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ANAIS DA V JORNADA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO – Resumos expandidos

Anais Da Jornada Completo

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ANAIS DA V JORNADA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO –

Resumos expandidos

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO E SOCIOLOGIA DO DIREITO

ANAIS DA V JORNADA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DO DIREITO –

Resumos Expandidos

BELO HORIZONTE, 24 A 26 DE NOVEMBRO DE 2011.

ORGANIZADORES: Marcelo Campos Galuppo e Vitor Medrado Amaral.

ABRAFI

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Editoração: Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do DIireito © Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito Rua da Bahia, 1148, sala 1102 Belo Horizonte - Minas Gerais 30160011 CNPJ: 04.999.866/0001-09 ISBN: 978-85-86480-90-4

J82j Jornada Brasileira de Filosofia do Direito (5.: 2011.: Belo

Horizonte). Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do Direito /

Organizadores: Marcelo Campos Galuppo; Vitor Medrado Amaral. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito, 2012.

251p. ISBN: 978-85-86480-90-4

1. Direito - Filosofia. I. Galuppo, Marcelo Campos. II. Amaral, Vitor Medrado. III. Título.

CDU: 340.12

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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APRESENTAÇÃO

A Jornada Brasileira de Filosofia do Direito, evento anual organizado pela

Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito – ABRAFI -, já é,

em sua V edição, um evento consolidado. Ela reúne os pesquisadores de sua área

para discutirem suas pesquisas e contribuírem mutuamente para a consolidação da

investigação e do ensino da Filosofia do Direito no Brasil.

Nesta V edição, o evento ocorreu entre os dias 24 e 26 de novembro de

2011, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, e contou

com conferências dos professores Joaquim Carlos Salgado (UFMG), Tércio Sampaio

Ferraz Júnior (USP) e Manuel Atienza (Universidad de Alicante), além de contar com

a apresentação de 56 pesquisas selecionadas de seus associados, agrupadas nos 12

grupos de trabalho seguintes:

GT 1: LÓGICA, RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA (6 trabalhos);

GT 2: DIREITO, ARTE E LITERATURA (5 trabalhos);

GT 3: EPISTEMOLOGIA JURÍDICA: O PROBLEMA DO JUSTO E DO JURÍDICO (7 trabalhos);

GT 4: RELEITURAS DE KANT (3 trabalhos)

GT 5: DIREITO E CULTURA (4 trabalhos);

GT 6: DIREITO, DEMOCRACIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL (6 trabalhos);

GT 7: RELEITURAS DE CARL SCHMITT (4 trabalhos);

GT 8: CORPO, NATUREZA E DIREITO (4 trabalhos);

GT 9: DIREITO, ALTERIDADE E ÉTICA (6 trabalhos);

GT 10: HISTÓRIA, MEMÓRIA E DIREITO (3 trabalhos);

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GT 11: DIREITO, POLÍTICA E ESTADO (3 trabalhos);

GT 12: JUDICIÁRIO, HERMENÊUTICA E CONSTITUIÇÃO (5 trabalhos).

Ainda que esses grupos possam variar conforme os trabalhos apresentados

em cada evento, sua tabulação apresenta indícios consistentes acerca do estado da

arte da pesquisa filosófico-jurídica no Brasil.

Uma novidade destes anais é que eles pretendem introduzir, na área de

Direito no Brasil, a prática de publicação de resumos expandidos (que compõem os

anais), e não de artigos completos. Isso permite uma circulação mais eficaz do

conhecimento bem como a possibilidade de se aproveitar a discussão dos trabalhos

apresentados realizada no próprio evento para reformulá-los, visando a uma

publicação definitiva sob a forma de artigo em periódicos científicos ou de capítulo

de livro.

A ABRAFI, com a publicação destes anais, pretende cumprir sua missão e

contribuir para o avanço da reflexão sobre o Direito e, em especial, sobre a Filosofia

do Direito no Brasil.

Marcelo Campos Galuppo

Presidente da ABRAFI

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 5

ÍNDICE ......................................................................................................................... 7

A CRISE DE LEGITIMIDADE NA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E OS SORTEIOS ....... 17

A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A GOVERNANÇA SOCIAL ....................................... 23

A FUNDAMENTAÇÃO UTILITARISTA DOS DIREITOS DOS ANIMAIS ............................. 29

A IDENTIDADE DO SUJEITO CONSTITUCIONAL NA (RE)INTERPRETAÇÃO DA

CONSTITUIÇÃO.......................................................................................................... 34

A IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO DA CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA À LUZ

DAS CIÊNCIAS DA MENTE .......................................................................................... 41

A NOVA RETÓRICA SEGUNDO MANUEL ATIENZA: UMA ANÁLISE DAS CRÍTICAS

DIRIGIDAS À TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO DE CHAÏM PERELMAN EM AS RAZÕES DO

DIREITO ..................................................................................................................... 46

AS SENTENÇAS ADITIVAS À LUZ DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA ............................. 53

AS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO COMO MOMENTO DO DIREITO: A EXPANSÃO DA

PUREZA KELSENIANA ................................................................................................ 59

A TEORIA TRIDIMENSIONAL E A FILOSOFIA DO DIREITO: A OBSERVAÇÃO DE MIGUEL

REALE A FAVOR DA UNIFORMIDADE DIALÉTICA ........................................................ 64

CINISMO E BIOPOLÍTICA COMO ELEMENTOS DA CRÍTICA DE ALAIN BADIOU AOS

FUNDAMENTOS DA ÉTICA DOS DIREITOS DO HOMEM ............................................. 71

CRÍTICA À ESSENCIALIDADE DO DIREITO: A RELAÇÃO OBJETIVA ENTRE RAZÃO E

MORAL ...................................................................................................................... 78

DE CARL SCHMITT A JACQUES DERRIDA: O CONFLITO E AS RELAÇÕES ENTRE O

DIREITO E A DEMOCRACIA ........................................................................................ 83

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DIALÉTICA ENTRE OPINIÃO E VERDADE: CONTRÁRIO, CONTRADITÓRIO E A SÍNTESE

DOS OPOSTOS RELATIVOS À ESCRAVIDÃO DOS NEGROS EM MONTESQUIEU ........... 89

DIÁLOGOS ENTRE RONALD DWORKIN E NEIL MACCORMICK: A RELEVÂNCIA DA

NOÇÃO DE COERÊNCIA PARA A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ................. 113

ENTRE CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E AUTORIDADE ESTATAL: ................................... 120

BREVES REFLEXÕES SOBRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE

DIREITO ................................................................................................................... 120

EUGENIA LIBERAL E A ÉTICA DA ESPÉCIE ................................................................. 127

GUNTHER TEUBNER NO DESAFIO KELSENIANO DE CONCEITUAÇÃO DA JUSTIÇA ... 132

MORAL, DIREITO E EDUCAÇÃO EM KANT ................................................................ 137

O CRIME DE ANAXÁGORAS E A GÊNESE DA IDÉIA DE LIMITE ................................... 144

O DIREITO NOVO E A SINGULARIDADE UNIVERSAL: FOUCAULT COM BADIOU ........ 151

O GRAU DE ESPECIFICIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS: CUSTOS DE ELABORAÇÃO E

APLICAÇÃO DAS CLÁUSULAS GERAIS....................................................................... 160

O LUGAR DA FILOSOFIA NA CIÊNCIA DO DIREITO .................................................... 167

O NAVIO AFUNDADO E O SUBMARINO – A MEMÓRIA DO LEGADO JURÍDICO-

POLÍTICO GRECO-ROMANO NA IGREJA MEDIEVAL ................................................. 174

O PROBLEMA DO EXATO CONTEÚDO DA NORMA JURÍDICA NOS PENSAMENTOS DE

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR. E HANS KELSEN ......................................................... 182

ORDEM CONCRETA E DECISÃO A PARTIR DO PENSAMENTO DO NÓMOS EM CARL

SCHMITT ................................................................................................................. 189

O VALER E O SABER DA JUSTIÇA E DA VERDADE NO DIREITO ................................... 196

PASSAGEM DO ESTÉTICO E PASSAGEM DO JURÍDICO EM CONTEXTO DE CAOS: OU DO

EXPRESSAR DA ARTE E DO DIREITO NO LIMIAR DO SÉCULO XX ............................... 203

PODER E JUSTIÇA NAS TRAGÉDIAS DE SHAKESPEARE ............................................. 210

PRISÃO EM FLAGRANTE E IMAGINAÇÃO ................................................................. 217

SÓCRATES E A OBEDIÊNCIA À LEI NO DIÁLOGO CRÍTON .......................................... 224

UMA LEI PROIBITIVA NECESSARIAMENTE RESTRINGE A LIBERDADE? ..................... 229

UM OLHAR SOBRE A CRISE NO ENSINO JURÍDICO: HERÁCLITO DE ÉFESO E A

INDISSOCIABILIDADE DO ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO NOS CURSOS JURÍDICOS

................................................................................................................................ 236

ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................................. 244

ÍNDICE DE AUTORES ................................................................................................ 249

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(AUTO)RECONHECIMENTO DAS PARTES COMO FORMADORAS DE UMA

DECISÃO NO PROCESSO

Ariane Shermam Morais Vieira1

Rosana Ribeiro Felisberto2

Palavras-chave: Reconhecimento; Processo; Legitimidade; Conciliação.

Vários autores têm trabalhado com enfoque na teoria do reconhecimento.

Dentre eles pode-se citar Taylor, Honneth e Fraser.

Os questionamentos sobre o reconhecimento cada vez mais tem ganhado

importância na abordagem sobre o assunto, uma vez que também muito se discute

sobre o multiculturalismo e a realização de diálogos efetivos entre sujeitos

diferentes ou entre grupos culturais diferentes.

Diante de uma atuação democrática do Estado de Direito, o

reconhecimento de grupos culturais é importante, porém importa também o

reconhecimento dos sujeitos individuais dentro do espaço discursivo no processo.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte. E-mail: [email protected].

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Em primeiro lugar deve haver reconhecimento dos sujeitos por parte do

Judiciário como sendo efetivamente capazes de dialogar dentro do processo e

participarem da construção da decisão resolutiva do conflito expressa por meio da

sentença.

O Direito formalmente reconhece – e assim deve fazê-lo os magistrados

em cada caso – que cada sujeito, enquanto parte de um processo judicial deve ter

oportunidades de se manifestar e ser ouvido pelo juiz e pela parte contrária,

contribuindo dessa maneira para a prolação da sentença. Em outras palavras, num

caso concreto, o juiz deve, por exemplo, reconhecer as partes como sujeitos

capazes de produzir provas e expor uma versão dos fatos e dos direitos que serão

levadas em conta no momento de prolação da sentença.

Outra forma sob a qual o reconhecimento se manifesta no processo

judicial é na realização de tentativas e audiências de conciliação entre as partes.

O Judiciário tem como um dos motivos que justificam a adoção massiva de

audiências de conciliação como sendo o primeiro ato significativo de quase todos

os processos, o argumento de que o Judiciário reconhece que as partes – ou os

sujeitos – que litigam num processo são capazes de dialogarem e chagarem a um

consenso, firmando um acordo entre si, que será posteriormente apenas

homologado pelo magistrado.

A partir do argumento acima expresso, tem-se que o Judiciário, ao menos

em tese, reconhece as partes como legítimas para deliberarem e chegarem a um

consenso por si mesmas, fazendo com que seus argumentos sejam efetivamente

reconhecidos pela decisão no processo.

O mesmo argumento levantado ainda dá ensejo a se colocar que a

expansão das tentativas de conciliação pelo Judiciário reconhecem que o consenso

entre as partes tende a construir uma decisão mais legítima e mais aceita pelas

próprias partes.

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É neste ponto que se insere a discussão trazida pela presente proposta de

trabalho.

Se cada vez mais a conciliação ganha importância para o poder Judiciário –

haja vista, por exemplo, as campanhas e mutirões constantes de conciliação não

apenas na Justiça Comum, como também na Justiça do Trabalho – por outro lado é

importante observar que não basta apenas o reconhecimento do Judiciário acerca

das partes para se conseguir uma decisão legítima e bem aceita pelas partes. É

necessário que também as partes se sintam como atores efetivos do processo.

Um ponto fundamental na construção da decisão no processo com a

participação das partes é o auto-reconhecimento das próprias partes, para consigo

e entre si.

O que é possível observar na prática – e aqui surge a hipótese do presente

trabalho – é que não existe um auto-reconhecimento efetivo das partes no

processo.

De modo geral, dificilmente as partes se auto-reconhecem como co-

produtoras da sentença a partir de sua atuação na produção de provas, na

argumentação, nas audiências e nos depoimentos que traz ao processo. Muitas das

vezes se imputa ao advogado a condução e a construção da sentença,

conjuntamente com o magistrado. Em outras tantas vezes as partes não

conseguem visualizar a relação de seus atos e falas no processo com a decisão

tomada.

Para além desses casos gerais, um aspecto da maior importância é o fato

de que, mesmo quando há a realização de conciliação, as partes não se sentem

construtoras do processo e da sentença, o que dificulta seu sentimento de

legitimidade da mesma.

Em casos de relações de consumo não é incomum as empresas optarem

por fazer ou não um acordo a partir de uma análise “mercadológica” do que seria

mais vantajoso financeiramente diante da jurisprudência recente sobre o assunto.

Dessa maneira, não reconhecem a sua própria decisão como fruto de algo que lhe é

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Direito

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próprio, mas como impelidas compulsoriamente por força de decisões proferidas

de forma reiterada pelo Judiciário, tentando minimizar seus prejuízos.

Também as partes individuais não se veem como produtoras da decisão,

mesmo quando fazem um acordo em audiência de conciliação.

A estrutura formal do Judiciário, a presença de um único terceiro que

geralmente conduz os trabalhos da audiência de conciliação, a presença em muitos

casos de advogados e até mesmo a organização física das salas de audiência e

ainda opiniões do senso comum – como a de que o processo sempre demora muito

– fazem com que a parte se sita pressionada a tomar uma decisão e, em

decorrência disso, não se reconheça como produtora no processo, mas apenas

como vítima e, em alguns casos, beneficiária do sistema judiciário.

De fato, o sucesso das audiências de conciliação alcança enorme

importância no atual contexto social, sendo objeto de uma grande mobilização dos

órgãos judiciais. A ideia de um processo guiado pelos ditames da celeridade,

economia, e, além de tudo, apto a proporcionar à parte a tutela efetiva de seus

direitos, passa pela abertura de possibilidade de as partes resolverem entre si

mesmas a controvérsia que as envolve. No entanto, toda a ênfase que é dada à

realização das audiências de conciliação e, mais ainda, à sua realização bem-

sucedida, com as partes chegando a um acordo final capaz de dirimir o conflito

existente entre elas, acaba criando uma atmosfera que, ainda que

involuntariamente, compele os litigantes à realização de um acordo.

Neste contexto, é possível visualizar o reconhecimento, por parte do

Direito, das partes como legítimas produtoras de manifestações dentro do

processo. O mesmo não pode ser dito sob o ponto de vista das próprias partes,

uma vez que, conforme foi explicitado linhas acima, suas manifestações em meio

às audiências de conciliação constituem mais o resultado de todo um movimento a

favor da auto-composição dos conflitos do que consequência de seu (auto)

reconhecimento como legítimas coprodutoras de uma decisão.

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Uma vez que a parte não se reconhece como produtora da decisão no

processo, o grau de legitimidade que ela sente fica consideravelmente reduzido, o

que gera uma insatisfação em relação ao Direito e ao Judiciário. A insatisfação

deriva em grande medida da percepção de que suas manifestações ao longo do

processo não contribuíram para a construção da decisão final.

Por fim, essa carência de auto-reconhecimento ainda tende a levar à parte

a uma posição de não assumir sua responsabilidade perante a decisão que foi

obtida no processo. Assim é que despontam grandes índices de descumprimento

de decisões judiciais e mesmo de acordos feitos entre as próprias partes, que em

momento algum reconhecem a si próprias como co-produtoras da decisão final

resultante do processo.

Diante de tudo o que foi exposto, o auto-reconhecimento das partes como

construtoras conjuntas do processo e da decisão é fundamental para que se eleve

os graus de legitimidade e cumprimento das decisões, diminuindo ainda uma

arraigada cultura de recorribilidade em nosso sistema judiciário. Não basta, pois, o

reconhecimento por parte do Estado, as partes também devem se auto-

reconhecerem.

Em síntese, a proposta do presente trabalho é verificar a hipótese de que

não existe um auto-reconhecimento das partes no processo judiciário,

especialmente no que se refere à realização de audiências de conciliação no âmbito

dos juizados especiais e do fórum da cidade de Belo Horizonte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradutor: Carlos Nelson Coutinho. Nova ed.

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crises. Tradutor: João Ferreira.

Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Polis, 1998.

BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradutor: Carlos Nelson Coutinho. Rio de

Janeiro: Ediouro, 2000.

FELISBERTO, Rosana Ribeiro. Antes do acender das luzes: reciprocidade de

poderes no incentivo à cultura. Orientadora: Miracy Barbosa de Sousa Gustin.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de

Direito, 2009.

FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? a political-

philosophical exchange. London; New York: Verso, 2003.

GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio

de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

HELLER, Agnes. FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Tradução: Marcos

Santarrita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

PIZZORNO, Alessandro. Introduccion AL Estúdio de La Participacion Politica. In:

PIZZORNO, Alessandro; KAPLAN, Marcos; CASTELLS, Manuel. Participacion y cambio

social en la problematica contemporanea. Buenos Aires: Siap-Planteos, 1975.

RECASENS SICHES, Luis. Tratado general de filosofia del derecho. 4.ed. Mexico:

1970.

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do

cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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TAYLOR, Charles. et. al. Multiculturalism: examining the politics of recognition.

Princeton: Princeton University Press, 1994. 175p.

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A CRISE DE LEGITIMIDADE NA DEMOCRACIA

REPRESENTATIVA E OS SORTEIOS

Alessandra Margotti dos Santos Pereira1

Freitrich Augusto Ribeiro Heidenreich2

Marcelo Campos Galuppo3

Palavras-chave: Sorteio; Democracia representativa; Crise democrática;

Legitimidade; Direito e democracia.

Sabe-se que a democracia representativa se encontra em meio a uma

crise. O sentimento da população de que os governantes não olham pelos seus

interesses e de que esses mesmos não os representam é, praticamente,

dominante, segundo dados apresentados por SINTOMER (2010) e MIGUEL (2000).

1 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 2 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 3 Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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No Brasil, mesmo com a obrigatoriedade do voto, a abstenção alcança

índices elevados. Muitos não vão às urnas por desacreditarem no processo eleitoral

que atualmente é utilizado. Tendo em vista essa perspectiva, algo se faz necessário

para evitar esse sentimento de inexpressividade, apatia política e não

representatividade.

Como forma de se evitar que a democracia representativa finde e que em

seu lugar se estabeleça um governo totalitário ou ainda mais ardil, propõe-se a

aplicação de meios democrático-deliberativos que permitam a maior participação

do cidadão comum. Para tanto, sugere-se a aplicação de mecanismos, que possam

reduzir o sentimento de apatia política e mitigar as estratégias políticas que se

valem dos votos de legenda para alcançar maior número de mandatos.

Yves Sintomer (2010) demonstra que o sorteio como forma de promoção

da democracia tem sido utilizado desde tempos remotos. Em Atenas, séculos V e IV

a.C., era uma forma de participação política muito aplicada ao lado da Assembleia

Popular e das eleições. A partir do sorteio integrava-se a Boulé (o Conselho

democrático de Atenas) e a Helieia (o Tribunal de Atenas).

Em Veneza, em meados do século XI, o sorteio também foi utilizado,

juntamente com as eleições, para se escolher o doge, o representante máximo do

país, dentre os integrantes do Maggior Consiglio. Florença também se valeu do

sorteio para integrar diversos cargos do governo, quando o país se encontrava em

tempos democráticos.

Roma utilizou o sorteio, como afirma Montesquieu (2000), com o fim de

integrar tribunais para o julgamento dos crimes privados.

Com o advento das revoluções francesa e americana o sorteio

desapareceu do meio político, devido ao fato de os revolucionários não

compreenderem tal instituto como representativo das minorias. Em contrapartida,

a eleição, como forma de escolha dos representantes, permitia a seleção dos

melhores, dos mais aptos a governar.

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A partir de 1640, o sorteio se atrelou ao judiciário, sendo utilizado nos

tribunais do júri, como método de escolha dos jurados nos países da Inglaterra,

Estados Unidos e França.

Nas últimas décadas, somente, o sorteio voltou à cena política. Os

idealizadores dos mecanismos que utilizam o sorteio como meio de escolha de

participantes, no início, pretendiam apenas criar uma amostra representativa, um

espelho da população tal qual ela é. Após a última década, alguns desses institutos

começaram a ser vistos como um meio de permitir a participação popular nas

decisões políticas, bem como criar um órgão capaz de opinar, julgar e até mesmo,

fiscalizar outros ramos do governo.

O primeiro desses mecanismos é o júri de cidadãos, criado por Ned Crosby

em 1970. Ele visa o sorteio de 15 a 30 cidadãos comuns chamados a deliberarem

sobre certo assunto de ordem pública emitindo, após, um parecer que seria

encaminhado aos representantes políticos.

O segundo é a conferência de consenso, criada pelo Danish Board

Technology em 1987. Essa se encontra nos moldes de um painel, em que

especialistas sobre o assunto a ser debatido apresentam o tema para,

aproximadamente, 50 cidadãos sorteados começando, em seguida, o debate sobre

o tema controvertido.

O terceiro instituto a ser destacado é a pesquisa deliberativa. Foi criada

por James Fishkin, em 1988, como uma “versão melhorada” das pesquisas de

opinião. A pesquisa deliberativa é elaborada com mais de 130 integrantes,

escolhidos de forma aleatória, aos quais são passadas informações acerca do

assunto a ser debatido. Logo após, é dado um tempo para que deliberem entre si,

de forma que todos tenham uma opinião esclarecida para emitir no momento da

pesquisa.

Esses institutos têm sido profundamente utilizados no mundo

contemporâneo. Países como Canadá, Austrália, Dinamarca, Grécia e França já se

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valem desses meios para trazer o cidadão comum a pensar e deliberar sobre

questões que a ele atinge diretamente.

No Brasil, o sorteio, atualmente, é utilizado como método de escolha dos

integrantes do júri e como meio de distribuição de processos, na esfera judiciária;

no âmbito administrativo é aplicado na fase final da Lei de Licitações, quando em

caso de empate; é aplicado até mesmo no meio esportivo, como método de

escolha de árbitros de futebol.

Voltando ao foco da crise de representatividade, podemos apontar como

suas principais causas: a corrupção, a influência midiática, a apatia política, o

sentimento de inexpressividade do voto, a má gestão dos negócios públicos e por

fim, o desencanto com o mecanismo eleitoral.

Em busca da possibilidade de se minorar os efeitos da crise representativa

na atual democracia brasileira, encontramos na proposta de Akhil Reed Amar

(AMAR, apud MIGUEL, 2000) um mecanismo que, se adaptado ao processo

eleitoral brasileiro, poderia ter muito a contribuir. Inicialmente denominado de

“Votação Lotérica” (Votting Lotery), é um mecanismo que alia o sorteio às eleições,

com o objetivo de ampliar a participação da minoria, mas, também garantir uma

mínima técnica e legitimidade eleitoral.

O mecanismo da “Votação Lotérica” ocorre da seguinte forma:

primeiramente realiza-se uma eleição, e em um segundo momento, um sorteio, em

que cada candidato terá o número de chances proporcionais ao número de votos

que angariou durante a primeira fase (as eleições).

As vantagens da utilização dos sorteios por meio da votação lotérica

podem ser divididas, em nossa análise, como diretas e indiretas. Como vantagem

direta, tem-se o fato de a votação lotérica garantir a participação das minorias no

processo eleitoral, além de propiciar a redução da apatia política, bem como do

sentimento de inexpressividade do voto, uma vez que cada voto seria significativo

para assegurar maiores chances de alcançar o mandato. Por outro lado, a votação

lotérica poderia incentivar uma maior fiscalização por parte da população, pois,

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uma vez reduzida a apatia, a corrupção seria minorada pelo controle popular,

sendo essa uma vantagem indireta do emprego desse mecanismo.

Propõe-se a utilização do mecanismo da “Votação Lotérica” para escolha

das cadeiras destinadas aos vereadores. Pode-se indagar o porquê da escolha da

aplicação deste mecanismo ao nível municipal e não ao nível estadual ou federal. A

resposta reside no fato de que seria dificultada a sua eficácia caso aplicado em um

quórum eleitoral muito elevado; justamente, uma das vantagens da aplicação

desse processo, diz respeito à participação das minorias, pois, em nível local, seria

muito mais concreto se falar na busca dos votos desses pelos candidatos. Esse é o

motivo pelo qual esse sistema deve ser empregado no processo eleitoral para

escolha dos veredadores e não para a escolha dos deputados estaduais e federais.

Restando exposto a origem dos sorteios, a sua aplicação no mundo e no

Brasil, bem como as causas da crise de representatividade na atual democracia e

ainda a proposta de se aplicar o mecanismo da “Votação Lotérica” no processo de

escolha dos vereadores, é preciso ressaltar que a aplicação dos sorteios, há pouco

tempo, tratava-se de uma possibilidade distante da prática, mas que, após diversos

estudiosos se dedicarem ao tema, deixou de ser apenas uma ideia audaciosa para

ocupar um lugar em meio a discussões que tem por objetivo encontrar soluções

para a problemática da crise na democracia representativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da

Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração

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22

Pública e dá outras providências. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>. Acesso em: 13 out.

2011.

BRASIL, Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003. Dispõe sobre o Estatuto de Defesa

do Torcedor e dá outras providências. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.671.htm. Acesso em: 13 out.

2011.

CUNNINGHAM, Frank. Teorias da Democracia: Uma Introdução Crítica. Trad.

Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed. 2009.

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Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

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MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. Trad. Cristina Murachco. 2º ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2000.

SINTOMER, Yves. O Poder ao Povo: Júris de cidadãos, sorteio e democracia

participativa. Trad. André Rubião. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A GOVERNANÇA

SOCIAL1

Freitrich Augusto Ribeiro Heidenreich2

Palavras-chave: Democracia deliberativa; Governança social; Governabilidade;

Representatividade.

Para iniciarmos o tema sobre a Democracia deliberativa nada mais

necessário do que identificar o conceito etimológico de democracia e de

deliberação, e após tais avaliações isoladas, compreender o que seria propriamente

a democracia deliberativa.

O conceito de democracia, segundo a etimologia, vem do grego (demo =

povo), (cratia = poder), portanto, traduz-se como “governo do povo, pelo povo e

para o povo” (DE PLÁCIDO E SILVA, 2010, p. 433). Já a deliberação vem do latim

“deliberatio, de deliberare, que significa resolver, decidir, é aplicado para indicar

toda resolução ou decisão, tomada por uma pessoa ou assembleia, mediante

1 Este trabalho é fruto das reuniões do Núcleo Justiça e Democracia orientado pelo Professor Doutor Marcelo Campos Galuppo. 2 Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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prévia discussão e exame da matéria, assim submetida a esse veredicto” (DE

PLÁCIDO E SILVA, 2010, p. 429).

