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Jorge Dias; Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa -A única constante de um povo é o seu fundo temperamental, e não os múltiplos aspetos que a cultura reveste, porque é ele (o fundo temperamental) que os seleciona e transforma de acordo com a sua sensibilidade especifica. - No caso especial português, a cultura superior não é também um somatório das diferentes culturas regionais, mas uma coisa nova em que elas estão contidas, embora transformadas por uma espécie de fenómeno de sublimação espiritual. Enquanto a cultura local tem carácter quase ecológico e resulta do conflito entre a vontade do homem, o ambiente e a tradição, a cultura superior transpõe esse conflito para o plano espiritual, porque o elemento ambiente natural é substituído pela história. - A cultura portuguesa tem carácter essencialmente expansivo, determinado em parte por uma situação geográfica que lhe conferiu a missão de estreitar os laços entre os continentes e os homens. (..) a expansão portuguesa ao contrario da espanhola é bem mais marítima e exploradora do que conquistadora. - A força atractiva do Atlântico, esse grande mar povoado de tempestades e de mistérios, foi a alma da Nação e foi com ele que se escreveu a historia de Portugal. - Os quatro pilares do génio criador português: Os Lusíadas, os Jerónimos, o Políptico de Nuno 1

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Jorge Dias; Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa

Jorge Dias; Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa

-A nica constante de um povo o seu fundo temperamental, e no os mltiplos aspetos que a cultura reveste, porque ele (o fundo temperamental) que os seleciona e transforma de acordo com a sua sensibilidade especifica.- No caso especial portugus, a cultura superior no tambm um somatrio das diferentes culturas regionais, mas uma coisa nova em que elas esto contidas, embora transformadas por uma espcie de fenmeno de sublimao espiritual. Enquanto a cultura local tem carcter quase ecolgico e resulta do conflito entre a vontade do homem, o ambiente e a tradio, a cultura superior transpe esse conflito para o plano espiritual, porque o elemento ambiente natural substitudo pela histria.

- A cultura portuguesa tem carcter essencialmente expansivo, determinado em parte por uma situao geogrfica que lhe conferiu a misso de estreitar os laos entre os continentes e os homens. (..) a expanso portuguesa ao contrario da espanhola bem mais martima e exploradora do que conquistadora.

- A fora atractiva do Atlntico, esse grande mar povoado de tempestades e de mistrios, foi a alma da Nao e foi com ele que se escreveu a historia de Portugal.

- Os quatro pilares do gnio criador portugus: Os Lusadas, os Jernimos, o Polptico de Nuno Gonalves e os Tentos de Manuel Coelho, so quatro formas de expresso verdadeiramente superiores e originais, dum povo que durante mais de um sculo esquadrinhou todos os mares e se extasiou perante as naturezas mais variadas e exticas.

- Da mesma maneira que Portugal representa o ponto de encontro natural das linhas de navegao entre a Europa, a frica e a Amrica, a sua populao constituda pela fuso de elementos tnicos do Norte e do Sul.

- Foram mais importantes as invases Celtas, sobretudo a partir do sculo VI a.C. Estes povos, senhores da tcnica de ferro e da superioridade militar e econmica que daquela derivava, acabaram por se fundir com a raa autctone. Os Lusitanos que resultaram desta fuso, eram um povo rude, sbrio e espantosamente resistente e aguerrido.

- O Imprio Romano acabou por dominar inteiramente e, durante uns sculos reinou a paz romana.

- Quando os povos germnicos, aproveitando-se da fraqueza do velho imprio, comea, a invadi-lo em bandos sucessivos, modifica-se novamente a estrutura tnica e cultural das populaes que correspondem ao Portugal actual.

- nos comeos do sculo V os servos fixam-se na actual provncia de Entre Douro e Minho, e trouxeram consigo as mulheres e filhos e os usos e costumes e as tcnicas agrria do seu pais.

- Os Visigodos acabam por se assenhorar de toda a Pennsula, durante o sculo VI, formando um grande reino cristo. Porm logo nos princpios do sculo VIII, os rabes, movimentados por um vivo impulso religioso, lanam-se na Pennsula e conquistam-na com rapidez vertiginosa.

