifesto. Foi, como algum disse, um ato de amor. E, confesso que, em

    muitos momentos da conferencia, a emoo me traiu, me deixou mudo. Ainda

    sob o efeito da CONANE, evoco versos cantados pela Mercedes: Cambia lo

    superficial / Cambia tambin lo profundo / Cambia el modo de pensar / Cambia

    todo en este mundo. No decurso da Conferncia, a diversidade dos projetos

    apresentados deu a entender que a velha escola parece estar a parir uma nova

    educao, embora acredite que as dores do parto venham a ser intensas,

    enquanto a tecnocracia e a burocracia continuarem a invadir domnios nos quais

    deveria prevalecer a pedagogia.

    O exemplo das Misses, que os teus irmos jesutas edificaram, renasce sob a

    forma do que poderemos chamar comunidades. As redues do sul, que a

    ambio dos homens destruiu, eram autossuficientes, dispunham de autonomia

    econmica e cultural e funcionavam num regime comunitrio. por a que vai a

    inteno de educadores, que adequam ao sculo XXI propostas de antanho.

    Embora a velha educao prevalea, travestida de nova, no discurso de

    economistas, jornalistas e outras criaturas desprovidas de conhecimento

    pedaggico, crentes de que as escolas podem ser geridas como so geridas as

    padarias. Vemo-los em eventos, onde vendem caro as besteiras que proferem,

    e na mdia, que os classifica de especialistas. A ignorncia pontifica numa

    revista brasileira de grande tiragem, onde sapateiros sobem acima das chinelas

    e, ao servio de ocultos interesses, insultam a memria de Freire, criticam uma

    progresso continuada, que nunca existiu, e apelam ao regresso a um passado

    de onde a educao brasileira nunca saiu. Talvez o tempo desses especialistas

    esteja a chegar ao fim, porque j o Fernando nos dizia que o sonho ver as

    formas invisveis / da distncia imprecisa, e, com sensveis / movimentos da

    esperana e da vontade, / buscar na linha fria do horizonte

    Poders chamar-me utpico, que no me ofendo. J h projetos em curso, que

    importa dar a conhecer e que provam a vitalidade da componente saudvel de

  • um sistema doente. Que mostram caminhos e apresentam reivindicaes: a

    dignidade de um estatuto de autonomia estipulado no artigo 15 da LDBEN; a

    prtica de uma educao integral; uma universidade que se distancie de prticas

    de formao incompatveis com necessidades educacionais do sculo XXI; o

    reconhecimento pblico dos profissionais da educao, traduzido tambm em

    salrios dignos, altura de sua importncia social; o fim do desperdcio

    decorrente de ms polticas pblicas; a substituio da reprovao e da

    aprovao automtica pela prtica de uma avaliao capaz de permitir que o

    aprendizado caminhe junto com o desenvolvimento do pensar, a formao do

    carter e o exerccio da cidadania, entre outras.

    Caro Manuel, lo que cambi ayer tendr que cambiar maana. O Brasil dispe

    de produo cientfica e de prticas que provam a possibilidade de uma escola

    que a todos acolha e a todos d condies de realizao pessoal e social, base

    da construo de uma sociedade solidria, justa e sustentvel. E, num pas onde

    o tempo da educao talvez tenha chegado, temos tudo aquilo que preciso:

    gente, projetos, esperana.

    .............................................

    Manuel da Nbrega

    Biografia:

  • Palmas, Outubro de 2013

    Foi deveras difcil encontrar a tua obra nas bibliotecas das faculdades de

    educao. Depois de a estudarmos, no se pode negar a importncia da tua

    obra, mas nem em sebos ela aparece... Ests esquecido. Pouco se sabe sobre

    trabalho realizado na Escola Normal da Praa e difcil encontrar um livro teu

    nas melhores bibliotecas de So Paulo. Apenas encontrei trs. Mas a sua leitura

    foi suficiente para poder concluir que estiveste muito frente do teu tempo.

    Aprecio a tua coragem. Quando viste suprimidas liberdades e garantias

    individuais recusaste ler nas tuas aulas o texto da Carta de 1937 e participaste

    nas manifestaes contra o regime. Foste sumariamente demitido e exilado.