Após analisado etimologicamente o conceito de democracia deliberativa,

por meio das palavras que as compõem. Cabe agora analisar não o conceito, mas

sim a definição de democracia deliberativa.

Democracia deliberativa, de acordo com Joshua Cohen, “está enraizada no

ideal intuitivo de uma associação democrática na qual a justificação dos termos e

das condições de associação procede por meio de argumento e raciocínio público

entre cidadão iguais” (COHEN, 1989, p. 17).

Portanto, a democracia deliberativa é uma democracia na qual, antes de

se deliberar sobre determinada matéria ou forma, se expõe argumentos racionais e

se contrapõem as opiniões previamente objetivando o consenso. Para que isso

seja possível, a democracia deliberativa exige a existência de alguns pré-requisitos,

sendo eles: a. Os indivíduos devem estar abertos às mudanças e a ouvir as posições

e as contraposições dos outros, o que se denomina de “reciprocidade” (GUTMANN

e THOMPSON, 1996); b. Devem ser apresentados argumentos racionais, ou seja,

deve estar presente a “racionalidade”, e por fim; c. Os argumentos devem ser

apresentados com o objetivo de se chegar a um “consenso”.

À luz de diversos teóricos da democracia, a “racionalidade” é princípio

essencial da forma deliberativa, Cass Sunstein, entende que “um sistema

democrático em bom funcionamento se fundamenta não em preferências, mas em

razões” (SUNSTEIN apud CUNNINGHAM, 1997, p. 94). Também Frank Cunningham

ao citar Benhabib que diz que a legitimidade está ligada à racionalidade e,

(CUNNINGHAM, 2009) Habermas a compreende como um aspecto elementar da

democracia deliberativa. (HABERMAS, 1997)

Outro princípio importante da Democracia deliberativa é a

“reciprocidade”, denominado assim por Amy Gutmann e Dennis Thompson, (1996)

que definiram-no exatamente na ideia de que um indivíduo não respeitará a razão

do outro, caso esse não respeite a daquele primeiro.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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Para justificar o terceiro princípio, Frank Cunningham, (2009) diz ser o fim

último dos democratas deliberativos a busca pelo consenso dos bens comuns.

Desta forma, foram apresentados os argumentos necessários para a comprovação

dos princípios que regem a democracia deliberativa.

Após a apresentação do conceito, definição e princípios da democracia

deliberativa é preciso estabelecer a relação entre essa e a ideia de governabilidade

- “capacidade política de um governo agir conforme os seus apoios representativos

e da sociedade” (ALCOFORADO, 201, p.7) e a de governança social que é uma

“estrutura social existente numa determinada localidade, também para viabilizar a

ação social e o desenvolvimento” (ALCOFORADO, 2011, p.7)

A democracia deliberativa, certamente, tem muito a contribuir dentro dos

espaços públicos em favor da governança social. Por meio dos debates públicos e

fóruns seria possível alcançar o que Cunningham denominou de “equilíbrio

reflexivo”, “isso sigmifica sustentar que as pessoas podem ser convencidas de

forma deliberativa pelo raciocínio deliberativo. Pois a deliberação requer que os

cidadãos apresentem razões uns para os outros em fóruns públicos”

(CUNNINGHAM, 2009, p. 204). Gutmann e Dennis Thompson (1996) ainda

complementam ao dizer que a publicidade nas deliberações obrigam os indivíduos

a ouvirem os argumentos que são apresentados nas discussões públicas e ainda

ressaltam a necessidade do respeito mútuo e do “igual acesso” aos mecanismos de

deliberação diretamente efetivos.

A Assembleia Legislativa de Minas Gerais promoveu entre os dias 15 e 24

de fevereiro de 2011, um fórum democrático para o desenvolvimento de Minas

Gerais para a discussão das questões que deveriam estar na pauta durante os

próximos dez anos. Apesar de plausível a iniciativa do poder legislativo do Estado,

esse esforço ainda não é o suficiente, pois podem ser realizadas diversas críticas à

forma com a qual foram conduzidos esses mesmos fóruns públicos sob a

perspectiva da democracia deliberativa.

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Dentre eles: a. O fórum democrático teve como objetivo ouvir autoridades

e integrantes da sociedade civil, porém esses não participavam da elaboração

direta de propostas de lei, ou votações. Na verdade, durante o fórum só se

apresentavam os argumentos, não havia qualquer intento em se alcançar um

consenso entre as partes, o que do ponto de vista da democracia deliberativa seria

inconcebível; b. Outro elemento que pode ser criticado é o fato de o fórum não

garantir uma igual participação de todos os representantes da sociedade civil e por

fim, c. Parte dos legisladores não estavam presentes às reuniões, destarte, como

debater se a totalidade ou a maioria das partes não estão presentes. (sociedade e

representantes do governo)

Após apresentadas essas críticas, resta probo que os Fóruns democráticos

elaborados pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, apesar de em muito já

terem avançado em relação a outros estados, ainda estão distantes do que se

poderia dizer ideal.

Propõe-se portanto, que, os Fóruns democráticos a serem realizados, além

de contarem com uma maior participação dos representantes do poder legislativo,

devem possibilitar a uma maior parcela da população a sua participação, não

somente nas discussões, a exposição dos argumentos que necessariamente devem

ser racionais, mas também durante os processos deliberativos, seja por meio de de

referendos, ou pleibiscitos que deveriam ocorrer necessariamente após esses

mesmos fóruns.

É importante ressaltar que o objetivo desse trabalho não é o de criticar a

atuação da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, mas sim o de se propor um

mecanismo mais eficaz do ponto de vista da democracia deliberativa, bem como

promover a governabilidade e o aprimoramento das ações dentro da governança

social.

A questão da participação popular deve ser levada com cautela, pois a

democracia deliberativa também possui problemas em sua estrutura, dentre eles: a

escassez de recursos, a presença do exclusivo auto-interesse (generosidade

limitada), desacordos morais básicos, e “entendimento incompleto” do que é

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melhor interesse individual e coletivo. (GUTMANN e THOMPSON apud

CUNNINGHAM, 2009, p. 197)

Tendo em vista esses entraves à execução de uma democracia deliberativa

plena, devemos tratar seu emprego com ressalvas. Destarte, se propõe que o

poder legislativo ao realizar fóruns públicos, como o Fórum Democrático,

primeiramente analise as matérias que podem ser endereçadas à deliberação

popular, ou que estabeleça o limite orçamentário para isso, o que compreendo ser

o mais correto, repeitando assim um dos limites da democracia deliberativa que é a

escassez de recursos; dessa forma, superando-a.

Outros elementos a serem observados são o auto interesse e o

“entendimento incompleto”, que por sua vez, devem ser sanados pela própria

discussão exaustiva sobre a matéria em questão, de forma que, teram sido

realizadas todas as possíveis ações para se alcançar o interesse coletivo e a

compreensão do melhor interesse coletivo e individual.

Desta forma, será possível o emprego da democracia deliberativa em sua

forma mais eficaz possível, respeitando seus princípios e contornando seus limites,

de forma a construir uma governança social mais sólida e uma governabilidade

mais representativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCOFORADO, Flávio. O instituto de governança social: avanços e perspectivas no

desenho de um novo arranjo organizacional. II Congresso Consad de Gestão Pública

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

28

– Painel 07: Governança social e reorganização dos espaços públicos no Brasil.

Disponível em: < http://www.seplag.rs.gov.br/upload/Painel_07_

Flavio_Alcoforado_formatado.pdf>. Acesso em 04 de novembro de 2011.

ALMG. Fórum Democrático para o Desenvolvimento de Minas Gerais. Disponível

em:

http://www.almg.gov.br/acompanhe/eventos/hotsites/2011/forum_democratico/

o_que_e.html>. Acesso em 04 de novembro de 2011.

COHEN, Joshua. Deliberation and Democratic Legitimacy. In: Hamlin, A. & Pettit, P.

(éds), The Good Polity. Normative Analysis of the State, Oxford, B. Blackwell, 1989.

CUNNINGHAM, Frank. Teorias da Democracia: Uma Introdução Crítica. Trad.

Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed. 2009.

DE PLÁCIDO E SILVA, 2010. Vocabulário Jurídico. 28ª ed. Atualizado por: Nagib

Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010.

GUTMANN, Amy e THOMPSON, Dennis. Democracy and Disagreement: Why Moral

Conflict Cannot be Avoided in Politics, and What Should be Done About It.

Cambridge, Harvard University Press, 1996.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

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A FUNDAMENTAÇÃO UTILITARISTA DOS DIREITOS DOS

ANIMAIS

Eduarda Cellis da Silva Campos1

Palavras-chave: Animais. Direito. Utilitarismo.

Numa sociedade em constante transformação, teorias, pensamentos e

princípios modificam-se e são postos à prova, surgindo frequentemente novas e

complexas questões que demandam respostas por parte do Direito. A problemática

dos direitos dos animais insere-se neste contexto gerando grandes discussões,

sendo, segundo Arthur Kaufmann (2004), uma das funções da filosofia aferir a

solidez dos argumentos apresentados por aqueles que defendem ou refutam tais

direitos, a partir de sua razoabilidade e coerência.

Há diversas teorias defensoras dos direitos dos animais, entre as quais

existem divergências com relação à fundamentação, ao conteúdo e às

consequências decorrentes de sua implementação. O utilitarismo, uma das mais

significativas teorias éticas que tratam sobre o tema, baseia-se, essencialmente, no

1 Graduanda da Universidade Federal de Juiz de Fora. [email protected]

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princípio do bem-estar máximo, partindo do pressuposto de que os homens

dirigem suas ações buscando o prazer e evitando a dor. Nessa perspectiva, todos os

seres capazes de serem movidos por essas sensações devem receber a mesma

importância, incluindo-se animais não humanos. Configura-se como uma ética

consequencialista, à medida que avalia uma ação como correta ou não em função

exclusivamente das consequências geradas por ela.

Um dos principais representantes da posição utilitarista com relação aos

animais é o filósofo contemporâneo Peter Singer (2010) que, em seu livro

Libertação Animal, defende o princípio básico da igualdade, o qual abrangeria seres

vivos não humanos que, segundo Jeremy Bentham, pelo simples fato de serem

capazes de sofrer, possuem interesses que devem ser considerados pelo homem. A

aplicação do referido princípio não requer igual tratamento para animais e seres

humanos, mas implica igual consideração entre eles.

Segundo Singer, não existem diferenças tão relevantes entre os animais e

os homens a ponto de julgarmos ser a espécie humana superior às demais,

ocupando o mais alto nível hierárquico na natureza e desfrutando de plenos

direitos sobre seres inferiores. Em certas circunstâncias, a vida de um chimpanzé

ou de um cão adulto seria mais valiosa que a vida de um bebê ou de um adulto

gravemente retardado.

A senciência dos animais, capacidade de sentir dor também presente em

seres humanos, ainda que com intensidades diversas, é razão suficiente para que o

sofrimento infligido a eles seja considerado da mesma forma que o sofrimento

semelhante de quaisquer outras espécies, e não deva, portanto, ser ignorado.

A supervalorização de determinada espécie em detrimento dos interesses

de outra, resultando em discriminação desta, constiui o chamado especismo,

comparado, pelo autor, ao racismo e ao sexismo, formas de discriminação contra

negros e mulheres fundadas em características irrelevantes para definição da

espécie humana. Há tantas formas de especismo quanto justificativas e desculpas

para praticá-lo. Caça de animais selvagens, experimentações científicas cruéis,

comércio de couro e peles, torturas dos animais em circos e rodeios, e criação de

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animais com fins alimentícios são algumas das práticas especistas com as quais

convivemos sem que haja uma reflexão sobre os malefícios e sofrimentos causados

aos animais.

A mais propalada prática especista seria a de comer outros animais. Visto

que o regime vegetariano é capaz de proporcionar uma vida saudável, não haveria

justificativas válidas para que submetêssemos os animais às crueldades e aos

sofrimentos vivenciados nas fazendas industriais com o objetivo único de satisfazer

o paladar humano. Na hipótese de criação dos animais sem o confinamento, de

maneira que fosse possível uma existência agradável, sendo a morte rápida e

indolor, a utilização dessa carne seria aceitável. No entanto, essa hipótese

encontra-se mais no plano utópico do que no plano real.

O especismo originou-se há séculos e sua prática está arraigada na

sociedade, sendo, pela maioria, sequer reconhecida como imoral. Para o

pensamento pré-cristão, o homem teria sido criado à imagem e semelhança de

Deus e recebido d’Ele o domínio sobre toda a natureza. Com a entrada do pecado,

a morte passaria a fazer parte da vida de todos os seres vivos, inclusive dos

animais. Após o dilúvio, foi permitido ao homem alimentar-se de carne.

O pensamento grego era dividido entre aqueles que defendiam os animais

e os que acreditavam que eles eram meios para fins humanos, como Aristóteles. Da

mesma maneira, encontram-se ideias diversas no pensamento cristão. Um dos

representantes desse pensamento, Tomás de Aquino, afirmava que os animais

estão para o homem assim como as plantas estão para os animais, considerando,

então, não ser errado matá-los ou usar de crueldade para com eles.

A partir do Iluminismo, é possível constatar um gradual reconhecimento

da senciência dos animais, o que não acarretou, naquele momento, a admissão de

seus direitos. Somente no século XIX, surgem lutas por direitos de outras espécies.

Com a divulgação da teoria de Darwin, a ideia de superioridade da espécie humana

é contestada e, para se manter o especismo, usam-se pretextos como o de que, em

seu estado natural, alguns animais matam outros, não havendo motivos para não

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matá-los para nos servirem de alimento. Em seu livro, Ética Prática,Singer refuta

tal argumento afirmando que, primeiramente, a maior parte dos animais que se

alimentam de carne não sobreviveriam de outra forma, ao passo que para os seres

humanos, a inclusão da carne animal em sua dieta seria um luxo e não uma real

necessidade. Ademais, seria um paradoxo buscarmos orientação moral nas ações

dos animais se os consideramos “selvagens” e irracionais. O ponto fundamental é

que enquanto os animais não possuem a capacidade de refletir sobre seus atos,

nós somos completamente aptos a ponderarmos sobre a ética de nossa

alimentação.

Para Singer, seres humanos e animais estão na mesma categoria e

possuem direitos, devendo ser regidos pelo princípio moral da igual consideração

de interesses. Não sendo encontradas características relevantes que tornem o

homem superior aos demais seres vivos, ele deve a estes respeito e alívio de seus

sofrimentos. Alegar a existência de um valor intrínseco ao ser humano seria uma

forma de apelação daqueles que não possuem argumentos racionais.

Embora também defenda os direitos dos animais (através da abordagem

das capacidades), Martha Nussbaum (2008) faz importantes críticas à visão

utilitarista, especialmente a dois elementos independentes nos quais se baseia o

utilitarismo, o ranking de somatório e o hedonismo ou satisfação de preferência. O

ranking de somatório leva em conta o bem-estar médio ou total, a soma geral de

frustração de preferências e de satisfação relevantes, impossibilitando a exclusão

antecipada de resultados altamente desfavoráveis a determinado grupo ou classe.

Tal posição pode levar à justificação de absurdos como a escravidão e a

subordinação vitalícia de alguns a outros. O hedonismo (Bentham) e a satisfação de

preferência (Singer) são fatores problemáticos quando tomados por fundamento,

visto que prazer é uma noção extremamente vaga, de difícil precisão em seres

humanos, atingindo uma linha ainda mais tênue em animais não humanos. Faz-se

também necessária a avaliação de prazer e dor como os elementos mais

importantes a serem considerados, porquanto há prazeres reprováveis e parecem

existir elementos de valor mais importantes que o prazer na vida animal.

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Apesar de o utilitarismo oferecer contribuições para a discussão sobre os

direitos dos animais, apresenta grandes problemas em sua argumentação. O fato

de os animais sentirem dor e prazer não é fundamento suficiente para torná-los

sujeitos de direito, elevando-os à categoria de pessoas, o que é inconcebível para o

direito atual. É certo que devam ser protegidos, como nossa Contituição já o faz,

mas como objetos de direito e não como sujeitos de direito, atributo exclusivo da

pessoa humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Prefácio e tradução Antônio Ulisses

Cortês. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004.

NUSSBAUM, Martha C. Para além de compaixão e humanidade: justiça para

animais não humanos. In: MOLINARIO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza

Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da

vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária.

Belo Horizonte: Fórum, 2008.

SINGER, Peter. Ética Prática. . São Paulo: WMF Martins Fontes, 2002.

SINGER, Peter. Libertação Animal: O Clássico Definitivo Sobre o Movimento Pelos

Direitos dos Animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

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A IDENTIDADE DO SUJEITO CONSTITUCIONAL NA

(RE)INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

Flávia Siqueira Costa Pereira1

Vinícius Silva Bonfim2

Vítor Amaral Medrado3

Marcelo Campos Galuppo4

Palavras-chave: Constituição; Direito e Democracia; História Efeitual; Identidade;

Sujeito Constitucional; Reconhecimento.

A efetividade dos Direitos Fundamentais na construção dos provimentos

estatais está condicionada à abertura da sociedade para a participação dos

1 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 2 Doutorando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor da Faculdade Pitágoras e da Faculdade J. Andrade. Contato. E-mail: [email protected]. 3 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 4 Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

Page 35: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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cidadãos na interpretação da Constituição. É que a cidadania é um processo

contínuo e reflexivo mediante o qual o intérprete da Constituição, utilizando de

suas prerrogativas jurídicas e políticas, pode reconstruir a realidade em que se

encontra.

A construção da realidade se dá também pelo discurso através do qual se

pretende reconstruir interpretações da Constituição. É a identidade do sujeito

constitucional, conforme defende Rosenfeld, que torna possível que a Constituição

seja interpretada pelos sujeitos constitucionais. O processo de construção e

reconstrução das interpretações da Constituição fará com esta permaneça sempre

atual e legítima frente à sociedade.

A análise da identidade do sujeito constitucional, porém, não pode ser

vista isoladamente, até porque Rosenfeld não pensa uma tese voltada para a

elaboração normativa, mas sim para a reconstrução da realidade desta identidade.

É preciso, pois, ter em vista as várias perspectivas que fundam a realidade

hermenêutica do sujeito constitucional: a perspectiva propriamente constitucional,

a dialógica e também a histórica.

O itinerário deste trabalho será, primeiramente, o do estudo da relação

basilar entre a construção da identidade do sujeito constitucional e o conceito

habermasiano de patriotismo constitucional. Posteriormente, trabalharemos o

processo de completude e de reconhecimento desta identidade que se dá pela

dialética. Finalmente, estudaremos a contribuição de Gadamer para, concluindo,

apresentarmos a identidade do sujeito constitucional como resultante de um

processo dialético e dinâmico no qual se insere o interprete da Constituição nas

sociedades plurais.

A identidade do sujeito constitucional é formada pelo processo

permanente de aprendizado em que os sujeitos aprendem com as suas igualdades

e diferenças, com os erros e acertos, e é por meio dela que a interpretação da

Constituição se realiza dialeticamente.

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Os pontos basilares para a perspectiva reconstrutiva da identidade do

sujeito constitucional são os pressupostos opostos, consubstanciados na rica e

produtiva tensão existente na facticidade e na validade do mundo moderno e que

proporcionam melhores interpretações na democracia e no pluralismo5.

No âmbito de um Estado constitucional democrático, a legitimação é

colocada em cheque, questionando-se a sua efetiva realidade sob uma perspectiva

democrática. Como é possível, por exemplo, que constituamos um povo, sendo tão

diversos uns dos outros?

O “povo” não pode significar apenas um referencial quantitativo,

manifestado nas eleições, legitimador do processo de decisão pretensamente

democrático em uma sociedade. Na verdade, com a tese do sujeito constitucional,

a intenção é que “povo” signifique muito mais que isso, representando também um

elemento pluralista para a interpretação, uma opinião efetiva e ativa na sociedade6.

O patriotismo constitucional habermasiano não diz respeito à imposição

de uma realidade normativa refletida pela sociedade. Pelo contrário, o que

Habermas propõe é a construção, no decorrer da história, de uma identidade

coletiva construída pelos próprios cidadãos através de um processo democrático,

do qual sao eles partícipes.

Rosenfeld, amparando-se em Habermas, defende que a construção de

uma identidade do sujeito constitucional deverá se dar a partir de uma Constituição

já elaborada por métodos legítimos, atentando, e.g., para o lugar das gerações

passadas e futuras.

5 A auto-identificação da sociedade pluralista também como sociedade democrática está ligada ao fato de o Direito ter de garantir a possibilidade de realização de projetos de vida distintos. É através, pois, da garantia da igualdade que se pode falar em auto-identidade democrática da sociedade pluralista. Ver: Galuppo, 2002, p. 210-211. 6 Segundo Friedrich Müller, para que uma sociedade seja, de fato, democrática, não basta a mera participação dos cidadãos nas eleições. A partir da garantia da efetividade dos direitos humanos, de políticas sociais para a redução das desigualdades e da forma do Estado de Direito, é preciso a participação incessante da população, seja como resistência democrática ou como atividade democrática. Ver: MÜLLER, 1993, p. 124-127.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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A luta pelo reconhecimento constitui a função precípua do cidadão

enquanto participante da política, já que é somente no exercício da cidadania que

se torna possível a efetiva produção de “cidadãos”, ou sujeitos constitucionais. De

fato, não há ditadura que possa preparar o indivíduo para a cidadania, que envolve

a permanente reconstrução e reinterpretação do que se entende por Constituição.

Esse processo dinâmico, aberto e que tem por objetivo negar para uma

posterior aceitação é o que Hegel denomina de dialética. Hegel utiliza deste

conceito para demonstrar como os indivíduos nas relações sociais buscam a

identidade através das diferenças. O desejo por reconhecimento impulsiona o “eu”

(self) em busca do outro, uma vez que já tenha experimentado a dor da carência,

da ausência e a incompletude. O sujeito volta-se para o outro em busca de

reconhecimento7, após entender que a sua realização não passa pelos objetos

(HEGEL, 2008).

O conceito de reconhecimento coaduna-se com o constitucionalismo

moderno na medida em que este requer, precipuamente, um Estado Democrático

de Direito e a proteção dos direitos fundamentais, pelos quais o legítimo sujeito

constitucional deve renunciar a um montante de poder, se submete à prescrição do

direito e se limita em face dos interesses fundamentais dos outros.

Outro aspecto relevante da identidade do sujeito constitucional diz

respeito à historicidade da situação hermenêutica. Com efeito, será possível uma

interpretação da Constituição alheia à historicidade do sujeito (o sujeito

constitucional) e do objeto (a Constituição)?

A Constituição é um projeto em constante construção e reconstrução, o

que torna o exercício do Poder Constituinte algo perene, permanente, incessante

na história.

7 Para Axel Honneth, a identidade pessoal do indivíduo é fruto do processo de reconhecimento pelo qual, a partir do assentimento e encorajamento de outros, o indivíduo aprende a se remeter a si mesmo como constituído de determinas propriedades e capacidades. Ver: HONNETH, 2003, p. 272.

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A história pode ser entendida “como processo aberto de transformação de

contextos sociais que permite, na análise desse processo, o reexame do tempo

presente” (REPOLÊS, 2007, p. 03). A reconstrução do presente permite o

movimento interpretativo permanente e vivo da identidade do sujeito a partir da

Constituição.

A teoria de Rosenfeld da identidade do sujeito constitucional, na medida

em que prevê o desenvolvimento dialético realizado pelo sujeito em relação à

tradição, guarda relação com conceito de Gadamer de História Efeitual.

Nos dizeres de Gadamer:

A consciência da história efeitual ultrapassa a ingenuidade desse

comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em

experiência e mantendo-se aberta à pretensão de verdade

apresentada por essa. A consciência hermenêutica tem sua

consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na

comunidade de experiência que distingue o homem experimentado

daquele que está preso aos dogmas (GADAMER, 2005, p. 472).

A história efeitual é, em um primeiro momento, a expressão da própria

historicidade da situação hermenêutica. É que resta impossível a desvinculação da

atividade hermenêutica da história.

Nesse sentido, o círculo hermenêutico, para Gadamer, se constitui como

uma inesgotável construção da verdade, que não é atingida como se fosse

simplesmente um objeto à espera de ser desvendado, mas se dá de maneira

dialética na medida em que o círculo hermenêutico, apesar de não ser nem

objetivo, nem subjetivo, descreve o movimento da tradição, bem como do

intérprete (GADAMER, 2005, p. 388).

Tanto a identidade do sujeito constitucional, tal como trabalhada por

Rosenfeld, quanto a História Efeitual de Gadamer traçam laços profundos com a

tradição histórica, sem, porém, jamais deixar-se aprisionar por ela. Ambas são

marcadas pela abertura e dialeticidade na reconstrução contínua da história.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

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A identidade do sujeito constitucional pode ser apreendida a partir de

expressões de auto-identidade no discurso intersubjetivo que vincula todos os

atores que estão e serão reunidos pelo mesmo conjunto de normas constitucionais.

Nesse sentido, esta identidade é um hiato, um vazio, uma lacuna que pede por

completude e necessita, para a sua existência, da sua constante reconstrução, a

qual se dá pela interpretação legítima da Constituição.

A Constituição, portanto, deve estar aberta a interpretações, ou seja, ter

espaço para os diálogos conflitantes que se contrapõem em vista de um

entendimento mútuo da Carta Magna.

O sujeito constitucional, assim, emerge da necessidade do confronto com

o outro, já que, no âmbito do constitucionalismo moderno, o contraste entre o “eu”

e o “outro” é consequência do pluralismo que lhe é inerente. “Na medida em que o

constitucionalismo deve se articular com o pluralismo, ele precisa levar o outro na

devida conta, o que significa que os constituintes devem forjar uma identidade que

transcenda os limites de sua própria subjetividade” (ROSENFELD, 2003, p 36).

É preciso, porém, atentar para o fato de que os sujeitos constitucionais

estão inseridos em determinado contexto histórico que determina em certo sentido

a hermenêutica constitucional. Nesse sentido, é inerente ao processo

interpretativo da Constituição uma relação dialógica com a tradição em que se

insere o sujeito constitucional.

Sempre presente, pois, a tradição, marca da historicidade do sujeito, torna-

se ainda mais evidente a dialeticidade constitutiva do processo de construção da

identidade do sujeito constitucional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

40

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma

hermenêutica filosófica. 7º ed., Petrópolis: Vozes; São Paulo: Editora Universitária

São Francisco, 2005.

GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito

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HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I

2.ed./ Jürgen Habermas; tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo

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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. 5º ed. Bragança

Paulista: Ed. Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2008.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática dos conflitos sociais. Trad.

de Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.

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Peter Naumann. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. A identidade do sujeito constitucional no Brasil:

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ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick de

Carvalho Neto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

Page 41: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

41

A IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO DA CONCEPÇÃO DE

NATUREZA HUMANA À LUZ DAS CIÊNCIAS DA MENTE

Pâmela de Rezende Côrtes1

Palavras-chave: Natureza humana. Ciências sociais aplicadas. Ciências da mente.

Comportamento ético. Comportamento normativo.