- Ao fim de alguns anos, o ncleo de resistncia crist, formado nas Astrias, comea a repelir o inimigo.

- Portugal nasce desta luta contra os Mouros. uma guerra politica e religiosa.

- Em 1249 acabava a luta porque no havia mais terra a conquistar, tinha-se chegado ao extremo sul da faixa portuguesa. J se tinha repovoado grande parte dos territrios e j se erguiam as Ss de Braga, Porto, Coimbra, Lisboa e vora. Os reis que se seguem cuidam das letras, da justia, e promovem medidas de fomento agrcola e de alcance martimo. Em 1290 fundam-se os Estudos Gerais, o embrio da Universidade portuguesa. Portugal exportava cereais.

- Os espanhis comeavam a cobiar Portugal. Mas a vitoria em Aljubarrota parece ter despertado novas energias e em 1415 os Portugueses conquistam Ceuta aos Mouros. Era o comeo da expanso martima.

- Em 1418-19 descobre-se a Madeira, depois os Aores e depois explora-se a costa africana com o objectivo de chegar ndia.

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- O portugus um misto de sonhador e de homem de aco. A actividade portuguesa no tem razes na vontade fria, mas alimenta-se da imaginao, do sonho, porque o portugus mais idealista, emotivo e imaginativo do que o homem de reflexo.

- O portugus sobretudo, profundamente humano, sensvel, amoroso e bondoso, sem ser fraco. No gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas ferido no seu orgulho pode ser violento e cruel.

- uma enorme capacidade de adaptao a todas as coisas, ideias e seres, sem que isso implique a perda de carcter.

- falta-lhe a exuberncia e a alegria espontnea e ruidosa dos povos mediterrneos. mais inibido que os outros meridionais pelo grande sentimento do ridculo e medo da opinio alheia.

- O Portugus no tem muito humor, mas um forte esprito critico e trocista e uma ironia pungente.

- A mentalidade complexa que resulta da combinao da factores diferentes e, s vezes, opostos d lugar a um estado de alma sui generis que o Portugus denomina saudade. - A saudade uma vezes um sentimento potico de fundo amoroso ou religioso, que pode tomar a forma pantesta de dissoluo da natureza, ou se compraz na repetio obstinada das mesma imagens ou sentimentos. Outras vezes a nsia permanente da distancia, de outros mundos, de outras vidas. A saudade ento a fora activa, a obstinao que leva realizao das maiores empresas; a saudade fustica. Porm, nas pocas de abatimento e de desgraa, a saudade torna uma forma especial, em que o esprito se alimenta morbidamente das glorias passadas e cai no fatalismo de tipo oriental, que tem como expresso magnifica o fado.

- Nas pocas extraordinrias, quando acontecimentos histricos puseram prova o valor do povo, ou lhe abriram perspetivas novas, que o encheram de esperana, ento brotaram por si naturalmente, as melhores obras do seu gnio. Porm, nos perodos de estagnamento nasce a apatia do esprito, a relutncia contra a mediania, a critica acerba contra o que no est quela altura a que se aspira, ou cai-se na saudade negativa, espcie de profunda melancolia.

- Em todas as pocas se verifica o temperamento expansivo e dinmico do Portugus. Sem ir cultura dolmnica, desde as pocas mais remotas, nos tempos em que a actividade era a guerra, os Lusitanos foram a expresso mais acabada da luta permanente e sem trguas, que se prolongou pela Idade Mdia nas lutas da Reconquista contra os Mouros, para se transformar, finalmente, nas viagens de descobrimentos e de colonizao.

- Nunca soubemos separar o sonho da realidade, ao contrario do Ingls que procede friamente, orientado pelo seu sentido pratico. A maior desgraa da nossa histria, a infeliz campanha de Alccer Quibir em que desapareceu D. Sebastio com a elite militar do seu tempo, no passou de um grande sonho vivido, de trgicas consequncias.

- O desprezo pelo mesquinho e o gosto pela ostentao e pelo luxo nunca nos permitiram o aproveitamento eficaz das grandes fontes de riqueza exploradas.

- Soubemos traficar mas faltou-nos o sentido capitalista.