    No comeo da Repblica a educao era um apndice do Ministrio dos Correios

    e Telgrafos e tu no hesitavas na crtica de tal situao: Os propagandistas da

    repblica se contentaram com bem pouco. Montaram uma esplndida e faustosa

    mquina, mas esqueceram de cuidar do motor inicial, de onde lhe poderia vir a

    energia de vida. Hoje, temos uma fachada decorativa da democracia o hoje

    a que aludias era o de muitos anos atrs? O Brasil, repleto de riquezas latentes,

    s ser realmente uma nao poderosa e triunfante, se os seus governos

    primarem no propsito, decisivo e obstinado, de alfabetizar o seu povo,

    acabrunhado e murcho, numa indiferena que apavora. O monstro canceroso,

    que hoje desviriliza o Brasil, a ignorncia crassa do povo, o analfabetismo que

    reina do norte ao sul do pas. surpreendente a tua lucidez. Os teus escritos

    sobre analfabetismo datam de 1918! E a tua viso de futuro viria a culminar na

    criao das "escolas de alfabetizao". Tinhas perfeita conscincia de que

    governo democrtico e ignorncia do povo so duas coisas que se chocam, se

    repulsam, se destroem. Pretendias erradicar o que consideravas o mais grave

    problema educacional do pas e que continua sendo: o analfabetismo. Sabias

    que o mtodo mais do que uma questo de organizao do ensino, sendo a

    expresso de mudanas culturais profundas. E criticavas a alfabetizao que

    comeava pelas letras, depois pelas slabas, em seguida pelas palavras, porque

    comete o crime de alhear a criana, desde cedo, das realidades que a encanta.

    Fica sabendo, caro Sampaio: a escola, que ainda temos, alfabetiza turmas,

    ensinando a todos do mesmo modo, como se de um s ser humano se tratasse,

    recorrendo, predominantemente, metodologia por ti criticada, produzindo trinta

  • milhes de analfabetos. No teu livro O que o cidado deve saber, publicado em

    1919, realavas as qualidades e a viso de outros brasileiros, como Rui Barbosa,

    para sublinhar a necessidade de educar no exerccio de uma cidadania

    responsvel. To longe ainda estamos desse desiderato! Influenciado pela

    Escola Nova, procuravas o equilbrio na relao pedaggica, para que, sem

    considerar o aluno como ser passivo, centrar a aprendizagem na relao, em

    diferentes contextos. Para o conseguir, tentaste fundar uma faculdade de

    educao, para uma diferente formao de professores, mas o projeto no saiu

    do papel. Mais uma oportunidade perdida. E foram muitas aquelas que o Brasil

    perdeu, ao longo do sculo em que viveste. A educao parou no tempo. De tal

    modo que, na atualidade, j preciso ir mais alm. Urge rever os conceitos de

    espao e tempo de aprendizagem.

    No h nada mais a fazer, alm de educar civicamente o povo para o futuro,

    disseste. isso que muitos educadores j vo fazendo. No para, ao modo

    assistencialista, mas aprendendo com... Quando algum aprende a danar, no

    adianta nada o mestre danar por ele", como tambm escreveste no teu livro

    Educao.

    As questes, que animavam os debates sobre a educao nas primeiras

    dcadas de 1900, so as mesmas de hoje. O projeto de sociedade, que

    defendias, o mesmo a que os educadores conscientes de hoje aspiram.

    Fazem-no revelia da poltica comum, em comunidades aprendentes, muitas

    delas produzindo consensos na internet (na prxima carta, te falarei desta e de

    outras novidades) atravs de um Manifesto, que envio anexo a esta missiva.

    bem difcil mudar um paradigma enraizado nas profundezas do inconsciente,

    no sujeito a questionamento. Mas um povo que dispe de educadores criativos

    j funde novas tecnologias com tecnologias sociais, produz comunidades fsicas

    e digitais, consciente de que, para novos tempos, devero ser concebidas novas

    construes sociais, nas quais no restem quaisquer vestgios de rano da velha

    escola.

    ................................................

    Sampaio Dria

    Biografia:

  • Boavista, Outubro de 2013

    Caro Ansio,

    Tenho notcias frescas para te dar. Na tua querida Universidade de Braslia, um

    professor fez um depoimento, que refora a suspeita de que foste assassinado

    pelo regime militar. Contigo poderia confirmar essa hiptese, se dotes

    medinicos eu possusse, mas deverei contentar-me com depoimentos dos

    vivos. E nem ser a morte o que suscita esta epstola, mas a inteno de que

    no te matem duas vezes, matando a memria que ainda resta de ti. Mistrio e

    silncio encobriram as circunstncias da tua morte. Ao que consta, foste

    encontrado em po