Este trabalho tem como objetivo discutir a importância do conceito de

natureza humana. Em especial, pretende discutir como se faz necessário

empreender um diálogo entre as ciências sociais, em especial o direito, e as novas

teorias científicas no campo da biologia na busca pela definição dessa natureza. É

preciso desmistificar as possibilidades de investigação biológica e desligá-las dos

usos antiéticos do século passado, enxergando as pesquisas científicas em campos

como a neurociência, a genética e a evolução como necessárias para a

compreensão da realidade social. Para tanto, é preciso primeiro situar a discussão

num brevíssimo resumo do caminho que o conceito de natureza humana percorreu

até encontrarmo-nos em tempos presentes e nos perguntarmos o que é a natureza

humana contemporaneamente.

1 Ciências do Estado – UFMG. E-mail: [email protected].

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

42

A busca pela compreensão da essência do ser humano, daquilo que o

constitui enquanto tal, e na maior parte das vezes daquilo que o diferencia do

restante da natureza, é uma busca antiga e provém da necessidade de explicar o

homem e a mulher e a existência da sociedade de maneira racional. Rousseau, ao

buscar as raízes do pacto que nos mantém coesos, busca fundamentar suas

concepções através do estudo da natureza humana, “pois o homem nasce bom

quanto tudo quanto sai da natureza(...)” (DEL VECCHIO, 2000, p.155). É no fim uma

busca por aquilo que constitui e define o indivíduo, daquilo que é possível frente a

ele mesmo. No entanto, “o tema da natureza humana não parou de suscitar

interrogação, de Sócrates e Montaigne e a Pascal, mas só se descobriu o

desconhecido, a incerteza, a contradição, o erro. Não alimentava um

conhecimento, mas sim a dúvida sobre o conhecimento.” (MORIN, 1988)

A busca pela natureza humana, no campo da filosofia e das ciências

sociais, foi quase sempre apartada da busca das ciências naturais e encontrava-se

num espaço de transcendência e abstração. Colocava o ser humano não no plano

da natureza concreta, mas num plano superior que corresponderia às infinitas

possibilidades da racionalidade e da ética. Até mesmo a afirmação de que há uma

natureza humana, ou seja, algo para além da escolha que definiria o ser humano a

priori pode ser complicada, já que “com poucas exceções, os cientistas sociais

arrepiam os cabelos quando ouvem falar da hipótese da existência de uma

natureza humana” (LEIS, 2004). Pode-se dizer que, no campo do direito, Kant é um

dos autores que mais contribuíram para o afastamento entre as motivações

humanas e a base biológica e natural do ser humano. “A natureza, dizia Kant, é um

sistema de causa e efeito, enquanto que a eleição moral é um assunto de livre-

arbítrio, para o qual não existe causa e efeito.” (FERNANDEZ, 2008, p.35).

Em grande medida, esse medo de encarar o homem e a mulher

desnudados da divindade que lhes era imputada advém de certo otimismo quase

suplicado quanto ao ser humano. É como se, para que se possa viver em sociedade,

seja necessário partir do princípio de que há bondade inerente, seja por um sopro

divino de bondade, seja pela consciência. A possibilidade de existirem instintos

egoístas, cruéis ou desumanos fere profundamente a visão que se construiu do

próprio ser humano. Dispomo-nos a negar nossa natureza, ainda que isso seja

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

43

negar a realidade, em nome de um idealismo infrutífero. Mas o conhecimento que

é trazido pela ciência não “autoriza ninguém a ser otimista ou pessimista ”. (LEIS,

2004, p. 41)

Contudo, não é mais possível manter esse hiato entre realidade concreta e

abstrata, sobretudo com as novas descobertas nas áreas da neurociência cognitiva,

da genética do comportamento e da psicologia evolucionista. Essas três áreas de

investigação “ trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade,

a biologia e a cultura, em uma forma de explicação científica da mente, do cérebro

e da natureza humana.” (FERNANDEZ, 2008, p.18).

O direito, assim como os demais ramos das chamadas ciências sociais

aplicadas, não pode se eximir de acompanhar a discussão sobre a natureza humana

à luz das novas ciências, chamadas por Atahualpa como ciências da mente. O

direito, esclareço, aqui entendido enquanto sistema de normas que regram a

tessitura social, visando possibilitar uma vida em sociedade e estabelecendo limites

ao comportamento humano.

A resistência quanto a essas pesquisas não advém apenas dos traumas

históricos das teorias eugênicas ou que buscavam legitimar um poder político

através de diferenças biológicas ou raciais. Numa perspectiva mais profunda,

enraíza-se no medo de que não haja espaço para a ética, ou para o direito. Essa é

uma visão equivocada dessas teorias. A própria existência de princípios éticos e

normativos nos mostra exatamente que somos capazes de construir valores e

definir certo e errado. E esses valores não saíram de outro lugar que não o próprio

ser humano, em suas limitações naturais e sociais. O comportamento, tanto ético

quanto normativo, não é negado pelas áreas científicas supracitadas. Ele deve ser

visto inclusive como um produto do cérebro, e, portanto, produto dos mecanismos

da evolução da espécie humana. Isso quer dizer que a existência da natureza

humana não anula o esforço conjunto em estabelecermos parâmetros para uma

boa vida em sociedade. A existência de uma natureza humana, que não é

essencialmente boa ou má, possibilita que o estudo do direito, enquanto ciência,

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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funde-se em bases científicas e racionalmente discutíveis, e não em abstrações que

por vezes se perdem numa linguagem abstrusa e inalcançável.

A existência de uma base biológica não anula a importância das interações

sociais. A convivência com os demais seres humanos e com o restante da natureza

em si é substrato essencial para a construção dos parâmetros de conduta do

cérebro humano, e da própria humanidade enquanto valor. Temos uma

impressionante memória e capacidade de aprendermos, e o desenvolvimento

dessas capacidades pode ser analisado através da teoria evolutiva. Acima de tudo,

as ciências da mente não anulam a possibilidade de existir respeito, altruísmo,

justiça e reconhecimento. Nossa natureza não nos conforma tal qual nos

encontramos no momento presente. Há espaço para as escolhas humanas. Só que

elas não podem se dar em um universo infinito de possibilidades, mas dentro de

alguns limites impostos pela nossa composição físico-química, por exemplo, ou

pelas possibilidades da rede neuronal na leitura de determinada informação.

Então, como compreender a natureza humana contemporaneamente?

Atahualpa Fernandez, em seu livro, assim a define: “uma arquitetura cognitiva

inata estruturada de forma homogênea e funcionalmente integrada”, que não se

constitui apenas enquanto genes e neurônios, mas também se utiliza das

experiências sociais, culturais e de valores aprendidos nessas experiências

(FERNANDEZ, 2008, p.118). Nessa perspectiva, o direito ganha força necessária e

eficaz para resolver problemas “adaptativos práticos relacionados com a crescente

complexidade da vida em grupo” (FERNANDEZ, 2008, p. 175).

O aprofundamento do conhecimento sobre os limites e as possibilidades

biológicas do ser humano, se não ignorado pelo direito, tende a aprimorar o estudo

das melhores e mais importantes regras a serem estabelecidas . Isso porque

compreenderemos até onde podemos ir, e onde precisamos de razões externas a

nós para chegar. É sobretudo através das interações sociais e do aprendizado que

se constroem os valores que são tão caros e a vida feliz em sociedade. Os

mecanismos evolucionais não nos querem afundar na barbárie. Mas também

esclarece que não nascemos inevitavelmente para o bem. Se compreendermos a

forma pela qual as condições biológicas se nos apresentam, teremos “alguma

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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chance de perturbar os seus desígnios, algo que nenhuma espécie jamais aspirou

fazer.” (DAWKINS, 2007, p. 40)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Trad. Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das

Letras, 2007.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Trad. Antônio Carlos. São

Paulo: Lejus, 2000.

FERNANDEZ, Atahualpa. Direito & Natureza Humana: As Bases Ontológicas do

fenômeno Jurídico. Curitiba: Juruá, 2008.

LEIS, Héctor Ricardo. O conflito entre a natureza humana e a condição humana no

contexto atual das ciências sociais. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, n.

10, p. 39-45, jul./dez. 2004. Editora UFPR.

MORIN, Edgar. A natureza humana: o paradigma perdido. 4a. ed. Lisboa: Europa-

América, 1988.

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A NOVA RETÓRICA SEGUNDO MANUEL ATIENZA: UMA

ANÁLISE DAS CRÍTICAS DIRIGIDAS À TEORIA DA

ARGUMENTAÇÃO DE CHAÏM PERELMAN EM AS RAZÕES

DO DIREITO

Marco Antônio Sousa Alves1

Palavras-chave: Atienza; Perelman; Nova Retórica; Teoria da Argumentação.

Em As Razões do Direito, Manuel Atienza avalia criticamente diferentes

abordagens da argumentação jurídica, propondo, ao final do livro, um projeto

teórico próprio (cf. ATIENZA, 2000). Nesse percurso, cinco concepções são

analisadas: a tópica jurídica de Theodor Viehweg, a nova retórica de Chaïm

Perelman, a concepção não formal da argumentação e o modelo de análise de

Stephen Toulmin, a teoria integradora da argumentação jurídica de Neil

MacCormick e a teoria da argumentação jurídica como discurso racional (ou um

caso especial do discurso prático geral) de Robert Alexy. Para cada concepção

analisada, Atienza ressalta seu contexto de surgimento, sua perspectiva teórica

geral e uma sempre detalhada avaliação crítica.

1 Professor da Faculdade de Direito Milton Campos. Doutorando em Filosofia pela UFMG. E-mail: [email protected].

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

47

O objetivo da presente comunicação consiste em analisar as críticas

dirigidas por Atienza à nova retórica de Chaïm Perelman. Pretendemos realizar um

balanço crítico das objeções feitas por Atienza na tentativa de determinar a justeza

e o alcance delas, ou seja, gostaríamos de avaliar até que ponto a nova retórica de

Perelman merece as críticas que lhe foram dirigidas. Para esse exercício, as

principais críticas feitas por Atienza serão organizadas em quatro grupos, que

estruturarão o desenvolvimento deste trabalho: (1) a crítica à problemática relação

entre descrição e prescrição; (2) a crítica ao quadro conceitual obscuro e inútil da

Nova Retórica; (3) a crítica ao conservadorismo prático de Perelman; e (4) a crítica

à ambigüidade do conceito de auditório universal.

A proposta da nova retórica de Perelman acentua a mera descrição de

nossas práticas argumentativas, dando pouca importância ao aspecto normativo da

argumentação, ou seja, não se preocupando em prescrever regras da

argumentação racional. Como a lógica se caracterizou, ao longo da tradição

filosófica, por sua capacidade de nos prescrever regras para podermos raciocinar

corretamente, um estudo lógico incapaz de diferenciar o raciocínio correto do

falacioso é tido por incompleto e insatisfatório. Nesse sentido, ATIENZA (2000:110)

demonstra grande insatisfação quanto aos resultados da nova retórica: “O que não

está tão claro, entretanto, é que a sua nova retórica tenha conseguido realmente

assentar as bases de uma teoria da argumentação capaz de cumprir as funções –

descritivas e prescritivas – que Perelman lhe atribui”. Atienza acredita que a causa

desse relativo fracasso pode ser encontrada na ausência de uma teoria geral da

estrutura dos argumentos no Tratado da Argumentação, tal como Toulmin

desenvolveu. A retórica de Perelman limitou-se à análise da estrutura de cada um

dos tipos ou técnicas argumentativas, descuidando do estudo dos argumentos em

geral.

Talvez Atienza tenha razão quanto à incapacidade do Tratado da

Argumentação de cumprir aquilo que prometeu, ou seja, de assentar as bases

descritivas e normativas de uma teoria geral da argumentação. Porém, o fato de

estar ausente de sua obra uma teoria geral da estrutura dos argumentos pode ser

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justificado pelo acento dado à riqueza das diversas técnicas argumentativas.

Perelman pretende mostrar que é impossível encontrar uma forma geral, aplicável

a qualquer argumentação. Ele é cético quanto à possibilidade de se elaborar um

diagrama da argumentação, pois, como salienta o próprio ATIENZA (2000:85),

“Perelman considera que a estrutura do discurso argumentativo se assemelha à de

um tecido (...). Uma conseqüência disso é a impossibilidade de separar

radicalmente cada um dos elementos que compõe a argumentação”.

É preciso reconhecer que a relação entre descrição e prescrição, fato e

valor, é de difícil equação, seja qual for o lado que se acentue. Apesar de ressaltar o

aspecto descritivo, o conceito de auditório na nova retórica é também a chave para

uma teoria normativa da argumentação. O valor de um argumento é determinado

pela qualidade do auditório que consegue convencer e, no limite, pela adesão do

auditório universal, que serve, portanto, de critério normativo de racionalidade na

argumentação.

Como ocorre com os estudos pioneiros, também a teoria da argumentação

de Perelman introduz um novo aparato conceitual que se justifica em razão de seu

poder heurístico. O Tratado da Argumentação teve o mérito de assentar uma série

de conceitos dos quais grande parte dos estudos retóricos posteriores se serviu.

Entretanto, ATIENZA (2000:110) considera o aparato conceitual de Perelman

obscuro e confuso: “poder-se-ia dizer que, do ponto de vista teórico, o pecado

capital de Perelman é a falta de clareza de praticamente todos os conceitos

centrais de sua concepção da retórica”.

A enumeração das diversas técnicas se sobreporia à proposta sistemática

do Tratado da Argumentação e, mesmo nesse levantamento, as classificações

utilizadas seriam artificiosas, como a distinção entre procedimentos de dissociação

e de associação e aquela entre os argumentos quase-lógicos, os que se baseiam no

real e os que fundamentam a estrutura do real. Em suma, para ATIENZA

(2000:111), “a classificação dos argumentos que aparece no Tratado está longe de

ser clara e inclusive útil”.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

49

Entendemos que a severa acusação de que todos os conceitos centrais de

Perelman são confusos parece decorrer, em certa medida, de uma má vontade

hermenêutica. Ainda que não encontremos sempre a clareza desejável, também

não é verdade (ou é ao menos exagerado) afirmar que são todos sem sentido e de

nada servem. Aliás, o quadro conceitual introduzido na primeira parte do Tratado

da Argumentação é uma grande referência para os estudos retóricos (como as

distinções entre demonstração e argumentação, persuasão e convencimento,

auditório particular e universal, dentre outras). Quanto à classificação das diversas

técnicas argumentativas, feita na terceira parte do Tratado, Atienza tem razão de

desconfiar da descrição oferecida, que realmente parece confusa. Contudo,

entendemos que a função dessa parte no Tratado é apenas ilustrativa. O fato de

Perelman não se dedicar a essas técnicas em seus outros textos parece insinuar

que não está aí o interesse principal de sua proposta teórica. A nova retórica é uma

teoria geral da argumentação e a descrição das diversas técnicas se subordina a

esse propósito. O próprio Perelman não atribui grande valor à forma como essas

técnicas foram organizadas no Tratado, pois também ele sabia de sua imprecisão.

Seu único objetivo foi, e nisso ele foi bem sucedido, apresentar os diversos grupos

de argumento sob suas formas mais características (cf. PERELMAN & OLBRECHTS-

TYTECA, 1970:258, §44).

Segundo ATIENZA (2000:116), “se, do ponto de vista teórico, o pecado

capital de Perelman é a falta de clareza conceitual, do ponto de vista prático esse

pecado é o conservadorismo ideológico”. Ao ressaltar a importância do precedente

e erigir o princípio de inércia como uma regra argumentativa fundamental, a nova

retórica parece dar grande importância àquilo que é comumente aceito, ao status

quo. Essa tese foi vista como uma espécie de aceitação da tradição, que seria, ao

menos a princípio, tida por razoável. Como conseqüência, a proposta de Perelman

acaba por sustentar um perigoso conservadorismo prático, que dificulta qualquer

alteração no ethos e aceita sem mais a tradição. Em resumo, suas idéias não

assumem uma perspectiva crítica.

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50

Antes de entrar no mérito dessa crítica ideológica, é interessante observar

que Perelman se envolveu, ao longo de sua vida, em várias questões políticas e, na

maioria das vezes, dificilmente poderíamos dizer que sua participação foi

conservadora ou subserviente. Quanto ao mérito da crítica, não é nada clara a

conseqüência conservadora que Atienza pretende retirar da importância que a

nova retórica confere aos precedentes. É preciso ter em mente que o princípio de

inércia não deve ser pensado em um sentido conservador. O que se pretende

ressaltar é apenas que toda inovação tem suas raízes na experiência

historicamente vivida (cf. PERELMAN, 1970:304). Não existe invenção a partir do

nada, posto que há sempre um padrão argumentativo prévio que serve de

referência para a criação. Não devemos confundir uma análise lógica dos pontos de

partida de uma argumentação com uma análise política conservadora. Perelman

não defende a tradição, mas apenas vê nela o solo comum do qual devemos partir

em nossas argumentações. Do contrário, nunca se chegaria a um consenso, pois os

pontos de partida seriam sempre conflitantes. Sobre a acusação de que não há, em

Perelman, uma perspectiva crítica, acreditamos que Atienza minimiza a

importância dos auditórios qualificados, e no limite o auditório universal, como

garantes da racionalidade da argumentação. Portanto, ao contrário da conclusão

de Atienza, Perelman dispõe sim de uma noção de decisão razoável, que permite

criticar as práticas meramente persuasivas e manipuladoras, que determinadas

argumentações dirigidas a auditórios particulares podem assumir. Contudo, é

forçoso admitir que Perelman não conduziu sua teoria nessa direção e não

elaborou uma leitura crítica da sociedade contemporânea ocidental.

A dificuldade de compreender o que, exatamente, é o auditório universal,

levou muitos comentadores a considerar esse conceito impreciso, ambíguo e até

sem sentido. Para ATIENZA (2000:114), o auditório universal “desempenha um

papel central na construção perelmaniana, mas há algumas razões para duvidar da

sua solidez”. Manuel Atienza observa que um ponto fraco da proposta de Perelman

está nos critérios de distinção de um argumento fraco ou forte. Uma possível

maneira de interpretar o auditório universal, segundo Atienza, é identificá-lo ao

conjunto daqueles que argumentam com seriedade e boa fé. Assim, a noção não

teria problemas, mas, se fosse apenas isso, seria banal e não justificaria o interesse

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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por ela despertado. O grande problema do conceito de auditório universal estaria

assim na relação entre o seu aspecto ideal, normativo, e o seu aspecto concreto,

fático. Apesar de reconhecer o esforço de Perelman em articular esses dois pólos,

ATIENZA (2000:114-115) observa que “isso não se consegue simplesmente

construindo conceitos em que ambas as dimensões aparecem sem nenhum tipo de

articulação ou pelo menos, sem nenhuma articulação convincente”. Em suma,

ATIENZA (2000:116) vê no auditório universal uma mera justaposição incoerente e

insustentável: “como conclusão de tudo isso, talvez se pudesse dizer que o

auditório universal perelmaniano é, mais que um conceito cuidadosamente

elaborado, apenas uma intuição feliz”.

Entendemos que o teórico espanhol detectou corretamente o problema,

mas não concordamos com a sua conclusão, qual seja, que o auditório universal

seja apenas uma intuição feliz e não um conceito bem articulado. Entendemos ser

possível oferecer uma harmonização conceitual da ambigüidade presente na noção

de auditório universal, que permitiria conciliar em seu interior o aspecto

psicológico, lógico, sociológico e filosófico partindo da distinção entre o ponto de

vista interno e externo ao auditório (cf. ALVES, 2005).

Entendemos que essas críticas conceituais e ideológicas feitas por Atienza

não são plenamente aceitáveis e que uma interpretação mais caridosa e

consistente da obra de Perelman, e em particular da noção de auditório universal,

permite evitar grande parte dos problemas e deficiências que foram identificados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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52

ALVES, Marco Antônio Sousa. A argumentação filosófica: Chaïm Perelman e o

auditório universal. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2005,

206p. (Dissertação, mestrado em Filosofia, Orientador: Paulo Roberto Margutti

Pinto). Disponível em http://hdl.handle.net/1843/ARBZ-7FXHZA.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução

de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2000.

PERELMAN, Chaïm. Le Champ de l’Argumentation. Bruxelles: Éditions de

l’Université de Bruxelles, 1970.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’argumentation: la

nouvelle rhétorique. 2a ed. Bruxelas : Éditions de l’Institut de Sociologie de

l’Université Libre de Bruxelles, 1970.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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AS SENTENÇAS ADITIVAS À LUZ DA HERMENÊUTICA

FILOSÓFICA

Cristiano Soares Barroso Maia1

Alexandre Araújo Costa2

Palavras-chave: Sentenças Aditivas; Jurisdição Constitucional; Hermenêutica

Filosófica.

O presente texto trata das sentenças aditivas, categoria que tem sido

introduzida pelo min. Gilmar Mendes na jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, a partir da experiência italiana. Por meio de tais sentenças, o Poder

Judiciário não interpreta um enunciado normativo, mas complementa o

ordenamento jurídico mediante a adição de uma norma.

O artigo mostra como o STF tem utilizado esse conceito nos últimos anos

para justificar uma postura de ativismo judicial e busca compreender esses

fenômenos a partir das categorias filosóficas ligadas à aplicação das normas. Em

1 Mestrando em Direito na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: [email protected] 2 Professor do Instituto de Ciência Política (IPol) da UnB e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Política e Direito da UnB. Mestre e Doutor em Direito pela UnB. E-mail: [email protected].

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primeiro lugar, avalia-se a relação desta postura com a equidade (epieikeia) de

Aristóteles, visto que ele sustentou que a lei lacunar ou defeituosa deveria ser

retificada pelo julgador (ARISTÓTELES, 2009, p. 173), como se estivesse “no lugar

do legislador”. Mas o núcleo do artigo é a análise das decisões de efeitos aditivos à

luz das contribuições da Hermenêutica Filosófica.

As sentenças aditivas surgiram na prática da Corte Constitucional italiana,

que fora instituída pela Constituição de 1947, responsável pelo restabelecimento

do regime democrático após a Segunda Guerra Mundial. Essas decisões partem do

pressuposto de que um texto legal pode comportar inúmeras normas3, devendo a

Corte Constitucional excluir aquelas consideradas incompatíveis com a Constituição

ou, em alguns momentos, inserir aquelas necessárias para adequar o texto legal à

norma constitucional. Assim, o papel do Tribunal seria o de colmatar o texto legal

lacunoso, de forma a “torná-lo constitucional”; ou melhor, ele adicionaria uma

norma que deveria ter sido prevista anteriormente no âmbito do texto normativo,

para que a lei, se interpretada dessa maneira, seja considerada constitucional e

mantida no ordenamento jurídico.

Uma das primeiras decisões nesse sentido foi a Sentença no 168/1963, por

meio da qual a Corte Constitucional italiana declarou a inconstitucionalidade do

art. 11.1 da Lei do Conselho Superior da Magistratura. Na espécie, a Corte

entendeu que tal ato normativo não poderia ter previsto apenas a competência do

Ministro da Justiça para dar início a procedimentos sobre magistrados no âmbito

daquele órgão, estendendo ao próprio Conselho tal prerrogativa.

No Brasil, a aplicação da sentença aditiva está relacionada à mudança da

postura do STF quanto à omissão constitucional, sobretudo a partir do julgamento

da ADI nº 1351 (DJ 30/03/2007), Relator Min. Marco Aurélio, bem como do

Mandado de Injunção nº 708 (DJe nº 206, publicação em 31/10/2008), Relator Min.

3 Na Filosofia do Direito italiana, é marcante a distinção entre texto e norma. Cf. GUASTINI, Riccardo. “Disposizione vs. norma” em Giurisprudenza costituzionale, Parte Seconda. Milano: Giuffrè, 1989, p. 4.; GIANFORMAGGIO, Letizia. L’interpretazione della costituzione tra applicazione di regole ed argomentazione basata su principi. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Giuffrè, gennaio/marzo, IV Serie, LXII, 1985, p. 89.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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Gilmar Mendes. No julgamento do MI 708, o STF, diante da omissão do Parlamento

em editar a legislação regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos,

resolveu “estender”, no que fosse cabível, a aplicação das Leis nos

7.701/1988 e

7.783/1989, que tratam do direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada,

que exerçam atividades consideradas essenciais. A par disso, resolveu atribuir

competências para órgãos jurisdicionais, a fim de dirimir os litígios decorrentes da

aplicação da citada legislação aos servidores públicos, levando em consideração a

abrangência do movimento paredista.

No âmbito da ADI 1351 (“cláusula de barreira”), diversos dispositivos da

Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, tiveram sua inconstitucionalidade

declarada, uma vez que, segundo o Supremo Tribunal Federal, estabeleciam

parâmetros rigorosos para o funcionamento dos partidos políticos. Caso não

satisfeitos os requisitos legais, o partido político teria inúmeras limitações ao seu

funcionamento, tais como menos recursos do Fundo Partidário e menos tempo no

programa eleitoral gratuito. Nessa ação direta, o STF declarou a

inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, determinando a vigência de um

dispositivo originalmente transitório (art. 57 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de

1995) de maneira indefinida, até que o Parlamento editasse nova legislação sobre o

funcionamento dos partidos políticos.

O aspecto comum nos julgamentos supramencionados é a explícita alusão

à necessidade de se afastar a ideia do legislador negativo4, a fim de que o Tribunal

5

4 Cumpre relembrar que o Supremo Tribunal Federal editou o verbete nº 339 da súmula de jurisprudência predominante, deixando consignado o seguinte: ”não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos, sob fundamento de isonomia”. Assim, embora elaborada no âmbito do controle incidental de constitucionalidade, revela a posição defensiva do Tribunal, em contradição com seus mais recentes julgados. 5 Cumpre esclarecer, desde já, que o Supremo Tribunal Federal, não obstante possuir a função de guardião da Constituição, possui também características de órgão de cúpula do Poder Judiciário. Isso se deve aos desdobramentos históricos pelos quais passou o STF. Num primeiro momento, foi pensado como Suprema Corte, mais próximo do modelo norte-americano. As últimas alterações, contudo, aproximam-no do modelo europeu. Nesse sentido, cf. SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 43 e ss.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

56

possa proferir decisões de cunho aditivo, tal qual a Corte Constitucional italiana e

outros órgãos de jurisdição constitucional da Europa6. Afirma-se, outrossim, que só

poderá enfrentar novas situações que surgem no seu cotidiano, como a omissão

constitucional, se estiver munido de novas técnicas de decisão.

Interessante notar que a prática adotada pelo STF diverge sensivelmente

daquela adotada pela Corte Constitucional italiana. No caso do MI 708, por

exemplo, o Tribunal não enunciou que a Lei de Greve dos serviços essenciais só

seria constitucional, caso alcançasse também a greve no serviço público. Apenas

entendeu que, enquanto não editada norma pelo Poder Legislativo, referido ato

normativo deveria ser aplicado aos servidores públicos, não obstante o argumento

de que estaria reproduzindo suposta técnica já adotada há alguns anos na Itália.

A ideia de Schleiermacher, um dos precursores da sistematização da

hermenêutica, de que a interpretação tinha a finalidade de evitar um mal-

entendido ou algo de estranho no texto (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 31), foi

superada, tal como o psicologismo de que o intérprete deve revelar a intenção do

autor (SCHLEIERMACHER, 2000, p. 43).