- Gil Vicente descreve os fidalgos cobertos de rendas e brocados, com a sua corte de lacaios, mas sem dinheiro para comer. O gosto pelas jias, pela pompa, pelo luxo, uma constante da nossa cultura.

- Ao contrario dos povos burgueses do Norte e Centro da Europa, o nosso luxo no um requinte que resulte do conforto, -lhe quase que oposto; mero produto da imaginao e no dos sentidos. Ainda hoje temos as camas mais duras da Europa, e as ruas esto repletas de automveis de luxo. As casas ricas raramente tm aquecimento, ou sala de estar, mas tm salas de visitas ou at sales de baile cheios de porcelanas da ndia e da China. As pessoas modestas, cujas casas so despidas de conforto, vestem-se com elegncia e luxo. Um pequeno empregado do comercio faz mais figura na rua do que um intelectual alemo ou suo, de boa famlia e com recursos. Qualquer empregadita que mal ganha para se alimentar, anda vestida impecavelmente e pela ultima moda.

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- O sentimento amoroso muito forte em todas as classes sociais e, fora o aspecto grosseiro, que se compraz em anedotas erticas, so inmeros os exemplos de grande e profunda dedicao e sacrifcio. Como exemplos podemos referir a paixo de D. Pedro e Ins de Castro que nem a morte conseguiu extinguir, ou a poesia mediaval to sentida e original, a lrica de Cames esse grande amoroso, as cartas de Soror Mariana Alcoforado, os sonetos de Florbela Espanca, as poesias de Joo de Deus.

- O Portugus no gosta de ver sofrer e desagradam-lhe os fins demasiado trgicos. Da talvez a pobreza do gnero dramtico da nossa literatura e as solues felizes de Gil Vicente.

- Em Portugal no existe pena de morte, certamente como consequncia desta maneira de ser.

- Quando ferem na sua sensibilidade e se sente ultrajado, ou perante um ponto de honra, capaz de reaces de extraordinria violncia. So testemunho disso os jornais dirios, que relatam rixas tremendas entre amigos e vizinhos. ... Mas tirando o crime passional, so raros os caso de homicdio perverso. No se conhecem vampiros, como no Norte da Europa, nem os assassinos que cortam as mulheres aos pedaos e os queimam ou deitam aos rios como em outros pases sucede.

- A prpria religio tem o mesmo cunho humano, acolhedor e tranquilo. A igreja portuguesa, ora caiada e sorridente entre ramadas, ora singela e sbria na pureza do granito, simplesmente a casa do senhor. sempre um templo acolhedor, habitados por santos bons e humanos. No se vem os Cristos lvidos e torturados de Espanha. A sensibilidade portuguesa no suporta essa viso trgica e dolorosa.

- o esprito portugus avesso s grandes abstraces, s grandes ideias que ultrapassam o sentido humano. A prova disso esta na falta de grandes filsofos e de grandes msticos. Nem compartilha do racionalismo mediterrnico, da luminosidade greco-latina, nem da abstraco francesa, de grandes linhas puras, nem do arrebatamento mstico espanhol. Em vez das grandes catedrais gticas da Frana e da Espanha, ou dos templos clssicos da Renascena italiana, que no sentia, o Portugus acabou por criar um estilo prprio, onde a sua religiosidade tpica melhor se exprime: o manuelino.

- O Atlntico atrara sempre com a sua magia um certo fundo sonhador e vago das populaes costeiras, enquanto as do interior se agarravam fortemente solidez do solo conquistado.

- O profundo sentimento da natureza, j presente na Lrica Mediaval e na Menina e Moa, robustece-se em contacto com os grandes horizontes abertos, com as tempestades e com os mundos exticos, povoados de animais e de gentes estranhas. Os Lusadas, que entusiasmaram Humboldt pelo seu enorme encanto ao descrever os fenmenos martimos, so o grande poema do mar. Sente-se nele o deslumbramento do poeta e de toda a gerao que o precedeu.

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- Os Jernimos surgem como mxima expresso arquitectnica da religiosidade portuguesa. A grande novidade era a decorao naturalista, inspirada em motivos do mar e na exuberncia da vegetao extica. O antigo sentimento da natureza, que s encontra at ento expresso potica, transporta-se agora para a forma plstica. (..) Porm se na decorao arquitectnica h novidade portuguesa, a sensibilidade portuguesa manteve-se presa ao atavismo romntico, na solidez das propores e no arco redondo.