A perspectiva heideggeriana apontou para a historicidade do ato de

interpretação (HEIDEGGER, 2010). Gadamer, seguindo essa mesma linha, ressaltou

que interpretação, compreensão e aplicação são partes do mesmo momento, ao

contrário do que sustentava a velha tradição hermenêutica alemã (GADAMER,

2008, p. 407). A compreensão passou a ser encarada como o aspecto fundamental

de realização da pre-sença, que é o in-der-Welt-sein humano (GADAMER, 2006, p.

12). Não só textos, mas qualquer coisa (texto, pintura, gesto, etc.) pode ser objeto

de interpretação, pois somente no espaço entre familiaridade e estranheza da

6 “Portanto, é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional” (trecho do voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 1351).

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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mensagem que nos interpela constitui-se a compreensão de nós mesmos e da

alteridade do outro.

A sentença aditiva subverte a tensão constitutiva da interpretação jurídica.

Não se trata apenas da tensão entre o geral anteriormente dado pelo legislador

(texto normativo) e o particular (situação concreta), mas da necessidade de que o

julgador interprete o caso particular, para, a partir dele, enunciar o geral (faltante).

Não se enquadra a hipótese na conhecida imagem do círculo

hermenêutico, que pressupõe a relação entre a parte e o todo. Tampouco a

sentença aditiva assemelha-se à epieikeia aristotélica, já que não se trata de

flexibilizar a regra geral para um caso particular. Com efeito, está-se diante de uma

problemática que desafia a práxis jurídica, pois sobrecarrega o ato de

interpretação/aplicação com uma nova exigência, a de que o próprio algo a partir

do qual se interpreta seja determinado pelo intérprete.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. 3 ed. São Paulo: 2009.

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar

Duque Estrada. 3 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma

hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

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GIANFORMAGGIO, Letizia. L’interpretazione della costituzione tra applicazione di

regole ed argomentazione basata su principi. Rivista Internazionale di Filosofia del

Diritto, Giuffrè, gennaio/marzo, IV Serie, LXII, 1985.

GUASTINI, Riccardo. “Disposizione vs. norma” em Giurisprudenza costituzionale,

Parte Seconda. Milano: Giuffrè, 1989.

HEIDEGGER, Martin. El ser y el tiempo. Trad. José Gaos. 2 ed. Buenos Aires: Fondo

de Cultura Econômica, 2010.

SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada pela jurisdição

constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação.

Trad. Celso Reni Brada. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

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Direito

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AS TEORIAS DA ARGUMENTAÇÃO COMO MOMENTO DO

DIREITO: A EXPANSÃO DA PUREZA KELSENIANA

Victor Freitas Lopes Nunes1

Palavras-chave: Momentos do Direito; Moldura kelseniana; Teoria da

argumentação; Suprassunção.

O Direito é um objeto complexo e dinâmico, o que faz com que toda vez

que se consiga encontrar uma parcela de sua verdade, ele se transforme a partir

daquilo que foi descoberto. Lidar com um objeto em constante mutação requer a

compreensão exata dos movimentos que compõe essas mudanças.

Busca-se, portanto, avaliar a importância das teorias da argumentação, de

modo a compreender qual é o papel delas para o Direito. Para tanto, estas teorias,

bem como a moldura kelseniana (KELSEN, 1998), serão analisadas de modo a

1 Graduando pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista BIC/UFJF no projeto “Contratos de cooperação tecnológica: o interesse de exploração econômica do agente privado, o direito fundamental do inventor de ser reconhecido como titular da patente e o papel das instituições científicas e tecnológicas”, sob orientação do Prof. Dr. Marcos Vinício Chein Feres. E-mail: [email protected].

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serem compreendidas como universais incondicionados (HEGEL, 2002), que

carecem ser reconhecidas como momentos de concretização do Ser Jurídico.

Um objeto complexo como o Direito, composto de elementos (universais)

incondicionados (HEGEL, 2002), de forma a que esses próprios elementos

estabeleçam a lógica de funcionamento do seu ser, deve ser analisado sob a

perspectiva do todo. Contudo, jamais deve ser esquecido que ao se alcançar a

compreensão, ou parte dela, há que se preservar os momentos que a compõe.

A oposição entre diferentes momentos, os quais em princípio se

entendem como objetos incondicionados em si, impõe a certeza de que mesmo

com a construção de algo diferente a partir deste choque, este novo não será

diferente dos momentos, mas sim composto por eles e, por outro lado, os

momentos em si não se perderão no todo, mas farão parte dele preservando suas

respectivas especificidades consigo. Isto se põe, uma vez que os movimentos em si

são a forma pela qual se expressa o todo, forma esta que impõe como conteúdo a

própria forma de seus movimentos.

Indubitável é a contribuição kelseniana para o Direito, no entanto, a

compreensão do mestre austríaco não exaure o objeto, apenas revela uma de suas

faces.

Já no capítulo I de sua obra mais importante, a Teoria Pura do Direito,

Kelsen (1998) revela quão importante é o processo interpretativo para o ser

jurídico, sem o qual o objeto perde propriedade imprescindível, ou seja, torna-se

não-Direito. Contudo, é no capítulo VIII que é revelada a forma pela qual entendia

o autor que seria processada a interpretação das normas pelos agentes estatais

(administração pública, tribunais, etc.), a interpretação autêntica (KELSEN, 1998),

qual seja a fixação de uma moldura como limiar cognoscitivo de sentido objetivo.

Fica estabelecida a moldura, dentro da qual o agente, discricionariamente, por uma

decisão eminentemente política, deve buscar a solução para os conflitos postos sob

sua análise.

Há que se observar que a forma pela qual o Direito se dispõe, segundo

Kelsen (1998), é orgânica à medida que o processo de validade de normas se

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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estabelece, autonomamente, em consonância com as normas de hierarquia

superior até a norma fundamental. O próprio Direito estabelece por e através de si

mesmo meios para que seja construído de modo a preservar sua existência. É o Ser

Jurídico, portanto, objeto complexo e dinâmico, capaz de (re)produzir-se pela sua

forma mesma. A moldura é, nestes termos, parte desta estrutura orgânica,

momento dela.

Não acreditava Kelsen (1998) que haveria um ponto de vista jurídico que

orientasse o processo de escolha dentro da moldura. É contra essa postura que as

teorias da argumentação, como as de Alexy e MacCormick, para citas algumas das

possibilidades colocadas por Atienza (2006), surgiram, de modo a racionalizar o

processo interpretativo. Neste mesmo sentido, Ferraz Jr. (2011) assevera que a

aplicação do direito (posto), a qual não se confunde com a interpretação, muito

embora esta seja necessária para aquela, é problema do Ser Jurídico. Tem-se,

assim, que a norma não está adstrita ao texto legal, mas sim é veiculada através

dele. Há que se encontrar, portanto, um meio jurídico para decidir.

Importa, aqui, no entanto, não a correção ou as objeções passíveis de

serem feitas às teorias da argumentação, mas o papel que elas desempenham no

Direito. Mesmo porque, tanto as decisões judiciais, por força do artigo 93, IX da

Constituição Federal, quanto os atos administrativos, por força do artigo 50 da lei

9.784/99, devem ser motivados, o que implica em um dever, por parte do agente

público, de argumentar a fim de alcançar a melhor decisão.

Logo, é a motivação indispensável para a validade dos atos decisórios.

Complementarmente ao que defendia Kelsen (1998), no que tange à validade das

normas jurídicas através da hierarquia no ordenamento, há a necessidade de

motivação das decisões, o que impõe a argumentação no sentido de descobrir

tanto a norma insculpida no texto legal, quanto a norma aplicável ao fato, para que

se alcance o Direito. Sob esta perspectiva é que tem grande importância as teorias

da argumentação, como forma de racionalizar o processo decisório, permitindo

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metodologicamente a aferição da correção das decisões, situando-se ao lado da

teoria kelseniana como momento do ser jurídico.

Há, desta forma, complementaridade entre as teorias kelseniana e da

argumentação. Não são elementos exógenos ao Direito, mas sim endógenos,

integram o próprio Ser Jurídico. Não o esgotam, mas o delimitam.

Tanto a moldura, que compreende todas as possíveis hipóteses de solução

a um entrave jurídico, quanto as teorias da argumentação, que visam estabelecer

um parâmetro racional para a escolha dentre as hipóteses postas na moldura, são

momentos do Direito. Desta forma, devem ser colocados juntos, mas preservados

em suas instâncias, no sentido de buscar-se a melhor solução, obedecendo as

possibilidades estabelecidas no ordenamento jurídico, e postulando para cada

decisão uma linha de argumentação coerente tanto interna quanto externamente,

em prol do Direito.

É, pois, necessário que se supere o ideário kelseniano de

discricionariedade do agente público sobre as escolhas dentro da moldura. Não se

deve esquecer de importantes ensinamentos deste mestre, sobretudo o valor do

direito positivo e a necessidade validação das normas conforme a hierarquia do

ordenamento, no entanto, quando se trata da escolha da melhor decisão dentro da

moldura há que se suprassumir o antigo entendimentos através das teorias da

argumentação para que se consiga alcançar através do processo de aplicação das

normas o verdadeiro Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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ATIENZA, Manual. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução:

Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3º ed. São Paulo: Landy, 2006.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.

Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regulamento o processo

administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial [da]

República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1 fev. 1999. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm>. Acesso em: 05 nov. 2011.

FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão,

dominação. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução: Paulo

Menezes. 5ª ed.. Petrópolis: Vozes, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 6º ed. São

Paulo: Martins Fontes, 1998.

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A TEORIA TRIDIMENSIONAL E A FILOSOFIA DO

DIREITO: A OBSERVAÇÃO DE MIGUEL REALE A FAVOR

DA UNIFORMIDADE DIALÉTICA1

Igor Alves Noberto Soares2

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Teoria Tridimensional do Direito; Miguel Reale.

Antes de qualquer abordagem, deixo-lhes cientes de que este trabalho

não é, puramente, obra de um filósofo, ou seja, não aprofunda nas discussões às

quais a Filosofia, como tal, tanto almeja. O que ora o faço é a observação e o

estudo da obra de Reale e procedo, rapidamente, com a aplicação desta no

fenômeno do Direito, sem que haja discussões mais arraigadas em conceitos e

determinismos. Assim, por acreditar que o Direito somente será solidificado

através da observação, posso me considerar, se me permitam, um jurista-filósofo.

Sem mais delongas, passo à análise do que proponho.

1 Pesquisa realizada em função dos estudos empenhados na disciplina de Sociologia Jurídica, ministrada pelo Prof. Dimas Ferreira Lopes, na Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas. O autor agradece aos mestres Dimas Ferreira Lopes e Magda Guadalupe dos Santos, professores da Faculdade Mineira de Direito/PUC Minas, nas respectivas cátedras de Sociologia Jurídica e Filosofia, pela semente da indagação aqui plantada, ainda que na dispersão do meu conhecimento e apreensão do conteúdo, meu cordial agradecimento. 2 Bacharelando em Direito pela PUC Minas, campus Coração Eucarístico. E-mail: [email protected]

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Direito

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Miguel Reale, considerado por muitos o maior jusfilósofo (ou jurista-

filósofo) brasileiro do séc. XX, contribuiu de forma decisiva para com o estudo da

Ciência Jurídica ao nos ofertar a Teoria Tridimensional do Direito, fruto da

preocupação dialética em acrescentar ao sistema os elementos interdisciplinares

capazes de desenvolver novo entendimento e prática quando das relações sociais.

Tais preceitos são basilares para percebermos o fenômeno do Direito e as formas

de manifestação deste em sociedade, sejam através das normas jurídicas ou das

decisões judiciais aplicadas ao caso em concreto.

E Reale já observa, no início de sua obra, que

A verificação de que nossa época assiste a uma profunda renovação

nos estudos filosófico-jurídicos (...) demonstra que o problema da

razão de ser desta disciplina (Filosofia do Direito) não pode ser

apreciado in abstracto, mas em suas necessárias correlações com o

complexo de fatores históricos e sociológicos dos quais decorre a

nova atitude observada (REALE, 2001, p. 1).

Deste modo, ao se envolver com a verificação que apontava a Filosofia do

Direito como veículo de resposta às indagações da sua época, figurando ser tal

questionamento a ausência da aplicação prática exigida para a Ciência do Direito,

Reale inova ao propor um aparelho dialético e unificado. Pensada ainda na década

de 1940 – e publicada em 1968 -, a Teoria Tridimensional é amplamente

aproveitada ao sistema e estudos atuais, vez que apresenta a solução mais

acertada acerca das intervenções às quais o Direito deve observar. É importante

notar que esta teoria não pode ser visualizada fora do contexto a que o autor

remete, qual seja, a apreciação no caso em concreto. E Reale avisa em sua obra

que a Teoria Tridimensional é, ao passo das demais, “concreta e dinâmica”, por

proporcionar uma conexão dialética entre os fatores que a compõe. Repara o autor

que, além da irrefutabilidade entre fato, valor e norma, propõe-se o estudo

debatedor, como já observado, entre tais elementos, que são reflexo e

exemplificam outras ciências (esta é a base da dialética de Reale). Outro dado

importante parte da natureza funcional e dialética entre fato e valor, de cuja

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tensão resulta o momento normativo, relação que mais à frente será debatida com

mais afinco.

Necessário, antes de toda discussão, esclarecer que a Teoria

Tridimensional de Reale não surgiu do nada; tem como base as muitas teorias

tridimensionais da Alemanha (vislumbradas nas obras de Emil Lask e Gustav

Radbruch), da Itália (Icilio Vanni e Giorgio Del Vecchio) e da França (Paul Roubier) e

no tridimensionalismo da Common Law e da Cultura Ibérica. O que diferencia a

matéria de Reale das demais teorias é justamente a desvinculação do

tridimensionalismo genérico e abstrato, bem como a inexistência, em separado, de

cada um dos elementos compositores do Direito, a constar FATO, VALOR e

NORMA.

É cediço que a norma legitima a ação humana, amparando o conteúdo

valorativo desta. Para tanto, Antônio Bento Betioli afirma, perfazendo a mesma

linha de Reale, afirma que

Conseqüentemente, o Direito não é puro fato, não possui uma

estrutura puramente factual, como querem os sociólogos; nem pura

norma, como defendem os normativistas; nem puro valor, como

proclamam os idealistas (...) O Direito congrega todos aqueles

elementos: ‘é o fato social na forma que lhe dá uma norma, segundo

uma ordem de valores’ (...) (BETIOLI, 1989, p. 55).

Segundo o exposto acima, o primeiro autor o enfatizar tal

indissolubilidade, foi Reale, indo além sem tirar desta idéia todos os problemas

nela implícitas, justificando sua dimensão como um todo, em qualquer momento

da vida cotidiana, ao afirmar:

Em geral, os tridimensionalistas (...) têm-se limitado a afirmar o

caráter fático-axiológico-normativo do direito, sem tirar desta

colocação do problema todas as conseqüências nela implícitas e que,

no meu modo de entender, são do mais alto alcance para a Ciência

do Direito, não só para esclarecer e determinar velhos problemas

como também situar questões novas, reclamadas pelas conjunturas

histórico-sociais de nosso tempo (...). (REALE, 2001, p. 53/54).

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Direito

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Assim, a famosa Teoria serve como instrumento esclarecedor de muitas

das dificuldades advindas das relações em sociedade, fruto de fatores históricos e

sociológicos que evidenciam as exigências humanas em determinada época. Mas o

que seria, especificamente, esta Teoria? E, em um segundo plano, como aplicá-la

ao estudo da Ciência do Direito?

O professor João Virgílio Tagliavini, que fez interessante estudo sobre a

obra de Reale, repete as palavras do último e nos ensina que a Teoria

Tridimensional do Direito é a união de um fato anterior que motiva o homem e

torna eficazes seus atos. Relacionando-se a um valor, o fato toma mais sentido. O

valor, percorrendo uma ótica de aceitabilidade social, perdura de geração em

geração como meio fortalecedor e legitimador do fato. Logo, há um sentimento

que concretiza os fatos, que os motivam. Podemos, neste plano, acreditar que é

possível um choque entre fatos e valores, seja pela pluralidade de ações, seja pela

pluralidade de sentimentos direcionados ao fato.

Para Betioli, fato é todo “acontecimento social que envolve interesses

básicos para o homem”; valor é “elemento moral do Direito”, protegido pela lei; e,

desfazendo possíveis conflitos, a norma “consiste no padrão de comportamento

social imposto aos indivíduos” (BETIOLI, 1989, 56).

Temos, portanto, elementos plurais e que variam entre sociedades e

grupos. Neste sentido, a norma faz-se instrumento mais eficiente para organizar e

regulamentar a vida humana em sociedade, concebendo um dever-ser capaz de

nortear tais relações. Indo além, alterando-se os valores (mudanças religiosas e do

senso comum, modos de produção e distribuição de renda, entre muitos outros) os

fatos serão outros, desejando assim novas atribuições normativas capazes de

regulamentar todas estas inovações.

Assim, toda renovação de pensamento, de concepções intelectivas e de

padrões morais aduzem novos fatos. E todo fato requer tutela de um sistema

jurídico que o admita como legítimo [o fato]. Temos, por exemplo, a questão do

aborto. É cediço, em nossa cultura, que o aborto fere as idéias religiosas, expurga

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os padrões de comportamento, manifesta a prática desumana que afasta o ser de

sua essência. Logo, é rechaçado e inviável aos parâmetros jurídicos, tendo em vista

norma do art. 124 do Código Penal Brasileiro que o criminaliza. O que temos, in

casu, é a introspecção entre fato, valor e norma. Ora, se estes padrões se alterarem

e a sociedade, modificando seu modo de agir e pensar, acreditar que o aborto é

viável e correto, dificilmente esta norma se manterá, e o aborto será

descriminalizado. Vale ressaltar que essa discussão é viva nos dias atuais, refletindo

o que fora observado acima. Neste diapasão, Reale reflete que “o Direito só se

constitui quando determinadas valorações dos fatos sociais culminam numa

integração de natureza normativa”. (REALE, 2001, 103).

Lembro-me das aulas do Prof. Dimas Ferreira Lopes, na Faculdade Mineira

de Direito, que conceituava, didaticamente, a união entre fato, valor e norma como

que um sorvete de tutti-fruit: é impossível distinguir o sabor de cada fruta em

separado, mas o que percebemos é um sabor único formado pela mistura dessas

frutas. Assim é o Direito: não é passível de identificação e análise sem a

introspecção direta destes fatores; e repito: não em separado, como que em

choque, mas em constante debate, em dialética.

Para o nosso completo entendimento, Reale nos avisa:

Isto posto, quando um complexo de valores existenciais incide sobre

determinadas situações de fato, dando origem a modelos

normativos, estes, apesar de sua forma imanente, não se

desvinculam do ‘mundo da vida’ que condiciona sempre a

experiência jurídica” (REALE, 2001, p. 103).

Considerando esta relação, é impossível acreditarmos em um sistema que

não leve em importância as especificidades sociológicas e culturais idealizadoras da

norma jurídica, bem como desvirtue a inclinação do Judiciário, no caso em

concreto, aos objetivos sumários de um Direito que, enquanto ciência, deve

proceder com as mais justas decisões à sociedade. E justiça, no critério da

igualdade é o que nos ensina Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços: “A regra da

igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida

em que se desigualam”. (BARBOSA, 1999, p. 27).

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A primeira e mais acertada conclusão que devemos ter é: o Direito, por si

só, não tem a eficácia esperada para resolver todos os conflitos existentes em

sociedade. Importante se faz, então, o entendimento interdisciplinar das relações

humanas e interdisciplinaridade não significa a sobreposição de ciências, mas o seu

devido ajuste e discussão, promovendo uma dialética capaz de uniformidade no

entendimento sobre as sensibilidades humanas e a ideal subsunção do Direito ao

caso em concreto.

A segunda, que para nós é a mais importante, advém do puro

entendimento da teoria de Miguel Reale: formado por fato, valor e norma o Direito

é uma ciência que se encontra e constante renovação. Para que toda modificação

seja aproveitada, necessário se faz a concretização normativa por via do respeito às

alterações valorativas e fáticas presentes em sociedade, único instrumento capaz

de definir a convivência harmônica e pacífica em sociedade.

Muitos podem, ainda, se perguntar: Miguel Reale é um autor

interdisciplinar, ou seja, havia, em suas obras, a consciência e o conceito desta

amplitude? A resposta é muito simples: ao passo que Celso Lafer é um culturalista,

como nos ensina a professora Elza Boiteux, Miguel Reale também o é, mas, para

mim, o que difere este autor dos demais é a construção diversificada (importante

frisar: dialética) de um fenômeno que se impõe a todos, traduzindo-se em

verdadeira implicação de poder e fazer. É claro, Miguel Reale não utilizou tal termo,

interdisciplinar, para enfatizar suas idéias (acredito que o caráter interdisciplinar é

implícito, Reale não precisa dizer para que o entendamos). Reafirmo, à luz dos

estudos de Miguel Reale, que suas ideias são interdisciplinares, para lembrar ao

jurista que, sozinho, o Direito, se encarado puramente como norma, não é e nunca

será o instrumento mais eficaz de tutela da vida do homem em sociedade. É

importante nos abrir às outras Ciências para construirmos o verdadeiro fenômeno

jurídico, pautado na dialética, que não refuta pensamentos ou condões, mas que os

soma e se deixa levar por esta introspeção.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Rui. Oração aos moços/Anotada por Adriano Gama Kury. 5ª ed – Rio de

Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997.

BETIOLI, Antônio Bento. Introdução ao Direito – Lições de Propedêutica Jurídica.

BRASIL. Código Penal. 10ªed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008.

REALE Miguel. Teoria Tridimensional do Direito – 5ªed. rev.e aum. São Paulo:

Saraiva, 1994.

TAGLIAVINI, J.V. Teoria Tridimensional do Direito segundo Miguel Reale. Disponível

em: <http://www.cntp.embrapa.br/agromet/el nino2>. Acesso em: 20 de outubro

de 2011.

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CINISMO E BIOPOLÍTICA COMO ELEMENTOS DA

CRÍTICA DE ALAIN BADIOU AOS FUNDAMENTOS DA

ÉTICA DOS DIREITOS DO HOMEM

Eder Fernandes Santana1

Palavras-chave: Cinismo; Biopolítica; Crítica; Direitos do homem.

A reflexão sobre os direitos humanos foi alçada a um eixo teórico da

Filosofia do Direito na atualidade. Unanimidade entre os pensadores do Direito,

dificilmente se encontra uma palavra crítica com relação aos direitos do homem.

Nesse contexto, ganha importância a crítica ampla e profunda que o filósofo Alain

Badiou tece, na obra Ética: ensaio sobre a consciência do mal (1995), ao que

denomina dispositivo ético dos direitos do homem.

O recorte para o presente trabalho se dá com relação àquilo que Badiou

traz, como crítica ao que denomina ideologia ética, no bojo da pressuposição da

inserção da vida nos cálculos da economia e da política na forma de discurso cínico.

1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Objetiva-se problematizar a biopolítica e o cinismo como elementos da crítica de

Badiou aos fundamentos da ética dos direitos humanos.

A contestação de Badiou se centra em dois sentidos. O primeiro, na ideia

de uma “identidade natural ou espiritual do Homem” (BADIOU, 1995, p. 19). Isso

está no âmago da doutrina ética atual, a qual, segundo ele, é entendida como

“legislação consensual referente aos homens em geral, suas necessidades, sua vida

e sua morte” (Idem). O segundo sentido, explicitação do primeiro, é a contestação

da “delimitação evidente e universal do que é o mal, do que não se coaduna com

essência humana” (Idem).

Badiou qualifica de zombaria a proclamação do fim das abstrações mortais

das ideologias, feita pelos defensores da ética contemporânea, fundada no retorno

ao Homem abstrato e a seus direitos. É zombaria porque, ao recorrer a categorias

abstratas, como Homem e Direito, a ética contemporânea dos direitos do homem

se converteria, segundo Badiou, em “ideologia ética”.

Com o conceito de cinismo desenvolvido por Vladimir Safatle, em Cinismo

e falência da crítica (2008), verifica-se pertinência do esforço de crítica de Badiou à

ideologia ética. O desafio é de tentar compreender como a ideologia permanece

nas sociedades “pós-ideológicas”, que, segundo Safatle, não recorrem a

meganarrativas teleológicas para fundamentar “[...] processos de legitimação de

estruturas de racionalização social” (2008, p. 11). Não obstante, essa transparência

teria se tornado “o cerne da opacidade constitutiva de nossa realidade partilhada”

(idem, ibidem).

A zombaria resulta do cinismo. Este como modo de racionalização das

múltiplas esferas de interação social unificadas na forma de vida hegemônica do

capitalismo contemporâneo (SAFATLE, 2008). Safatle justifica o caráter hegemônico

da forma de vida capitalista no fato de esta “[...] implementar modos de conduta e

valorização que realizam a normatividade intrínseca ao processo de reprodução

material da vida [...]” (SAFATLE, 2008, p. 12).

A hipótese central de Safatle é de que “[...] os regimes de racionalização

das esferas de valores da vida social na modernidade capitalista começaram a

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realizar-se (ou, ao menos, começaram a ser percebidos) a partir de uma

racionalidade cínica” (2008, p. 13). Cínica porque se vê a si mesma e se legitima

como figura da racionalidade. É possível entender o esforço de Badiou como

direcionado a contraditar o cinismo da ideologia da ética dos direitos humanos.

A orientação ética criticada por Badiou tem como referência explícita uma

leitura da filosofia de Immanuel Kant. Um amplo, porém parcial, retorno a Kant, de

quem se conserva, essencialmente, a existência de “[...] exigências imperativas,

formalmente representáveis, que não devem ser subordinadas a considerações

empíricas ou a exames de situação” (BADIOU, 1995, p. 20). Ao que Badiou (1995)

acrescenta, do que se conserva da imagem kantiana: a referência desses

imperativos ao Mal; que um direito, nacional e internacional, deve sancioná-los e,

por consequência, os governos devem fazer figurar tais imperativos em sua

legislação, e a possibilidade de sua imposição.

O núcleo da crítica de Badiou reside na constatação de que a ética é

concebida ao mesmo tempo como capacidade a priori de distinguir o Mal (porque,

segundo o uso moderno da ética, o Mal – ou o negativo – vem primeiro: supõe-se

um consenso sobre o que é bárbaro) e como princípio último de julgamento

político: é exatamente o que intervém de maneira visível contra um Mal

identificável a priori (BADIOU, 1995).

Como decorrência, o direito e o Estado de Direito são identificados na

referência ao Mal. O direito, como “direito ‘contra’ o Mal”, e o Estado de direito,

legitimado porque “somente ele autoriza um espaço de identificação do Mal”

(BADIOU, 1995, p. 21) e fornece o aparato judiciário de arbitragem.

Em Para uma nova teoria do sujeito (1994), entre os pressupostos

levantados por Badiou nesse núcleo de convicções, sobressai suposição de sujeito

humano geral e a subordinação da identificação desse sujeito ao reconhecimento

do mal que lhe é feito.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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O que Badiou (1994) considera inaceitável é a identificação desse homem

abstrato a partir do mal que lhe sucede, a sua definição como vítima. Os “direitos

humanos” são os direitos ao não-Mal: não ser ofendido ou maltratado em sua vida

(horror à morte e à execução), em seu corpo (horror à tortura, às sevícias e à

fome), nem em sua identidade cultural (horror à humilhação das mulheres, das

minorias etc.) (BADIOU, 1995).

A suposição de um sujeito humano universal e a identificação do homem

como vítima, o reconhecimento universal do mal que lhe é feito – eis os

fundamentos da ética dos direitos do homem segundo Badiou (1995, p. 22).

Esse reino da ética se caracteriza pela combinação niilista de resignação

diante do necessário e vontade puramente destrutiva (BADIOU, 1995). O filósofo

entende por niilismo a vontade do nada, reverso de uma necessidade cega. A ética

vem cimentar tanto a resignação às necessidades econômicas quanto a impotência

da vontade do nada.

A necessidade econômica, ou a lógica do Capital, seria o eixo da

organização das subjetividades. A política parlamentar passa a transformar o

espetáculo da economia em opinião consensual que remete a subjetividade a uma

impotência rancorosa, cujo vazio se vê preenchido pelo processo eleitoral e pelos

discursos políticos. Alia-se a ética em seu papel de ratificar a ausência de qualquer

projeto, de qualquer política emancipatória, ao aceitar o jogo do necessário como

base objetiva de todos os juízos de valor (BADIOU, 1995).

A hipótese central deste trabalho é o aspecto biopolítico da crítica de

Badiou aos fundamentos da ética contemporânea dos direitos humanos, porque o

niilismo ético se sustenta num “[...] desejo mortífero, que promove e oculta num

mesmo gesto um domínio integral da vida” (BADIOU, 1995, p. 46).

Michel Foucault, em Microfísica do poder (2004), levanta a hipótese de

que o capitalismo, em seu desenvolvimento na passagem do século XVIII para o

XIX, promoveu a socialização do corpo enquanto força de produção, força de

trabalho. Acrescenta que o controle sobre os indivíduos começa “no corpo, com o

corpo”, que é “uma realidade biopolítica” (FOUCAULT, 2004, p. 80). Por biopolítica,

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Direito

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Foucault, em A vontade de saber (2006, p. 155), entende “[...] o que faz com que a

vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-

saber um agente de transformação da vida humana”.

O poder sobre a vida é exercido sob duas formas: a anátomo-política do

corpo humano no interior das práticas disciplinares, que asseguram a extorsão da

força de trabalho, sua utilidade e docilidade; e via controles regulares numa

biopolítica da população exercidos sobre o “corpo transpassado pela mecânica do

ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 2006, p. 152).

A biopolítica remete, no pensamento de Foucault, à passagem da

consideração do eixo saber-poder à questão da arte de governo. Por governo,

entende, num sentido largo, os “[...] mecanismos e procedimentos destinados a

conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos

homens” (FOUCAULT, 2010, p. 43), no eixo dos domínios do saber, do poder e da

subjetividade.

Dessa construção foucaultiana, importa ressaltar que, embora a vida tenha

sempre feito parte da história, com a modernidade e o desenvolvimento do

capitalismo, o investimento sobre a vida exclui a dimensão política e implica

constituição de subjetividades com o fim de controle do corpo, do tempo e das

forças.

O conceito de biopolítica ocupa o centro da reflexão do filósofo italiano

Giorgio Agamben, especialmente na obra Homo sacer (2010), que, ao contrário de

Foucault, que refere a biopolítica à modernidade, o faz à tradição do pensamento

político ocidental.

Para Agamben (2010), biopolítica é a politização da vida nua (zoé, ou vida

natural), redução das pessoas a sua pura existência biológica. A “inscrição da vida

nos mecanismos do poder estatal” resulta em que a “proteção da vida pode ser

também cálculo sobre a vida, pode ser igualmente descarte da vida”

(NASCIMENTO, 2010, p. 146). “Num sentido eminentemente jurídico, poderíamos

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ainda entender a vida nua como aquela despida de seu estatuto de direito, nua de

personalidade, desprovida da capacidade de contrair direitos e obrigações”

(NASCIMENTO, 2010, p. 139).

Com Agamben (2007), a advertência de que é chegado o momento em

que é preciso cessar de ver as declarações universais de direitos como

proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos, que pretendem vincular o

legislador e levá-lo a respeitar princípios éticos eternos. Urge, segundo o filósofo

italiano, considerar as declarações de direitos de acordo com a sua função histórica

real na formação do moderno Estado-nação, qual seja a de representar a figura

original de inscrição da vida natural na ordem jurídico-política.

Como aspecto do niilismo, a ética dos direitos humanos oscila entre dois

desejos: um conservador, o reconhecimento da legitimidade da ordem própria à

situação ocidental, a economia objetiva selvagem imbricada ao discurso do direito;

e um desejo de catástrofe.

A análise da crítica de Alain Badiou à ética dos direitos do homem, tendo

por base a concepção de cinismo desenvolvida por Vladimir Safatle e a de

biopolítica, por Michel Foucault e por Giorgio Agamben, permite afirmar que a

inserção da vida nua na política, resultante da governamentalidade fomentada pelo

liberalismo, encontra na ética contemporânea e ocidental dos direitos humanos um

perfil de sua face cínica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de

Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 (Humanitas).

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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BADIOU, Alain. Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Trad. de Antônio

Transito, Ari Roitman. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Trad. de

Emerson Xavier da Silva. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. História da Sexualidade 1. Trad. de Maria

Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 17. ed. Rio de Janeiro:

Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France 1979-1980:

excertos. Tradução, transcrição e notas Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura

Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2010.

NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de

Giorgio Agamben. 2010. 193 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

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CRÍTICA À ESSENCIALIDADE DO DIREITO: A RELAÇÃO

OBJETIVA ENTRE RAZÃO E MORAL

Marcelo Corrêa Giacomini1

Palavras-chave: Essencialismo; Moral; Razão; Direito.

Este estudo objetiva, de um modo geral, realizar um questionamento

sobre a concepção essencialista do Direito, problematizando se o Direito teria uma

propriedade em si, ou, mais especificamente, tentaremos questionar se o Direito

prescindiria, para existir, de certa eticidade. Dentro desse enfoque, procuraremos

refletir sobre o discurso que proclama que o Direito deve aparecer onde a moral é

falha ou ineficaz. Nesse sentido, contra-argumentaremos tentando traçar uma

perspectiva em que o pensamento que acusa essa falha da moral, ou pouca

capacidade de eficácia da moral em relação a coercibilidade, adviria justamente por

meio de um juízo racional-moral, não em relação a um racionalidade jurídica

própria que a corrigisse, ou através de um conceito de Direito. Desse modo, nos

posicionaremos no sentido de afirmar que a razão possuiria suficiente autoridade

universal para não depender de uma eticidade do Direito, exterior a ela, para poder

produzir uma auto-crítica. Tomaremos como base, portanto, a ideia de que o juízo

moral seria aquele que nos permitira a crença em um aspecto universal da ação

1 Mestre em Estudos Linguísticos pela UFMG. E-mail. [email protected].

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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prática, e que a descoberta de uma essencialidade do Direito não atingiria, nem

para melhor nem para pior, esse fator de universalidade.

Neste ponto, procurar-se-á argumentar, primeiramente, que não seria

necessário, para se estabelecer normatização às ações que procuram uma

autoridade universal na razão, de se buscar um fundamento fora da própria

racionalidade prática. Nesse sentido, a construção racional da norma, através de

seu sentido incondicional, está inserida tanto na justificação axiológica do

fenômeno jurídico, quanto no reconhecimento da necessidade de coercibilidade da

lei.

Em segundo lugar, procurar-se-á defender a ideia de que não haveria um

momento de chegada cuja positivação do Direito representasse uma eticidade

(ética como propriedade essencial), momento histórico em que a justificação da

prerrogativa de ter direitos se fundamentasse apenas na ideia da existência desses

direitos.

Não pretenderemos, com isso, propor um norte ou um sentido do debate,

clássico na teoria jurídica, da relação entre direito e moral, ou entre moral e ética.

Nosso ponto de debate gira em torno da concepção entre razão e Direito, na busca

por uma verdade redentora ou essencialidade que seja o fundamento último do

fenômeno jurídico.

Tentaremos, portanto, refletir sobre o instigante e inovador trabalho da

jusfilósofa Brochado (2006) que procurou desenvolver a concepção do Direito

como maxium ético. Nesse sentido, a autora procurou representar a eticidade, a

essência do Direito, estipulando que:

A ideia de eticidade do direito que pretendemos apresentar, transita

pelo momento da objetividade jurídica em si mesma, já pressuposta

na intersubjetividade ou como derivada dela. E é na objetividade em

si que a eticidade é considerada como realização máxima do direito,

não como direito positivo apenas, mas como o projeto de direito que

se constrói sucessiva e historicamente sobre ele, e que já surge nas

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consciências como forma jurídica, e não estritamente moral (singular)

(BROCHADO, 2006, p. 201).

A partir desses elementos inseridos acima, como essencialidade,

singularidade ou individualidade da moral, realização máxima, que procuremos nos

apoiar para elaborar uma crítica sobre a necessidade de certa essencialidade do

Direito.

Para tanto, procuraremos nos apoiar em duas análises de Richard Rorty,

como forma de “limpar o terreno”, de modo a se representar como a forma

dualista de se representar a essencialidade de determinado objeto, ou, no caso, o

Direito, a partir de uma concepção de se chegar a uma verdade redentora. Por

outro lado, poderemos chegar à análise de Thomas Nagel, que defende a

incondicionalidade da razão como instância última de justificação. Dessa forma,

razão e busca de uma essencialidade não necessariamente precisão se conjugar, ou

seja, a busca por uma universalidade moral não necessariamente deve estar

vinculada a uma representação essencialista seja da moral seja do Direito ou da

ética.

Refutando, desse modo, determinados tipos de concepções essencialistas,

Rorty provoca o vocabulário metafísico enquanto constituído por meio dos

fundamentos dualistas propondo que seria válido considerarmos a importância da

prática e da ação, sem que seja necessário determinar a separação entre uma

realidade intrínseca das coisas, onde esta provocaria uma busca por uma verdade

incondicional e necessária, e outra realidade que viveria no mundo das aparências,

tida pelos metafísicos como falsamente contingente e relativista.

O antiessencialista no pensamento Rorty vê as coisas como não

pertencendo a uma instância última de significação. O antiessencialista procura

conceber a análise dos objetos como formas de contextualização desse objeto à

rede de crenças a que esse objeto estaria submetido. Ao contextualizar a relação

entre crenças e verdades sobre os objetos ou sobre as coisas, Rorty afirmaria sua

recusa em aceitar que determinadas definições, conceitos ou descrições tenham

um caráter de mais verdade ou de mais essencialidade que outros que são

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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utilizados de forma prática, mas que não estão necessariamente incluídos na

legitimidade epistemológica, pautada por aquele tipo de dualismo metafísico.

Com a finalidade de clarificar mais sobre a concepção antiessencialista

proposta por Rorty, vale a transcrição dessa longa citação, onde Rorty esclarece

com propriedade essa metáfora ou argumento dos números:

Para entender o que estou querendo dizer, perguntem-se qual a

essência do número 17 – o que o 17 é em si mesmo, independentes

de suas relações com os outros números. Com isto, o que se quer é

uma descrição do número 17 de um tipo diferente de qualquer das

seguintes descrições: 17 é menor que 22; 17 é maior que 8; 17 é a

soma de 6 e 11; 17 é a raiz quadrada de 289; 17 elevado ao quadrado

é 4.123.105; 17 é a diferença entre 1.678.922 e 1.678.905. O que há

de cansativo em fazer todas essas descrições é que nenhuma delas

parece se aproximar mais do número 17 que qualquer outra. O que é

igualmente cansativo é saber que, obviamente, poderíamos fazer um

número infinito de descrições alternativas do número 17, e todas elas

seriam igualmente “acidentais” ou “extrínsecas”. Nenhuma dessas

descrições parece nos dar uma pista para alcançarmos a intrínseca

dezesseteidade do dezessete – o aspecto singular do 17, que faz dele

o número que é. Pois a escolha de qual dessas descrições de 17

devemos aplicar é obviamente uma questão do que temos em mente

– em primeiro lugar, a situação particular que nos levou a pensar no

número 17 (RORTY, 2000, p. 65).

Independentemente da relevância epistemológica desse tipo de

argumento, o posicionamento antiessencialista nos serve para podermos visualizar

como um juízo objetivo não necessita de corresponder a uma realidade intrínseca,

um estado do ser que explicite como os fenômenos verdadeiramente são. O

problema maior é tentarmos contrapor a necessidade ( ou aparente necessidade)

de se estipular uma objetividade essencialista do Direito, como quer a jusfilósofa,

com o relativismo ou o subjetivismo apontada na moral.

Nesse sentido, Nagel procuraria considerar a razão como uma forma de

colocar a instância da razão como modo onde:

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82

(...) a razão deve ser uma forma ou categoria de pensamento que

constitua uma instância para além da qual não haverá apelo – uma

instância cuja validade é incondicional, pois é necessariamente

chamada a atuar em todo desafio em que ela própria se envolva. Isto

não quer dizer que não haja apelo contra os resultados de qualquer

exercício particular da razão, já que é fácil cometer erros em matéria

de raciocínio ou encontrar-se completamente à deriva no tocante a

quais conclusões será permitido extrair dos raciocínios. (NAGEL,

2001. P. 16).

Desse modo, procuramos associar as concepções desses dois autores, em

muitos pontos contrárias, para poder criticar a busca de uma essencialidade

jurídica, como forma de exterioridade que superaria a racionalidade prática da

moral, sem que se busque analisar a possibilidade da moral não representar uma

subjetividade ou abstração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BROCHADO, Mariá. Direito & Ética: a eticidade do fenômeno jurídico. São Paulo:

Landy, 2006.

NAGEL, Thomas. A Última Palavra. Trad. de Carlos Felipe Morais. São Paulo: UNESP,

2001.

RORTY, Richard. Pragmatismo: a filosofia da citação e da mudança. Trad. de Cristina

Magro e Antônio Marcos Pereira. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

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DE CARL SCHMITT A JACQUES DERRIDA: O CONFLITO E

AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO E A DEMOCRACIA

Bruno Meneses Lorenzetto1

Katya Kozicki2

Palavras-chave: Política; Conflito; Amizade; Democracia; Alteridade.

A partir do pensamento de Jacques Derrida se desenvolve uma estratégia

de leitura que partindo daquilo que é familiar, “natural”, permite chegar ao seu

oposto, rumo à sua ambivalência. Em alguma medida este jogo de palavras indica

aquilo que será desenvolvido no presente artigo: a procura pela ambivalência e a

desestabilização das dicotomias amigo e inimigo e daquilo que é familiar,

pertencente à casa e o exterior, estranho e suas respectivas influências no campo

político na modernidade.

1 Professor do Programa de Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected] 2 Mestre e Doutora em Filosofia do Direito pela UFSC. Visiting Researcher Associate no Center for the Study of Democracy, University of Westminster, Londres, 1998-1999. Professora dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná e da Pontíficia Universidade Católica do Paraná. E-mail: [email protected]

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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Assim, a filosofia de Derrida possui sentido político naquilo que se refere à

relação entre a aporia e a decisão, e não no que diz respeito à filosofia unilateral da

aporia nem naquilo que concerne a uma filosofia unilateral da decisão; ou seja, a

aporia seria o lugar no qual se encontra a força política da desconstrução.

A própria ideia de uma leitura desconstrutiva pressupõe uma leitura

clássica, das tendências dominantes do texto. Apenas após a realização deste tipo

de leitura, ou através dela, ou em conjunto com ela, a leitura desconstrutiva se

coloca para apontar as aporias e os becos e tornar as coisas mais difíceis.

Por consequência, o político seria um espaço do indecidível, constituindo

ao mesmo passo uma chance e um risco e, nesta perspectiva, é possível aproximar

as posições de Derrida com as de Hannah Arendt, para quem o político constitui

uma espécie de risco, pois o político é o campo próprio da ação, que comporta

certa imprevisibilidade e irreversibilidade, mas que, ao mesmo tempo, também

abrange a ideia da natalidade, ou seja, a possibilidade da irrupção do novo, do

inesperado.

O projeto de Derrida consiste em apresentar um debate sobre o político

que vá além do princípio da fraternidade. Ou seja, se a política se coloca em uma

postura para além das dimensões primárias identificadoras como a da casa, da

família, da nação homogênea, da mesma língua e do mesmo povo, ela ainda

mereceria o nome de política? Pois, como afirma Derrida, o conceito de política,

em raras vezes se anuncia, sem alguma forma de aderência, vinculação, ao Estado

e à família, sem alguma filiação esquemática.

A partir disso é possível nortear a questão da amizade como uma questão

permeada pelo político.

Para Arendt, a ação e a reação jamais se restringem, entre os homens

(inter homines esse), a um círculo fechado, e não é possível, em decorrência disso,

limitá-la com qualquer pretensão de segurança. Para Arendt, a impossibilidade de

limitação seria típica da ação política, pois, qualquer ato, mesmo em circunstâncias

restritas, carrega a semente da ilimitação, eis que um ato ou uma palavra (a ação e

o discurso) são suficientes para que todo um conjunto ganhe uma nova disposição.

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Direito

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Em outro prisma da mesma questão, para Carl Schmitt o político está

relacionado com os laços de amizade e inimizade, refere-se à criação de um “nós”

em oposição a um “eles” e, além disso, constitui um reino da decisão, não da

discussão livre. Seu tema principal é o conflito e o antagonismo e isto indica

precisamente as fronteiras da possibilidade de formação de um consenso racional,

o fato de que todo consenso se baseia forçosamente em atos de exclusão.

Uma das principais preocupações de Schmitt era com a manutenção do

lugar do político na modernidade, em especial em sua época, na qual foi observado

o crescimento do parlamentarismo democrático, ao qual opôs críticas severas.

Para Schmitt, a relação entre amigo-inimigo representa o critério

específico que determina a dimensão política das relações sociais, assim como belo

e feio no âmbito estético, custo e benefício no plano econômico.

Na interpretação de Chantal Mouffe, aquilo que importa para Schmitt é a

possibilidade de traçar uma linha de demarcação entre aqueles que pertencem ao

demos, e que, por isso, possuem direitos iguais, e aqueles que, no campo político,

não podem estar protegidos pelos mesmos direitos iguais, pois não fazem parte do

demos.

Ademais, o conceito central de democracia não se refere à humanidade,

mas a um povo, de tal forma que não pode haver uma democracia da humanidade

como os liberais a projetam.

Derrida desconstrói a perspectiva de Schmitt em dois movimentos.

Primeiro, ao insistir que a decisão deve ser transpassada pela aporia, pela qual toda

a teoria da decisão deve estar enlaçada. Assim, a figura do inimigo, condição do

político enquanto tal toma forma a partir da descoberta de sua perda, ou seja,

desde a descoberta da possibilidade da perda do inimigo e do político. Por isso, a

responsabilidade pelo outro, uma hetero-nomia, o nomos da alteridade, se rebela

contra o decisionismo presente no conceito de soberania ou exceção.

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Em segundo lugar, para Derrida a inversão da repulsão pelo inimigo em

atração pode vir a ocorrer se não existir um amigo em certo lugar (externo) e lá

apenas for encontrado o inimigo, de modo que a necessidade de um inimigo pode

transformar a inimizade em amizade.

A preocupação infinita com o outro também leva Derrida a refletir sobre

as consequências da perda do inimigo. A perda do inimigo, hostis, não

representaria um progresso, uma reconciliação ou a abertura pra uma era de paz e

fraternidade humana.

Este projeto universalista da amizade seria um contra-senso, pois não seria

possível falar de um inimigo da humanidade. Segundo Derrida: “Um crime contra a

humanidade não é um crime político”. A humanidade não possui um inimigo, eis

que, qualquer um que fale em nome da humanidade enquanto humanidade

desloca o discurso e deixa de falar sobre o político em seu sentido schimittiano.

Acresce-se que a formação da identidade, pessoal ou coletiva, constitui-se

a partir da confrontação com um inimigo. Por este motivo, Schmitt acaba por

priorizar a figura do inimigo em detrimento do amigo em suas teorizações. É

translúcida a identificação do inimigo na obra de Schmitt, enquanto que o papel do

amigo, aquilo que constitui o nós é colocado em segundo plano. A prevalência do

inimigo ocorre pelo fato de que ele permite a uniformidade, o fortalecimento do

espírito comunitário contra o mal externo, alheio, do outro.

A diferença é aquilo que a identidade procura, assim como o inimigo no

campo político, mas possui dificuldade em fixá-la, segurá-la em um lugar, ou seja,

estabilizar sua identificação. Em suma, a diferença trataria de um problema de

identidade, do mesmo. De acordo com Bonnie Honig, pluralistas e mais

recentemente multiculturalistas têm procurado domesticar ou limitar a diferença

ao tomar identidades ou afiliações como seus pontos de partida, ao tratar a

diferença como simplesmente uma identidade diferente dentro de uma

comunidade maior.

Seriam insuficientes, para a autora, os projetos que procuram teorizar a

democracia e a diferença, que apesar de afirmarem as diferenças, lhe limitam um

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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espaço de segurança, exterior, alheio ao campo democrático. De modo que as

diferenças e conflitos que surgem já são preparados, com o fim de reafirmar

espaços de segurança – no caso, privados – como a casa. Assim, a política entra em

uma degenerescência pois se identifica com o familiar, o qual passa a ter a tarefa

de garantir, tanto ao pluralismo como, ao multiculturalismo, docas seguras para

aportar seus conceitos.

Em termos schmittianos, a partir da oposição entre o nós e o eles, pode-se

indicar que a constituição, a formação de um povo e de sua auto-imagem, sempre

toma parte em um campo de conflito e, demanda a existência de forças

concorrentes. De fato, não há articulação hegemônica sem a determinação de

fronteiras, a definição daqueles que ficam do lado de fora.

Tornou-se necessário, portanto, não apenas a desnaturalização, a

desconstrução da amizade, mas também suas “adjacências”, como a casa. Se a casa

e a nação precisam ser resignificadas, arquitetadas sobre outra narrativa, este

processo demanda uma outra imagem do próprio útero, o qual é histórica e

psicanaliticamente a âncora, o sonho máximo da casa.

Assim, ao invés de se pensar a relação entre mãe e feto como a da perfeita

simbiose, observa-se que há a relação entre uma identidade genitora e outra

“alienígena”, diferente, e até mesmo “invasora”. Uma relação que é, ao mesmo

tempo, cooperativa, mas também conflituosa.

Desta maneira, o objetivo central do presente artigo é buscar novas

formas de (re) articulação entre o direito e a democracia, as quais permitam

ampliar o espaço do jogo democrático e o reconhecimento efetivo do outro e da

alteridade. A vivência democrática implica uma lógica de exclusão e inclusão

característica das sociedades contemporâneas, o outro que tanto o discurso

jurídico quanto o discurso político projetam. Assim, uma nova maneira de pensar a

amizade, a partir de Derrida, permitiria a construção de laços de solidariedade

efetivos e a ampliação da coesão social necessários ao aprofundamento da

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democracia. Do mesmo modo, permitiria também redimensionar o papel do

Direito nas sociedades contemporâneas.

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DIALÉTICA ENTRE OPINIÃO E VERDADE: CONTRÁRIO,

CONTRADITÓRIO E A SÍNTESE DOS OPOSTOS

RELATIVOS À ESCRAVIDÃO DOS NEGROS EM

MONTESQUIEU

Luiz Augusto Lima de Ávila1

Palavras-chave: Lógica; Contraditório; Síntese dos opostos; Hermenêutica;

Escravidão.

1 Possui Doutorado em Letras - Linguística e Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010), Mestrado em Teoria do Direito (2004) e Mestrado em Direito Internacional e Comunitário (2000) pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes (1994). É especialista (lato senso) em Direito Processual (1999), Direito do Trabalho (1998) e Direito Empresarial (1997) pela Faculdade de direito do Oeste de Minas e especialista em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2006). É Professor Adjunto III na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e leciona na área de Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, com ênfase em Teoria do Direito (Filosofia do Direito, Lógica, Linguística, Hermenêutica, Introdução ao Estudo do Direito e Metodologia do Trabalho Científico). Leciona a disciplina de Metodologia do Trabalho Científico, lógica e Hermenêutica nos Curso de Pós-Graduação (Especialização) em Direito Tributário, Direito de Empresa, Direito do Trabalho e Direito Processual junto ao IEC - Instituto de Educação Continuada da PUC Minas. E-mail: [email protected].

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Dadas as vicissitudes contextuais, a acepção do termo dialética é tão

variável que, para sua inteligibilidade, impõe-se o seu dimensionamento prévio ou

o sentido em que esta sendo tomado. Se seu autor, qualquer que seja ele, o usa a

esmo, sem uma preocupação maior em defini-lo, perde-se, às vezes, a

oportunidade fundamental de dimensioná-lo ou de lhe dar sentido; pois, o que há

de apodítico no vasto campo daquilo que é somente dialético? No entanto, diante

de tal problemática é que se propõem, para a inteligibilidade da dialética ao longo

da história, duas grandes linhas que podem ajudar no seu dimensionamento e

sentido, ou seja, a história da dialética antiga e a nova dialética.

A dialética antiga, assim se definindo até Hegel (1770 – 1831), tem sua

origem na Grécia antiga. O vocábulo, de origem grega, é dimensionado pelo

substantivo “logos” e pelo prefixo “dia”. “Logos” designa palavra, discurso, ou

mesmo razão e “dia” designa a ideia de reciprocidade e de intercâmbio.2 Dada a

etimologia do termo, podemos inferir que dialética é a arte da palavra ou a arte da

discussão; não no sentido de retórica cujo fundamento está na verossimilhança,

mas, sim no sentido de arte da palavra que convence e que leva à compreensão,

cujo fundamento é a probabilidade. Neste sentido abrange tanto a demonstração

quanto a refutação, a partir da adoção do princípio de contradição.

O princípio da contradição ou da não-contradição são dimensionado

dentre duas proposições em oposição contrária e por alternação, ou seja, que uma

delas seja a negação da outra, que uma delas seja universal e a outra particular e

que ambas sejam verdadeiras, no primeiro caso, ou que uma delas seja falsa, no

segundo caso. Por exemplo, dado certo número natural “n” e o dimensionamento

dentre duas proposições temos: Todo número “n” é par e Nem todo número “n” é

par, em que ambas podem ser verdadeiras, para o primeiro caso, ou uma delas

deve ser falsa, no segundo caso. A princípio, se não aparentemente, temos que

proposições contraditórias não podem ser verdadeiras simultaneamente; uma

contradição, ou seja, uma proposição que implicasse a conjunção aditiva de duas

2 Dialéigein (troca de idéias, troca de palavras, conversa ou discurso); dialéktos (troca de impressões, conversa ou discussão); dialektikós (tudo aquilo que diz respeito à discussão); dialektiké (arte de discutir).

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proposições contraditórias, como por exemplo Todo número “n” é par e Nem todo

número “n” é par, não poderia ser verdadeira.

Aristóteles atribui a Zenão (490 A.C.) a descoberta3 da dialética, pois, a

usa, pela primeira vez na história, em defesa de seu mestre Parmênides (540-470

A.C.) que expõe uma filosofia diametralmente oposta à de Heráclito (546-480 A.C.).