- Uma das caractersticas mais importantes da saudade precisamente essa fixidez da imaginao, que, por intensidade, se pode tornar em ideia motora e conduzir aco.

- Detesta o impessoal e o abstracto e pe acima de tudo as relaes humanas. O seu fundo humano torna-o extraordinariamente solidrio com os vizinhos, e em poucas regies da Europa existir ainda vivo com em Portugal o esprito comunitrio e de auxilio mtuo.

- Da mesma maneira o funcionrio, at quando veste uma farda e obriga a cumprir a lei, tem idntica dificuldade em representar um papel impessoal. Esta tpica feio portuguesa d origem a uma das burocracias mais rgidas que at hoje conheci na Europa. O funcionrio menor agarra-se desesperadamente letra da lei, sem tentar compreender-lhe o esprito. Qualquer caso menos corrente j no o quer resolver e atira-o para o seu superior hierrquico. Sente-se pouco vontade metido naquela camisa de foras, que o impede de ser ele prprio e de se apoiar no seu instinto humano. A prpria tristeza e m vontade que em geral, traz estampadas no rosto devem ser a consequncia do violento esforo de adaptao a funes para as quais no sente vocao. Esta tendncia a sobrepor a simpatia humana s prescries gerais da lei fez com que durante muito tempo a vida social e publica girasse volta do empenho ou do pedido de qualquer amigo. Pedia-se para passar nos exames, para ficar livre do servio militar, para conseguir um emprego, para ganhar uma questo, enfim, para todas as dificuldades da vida.

- a sobreposio dos valores humanos ao lucro e ao utilitrio que explica muitos dos captulos da nossa historia e que deixa compreender muitas formas da sociedade actual. Tal mentalidade a negao do esprito capitalista.

- O portugus gosta de fazer projectos vagos, castelos no ar que no pensa realizar. Mas no seu intimo alberga uma certa esperana de que as coisas aconteam milagrosamente. Esta forte crena no milagre, cujo aspecto mais grosseiro a enorme popularidade do jogo da lotaria, chega a tomar aspectos curiosos, dos quais sobressai o sebastianismo.

- A imaginao sonhadora, a antipatia pela limitao que a razo impe e a crena milagreira levam-no com frequncia a situaes perigosas, de que se salva pela invulgar capacidade de improvisao de que dotado.

- ainda essa enorme capacidade de adaptao uma das constantes da alma portuguesa. O portugus adapta-se a climas, a profisses, a culturas, a idiomas e a gentes de maneira verdadeiramente excepcional. O portugus sempre foi poliglota.

- porm curioso que o Portugus se adapta a outro ambiente cultural to bem que parece ter sido assimilado; mas quando volta a Portugal e em pouco tempo j no se distingue dos outros.

- De facto a ironia, muito mais do que o humor, tem fundas razes na cultura portuguesa; desde as cantigas de escrnio e maldizer da Idade Mdia at ironia de Ea de Queiroz h toda uma gama de coloridos, Temos a ironia benvola de Gil Vicente, a mordente de Nicolau Tolentino e de Bocage e a ironia pungente ou sarcstica de Fialho e de Camilo. Mas o prprio povo, com as sua certeiras alcunhas e apelidos, ou com os apodos tpicos, ou com os cantares ao desafio, etc., mostra a terrvel arma de que dotado. Por isso, a sensibilidade, que um dos grandes elementos positivos da mentalidade portuguesa, tambm um dos grandes elementos da sua fraqueza. O sentimento do ridculo e o medo da opinio alheia abafam nele muitos impulsos generosos, deformam a sua naturalidade e impedem-no de se entregar livremente aos prazeres simples e alegria espontnea.

- um povo paradoxal e difcil de governar. Os seus defeitos podem ser as sua virtudes e as virtudes os seus defeitos, conforme a gide do momento.