Zenão formula a ideia de que uma coisa é, ou não é. Quanto ao vir-a-ser é

de todo impossível, pois, não se pode dimensionar ou conceber uma mistura de ser

e não ser, ou seja, uma coisa que é preta e vira branca, não é nem preta nem

branca; uma coisa, no caso, tem que ser preta ou branca. Assim, se pode inferir que

a experiência parece indicar que tudo muda, mas, é um engano dos sentidos; trata-

se do campo da opinião que se contenta com a aparência. Assim, entre opinião e

verdade, o filósofo afirma que esta última não pode ser se não una e imutável,

pois, o ser é unidade e imobilidade.

Zenão não se preocupa em provar uma tese, mas, sim, destruir a tese do

adversário. Esta dialética negativa só procura demonstrar que a tese daquele com

quem se argumenta vai contra o princípio da não contradição e, por isto, sua tese é

absurda.

Com o célebre paradoxo de Aquiles, Zenão ilustra bem o caso, ou seja:

perseguindo uma tartaruga, Aquiles percorre uma infinidade de pontos que o

separa da tartaruga. Quando atinge o lugar de onde ela havia partido, deve tornar a

partir para atingir o lugar onde ela está agora e assim por diante. Dada a

perspectiva abstrata ínsita à própria razão, Aquiles nunca chegaria a apanhar a

tartaruga. Entretanto, ele a alcança e, neste sentido, o movimento tal como é

demonstrado no mundo da experiência é um absurdo.

3ou criação? Qual o pressuposto ou marco teórico, dada a inteligibilidade dos universais como palavras que designam coisas, correspondente a afirmação de ser descoberta ou de ser criação? No presente caso, o termo descoberta é o correspondente à perspectiva ideal e/ou “realista” (não empírica).

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Zenão pouco se interessa pela veracidade das premissas daquele com

quem argumenta, pois, certas ou erradas, o importante é que sejam admitidas.

Zenão, então, parte do mesmo ponto de vista (argumento “ad homine”) e rebate

pela dialética. Quando quer demonstrar, por exemplo, que não há pluralidade das

coisas, argumenta: se as coisas são plurais ou se há uma pluralidade de coisas (uma

premissa pitagórica), elas devem ser grandes e pequenas. Pequenas ao ponto de

não terem qualquer grandeza e grandes ao ponto de não serem infinitas. E sendo

estas as premissas para conhecer a pluralidade, nos deparamos com o que acaba

por ser uma contradição, pois, a pluralidade implica divisibilidade. E se são as

coisas, então, infinitamente divisíveis, de forma que aquilo de que fazem parte é

infinitamente grande, logo: não pode haver pluralidade das coisas. Neste caso, a

soma dos elementos em grandeza não poderá dar qualquer coisa que tenha uma

grandeza.4

Os sofistas, que surgem no período de Péricles, conhecem e dimensionam

a dialética como um “trunfo”, cujo objetivo é fazer com que seus discípulos vençam

na vida política e tomem conta do poder, mas, principalmente, tenham acesso à

palavra e, por ela, à razão. A dialética, nessa perspectiva, dá espaço à retórica ou se

faz artística, como um método, na busca pela verdade. Apenas uma habilidade em

se servir de argumentos aparentemente válidos para iludir o adversário ou

perceber no outro a intenção de iludir.

No entanto, coube a Sócrates (468 a.C.) o grande mérito de restabelecer a

dialética, já não tanto no sentido de uma dialética negativa como em Zenão, mas,

como uma dialética positiva ou maiêutica, ou seja, criando um clima de

cordialidade e dispondo o discípulo a aceitar um ponto de partida comum com o

mestre, e não partir de uma resposta arbitrária, Sócrates finge desconhecer o que o

discípulo lhe perguntou. A resposta de Sócrates é uma pergunta, o que leva o

interlocutor, aos poucos, a descobrir, por si mesmo, as verdades que indagou.

Sócrates dá exemplos fáceis ao discípulo, obrigando-o a um raciocínio que o leva do

universal para o particular, ou seja, pela indução chega-se a uma definição

universal ou, mais propriamente, geral.

4 Por exemplo: dois mais dois já não são quatro, dado o princípio de contradição, ou seja, 2+2 ≠ 4.

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Platão (427 a.C.), discípulo de Sócrates, conservando, em parte, a arte do

diálogo e da discussão socrática, dimensiona, com a teoria sobre as ideias, outra

dialética que lhe é própria, ou seja, pela dialética é possível que certos homens

ultrapassem o mundo das aparências. Mais especificamente, trata-se da alma que

viveu, outrora, no mundo das ideias, e que perdendo o mundo racional se rende a

um corpo. A vista das coisas sensíveis, a alma se recorda ou se lembra do mundo

das ideias, e, assim, se eleva do mundo que a cerca (múltiplo e mutável) para as

ideias unas e imutáveis, ou seja, do mundo dos sentidos para o mundo da

racionalidade, pela dialética. Segundo Platão, pela dialética o filósofo foge do

mundo visível e passa a conhecer a verdade, descobre a superioridade da unidade

sobre a multiplicidade, da harmonia sobre a desordem.5

Em meados do século IV a.C., a academia de Isócrates, na perspectiva dos

sofistas, propunha ao educando o desenvolvimento da “virtude” ou da capacitação

para lidar com questões pertinentes à polis a partir da arte de emitir opiniões

prováveis sobre coisas úteis6; já, a academia de Platão propunha que a base para a

ação política ou para qualquer outra ação deveria ser a investigação científica

(epísteme), de índole matemática. A ação humana, segundo Platão, pretendendo

ser correta e responsável, não pode ser norteada por valores instáveis, ou seja,

formulada segundo o relativismo e a diversidade das opiniões.7 O prof. TÉRCIO

SAMPAIO FERRAZ JR. argumenta que:

após a morte de Sócrates, Platão passara a descrer da persuasão

como possibilidade de guiar os homens, descobrindo que a verdade é

mais forte que a argumentação, ou seja, reconhecendo que a

5 A aplicação prática da dialética platônica aparece exposta na “República”, mais precisamente, nos livros II, III, IV e V. 6 Na democracia ateniense, em que os destinos eram definidos em grande parte pela atuação dos oradores, a arte da persuasão, como a palavra manipulada com os recursos retóricos, era um fator imprescindível à eficácia do desempenho de um papel relevante na Cidade-Estado. 7 Em Platão, a negação do relativismo e da diversidade de opiniões para a determinação da ação humana como correta e responsável, ou seja, que a verdade, com um poder de coerção sem violência, é mais forte que a argumentação – o que vem a representar uma reação ao julgamento, à condenação e à morte (execução) de Sócrates descritos em Fédon.

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verdade tinha um poder de coerção sem violência” (FERRAZ JR.,

1980, p. 12).

Aristóteles de Estagira, ainda jovem e proveniente da Macedônia, em

Atenas (367 ou 366 do séc. IV a.C.) e com o intuito de dar prosseguimento aos

estudos, diante das duas propostas, opta pela academia de Platão; no entanto,

distinguindo raciocínio dialético, raciocínio apodítico e raciocínio erístico, buscando

dar maior consistência à retórica - instrumental preferido dos sofistas -, Aristóteles

se coloca em uma perspectiva distinta da de seu mestre.

Neste período, se exaltavam as discussões doutrinárias que polemizavam a

teoria das ideias, discussões como aquelas expostas na República de Platão. Assim,

a liberdade para a discordância, para a persuasão e para a argumentação – que

imprimiu em Aristóteles um ritmo intenso de pesquisas, oitivas e disputas – inspira

a academia tornando-a um espaço fecundo para a disputa intelectual e o ecletismo

cultural.

O poder da técnica retórica ou a capacidade de persuadir ou de convencer

pelo discurso é de demonstração própria dos sofistas. No entanto, a relação do

discurso com a verdade, para os sofistas, era algo secundário, ou seja, não se

importavam em estabelecer uma distinção8 entre verdade (aletheia) e opinião

(doxa).

Nesta fase do platonismo, iniciada também com o diálogo de Teeteto, os

conceitos dogmáticos e as opiniões irredutíveis deixam de ser o norte para aqueles

que se propunham à busca da verdade. Assim, com a tradição socrática, em que

princípios e teorias eram partilhados e o argumento de autoridade (autos epha) era

descartado, se dava a independência e o amadurecimento intelectual de

Aristóteles.

Em Teeteto, Sócrates a partir da maiêutica9, questiona o conhecimento e a

sabedoria; argumenta sobre o movimento como a causa de tudo o que devém10

e

8 Sobre esta distinção, entre verdade e opinião, nos deteremos mais adiante. 9 Trata-se de uma engenhosidade obstétrica para a parturição de idéias. 10 O que vem a ser ou o que pode vir a ser. O devir em oposição ao ser e ao dever ser.

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parece existir e o repouso como o não-ser ou a destruição11

, de modo que, se nada

podemos admitir como existentes em si mesmo, as cores, por exemplo, resultariam

do encontro dos olhos com o movimento particular de cada uma e a cor por nós

designada como existente não é o olhar tão pouco a coisa olhada, mas algo

intermediário e peculiar a cada indivíduo; que os homens são a medida de todas as

coisas (Protágoras), menos o homem inteligente. O conhecimento não pode ser,

então, nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional

acrescentada a essa opinião verdadeira.

O método socrático, de caráter ético e educativo, baseava-se na dialética.

A dialética socrática se desenvolvia pela “refutação” e pela “maiêutica”.12

A

primeira parte do método era a destrutiva, com a qual Sócrates procurava levar seu

interlocutor a uma situação de aporia, forçando-o, ao menos intimamente, a

reconhecer sua própria ignorância em relação ao assunto examinado. Já a segunda

parte do método era a construtiva, pela qual Sócrates procurava, através da

maiêutica ou dialética bem conduzida, levar seu interlocutor a uma aproximação da

verdade sobre o problema posto, qualquer que seja ele.

11“que nenhuma coisa é uma em si mesma e que não há o que possas denominar com acerto ou dizer como é constituída. Se a qualificares como grande, ela parecerá também pequena; se pesada, leve, e assim em tudo o mais, de forma que nada é uno, ou algo determinado ou como quer que seja. Da translação das coisas, do movimento e das misturas de umas com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir, sem usarmos a expressão correta, pois a rigor nada é ou existe, tudo devém.” (...) “De fato, o calor e o fogo que geram e coordenam todas as coisas, são gerados, por sua vez, pela translação e pela fricção, que também consistem em movimento.” (...) “A constituição do corpo não se deteriora com o repouso e a preguiça e não se conserva admiravelmente bem com a ginástica e o movimento?” (PLATÃO, Teeteto, 1988) 12 A dialética de Sócrates confundia-se com o seu próprio dialogar, ou seja, “Ao fazê-lo, Sócrates valia-se da máscara do ‘não saber’ e da temida arma da ‘ironia’”. Pois, se “Os sofistas mais famosos punham-se em relação aos ouvintes na soberba atitude de quem sabe tudo. Sócrates, ao contrário, punha-se diante dos interlocutores na atitude de quem não sabe, tendo tudo para aprender. Porém muitos equívocos foram cometidos em relação a esse ‘não saber’ socrático, a ponto de se ver nele o início do ceticismo. Na verdade, ele pretendia ser uma afirmação de ruptura” (REALE, 1990, p. 96-97).

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Neste sentido, as pesquisas, as oitivas e as disputas praticadas por

Aristóteles eram direcionadas, a partir das críticas aos sofistas, para a restauração

do valor da opinião e a sua desvinculação do arquétipo da mera arbitrariedade.

Aristóteles, no livro da Tópica, toma como objeto de investigação a

retórica, a arte da disputa, argumentando que:

Nosso trabalho se propõe encontrar um método de investigação

graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente

aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos

também capazes, quando replicarmos a um argumento, de evitar

dizer alguma coisa que nos cause embaraços (ARISTÓTELES, 1973, p.

11).

A Tópica, como resultado desta investigação, evidencia o raciocínio

dialético que se caracteriza partindo de proposições conforme as opiniões

geralmente aceitas. A Tópica ou raciocínio dialético se diferencia do raciocínio

apodíctico, que se caracteriza partindo de proposições verdadeiras, e do raciocínio

erístico, que se caracteriza por partir de opiniões que parecem ser geralmente

aceitas, quando realmente não o são, ou seja, quando a natureza da falácia é de

uma evidência imediata ou de fácil apreensão.

O raciocínio dialético prima pela índole de suas premissas, pelas opiniões

geralmente aceitas, acreditadas e verossímeis, pois são proposições que parecem

ser verdadeiras à todos ou à maior parte ou aos filósofos, sábios, notáveis ou

eminentes. Assim, as demonstrações da ciência são apodícticas ao passo que as

argumentações retóricas são dialéticas. Esta última se apresenta como uma arte de

trabalhar com opiniões postas e, dada a perspectiva de persuasão e um

procedimento crítico, é instaurado entre elas um diálogo ou confrontação ou

disputa, mas não no sentido contencioso ou erístico.

Assim, distinguindo raciocínio dialético, raciocínio apodíctico e raciocínio

erístico, Aristóteles estabelece a dessemelhança entre verdade e opinião; e

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restaura o valor da opinião que fundada no consenso, dada a persuasão e a crítica,

é desvinculada do arquétipo da mera arbitrariedade13

.

E assim, a história da nova dialética, a partir de Hegel, tem Heráclito (546 –

480 a.C.) e Aristóteles (384 a.C.) como seus precursores e Karl Marx (com a

dialética da alternativa) como um expoente contemporâneo desta nova dialética.

Esta linha da dialética busca seu fundamento na síntese dos opostos e não mais no

princípio da não contradição. Heráclito, buscando descobrir a razão última das

coisas14

serem, pergunta: “o que de fato existe?” Afirma não haver uma resposta

que pudesse ser satisfatória, pois, nenhuma abarcaria o cerne da questão. Então,

examinando a natureza, descobre um elemento que é comum a todas as coisas: o

vir-a-ser ou o devir, ou seja, se o ser é essencialmente movimento, então tudo flui e

nada permanece15

. O vir-a-ser é a única realidade universal e tudo o mais é apenas

aparência. A inteligência deve penetrar o âmago das coisas e perceber o que o ser

não é e que não-ser é não-ser.

O vir-a-ser dos seres é devido a um conflito dos contrários, que se opõem

e se mantêm entre si, pois, todo o vir-a-ser está ligado a uma destas vias que na

realidade não passam de uma só. Os contrários, como duas forças cósmicas

antagônicas, seguem a gênese e as destruições periódicas das coisas. Uma

desagrega: a discórdia e a guerra, que é a causa e origem da pluralidade; A outra

agrega: a concórdia e a paz, que reduz todas as coisas à unidade.

O vir-a-ser é colocado entre os contrastes e são justamente as oposições

que formam a fonte desta dinâmica que produz o movimento. Os contrários são,

13 E dada à negação da arbitrariedade a partir do consenso, “Aristóteles, ao tecer observações sobre as teorias de seu mestre, no lugar de um tom irônico ou destrutivo, utiliza-se de expressões próprias ao homem de ciência que caminha em busca da superação dos antecessores e do estabelecimento de verdades sólidas, como se pode depreender do consignado textualmente na Política (Pol., II, 6, 1265 a, 10)” (BITTAR, 2003, p. 18). 14 A mesma preocupação metafísica de seus predecessores. Se olharmos o ria, os sentidos vão mostrar como se a gente se banhasse nas mesmas águas. Os sentidos nos mostram as coisas não como elas são. 15 Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio.

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pois, a coisa fecunda, cheia de vida. E assim, é a sucessão das coisas que nos deixa,

então, apreciar os contrastes, ou seja, sem a doença não haveria saúde; sem o mal,

o bem; sem a fome, a abundância; sem a fadiga, o repouso; sem o escuro, o claro;

etc. E assim, Heráclito pôde afirmar que todas as antíteses são só aparentes. TUDO

É NADA E NADA É.

Consideremos, no entanto, para a inteligibilidade da questão, a incursão

em um extrato do texto L´Esprit des Lois (livro XV, capítulo 5) de Montesquieu,

relativo à escravidão dos negros, ou seja:

Livro XV: Como as leis da escravidão civil têm relação com a natureza

do clima.

Capítulo V - Da escravidão dos negros.

Se eu tivesse que sustentar o direito que tivemos de tornar os negros

escravos, eis o que eu diria:

Os povos da Europa, exterminando os da América, tiveram que

escravizar os da África para abrir e limpar tantas terras.

O Açúcar seria muito caro se não fizéssemos que escravos

cultivassem a planta que o produz.

Aqueles de que se fala são negros dos pés até a cabeça; e têm o nariz

tão achatado que é quase impossível ter pena deles.

Não é possível nos convencer de que Deus, que é muito sábio, tenha

posto uma alma, especialmente uma boa alma, em um corpo todo

negro.

É tão natural pensar que a cor constitui a essência da humanidade

que os povos da Ásia, que fazem eunucos, sempre privam os negros

da relação que têm conosco de um modo mais pronunciado.

Pode-se determinar a cor da pele pela dos cabelos, que era, entre os

egípcios, os melhores filósofos do mundo, de tão grande

consequência, que matavam todos os homens ruivos que lhes

caíssem nas mãos.

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Uma prova de que os negros não têm senso comum é que dão maior

valor a um colar de vidro do que ao de ouro, que, nas nações

civilizadas, é de grande importância.

É impossível supor que essas pessoas sejam homens; porque, se

supuséssemos que eles são homens, começaríamos a crer que nós

mesmos não somos cristãos.

Mentes ou espíritos pequenos exageram demais a injustiça que se faz

aos africanos. Pois, se esta fosse como dizem, será que não teria

ocorrido aos príncipes da Europa, que fazem entre si tantas

convenções inúteis, fazerem uma convenção geral em favor da

misericórdia e da piedade?16 (Montesquieu. 1864. P. 203-204)

16Livre XV : Comment les lois de l’esclavage civil ont du rapport avec la nature du climat.

Chapitre V - De l'esclavage des nègres.

Si j'avais à soutenir le droit que nous avons eu de rendre les nègres esclaves, voici ce que je dirais :

Les peuples d'Europe ayant exterminé ceux de l'Amérique, ils ont dû mettre en esclavage ceux de l'Afrique, pour s'en servir à défricher tant de terres.

Le sucre serait trop cher, si l'on ne faisait travailler la plante qui le produit par des esclaves.

Ceux dont il s'agit sont noirs depuis les pieds jusqu'à la tête; et ils ont le nez si écrasé qu'il est presque impossible de les plaindre.

On ne peut se mettre dans l'esprit que Dieu, qui est un être très sage, ait mis une âme, surtout une âme bonne, dans un corps tout noir.

Il est si naturel de penser que c'est la couleur qui constitue l'essence de l'humanité, que les peuples d'Asie, qui font des eunuques, privent toujours les noirs du rapport qu'ils ont avec nous d'une façon plus marquée.

On peut juger de la couleur de la peau par celle des cheveux, qui, chez les Égyptiens, les meilleurs philosophes du monde, étaient d'une si grande conséquence, qu'ils faisaient mourir tous les hommes roux qui leur tombaient entre les mains.

Une preuve que les nègres n'ont pas le sens commun, c'est qu'ils font plus de cas d'un collier de verre que de l'or, qui, chez des nations policées, est d'une si grande conséquence.

Il est impossible que nous supposions que ces gens-là soient des hommes; parce que, si nous les supposions des hommes, on commencerait à croire que nous ne sommes pas nous-mêmes chrétiens.

De petits esprits exagèrent trop l'injustice que l'on fait aux Africains.Car, si elle était telle qu'ils le disent, ne serait-il pas venu dans la tête des princes d'Europe, qui font entre eux tant de conventions inutiles, d'en faire une générale en faveur de la miséricorde et de la pitié? (MONTESQUIEU, 1864, p. 203-204).

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A referida incursão no extrato relativo à escravidão dos negros, do texto

L´EspritdesLois (livro XV, capítulo 5) de Montesquieu, é uma investigação feita por

Oswald Ducrot que, em Provar e Dizer, afirma que:

Montesquieu recorre a um procedimento frequentemente utilizado

pela literatura militante do século XVIII, ele finge colocar-se o lado da

opinião de seus adversários e expõe os argumentos que segundo eles

justificam a escravidão (Se eu tivesse que sustentar o direito que

tivemos de tornar os negros escravos, eis o que eu diria:). e ele

mostra que esses argumentos (ex: o açúcar seria muito caro se a

cultura não fosse assegurada pelos escravos; a raça negra é uma raça

inferior destinada a servidão e que não sofre com isso. ) antes

sugeririam conclusões opostas, tornando claro o absurdo e a injustiça

do que pretendiam justificar. (DUCROT. 1981. P. 147-148)

E, nesse sentido, no que concerne ao texto de Montesquieu sobre a

Escravidão, segundo Ducrot, Montesquieu cede aos escravagistas o raciocínio

acima indicado e cuja análise é assim deduzida:

O texto comporta duas proposições explícitas

A nos somos cristãos;

B os negros são homens.

O raciocínio dos escravagistas toma por premissa

(1) B A (= se nós supuséssemos que eles são homens começar-se-

ia a crer que nos mesmo não somos cristãos)

(2) Não B (= é impossível que essas pessoas sejam homens)

Para obter a conclusão (2) a partir da premissa (1) é preciso

- aplicar a premissa à lei lógica dita de contraposição (p q é

equivalente à q p). Obtém-se então não A não B o que dá se

se elimina a dupla negação

(3) A B

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Dai implicitamente uma premissa suplementar que parece depender

da evidência A (= nós somos cristão)

- concluir de (3) utilizando-se a nova premissa A

(4) não B (= os negros não são homens)

Toda ironia de Montesquieu consiste em sugerir como também

aceitável um percurso que partindo da mesma premissa (1), isto é B

A tomaria como premissa suplementar não A, mas B (= os negros

são homens). Com essa premissa B com efeito e a premissa (1) (= B

não A) é-se levado a concluir não-A (= Nós não somos cristãos)

(DUCROT. 1981. p. 148).

Se abarcarmos a perspectiva dos escravagistas de que é impossível supor

que essas pessoas sejam homens como uma premissa suplementar, porque, se

supuséssemos que eles são homens, começaríamos a crer que nós mesmos não

somos cristãos (Montesquieu. 1864. P. 203-204) como premissa categórica, a

validade da conclusão implicaria, necessariamente, na proposição de que é

impossível supor que essas pessoas sejam homens como descrito no silogismo17

abaixo:

Primeira premissa: B A [se os negros não são homens, então nos somos

cristãos]

Segunda premissa: B [os negros não são homens]

17 Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo:

Conc. 2ºprem 1º premissa

A B A B B A B A B A B A

V V F F V F V V

V F F V V V V F

F V V F F V V V

F F V V V V F V

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Conclusão: A [nos somos cristãos]

Da análise acima, considerando os mesmos pressupostos, ou seja, A (nos

somos cristãos) e B (os negros são homens), podemos inferir, em princípio, que, a

partir da equivalência por contraposição, ou seja, quando a premissa categórica

nega o consequente da premissa condicional e a conclusão nega o antecedente da

premissa condicional implicados em uma condicional relativa ou simplesmente

(A) B, caso em que o argumento é válido ou lógico e correspondente ao

modus tollens, temos que: se A B é equivalente à B A, então B A é

equivalente a A B. Ou seja, se [se nos somos cristãos, então os negros são

homens] é equivalente a [se os negros não são homens, então nos não somos

cristãos], então, [se os negros são homens, então nos não somos cristãos] é

equivalente a [se nos somos cristãos, então os negros não são homens].

O raciocínio que Montesquieu adota, inicialmente, pode ser descrito

através do seguinte silogismo18

:

Primeira premissa: B A [se os negros são homens, então nos não somos

cristãos]

Segunda premissa: B [os negros são homens]

Conclusão: A [nos não somos cristãos]

e, como vimos, se B A é equivalente por contraposição a A B, para obter a

conclusão B, a partir da primeira premissa B A ou da sua contrapositiva A

B, é preciso tomar como premissa suplementar a proposição correspondente a A.

18 Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo:

2ºprem Conc. 1º premissa

A B A B B A B A B A B A

V V F F V F V V

V F F V V V V F

F V V F F V V V

F F V V V V F V

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E com essa premissa suplementar A é-se levado a concluir B, como demonstrado

nos silogismos19

abaixo:

Primeira premissa: A B [se nos somos cristãos, então os negros não são

homens]

Segunda premissa: A [nos somos cristãos]

Conclusão: B [os negros não são homens]

Primeira premissa: B A [se os negros são homens, então nos não somos

cristãos]

Segunda premissa: A [nos somos cristãos]

Conclusão: B [os negros não são homens]

19 Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo:

2ºprem Conc. 1º premissa

A B A B A B A B A B A B

V V F F V F V V

V F F V F V V V

F V V F V V V F

F F V V V V F V

Cuja validade podemos observar na tabela de valores abaixo:

2ºprem Conc. 1º premissa

A B A B B A B A B A B A

V V F F V F V V

V F F V V V V F

F V V F F V V V

F F V V V V F V

Page 104: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

104

A ironia, apontada por Ducrot, consiste no fato de Montesquieu sugerir,

ao assumir o mesmo raciocínio de seus adversários escravagistas, uma contingência

fundada na equivalência por contraposição, ou seja, tanto é possível B e é possível

não B, quanto é possível A e é possível não A, e, portanto, o aceitável a partir da

contingência.

Mas, se Montesquieu apela para um método comumente empregado pela

literatura militante do século XVIII, fingindo colocar-se a favor da perspectiva de

seus adversários, então o faz no sentido de que quando afirma B A [se os

negros são homens, então nos não somos cristãos], por equivalência ou

substituição, nega a implicação aditiva dos negros serem homens e nós sermos

cristãos, ou seja, [B e A], como demonstrado abaixo:

A B A B B A B e A [B e A]

V V F F F V F

V F F V V F V

F V V F V F V

F F V V V F V

Mas, diferente da estratégia adotada por Montesquieu, que recorre a um

método comumente empregado pela literatura militante do século XVIII, fingindo

se colocar a favor da perspectiva de seus adversários, como poderíamos pensar

refutar o argumento dos escravagistas? Ou seja, como poderíamos conceber o

contrário, o contraditório e a síntese dos opostos contrária à simples perspectiva

do princípio da não contradição?

Refutar o argumento dos escravagistas implica, necessariamente e

contrário a fingir se colocar a favor da perspectiva de seus adversários como um

método comumente empregado pela literatura militante do século XVIII, negar a

perspectiva dos adversários, que para o caso em questão são os escravagistas. Ou

seja, [B A] ou negar que [se os negros são homens, então nos não somos

Page 105: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

105

cristãos], por equivalência ou substituição, implica B e A ou os negros são homens e

nós somos cristãos, como demonstrado abaixo:

A B A B B A B e A [B e A] [B A]

V V F F F V F V

V F F V V F V F

F V V F V F V F

F F V V V F V F

Mas, as proposições podem ser formadas a partir de funções

proposicionais quantificadoras. Tal que, para a proposição Todos os humanos são

mortais, observamos que dada qualquer coisa no universo, se ela (coisa) é humana,

então ela (coisa) é mortal, ou seja, dado qualquer x no universo, se x é humano,

então x é mortal ou (x) [Hx Mx]. E como vimos acima, há funções proposicionais

cujos exemplos de substituição são conjunções aditivas de proposições singulares.

Assim, (x) [Hx Mx] ou Dada qualquer coisa no universo, se ela (coisa) é humana,

então ela (coisa) é mortal, ou seja, Dado qualquer x no universo, se x é humano,

então x é mortal ou, simplesmente, Todos os humanos são mortais, por

equivalência ou substituição, temos (x) [Hx e Mx] ou Existe, pelo menos, uma

coisa que é humana e que é mortal, ou seja, Existe, pelo menos, um x tal que x é

humano e x é mortal ou, simplesmente, Algum humano é mortal.

Nesse sentido, a partir do quadro de oposições, podemos observar que (x)

[Hx Mx] e (x) [Hx e Mx] são, respectivamente o contrário e o contraditório

de (x) [Hx Mx]. Ou seja, Dado qualquer x no universo, nego que se x é humano,

então x é mortal e Existe, pelo menos, um x tal que x é humano e x não é mortal

são, respectivamente, o contrário e o contraditório de Dado qualquer x no

universo, se x é humano, então x é mortal, como desmonstrado no quadro de

oposições abaixo:

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

106

A E

O

Consideremos, no entanto, para a inteligibilidade do texto L´Esprit des Lois

(livro XV, capítulo 5) de Montesquieu, relativo à escravidão dos negros, uma

incursão pela equivalência por substituição a partir do argumento dos escravagistas

e, assim, considerar uma hipótese para o problema de como poder conceber o

contrário e o contraditório como uma síntese dos opostos e não mais uma simples

perspectiva do princípio da não contradição.

Nesse sentido, a partir do quadro de oposições, podemos observar que,

() B A ou Em absoluto ou necessariamente, se os negros são homens, então

nos não somos cristãos, por equivalência ou substituição, implica () [B e A] ou

Em absoluto ou necessariamente, nego que [os negros são homens e nós somos

cristãos]. Mas, () [B A] ou Em absoluto ou necessariamente, nego que se os

negros são homens, então nos não somos cristãos e () B e A ou É possível que os

negros sejam homens e nós sejamos cristãos são, respectivamente, o contrário e o

contraditório de () B A ou Em absoluto ou necessariamente, se os negros são

F

V

V

F

V

F

[h m]

h e m

V

F

V

h m

[h e m] h m

V

F

F

F

V

F

h e m F

V

V

h m

[h e m]

[h m]

h e m

Page 107: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

107

homens, então nos não somos cristãos, como demonstrado20

no quadro de

oposições abaixo:

A E

O

Assim, se há funções proposicionais cujos exemplos de substituição são

conjunções aditivas de proposições singulares, considerada as mesmas proposições

implicadas em uma condicional relativa (se, então), então, as proposições podem

ser formadas a partir de funções proposicionais quantificadoras, de tal modo que

20 Como podemos observar na tabela de valores abaixo:

b a b a b a [b a] b e a [b e a]

V V F F F V V F

V F F V V F F V

F V V F V F F V

F F V V V F F V

V

F

V

V

F

F

[b a]

b e a

F

V

V

b a

[b e a] b a

F

V

F

V

F

F

b e a V

F

V

b a

[b e a]

[b a]

b e a

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

108

uma implicação aditiva, como B e A, pode assumir o possível não ser ou não

necessariamente ser, e isso decorre do argumento de que:

a questão costuma remontar a Jorgensen (1937), que propôs um

problema por ele denominado 'quebra-cabeça', e que Ross (1941 e

1971) chamou de 'dilema de Jorgensen'. De acordo com Ross, uma

inferência prática como:

Você deve manter as suas promessas.

Essa é uma das suas promessas.

Logo, você deve manter essa promessa.

carece de validade lógica. Não é logicamente necessário que um

sujeito que estabelece uma regra geral deva também estabelecer a

aplicação particular dessa regra. Que isso se verifique ou não

depende de fatos psicológicos. Não é raro acrescenta Ross que

um sujeito formule uma regra geral, mas evite a sua aplicação

quando se vê afetado. Entretanto, se examinarmos bem, essa idéia é

decididamente estranha. (2000. P. 35-36)

(...)

isso não parece ter relação com a lógica, que como a gramática é

uma disciplina prescritiva: não diz como os homens pensam ou

raciocinam de fato, apenas como deveriam fazê-lo. (ATIENZA. 2000.

P. 37)

Nesse sentido, consideremos o seguinte silogismo:

Primeira premissa: Um negro não deve ser (ou não é) um homem

Segunda premissa: Ele é um negro

Conclusão: Logo, Ele não deve ser (ou não é) um homem

Primeira premissa: (x) [nx hx]

Segunda premissa: n(Meugnin)

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

109

Conclusão: h(Meugnin) Implicação Aditiva: (x) [nx e

hx]

Nesse sentido, a partir do quadro de oposições, podemos observar que,

() n h ou Em absoluto ou necessariamente, se alguma coisa é negra, então

essa coisa não é homem, por equivalência ou substituição, implica () [n e h] ou

Em absoluto ou necessariamente, nego que [uma coisa é negra e essa coisa é

homem]. Mas, () [n h] ou Em absoluto ou necessariamente, nego que se

uma coisa é negra, então essa coisa é homem e () n e h ou É possível que uma

coisa seja negra e essa coisa seja homem são, respectivamente, o contrário e o

contraditório de () n h ou Em absoluto ou necessariamente, se uma coisa é

negra, então essa coisa não é homem, como demonstrado21

no quadro de

oposições abaixo:

A E

21 Como podemos observar na tabela de valores abaixo:

b a b a b a [b a] b e a [b e a]

V V F F F V V F

V F F V V F F V

F V V F V F F V

F F V V V F F V

V

F

V

V

F

F

[n h]

n e h

F

V

V

n h

[n e h] n h

Page 110: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

110

O

Assim, a síntese dos opostos decorre do contraditório, ou mais

especificamente, da admissibilidade do contraditório, de tal modo que as

proposições contraditórias n h e n e h sejam verdadeiras a um só tempo e

contrária à perspectiva do princípio da não contradição.

Mas, como descreveríamos o contrário e o contrário se as proposições

indicadas em E for [ n h] e em O for [ n h]? Ou seja, se a ordem dos

valores correspondentes ao contrário indicado implicar em uma inversão, que não

é corresponde a uma inversão direta ou de valor a valor (de vfff para fvvv), mas,

sim, na ordem dos valores (de vfff para fffv). Consideremos, para tanto, o quadro

de oposições abaixo:

A E

F

F

V

n e h

[ n h]

V

F

V

n h

[n e h]

V

F

F

F

V

F

V

F

F

n e h V

F

V

n h

[n e h]

[n h]

n e h

Page 111: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

111

O

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1º edição brasileira

coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução de novos

textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Editorial Presença, Vol. XIII, 2003.

ARISTÓTELES. Tópicos. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão

inglesa de W. A. Pickard - Cambridge. São Paulo: Victor Civita (Abril Cultural), 1973.

Coleção: Os Pensadores.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de

Eduardo de Souza. Lisboa: Editora Imprensa Nacional Casa da Moeda. 7º edição.

1998.

ARISTÓTELES. Retórica. Introdução e tradução de Manuel Alexandre Júnior. Lisboa:

Editora Imprensa Nacional Casa da Moeda. 7º edição. 2003.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora

UNB. 3º edição. 2003.

F

F

F

[ n h]

n e h

[n h]

n e h

Page 112: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

112

DUCROT, Oswald. Provar e Dizer: Linguagem e lógica. Tradução de Maria Aparecida

Barbosa, Maria de Fátima Gonçalves e Cidmar Teodoro Pais. São Paulo. Global

Editora. 1981.

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3º edição.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

MONTESQUIEU, Esprit des Lois. Paris. Librairie de Firmin de Didot Fréres, Filset c.

1864.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. 1. São Paulo: Paulus,

2003

Page 113: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

113

DIÁLOGOS ENTRE RONALD DWORKIN E NEIL

MACCORMICK: A RELEVÂNCIA DA NOÇÃO DE

COERÊNCIA PARA A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO

JURÍDICA

Cláudia Rosane Roesler1

Ricardo Antonio Rezende de Jesus2

Palavras-chave: Argumentação jurídica; Coerência; Integridade.

A análise das justificativas que fundamentam as decisões jurídicas é tema

cada vez mais relevante nas democracias ocidentais de cunho liberal. Entre os

diversos fatores que explicam esse interesse pela argumentação jurídica3, destaca-

1 Doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Brasilia-DF. Brasil. E-mail: [email protected]. 2Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília (UNB). Brasilia-DF.Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Para um desenvolvimento desses fatores, Cf: ATIENZA, Manuel El Derecho como argumentacion. 2ed. Barcelona: Ariel, 2007, p. 15-19.

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114

se a ascensão da democracia como forma de governo - e como forma de sociedade

– e do Estado Democrático de Direito ou, caso se prefira, do Estado constitucional,

como modelo de organização jurídica. Ocorre que com a perda da força explicativa

da tradição e da autoridade como justificativas do poder político, restou, como

fonte de legitimidade, o argumento racional, a força persuasiva das razões, a

possibilidade de demonstração do ponto de vista. Na verdade, é possível dizer que

é constitutivo da ideia de democracia o debate de argumentos e pontos de vista

contrários. Daí que o interesse pelo saber sobre bem argumentar se mostra quase

como uma consequência natural da vida nesse tipo de sociedade.

Também no que toca ao Estado Democrático de Direito, uma das

características que lhe podem ser apontadas é a exposição pública das razões que

justificam as decisões jurídicas. É preciso dar a conhecer o porquê de uma decisão

reconhecer ou eventualmente restringir direitos. Nesse contexto, a preocupação

com uma teoria da argumentação jurídica se revela importante na medida em que

propõe estabelecer critérios que demonstrem estar uma decisão justificada ou não

e, por isso mesmo, possibilitar aos afetados uma oposição.

Observa-se que a preocupação com a coerência como expressão de uma

racionalidade, é um critério recorrente para auferir a correção argumentativa das

decisões judiciais. Esta noção de coerência pode aparecer travestida em outro

nome, ampliada ou reduzida a depender da linha de raciocínio articulada por cada

autor, mas é sempre enfatizado que deve transparecer na decisão, tanto de

maneira interna - racionalidade entre os argumentos utilizados na decisão; quanto

externa - conexão racional entre os argumentos utilizados, os fatos narrados e o

ordenamento jurídico como um todo.

Partindo desses pressupostos, o presente trabalho pretende dialogar com

as teorias formuladas por Dworkin e MacCormick as quais, ainda que partindo de

pontos de vista inicialmente distintos, estão mais próximas na atualidade, sendo

que a relevância dada à noção de coerência nos parece ser um dos pontos de

convergência entre ambas. Assim se dá por avaliarmos que, em face das alterações

feitas por Neil MacCormick em sua teoria, condensadas na obra “Retórica e Estado

de Direito”, as posições dos autores acabam por se complementar.

Page 115: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

115

O trabalho tem por objetivo, pois, identificar essas posições

complementares dos dois autores em torno da noção de coerência e sua relevância

para a argumentação jurídica. Ao fim, espera-se que tais concepções possam

auxiliar a construir um modelo para avaliação crítica das decisões judiciais no Brasil,

com ênfase naquelas proferidas pelo STF.

Reportando-nos inicialmente a Dworkin, vemos que a coerência é uma

dimensão de um conceito mais amplo e genérico que é o de integridade. Para esse

autor, a coerência que interessa para o direito como integridade é uma coerência

de princípio, o que quer dizer que os vários padrões que fundamentam o uso da

coerção pelo Estado contra seus cidadãos devem ser consistentes “no sentido de

expressarem uma visão única e abrangente de justiça” (DWORKIN, 1995, p. 134).

Para MacCormick, “A coerência impõe um constrangimento real e

importante aos juízes” (MACCORMICK, 2008, p. 265). Há um dever jurídico e moral

de demonstrar que as decisões decorrem do direito pré-existente ou que, mesmo

diante de uma situação absolutamente inédita, os fundamentos usados para

solução de casos estão em sintonia com princípios gerais aceitos pela comunidade.

Essa exigência, por sua vez, conecta-se com os ideais de igualdade de tratamento e

de universalização dos fundamentos das decisões, na medida em que se espera

que situações semelhantes gerem soluções semelhantes. É certo que o próprio

requisito de coerência está condicionado pelo ideal maior que deve ser a busca

para que seres humanos “vivam juntos em razoável harmonia e com alguma

percepção de um bem comum no qual todos participam” (MACCORMICK, 2008, p.

253).

Analisando a elaboração teórica de MacCormick, comparando os

delineamentos sobre a coerência em suas duas obras de referência, constata-se

que é aqui que há uma maior aproximação de suas ideias com as de Dworkin. Num

primeiro momento, o critério de coerência parecia estar satisfeito com um

requisito formal de adequação entre direito (e aqui incluídos, princípios, regras e

mesmo decisões anteriores) existente e a decisão que se está analisando. Em

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

116

Retórica e Estado de Direito aparecem termos que identificam uma preocupação

com a legitimidade em um sentido muito mais substancialista. Deixa-se claro que,

para uma decisão ser considerada justificada, do ponto de vista da coerência, ela

precisa estar sintonizada a princípios aceitos pela comunidade, mas princípios esses

que reflitam um ideal de uma vida satisfatória, de mútuo respeito e busca por

igualdade.

Há uma grande proximidade entre essa ideia e a relação entre integridade

e comunidade de princípios proposta por Dworkin. Para Dworkin, uma questão que

se impõe é saber por que obedecemos aos princípios jurídicos. Em outras palavras,

de onde tais princípios retiram sua legitimidade? Segundo Dworkin, obedecemos

porque vivemos em uma comunidade de princípios:

Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus

direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares

tomadas por suas instituições políticas, mas dependem em termos

mais gerais do sistema de princípios que essas decisões pressupõem

e endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos e

que ele tem deveres que decorrem desse sistema, ainda que estes

nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados.

Também não presume que esses outros direitos e deveres estejam

condicionados à sua aprovação integral e sincera de tal sistema; essas

obrigações decorrem do fato histórico de sua comunidade ter

adotado esse sistema (grifamos) (DWORKIN, 1995, p. 211).

Há, pois, uma complementaridade/tensão entre a comunidade de

princípios e o ideal de integridade que se quer desenvolver. Os princípios acolhidos

pela comunidade devem transparecer nas decisões políticas e jurídicas que afetam

essa comunidade, de modo que lhe assegurem legitimidade. O ideal de integridade,

por sua vez, na medida em que se baseia em uma relação de igualdade e mútua

consideração entre os membros da comunidade constitui um limite para a

construção das decisões da comunidade.

A teoria de MacCormick, todavia, desce a detalhes importantes que

podem auxiliar aqueles que se propõem a um olhar crítico sobre a decisão judicial.

Page 117: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

117

MacCormick, por exemplo, distingue entre consistência e coerência,

deixando claro que uma decisão pode ser consistente, mas não necessariamente

coerente4. Assim, enquanto a consistência é a ausência de contradição lógica entre

duas ou mais regras, a coerência é a “compatibilidade axiológica entre duas ou

mais regras, todas justificáveis em vista de um princípio comum” (MACCORMICK,

2008, p. 301)5.

MacCormick decompõe também o critério da coerência em coerência

normativa e coerência narrativa. A coerência narrativa diz respeito aos fatos e se

revela um importante componente na justificação das decisões jurídicas. É preciso

que, ao fundamentar uma decisão, os fatos narrados façam parte de uma

seqüência inteligível de eventos que façam sentido como um todo. O teste para

verificar a coerência fática não pode prescindir dos elementos da experiência

racional, juízos probabilísticos de senso comum, combinados com causalidades

produzidas pelo conhecimento científico.

A coerência narrativa assim ilustrada é a nossa única base para

sustentar conclusões, opiniões ou veredictos sobre fatos do passado.

Uma certa ideia de racionalidade cumpre papel importante nisso.

Nem a experiência intelectual nem a experiência prática são uma

mera sucessão caótica de impressões. (...). Um corpo crescente de

teorias científicas que, de certo modo, contam como elaborações

especializadas dos princípios básicos, tornam o nosso mundo um

mundo inteligível pra nós (MACCORMICK, 2008, p. 292-293).

4 Apesar dessa distinção entre coerência e consistência não estar muito clara na obra de Dworkin, ela pode ser extraída da discussão que o autor faz sobre o convencionalismo. O autor sugere que o convencionalismo se satisfaria com a consistência enquanto o direito como integridade exigiria uma coerência de princípio. Cf. DWORKIN, Ronald. Law’s empire, p.132 e ss. 5 MacCormick trabalha com a idéia de que há uma sobreposição entre as noções de valores e princípios. “Princípios jurídicos dizem respeito a valores operacionalizados localmente dentro de um sistema estatal ou de alguma ordem normativa análoga” (Retórica e Estado de Direito, p. 251). Para Atienza (As razões do direito: teorias da argumentação jurídica, p. 187), MacCormick, na verdade faz equivaler princípios e valores, pois “ele não entende por valor apenas os fins que de fato são perseguidos e sim os estados de coisas considerados desejáveis, legítimos, valiosos; assim, o valor da segurança no trânsito, por exemplo, corresponderia ao princípio de que a vida humana não deve ser posta em perigo indevidamente pelo tráfego de veículos”.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

118

MacCormick chama atenção, ainda, para o fato de que a argumentação

por analogia é uma importante aplicação da ideia de coerência na justificação das

decisões em casos difíceis. A analogia, como ato de estender uma regra ou

princípio jurídico para regular outra situação, aparentemente sem solução

específica, implica a demonstração, por parte do interprete, de que há conexão

racional – semelhanças plausíveis - entre as situações em comparação. O certo é

que, seguindo a teoria de MacCormick, seja argumentando com base em princípios,

seja se servindo da analogia, é preciso justificar a solução conectando-a aos

princípios e valores que constituem o sistema jurídico como um todo.6

Ante o exposto, temos que, para ambos os autores, a coerência deve ser

um ideal perseguido pelo ordenamento jurídico como um todo, e também pela

decisão judicial. Isso porque a decisão, com potencial para se transformar em

precedente, torna-se parte do ordenamento jurídico. Além disso, vista como um

microssistema, a decisão deve ser coerente internamente de modo que as

premissas que a fundamentem não entrem em contradição.

A teoria de MacCormick ultrapassou a ideia de coerência apenas como um

requisito formal de adequação entre o direito posto e o direito que aparece na

solução de cada caso concreto. Passou-se a exigir a demonstração de que a solução

construída é coerente com ideias de uma vida social voltada para o mútuo

entendimento e respeito recíproco. A coerência do ordenamento passou, portanto,

6 Nesse ponto, como o próprio MacCormick reconhece, a proximidade com Dworkin é marcante. Pois, como adverte Dworkin: “Será a integridade apenas coerência (decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? Isso depende do que entendemos por coerência ou casos semelhantes. Se uma instituição política só é coerente quando repete suas próprias decisões anteriores o mais fiel ou precisamente possível, então a integridade não é coerência; é, ao mesmo tempo, mais e menos. A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal, às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo” (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 263-264). Cf, também, CALSAMIGLIA. Albert. El concepto de integridad em Dworkin. Doxa: cuadernos de filosofia del derecho.n.12, 1992, p. 155-176.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

119

a estar mais próxima de um ideal de integridade do direito, nos termos propostos

por Dworkin.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATIENZA, Manuel. El Derecho como argumentacion. 2ed. Barcelona: Ariel, 2007.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica.

CALSAMIGLIA. Albert. El concepto de integridad em Dworkin. Doxa: cuadernos de

filosofia del derecho.n.12, 1992.

DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.

MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, Tradução de Conrado Hubner

Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

Page 120: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

120

ENTRE CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E AUTORIDADE

ESTATAL:

BREVES REFLEXÕES SOBRE A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Joyce Karine de Sá Souza1

Andityas Soares de Moura Costa Matos2

Palavras-chave: Desobediência Civil. Evolução do Estado. Direitos Fundamentais.

Constitucionalismo. Filosofia do Direito.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações

Unidas, datada de 10 de dezembro de 1948, traz uma série de direitos elencados

como sendo essenciais ao homem que convive em sociedade civil sob tutela

jurídica estatal, “para que o homem não seja compelido, como último recurso, à

1 Graduanda em Direito pela FEAD, atualmente no 9º período. Monitora da disciplina Filosofia do Direito no curso de Direito da FEAD. E-mail: [email protected]. 2 Graduado em Direito, Mestre em Filosofia do Direito e Doutor em Direito e Justiça pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto de Filosofia do Direito e disciplinas afins na Faculdade de Direito da UFMG. Membro do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Professor Titular de Filosofia do Direito no curso de Graduação em Direito da FEAD. E-mail: [email protected]

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

121

rebelião contra a tirania e a opressão”. A Declaração não tem natureza vinculativa,

porém vários Estados-Nação se inspiraram nela para orientar suas Constituições

(Alemanha e Portugal) como forma de positivar um núcleo de direitos necessários

em uma era na qual se verificou que quando o poder ilimitado é conferido ao

Estado, sua legitimidade se faz mediante o terror e da barbárie, como observamos

nos totalitarismos modernos, nazismo e fascismo.

Quando os direitos fundamentais ganham positivação constitucional, esta

determina o modo pelo qual as ações do Estado se orientarão e este realiza suas

atividades conforme o direito. Forma-se assim o Estado de Direito. No entanto,

ressalte-se que o rol de direitos fundamentais considerados atualmente não é

exaustivo. Sua construção é gradual e não busca um fim. À medida que o homem

passa por circunstâncias históricas em que há agressão, em qualquer de suas

formas, aos direitos humanos fundamentais, seja por parte do Estado ou por parte

de terceiros, põe-se a necessidade de proteger ainda mais sua essência. Tal dever

de proteção não se configura apenas na forma estatal, quando a Constituição

protege os direitos fundamentais contra as investidas do Poder Público em face do

cidadão ou quando age como guardiã desses direitos contra terceiros. De fato, o

maior interessado na proteção dos direitos humanos fundamentais é o próprio

homem. Como cidadão, é legítimo que resista à opressão quando o Estado se torna

um adversário ou se omite no dever de proteção aos seus direitos.

As razões pelas quais o “direito de se resistir à opressão” não foi

referenciado nas Constituições liberais do século XIX que se basearam na

Declaração Revolucionária de 1789 (lê-se no art. 2º da declaração: “A finalidade de

toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do

homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à

opressão), nem na maioria das modernas Constituições posteriores ao terror e à

barbárie vividos pela humanidade durante a ascensão dos nacionalismos

totalitários, são de ordem histórica e político-ideológica. Trata-se de um daqueles

inumeráveis “esquecimentos” que o pensamento jurídico não aborda e finge não

existir. Posição cômoda, porém irresponsável e anticientífica, como todas aquelas

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que privilegiam o útil em detrimento do verdadeiro. Os valores da ordem e da

segurança jurídica sempre foram privilegiados pelo pensamento jurídico ocidental,

de maneira que a aceitação da desobediência civil como categoria integrante da

dogmática tradicional mostra-se, se não paradoxal, ao menos problemática.

Contudo, faz-se necessário debater o tema da desobediência civil na seara do

Direito, uma vez que a ciência jurídica não se encerra na dogmática tradicional e

positivada, nem se limita a ela.

A desobediência civil pode ser entendida como uma postura política

individual que, mediante ação organizada e consciente, contesta a supremacia e a

validade da ordem jurídica vigente em sua inteireza ou em pontos isolados que, no

entanto, conformam o arcabouço essencial de tal ordem. Bem se vê que a

desobediência civil não é uma simples revolta ou negativa de cumprimento de

normas jurídicas quaisquer. Trata-se, evidentemente, de uma revolta qualificada, e

que normalmente busca um objetivo maior, ou seja, o desobediente se orienta

rumo a uma finalidade que transcenda a mera negativa de cumprimento de

determinados mandamentos legais. Da mesma maneira, pode-se sustentar com

acerto que a desobediência civil não se assemelha e nem dá lugar,

necessariamente, à anarquia pura e simples, que é a ausência de qualquer ordem

jurídica. Também não se confunde a desobediência civil com a objeção de

consciência, uma vez que esta preceitua uma contraprestação do objetor caso este

não concorde com o mandamento da norma, tal como ocorre com a recusa de

prestação de serviço às Forças Armadas por motivos ético-filosóficos. O objetivo do

desobediente é demonstrar que a injustiça não se coaduna com as ideias pelas

quais se sustenta o Estado de Direito.

A desobediência civil não se define pela negativa de qualquer ordem, de

qualquer governo e de qualquer direito. Trata-se, ao contrário, de questionar e de

resistir a uma específica ordem, a um tipo de governo e a um particular direito,

que, por diversas razões, são tidos por imorais e injustos. Na verdade, o conceito

de desobediência civil é fluido e ainda está por se fixar. A definição acima

apresentada constitui-se como simples moldura para melhor compreendê-la em

uma perspectiva jurídico-crítica. É claro que tal moldura comporta importantes

variações. Note-se, por exemplo, que depois de Gandhi – de sua teoria e, com

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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muito mais razão, de sua prática – não se pode sustentar que a desobediência civil

caracteriza-se como postura individual. Mahatma Gandhi foi talvez um dos

primeiros líderes políticos a convencer grandes massas populacionais a

desobedecer a ordem constituída, custasse o que custasse. É evidente que a partir

de então não se pode desconsiderar o potencial coletivo da desobediência civil,

que, tradicionalmente, sempre foi vista como contestação individual, a exemplo do

contido na clássica obra de Thoreau.

Outro aspecto importante a se enfrentar na conceituação de

desobediência civil diz respeito ao modo como tal postura se concretiza: por meio

de atividades pacíficas – como a política da não-cooperação de Thoreau e de

Gandhi, a exigência incondicional de paz feita por Tolstói e o repúdio ao mal e não

às pessoas más, como pregava Luther King – ou, ao contrário, para ser eficaz a

desobediência civil precisa assumir posturas violentas, lançando mão de recursos

armados e da possibilidade de matar e morrer, como parecem insinuar Santo

Tomás de Aquino, Thomas Hobbes, John Locke e Heinrich von Kleist? Caso se adote

o viés agressivo da teoria da desobediência civil, seguramente a linha que a separa

de grupos extremistas paramilitares será bastante tênue. Porém, não há que se

dizer que posturas terroristas se enquadrem no conceito de desobediência civil. Ao

contrário, o terrorismo não procura um diálogo com a ordem posta, tenta

subvertê-la para impor uma nova ordem, buscando o poder por meios

exclusivamente violentos.

Apesar dos vários problemas que envolvem a noção de desobediência civil

– seu estatuto teórico, sua natureza jurídica, seus limites, etc. – é plenamente

possível vislumbrar-lhe a riqueza, que somente agora começa a ser descoberta pela

doutrina jurídica. Vivemos em uma época na qual a humanidade abriu mão de sua

autonomia moral, deixando as decisões essenciais a respeito de sua existência para

serem tomadas pela autoridade, seja ela jurídico-estatal ou financeira. Hoje a

consciência individual capitula diante da autoridade. O homem individual – não

individualista ou egoísta, mas essencial, no sentido que Ortega y Gasset dá ao

termo – representa uma espécie em extinção.