MARTINS, Guilherme D 'Oliveira; Cultura: Interrogao Essencial

- O velho do Restelo um smbolo das duvidas de quem fica e de quem chama a ateno dos que partem para a necessidade de haver quem cuide do pas que fica. O velho no constitui, assim, uma referencia negativa. Cames, que escreve mais de 50 anos depois da partida de Gama, sente necessidade de dar fora a uma voz critica de quem fica um velho de aspecto venerando com o saber todo de experiencias feito.

- Fernando Pessoa fez toda a sua reflexo em torno de uma trilogia misteriosa e omnipresente a relao com o passado, a relao com presente, nacional e estrangeiro, e a preocupao com o futuro. ningum sabe que coisa quer/ Ningum conhece que alma tem/ Nem o que mal nem o que bem. - l-se em Nevoeiro, da Mensagem.

- O mito sebastianista tem todos esse ingredientes o excesso das iluses de uma imaginao retrospectiva, fora do tempo, com razes nos velhos romances de cavalaria, que tanto entusiasmaram o Cavaleiro da Triste Figura, e a ausncia de uma imaginao prospectiva , pertinente, adequada, eficiente, apta a distinguir um sonho ou uma loucura de uma empresa de sucesso.

- Como portugus tpico, Antnio Alada Batista, nos seus Elementos para Uma Primeira Aproximao da Saudade, disse no saber se a minha profisso gloriosa ou se mesquinha, pois vrias so as bolsas de valores que cotejam as vrias funes do homem. A palavra saudade indispensvel minha profisso de ser portugus E que a saudade se no essa melancolia da distancia e da ausncia distancia e ausncia de lugares e de tempos, de ontem e de amanh? ... como diria D. Francisco Manuel de Melo, o destino de um povo martimo, a errncia e a separao do mar e do tempo favorecem essa nostalgia sem verdadeiro objecto, que D. Duarte qualificara de humor melanclico. um mal de que se gosta e um bem que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas no que formalmente se extinga: porque se sem maioria se acaba a saudade, certo que o amor e o desejo se acabaro primeiro escreve D Francisco Manuel, falando de saudades, pelos modos que , sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente . E Eduardo Loureno lembra lapidarmente esse gosto de mel e de lgrimas que a palavra-mito dos portugueses sugere. Garrett diria gosto amargo de infelizes/ delicioso pungir de acerbo espinho . E se houver duvidas, ai fica o misterioso sinal com saudade no recuperamos apenas o passado como paraso inventamo-lo . E assim, com todas as foras do nosso imaginrio, as mesmas que levam ao culto das almas do Purgatrio, recusamos o nada. Mas onde est o tudo possvel?

Fernando Namora e V.M. Godinho A Pretexto de Cames

- A vida das pessoas sensveis um misto de febres e amarguras, de ansiedades que nunca encontram definitiva resposta, e ns Portugueses, possumos uma vulnervel e ao mesmo tempo rija sensibilidade a sensibilidade complexa que habitualmente caracteriza os que so tidos por simples.

- ... no fizemos apenas a nossa historia; fomos dos povos que fizeram tambm a historia do mundo.(...) para ns, Ptria no foi um reduto insulado, nem uma alienao, nem uma mitologia demaggica sujeita a duradouras e malignas depravaes.

- A nossa Renascena foi uma vontade de agir, que nos levou ao encontro do desconhecido e com esse pendor nos marcou para o resto da historia, foi quase a vertigem de dar outra dimenso apetncia dos povos para se interpenetrarem.

- Com efeito, essa capacidade de sonho e por assim dizer de desmesura e ao mesmo tempo de reduzir o sonho a coisas bem terrenas como o comercio, o oiro, a conquista lucrativa, essa estranha e inextricvel coabitao da generosidade e da cobia, do desprendimento e do sabor da coisa possuda, da impetuosidade arrojada com o sbito desencanto, da crena que no mede obstculos com a ressaca derrotista, esse ter asas e, por fim, se bastar com o msero cho tudo isso o nosso molde, a expresso dos nossos contra-sensos e , sem duvida, uma constante que no podemos ignorar sempre que a nossa identidade precise de ser redefinida.

- esta dualidade, ou se quiserem, esta dialctica do nosso modo de ser , alias bem manifesta nOs Lusadas: por um lado, neles se exalta o valor dos portugueses e a sua febre de expanso, que como as legendrias peregrinaes colectivas, pode transformar a debilidade em fora e a apatia em fervor; por outro, a isto se contrape a figura do Velho do Restelo de experiencia feito, a condenar o aventurerismo mascarado de audcia e as fugas ao cho ptrio.

- Em quase todos os perodos da historia se ouviram vozes carpindo um Portugal preguioso e utpico, vivendo acima dos seus meios e nada fazendo para os acrescentar, entrando ciclicamente numa lenta decomposio; mas nesses mesmo perodos se viu que o homem portugus no se submetia a esse fatalismo feito de renuncias e apatias. Ia criar longe o que aparentemente desistira de criar perto, j que a ambincia derrotista o empurrava para a incerta aventura...

- Uma Nao existe como uma totalidade cultural e nenhum decreto, nenhuma violncia, nenhum naufrgio a podem modificar. Aquilo que lhe imposto apenas atinge a epiderme, nem sequer lhe aflora os vasos por onde circula a vida. Por isso o grego Theodorakis poderia lanar este repto aos que, pela tirania, desvirtuavam a sua Ptria: tendes tanques. Eu tenho canes. Sou mais forte do que vs, porque o tempo gasta os tanques, ao passo que refora as canes.

- Nome: Portugal. Cale, um porto no rio Douro, abrir para o mar, na juno da estrada que os Romanos construram, de Lisboa, por Santarm, Coimbra, at Braga. Desde logo, esta singularidade de um Pais, de uma Nao, que no tem o nome de um povo ou de uma regio, mas tem no seu prprio nome a indicao do mar, que ser o seu destino. Porto. Portugal , antes do mais, um porto, para onde desceram os serranos e de a se espalharam atravs de todo o mundo.

- ... no um povo de guerreiros. um povo que faz a guerra, quando indispensvel faze-la. Povo, sobretudo de mercadores, porque mesmo o homem da enxada que vai para o Brasil, para a Venezuela ou para o Canad, pretende, acima de tudo, abrir um comercio. Ns no fomos um povo de grandes capitalistas, nunca dispusemos de meios financeiros considerveis, por isso nos integrarmos melhor naquelas civilizaes que j eram adiantadas economicamente e j estavam organizadas politica e socialmente. Mas acima de tudo um ganhar que no desdenha, de for preciso, o roubo, a pirataria, a aventura, tambm representada nessa obra extraordinria que a peregrinao de Ferno Mendes Pinto.

- A cultura , antes de mais, o trabalho das mo e do crebro dos homens a rasgar a terra e a faze-la produzir, para que os seus filhos possam viver. Eduardo Loureno Ns e a Europa

Identidade e Memoria, Vence-Durhan 1984

- Podia, pois, concluir-se que , em sentido rigoroso, no h nunca questo alguma de identidade. Seria uma concluso apressada. Mais exacto afirmar que para o individuo, o grupo, a nao, a questo da identidade permanente e se confunde com a da sua mera existncia, a qual no e nunca um puro dado, adquirido de uma vez por todas, mas ao acto de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projecto de ser aquilo que se . - Sujeito, quer dizer, memoria, reactualizao incessante do que fomos ontem em funo do que somos hoje ou queremos ser amanh. A esse titulo, tambm a identidade, mesmo a do individuo, no mero dado mas construo e inveno de si. Quer dizer, ao mesmo tempo, a possibilidade ou ameaa de des-construo, o que, em termos psicoanaliticos, se pode considerar como perda ou crise de identidade.

- Nem o estatuto lingustico, nem o estatuto cultural, nem a situao histrico-politica so, para portugueses, problema com qualquer relevo. Deve ser mesmo difcil encontrar um pais to centrado, to concentrado, to bem definido em si mesmo como Portugal. O nosso problema, como o escrevi noutra ocasio, no problema de identidade, se por isso se entende a questo acerca do nosso estatuto nacional, ou preocupao com o sentido e teor da aderncia profunda com que nos sentimos e sabemos portugueses, gente inscrita num certo espao fsico e cultural, mas de hipersensibilidade, de quase mrbida fixao na contemplao e no gozo da diferena que nos caracteriza ou ns imaginamos tal no contexto dos outros povos, naes e culturas.

- Portugal no espera o Messias, o Messias o seu prprio passado, convertido na mais consistente e obsessiva referencia do seu presente, podendo substituir-se-lhe nos momentos de maior duvida sobre si ou constituindo at o horizonte mtico do seu futuro.

- Nenhum desmentido brutal do presente, nenhuma conscincia da nossa pouca influencia ou importncia politica, econmica e mesmo cultural no mundo contemporneo, nem mesmo a recente experiencia da amputao do seu espao imperial, conseguiram alterar esse dado fundamental da autoconsciencia nacional, essa espcie de bilhete de identidade intimo que cada um de ns traz no bolso interior da sua alma: descobrimos e baptizamos a Terra, de Cabo verde ndia, do estreito de Magalhes s Filipinas. essa existncia imaginria, com o seu lado j delirante expresso nos Lusadas, que mais do que tudo nos explica que o Portugal moderno e em particular o do ps 25 de Abril tenha vivido a sua mais que modesta existncia e mesmo a sua factual mutilao, sem traumatismo histrico e cultural notrios. O que ns somos, por ter sido, no nos parece poder ser dissolvido ou realmente ameaado por perigo algum vindo do exterior.

- Podia pensar-se que, tal como a ideologia colonizadora e colonialista do Antigo Regime o afirmava, esse imprio fazia parte da nossa definio, que era a nossa autentica imagem de marca, alem de ser, economicamente, espao protegido e Portugal, atravs dele, o pais colonizador por excelncia, primeiro e ultimo da serie. Todavia, aps um processo doloroso e absurdo, essas colnias tornaram-se independentes, sem que qualquer fenmeno que , de longe ou de perto, se assemelhe a um traumatismo da imagem nacional se tenha produzido entre ns.

- Portugal um tecido histrico-social de malha cerrada, uma ladeia de todos , uma parentela com oito ou mais sculos de coabitao, uma arvore genealgica comum que no consente, ou no consente mal , no seu seio, a diferenciao que se volve indiferena, a irrupo de um viver individual autnomo e autonomizado que s o nascimento e a proliferao grandiosas da cidade burguesa instituram.

- Quando se nasce numa comunidade deste tipo, o perigo no o de perder a identidade, o de confundir a particularidade dela com a universalidade, o de no ser capaz, seno superfcie, de se abrir e dialogar com o outro, ode nos imaginarmos narcisicamente o centro do mundo, criando assim uma espcie de universo de referencias autistas onde naufraga o nosso sentimento da realidade e da complexidade do mundo.

- Talvez com outro profundidade, Fernando Pessoa, que nos via ao mesmo tempo de dentro e de fora e que projectava sobre Portugal o seu prprio mito da despersonalizao, atribui aos portugueses, como caracterstica, se assim se pode dizer, uma espcie de sublime vocao de no-identidade. Aptos a ser tudo e todos, no seriamos ningum, no teramos, no fundo, ns que nos imaginamos to particulares, a autentica personalidade. Um portugus que s Portugus no Portugus

Eduardo Loureno Ns e a Europa

Identidade e imagem

- Qualquer que seja a explicao mais plausvel para a nossa autonomia, afinal uma entre outras, enquanto a Espanha era um puzzle de naes crists e muulmanas Leo, Castela, Navarra, Arago, Catalunha, Granada o destino portugus define-se quando Portugal abandona os eu projecto ibrico ou o integra no mais vasto e imprevisvel das descobertas martimas e da colonizao.

- Ao contrario da Espanha que mltipla na sua relao consigo mesma, Portugal , por assim dizer, excessivamente uno. A esse titulo, como noutra ocasio o escrevi, Portugal, o de ontem e ainda mais o de belo de hoje, no teve nunca, nem tem, problemas de identidade. Se tem problemas dessa ordem, quer dizer de interrogao ou duvida, sobre o seu estatuto enquanto povo autnomo, inconfundvel sero antes problemas de superioridade.

- Enquanto indivduos, os portugueses vivem-se, normalmente, como pessoas sem problemas, pragmticas, adaptveis s circunstancias, confiantes na sua boa estrela, herdeiros de um passado e de uma vida sempre duramente vividos mas sem fracturas ou conflitos particularmente dolorosos ou trgicos.