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A alienante sociedade de massas, a banalização das relações humanas, o

domínio estatal estabelecido e mantido por tecnocracias financeiro-mundiais e a

tendência ao aplainamento cultural do planeta por umas poucas potências

belicistas são constatações que permeiam nosso quotidiano. Essa vaga pós-

modernidade, na qual a humanidade apenas sobrevive, somente pôde se instalar

devido ao abandono quase completo de algo que sempre caracterizou o homem:

sua consciência individual. O reconhecimento do estatuto jusfundamental da

desobediência civil, bem como a exposição das razões que ocasionaram sua

desvalorização histórica pelo pensamento jusfilosófico aparecem como formas de

salvaguardar – ou mesmo de resgatar – a dignidade da pessoa humana diante da

massacrante e crua realidade do poder.

De fato, existem diversas formas de se posicionar diante da opressão de

um Estado. Objeção de consciência, anarquismo e desobediência civil são formas

de se resistir à opressão, à violência institucionalizada, aos mandamentos de um

poder irracional, às leis que conformam o arcabouço de uma ordem. Não obstante,

apesar da desobediência civil se assemelhar em algum ponto a tais fenômenos,

carrega em si o pleno exercício da consciência individual, uma vez que não se

encerra na permissão ou na vedação pelo poder estatal de sua realização. O

cidadão encontra-se na posição de indivíduo frente ao Estado e não como súdito

que se dobra ao poder irresistível do Leviatã. Sem dúvida, a desobediência civil é

um ato legítimo ante as não incomuns atrocidades do poder, fazendo parte do

elenco dos chamados direitos fundamentais, sendo necessário considerá-la

enquanto tal para se equacionar o problema das relações conflitivas entre

autoridade e consciência individual no Estado Democrático de Direito. A

positivação do direito de se resistir à opressão, entendido como direito

fundamental em alguns ordenamentos jurídicos modernos, representa uma

limitação ao poder, tratando-se de mecanismo interno do próprio Estado de Direito

para impedir a violação dos direitos fundamentais tanto por parte daqueles que

dominam a máquina estatal quanto por parte de terceiros.

Apesar das formulações jusnaturalistas (Sófocles, Santo Tomás de Aquino,

Hobbes, Locke) que lhe deram substância, a noção de desobediência civil nunca

encontrou seu locus teórico específico na tessitura filosófica do Direito. Tal se deve,

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Direito

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em grande parte, à própria natureza da ideia, que guarda em si um forte matiz

contestatório. Por outro lado, a verdadeira história do Direito e do Estado ainda

está por se escrever, conforme sugere François Ost, já que o pensamento jurídico

tradicional, ao se comprometer com a orientação ideológica liberal-capitalista,

acabou por se encerrar em si mesmo e, assim, desconsiderar – consciente ou

inconscientemente – realidades muito mais ricas. Há toda uma teoria da

desobediência civil a se desenvolver no campo estritamente jusfilosófico, apesar do

avanço dos estudos relativos ao assunto na ciência e filosofia políticas, que, por

óbvio, consideram o fenômeno por meio de perspectivas muito diversas daquela

especificamente jurídica, que é exatamente a da decidibilidade.

Não obstante o tratamento lacunoso e superficial que se vem dispensando

à noção de desobediência civil na seara jurídica – especialmente na Teoria do

Estado e na Filosofia do Direito –, ainda assim pode-se enquadrá-la como um

direito fundamental. A desobediência civil não configura uma exceção no Estado

Democrático de Direito, uma espécie de último recurso para se utilizar em

momentos de grave crise institucional. Ao contrário, a ideia de desobediência civil

constitui, ao lado de outras noções caras ao pensamento liberal clássico (v.g.,

autonomia da vontade, proteção à propriedade, liberdade política), a própria base

de tal tipo de Estado, sendo, portanto, um direito fundamental.

Se, como afirma o constitucionalismo contemporâneo, os direitos

fundamentais se fundam na França revolucionária de 1789 e na Declaração de

Independência Norte-Americana de 1776, parece-nos bastante claro que são

necessários não apenas para originar o Estado de Direito, mas também – e

principalmente – para sua manutenção. A desobediência civil, entre todos os

outros direitos fundamentais, expressa a inalienável possibilidade de se

“desfundar” o pacto político quando o mesmo tenha sido corrompido ou se

mostrado excessivamente injusto e arbitrário. Se a soberania realmente pertence

ao povo, e é graças a tal soberania que o Estado se mantém, não nos parece

absurdo afirmar que aqueles que construíram o Estado podem, por diversos

motivos, desconstruí-lo. Do contrário, a sociedade civil corre o risco de assumir a

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aventura sem volta da obediência cega à autoridade, que, interessada em

maximizar o poder e o imperium, não hesita em sacrificar os direitos fundamentais,

sejam eles quais forem, em nome das sempre obscuras raisons d’État.

Não se deve admitir que o Estado, a autoridade e o governo sejam vistos

como monstros que, à semelhança das criaturas contidas na caixa de Pandora,

escaparam definitivamente ao controle, nada se podendo opor à sua vontade de

poder. Na verdade, são criações sociais que têm por missão a realização de

finalidades igualmente sociais, sem o que não se justificam. A aceitação da

desobediência civil como um dos direitos fundamentais representa uma espécie de

garantia segundo a qual aqueles que concederam o poder podem retomá-lo a

qualquer momento, desde que compareçam razões fortes o bastante para justificar

a quebra do status quo. Nesse sentido, não falta à desobediência civil relevância

jusfilosófica e evidência histórica, uma vez que originalmente compôs o rol de

direitos fundamentais de primeira geração assumidos pelos revolucionários

franceses de 1789.

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EUGENIA LIBERAL E A ÉTICA DA ESPÉCIE

Letícia Alonso do Espírito Santo1

Palavras-chave: Autonomia; Dignidade; Direito; Igualdade.

A sociedade está em constante transformação e, por conseguinte,

multiplicam-se as preocupações relacionadas à evolução biotecnológica. Numa

sociedade onde os pensamentos, os princípios e valores são sempre mutáveis, é

difícil para o Direito acompanhar todas as inovações. Segundo Jürgen Habermas

(2004), atualmente, o darwinismo social e a ideologia do livre comércio parecem se

renovar com o neoliberalismo globalizado.

Devido ao surgimento de novas tecnologias capazes de alterar a base

biológica dos indivíduos, tem havido uma grande repercussão as questões ligadas à

autonomia e disposição do próprio corpo. Geralmente, defende-se a eugenia

positiva tendo como fundamento a autonomia, no entanto, como isso afetaria a

nossa identidade como iguais - abalaria nossa ética da espécie? Nosso conceito de

vida razoavelmente boa, concepção de bem de John Ralws (1996), é aceitável

desde que não atinja a esfera de terceiros, logo, até que ponto essas modificações

biológicas podem ser toleradas por um Estado liberal?

1 Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected].

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128

As pesquisas com embriões e o DGPI (diagnóstico genético de pré-

implantação) são assuntos em destaque e demonstram como essas inovações

podem acarretar em uma instrumentalização do ser humano. Afinal, a permissão

da seletividade de indivíduos abala o Princípio da Igualdade, porque se permite

uma escolha dos melhores e exclusão dos que consideramos inadequados

socialmente. A manipulação de genes abarca questões relativas à identidade da

espécie, porque abala a autocompreensão normativa do indivíduo como ser

autônomo no meio social. Onde estariam enquadrados os deficientes? Não

somente a mídia, mas também a medicina tem sua responsabilidade no que tange

a criação dos feios e dos deficientes. É necessário se ater a essa seletividade que

pode decorrer dessas modificações.

Na sociedade capitalista são notáveis diversas desigualdades, até mesmo

em países considerados desenvolvidos. Desse modo, os indivíduos que não

possuírem recursos suficientes não terão acesso a essas tecnologias, o que poderá

desencadear em um proletariado genético: “os filhos dos pobres”. O conceito de

justiça distributiva ou social visa fazer com que todos tenham uma “vida boa”,

respeitando a dignidade do ser humano, pois este constitui fim em si mesmo. Para

Ronald Dworkin (2005), a permissão das técnicas eugênicas só abala a justiça

distributiva porque a desigualdade já existe em nosso meio. Acredita que a justiça

distributiva deveria redistribuir os recursos, equiparando os indivíduos sem os

nivelar por baixo, impedindo que os mais favorecidos tenham acesso, pois

permitindo que esses usufruam, as novas tecnologias trarão benefícios diretos ou

indiretos aos demais cidadãos. Destarte, é necessário cuidado, pois a liberação de

técnicas eugênicas, que serão acessíveis somente aos mais favorecidos

economicamente, orientada apenas pelas regras no mercado, pode modificar o

modo como entendemos a relação entre mérito e justiça distributiva.

Eugenia consiste em uma ciência que estuda as condições mais propícias

para a reprodução e o aprimoramento humano. A eugenia negativa se refere à

lógica da cura de doenças e a positiva ou liberal é referente ao aperfeiçoamento

humano. Já Platão (1996), na República, levou em consideração elementos de

eugenia, quando afirmou que os seres humanos tinham origem distinta, e que esta

deveria ser levada em conta para a organização da pólis. É possível afirmar que

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

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Hitler também utilizou das técnicas disponíveis para tratar da questão da eugenia.

Desta forma, é perceptível que, tanto Hitler quanto Platão acreditavam na

interconexão entre política e fundamentos biológicos do ser humano. Habermas

também volta sua preocupação para esse aspecto, porque essas mudanças

genéticas podem alterar nossa própria autocompreensão e também nossas

relações políticas e sociais, fundamentadas na noção de iguais direitos.

A ética é proposta como o estudo da vida correta, um modelo de vida a ser

imitado (HABERMAS, 2004). Indisponibilidade da base biológica é segundo

Habermas, um pressuposto necessário da autodeterminação e das relações

igualitárias. O caráter irreversível das modificações genéticas em embriões, por

exemplo, acarretaria na desigualdade das relações entre pais e filhos. Dworkin

(2005) acredita que essas são questões que não devem ser resolvidas no âmbito da

justiça, são valores independentes ou separados, não devendo o Estado intervir.

Entretanto, o Estado intervém até mesmo em questões que não envolvem a vida

de uma pessoa, como, por exemplo, maltratar animais; logo, o Estado também

deve intervir para proteger o embrião ou os cidadãos mais carentes. A vida humana

não pode ser considerada um bem como qualquer outro, a inserção da moral na

ética da espécie torna consciente o valor da liberdade e igualdade. Alterações

genéticas podem alterar o auto-entendimento do homem como eticamente livre e

moralmente guiado por normas.

Para Rawls (1996), se a questão da eugenia liberal não pode ser resolvida

como uma questão de justiça deve ser deixada ao arbítrio de cada um, de tal forma

que não haja corte entre eugenia terapêutica e de aperfeiçoamento. No entanto,

para Habermas (2004), o Estado deve intervir, nem que seja em nome do

pluralismo, pois as técnicas eugênicas são incompatíveis com o liberalismo,

tocando nas relações de simetria e igualdade entre as pessoas. Dworkin (2005) é

contrário à intervenção do Estado na relação entre os indivíduos, já para

Habermas, a partir da democracia, acredita que a relação do indivíduo para com o

Estado não possui privilégio frente à relação de indivíduos entre si.

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Kant teria convertido, através do imperativo categórico, o livre-arbítrio em

autonomia. O poder de se auto-determinar é de suma importância e todo indivíduo

deve ter sua autonomia assegurada pelo Estado, mas também necessita que essa

seja regulada. Vale ressaltar que, a eugenia teve início nos Estados Unidos, mas se

propagou com o nazismo. Logo, o Estado é de direito, mas também é e deve ser

democrático. A atuação do Estado deve estar em consonância com o direito, com

as leis, entretanto, isso não é o suficiente. A democracia abarca uma noção dos

indivíduos como iguais e, as técnicas eugênicas que promoverem uma maior

desigualdade entre os cidadãos devem ser analisadas mais a fundo. O Estado deve

investir em métodos que melhorem a vida dos indivíduos, e deve monitorar o que

está sendo feito e com que meios. A eugenia positiva se for monitorada apenas

pelas regras do mercado ou do liberalismo, atingirá gravosamente a esfera de

terceiros, abalando o conceito de igualdade, que já se encontra em descrédito na

sociedade capitalista e neoliberal. O mínimo ético, que é composto pelos valores

que julgamos essencial proteger, não pode ser esquecido no momento da

utilização de técnicas eugênicas.

Regular consiste em estabelecer uma moldura a partir da qual se pode

lidar com informações praticas (Weinberger, 1991). As práticas eugênicas não

devem simplesmente ser proibidas, pois podem trazer benefícios. No entanto,

permitir uma eugenia liberal a priori, pode trazer consequências irreversíveis aos

indivíduos que sofrerem a intervenção ainda na fase embrionária e também pode

contribuir para o aumento da desigualdade entre os indivíduos, violando assim,

respectivamente, a liberdade ética e a horizontalidade dos direitos fundamentais.

Não basta deduzirmos que está técnica está em conformidade com o ideal de “vida

razoavelmente boa” compartilhado intersubjetivamente. Há a necessidade de uma

ampla discussão e uma averiguação de como essas práticas influiriam no contexto

social, como incidiriam na vida dos indivíduos, nos pensamentos ideais e, ate

mesmo, no reconhecimento como iguais. Não basta apenas sermos capazes de

realizar tais técnicas, é necessário que elas sejam adequadas para não acarretarem

em maiores preconceitos e desigualdade nas relações sociais.

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Direito

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DWORKIN, R. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. Tradução

Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

HABERMAS, J. O Futuro da Natureza Humana. A caminho de uma eugenia liberal?

Tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HO. Mae-Wan. A morte do determinismo. Folha de São Paulo. Caderno Mais! São

Paulo: 25/03/2001, p.16-18.

PLATÃO. A república. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, 433a.

RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1996.

WEINBERGER, Ota. Law, institution, and legal politics: fundamental problems of

legal theory and social philosophy. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1991.

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GUNTHER TEUBNER NO DESAFIO KELSENIANO DE

CONCEITUAÇÃO DA JUSTIÇA

Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes1

Palavras-chave: Justiça; Teubner; Kelsen; Relativismo; Autopoiese.

Este trabalho pretende relacionar a problemática sobre a conceituação da

justiça, trazida por Kelsen em seu artigo “O que é a justiça?”, com a proposta

conceitual exposta por Teubner no artigo “Self-subversive Justice: Contigency or

Transcendence Formula of Law?”.

Kelsen, no referido trabalho, denunciou todas as fórmulas de justiça já

criadas como fórmulas vazias. Sua pretensão, entretanto, não foi reputá-las

totalmente inúteis, pretendeu, apenas, evidenciar a estrutural impossibilidade

delas cumprirem a missão a que se propuseram, a qual seria o estabelecimento de

padrões racionais de normatização das ações humanas capazes de garantir o tão

desejado bem comum. O esforço kelseniano se valeu primordialmente da lógica

para demonstrar que as fórmulas mais conhecidas como o “dar a cada um o que é

seu”, a regra de ouro kantiana ou os cálculos utilitários, não são capazes de

resolver as questões controvertidas da justiça na prática. A resolução de tais

1 Graduando do 8º período da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Membro do Grupo de Pesquisa: Direito, Teoria da Argumentação e Inovações tecnológicas; liderado pelo Prof. Dr. Marcos Vinício Chein Feres. E-mail: [email protected].

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questões sempre acaba por depender de uma hierarquização de valores externa às

fórmulas de justiça que acabam por determinar o resultado da aplicação da

fórmula.

Com isso, Kelsen desferiu um golpe às proposições conceituais de justiças

universais capazes de garantir a felicidade dos povos, golpe este que não foi

rebatido por quaisquer das recentes formulações neo-kantianas de justiça, como a

de Rawls ou de Habermas. A impossibilidade da formulação de uma ideia de justiça

capaz de garantir o bem comum aos homens tem sido desconsiderada por diversos

autores que, ainda hoje, buscam na estrutura semântica da velha filosofia europeia

a possibilidade de fundar uma justiça universal por meio dos conceitos de

reciprocidade universal, consenso e racionalidade.

Teubner, por sua vez, não ignora a problemática posta por Kelsen, mas

acredita poder superá-la por meio de uma nova compreensão ontológica trazida

pela Teoria dos Sistemas, a qual pretende denunciar a insuficiência da estrutura

semântica da velha filosofia europeia para dar conta do mundo contemporâneo.

Conceitos centrais como sujeito e objeto deveriam, no atual estágio estrutural de

diferenciação funcional da sociedade, dar lugar à distinção entre sistema e

ambiente, mudança que, por si só, já exige o repensamento da própria noção de

realidade. Hoje a questão da justiça deveria deixar de buscar seus fundamentos nos

antigos conceitos citados acima para estruturar-se pelos conceitos de assimetria,

relação sistema-ambiente e alteridade não racional. Ao propor tais mudanças a

Teoria dos Sistemas se inclui como teoria, ou seja, se reconhece como um

elemento do sistema científico que se observa e observa seu ambiente. Isso

significa o reconhecimento de sua posição social, fato que evidencia suas

limitações, negando qualquer possibilidade de imposição de um sentido à toda

realidade, restringindo-se apenas à estruturação conceitual autopoiética.

Para começar, a justiça de Teubner pretende-se histórica, negando,

portanto, quaisquer pretensões de universalidade temporal ou espacial. Caso se

detivesse por aí não haveria acréscimo à construção kelseniana, entretanto a

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intenção de Teubner não é afirmar o relativismo, mas sim apontar a conexão

existente entre o direito e a forma de estruturação da sociedade contemporânea,

que seria a diferenciação funcional autopoiética e não mais uma estruturação

segmentária e estratificada. Na proposta histórica da Teoria dos Sistemas de base

luhmanniana, adotada por Teubner, evolução social não significa progresso para

melhor, apenas mudança. Dito isso, devemos notar a mudança histórica da

estrutura de diferenciação dos subsistemas sociais ocorrida durante os séculos XVI

e XVIII, na qual se passou de uma diferenciação estratificada para uma

diferenciação funcional. Nesse modelo se nega a existência de uma sociedade pós-

moderna, mas considera-se as teorias pós-modernas como as primeiras tentativas

de descrição de uma modernidade mais madura. No que tange à justiça, a primeira

consideração necessária é a de que a Teoria dos Sistemas não considera que a atual

sociedade funcionalmente diferenciada seja mais ou menos justa que a antiga

sociedade estratificada. Tal evolução social deve ser considerada para por em

evidência a mudança de afinidade semântica da ideia de justiça, que numa

sociedade estratificada estruturava-se sob os núcleos de justiça comutativa e

distributiva, visando a igualdade dos segmentos e das hierarquias sociais. É sempre

bom esclarecer que na Teoria dos Sistemas a referência a tais hierarquias sociais

não dizem respeito aos sujeitos mas aos sistemas sociais diferenciados. Ao atingir a

diferenciação funcional, ocorre o fim da hierarquia entre os sistemas, de forma que

a justiça em um sistema jurídico autopoiético devesse passar a ser entendida como

uma auto-descrição do direito que destrói seu próprio objetivo ao realizar-se na

necessária formação de nova injustiça.

Considerando-se a sociedade funcionalmente diferenciada, não há espaço

para uma ideia de justiça fundada na reciprocidade, devendo tal conceito dar lugar

à assimetria. Notando a fragmentaridade da sociedade hodierna, que se estrutura

em diversas racionalidades binárias não hierarquizadas, deixa de ser plausível

qualquer construção fundada na reciprocidade entre os seres humanos, da mesma

maneira que é solapada a esperança de uma justiça unitária garantidora do ideal de

boa sociedade. Aí se nega a justiça absoluta, chamada por Kelsen de belo sonho da

humanidade, mas não para afirmar o subjetivismo da justiça, mas para considerá-la

em cada uma das suas manifestações monocontextuais, ou seja, afirma-se a

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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existência de justiças estruturalmente distintas, diferenciando-se em moral,

política, econômica, jurídica. Dessa forma, Teubner nega, devido à atual

estruturação social, qualquer possibilidade de formulação de um meta-princípio de

justiça capaz de unificar todos os demais, ou mesmo de estabelecer uma

prevalência entre eles.

Concentrando-se na justiça do direito, Teubner identifica sua dinamicidade

fundada nos litígios concretos caso a caso e na produção social de normas. O

abandono da insistência em consenso e universalismo surge com a visão da justiça

como auto-observação do sistema jurídico, exercendo um autocontrole consciente

da relação entre sistema e ambiente. Dessa forma, a justiça deixa de ser um

princípio para ser uma auto-observação sistêmica geradora de distúrbios sociais

por acrescer complexidade ininterruptamente. Teubner esclarece que tal

concepção de justiça não deve ser vista com total ceticismo, como se fosse apenas

um objeto formal em resposta às exigências de consistência conceitual. O ponto de

maior relevância desta definição seria a localização da justiça jurídica exatamente

nas fronteiras do direito, de forma que a invocação da justiça como fórmula de

contingência modificadora da realidade jurídica tornaria evidente a relação do

sistema com seu ambiente, relacionando consistência interna com demandas

externas. Assim, a justiça redirecionaria a atenção do direito à sua adequação ao

mundo fora dele, com isso a justiça seria uma auto-transcendência do direito.

Teubner considera a conceituação desta auto-transcendência como o

ponto mais difícil da construção da justiça, situando-se no problemático hiato entre

estrutura e aplicação do direito. Nesse momento o autor relaciona as propostas de

Luhmann, Derrida e Emmanuel Levinas para concluir que a justiça seria, em última

instância, a própria tentativa de superar a ruptura entre imanência e

transcendência, sendo um processo de transformação da injustiça dentro do

direito. Com isso, Teubner chega a afirmar que a busca por justiça é a obstinação

do direito – seu verdadeiro vício – que é, ao mesmo tempo, inventivo e destrutivo.

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Por meio de toda uma novidade semântica, Teubner vai além de Kelsen

por relacionar a justiça jurídica à forma específica de diferenciação sistêmica da

atualidade. Entretanto, de certa maneira, Teubner concretiza o objetivo kelseniano,

que nos parece ser a não petrificação da justiça em fórmulas ahistóricas

desconectadas da realidade social na qual se encontram. Com isso, por meio da

proposta de uma semântica adequada à atualidade, parece ser possível relacionar

de forma mais adequada a autonomia do direito, traduzida em sua autopoiese,

com os desejos sociais, traduzidos na justiça como auto-observação jurídica em

relação com seu ambiente, constituindo uma justiça como auto-subversão.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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MORAL, DIREITO E EDUCAÇÃO EM KANT

Vìtor Amaral Medrado1

Palavras-chave: Kant; Direito; Moral; Educação; Liberdade.

Apesar do conhecido esforço sistemático do filósofo de Königsberg, além

de no Sobre a Pedagogia, Kant tratou do tema da educação em diversos livros. Na

Antropologia em Sentido Pragmático, por exemplo, estabelece como característica

da educação a moralização pela arte e pelas ciências (KANT, 1996a, p. 240-241).

Outro exemplo é na Metafísica dos Costumes quando descreve a antropologia

prática como desenvolvedora, difusora e fortalecedora dos princípios morais

através da educação (KANT, 2003a, p. 59).

Seja como for, o texto Sobre a Pedagogia, bem como, de resto, a

universalidade da abordagem de Kant sobre a educação, parece revelar um papel

essencial da educação na filosofia kantiana. Nesses termos, pode-se formular a

seguinte pergunta: qual o lugar da educação no pensamento kantiano? A partir da

1 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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resposta desta pergunta, outra: como devemos proceder à educação? E por fim:

qual o lugar do Direito na pedagogia kantiana?

O itinerário deste trabalho, pois, será a da investigação crítica a respeito do

lugar da educação na filosofia kantiana. Em um segundo momento, investigaremos

como, então, deve ser o processo educacional. Por fim, pretendemos demonstrar e

analisar criticamente o papel de destaque que o Direito possui neste processo.

Alguns estudiosos, dentre eles, Kate A. Moran, vêem uma aparente

contradição entre a filosofia moral kantiana e os seus estudos sobre a educação

moral, já que, a princípio, a moral kantiana parece ser independente da sua

pedagogia. Nesse sentido, o problema: como conciliar uma moral formalista e os

estudos de cunho pedagógico?

Kant procura na própria ideia de humanidade, enquanto comunidade

ética, a saída para a aparente contradição. Nesse sentido, no mesmo texto expõe:

Deve-se orientar o jovem à humanidade no trato com os outros, aos

sentimentos cosmopolitas. Em nossa alma há qualquer coisa que

chamamos de interesse: 1. Por nós próprios; 2. Por aqueles que

conosco cresceram; e, por fim, 3. Pelo bem universal. É preciso fazer

os jovens conhecerem esse interesse para que eles possam por ele se

animar. Eles devem se alegrar pelo bem geral, mesmo que não seja

vantajoso para a pátria, ou para si mesmos (KANT, 2002a, p. 8).

A interpretação de Moran é que o objetivo maior, já presente na moral

kantiana, de uma comunidade ética, segundo a fórmula do imperativo categórico

do reino dos fins, resolve a aparente contradição, já que a educação moral concorre

para o aperfeiçoamento moral da humanidade, concorrendo também, pois, para

consecução do reino dos fins (MORAN, 2009, p. 482-483).

É que as determinações do sujeito empírico atuam como obstáculos ao

pleno agir moral do sujeito transcendental2. Em vista de superar essas dificuldades,

2 O imperativo categórico é possível porque diante da pressuposição da idéia da liberdade tomamos conhecimento que fazemos parte também de um mundo inteligível, possuindo, por isto, uma vontade que, sendo pura, pode ser lei para si mesma (razão prática), i.e, uma vontade autônoma. Todavia, a

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Direito

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é necessário que façamos uso de instrumentos capazes de, afastando as

determinações maléficas do sujeito empírico, possamos a agir moralmente. Assim:

Precisamos da antropologia prática para que sejamos capazes de

acolher em nossa vontade, pela via da educação e do exercício, as leis

morais em seus princípios e também assegurarmos sua eficácia, seja

pelo aprendizado na nossa formação moral, seja pela força externa

do direito (OLIVEIRA, 2006, p. 452).

Como não existimos apenas enquanto sujeitos transcendentais, mas, ao

contrário, somos falíveis, mas também passíveis também de aperfeiçoamento

moral, é preciso cultivar o espírito através da educação, nos tornando mais aptos ao

agir moral (OLIVEIRA, 2006, p. 447).

O procedimento educacional em Kant se dá por meio de pares de estágios

consecutivos: a educação negativa (recomendações e disciplina) e a educação

positiva (civilização, cultivo e moralização).

Em relação à educação negativa, para os objetivos deste trabalho, é apenas

importante assinalar para o momento da educação negativa chamada disciplina. Ela

está ancorada na lição de fazer a criança entender que não deve interferir na

liberdade dos outros. Em uma palavra: trata-se de impedir o abuso da liberdade

(MORAN, 2009, p. 477).

Ultrapassada a fase da educação negativa, o educando está pronto para

adentrar a fase da educação positiva. Esta envolve, de início, o cultivo através do

ensino e/ou aprimoramento de habilidades intelectuais e físicas, mas

principalmente da habilidade de compreensão, julgamento e razão (MORAN, 2009,

p. 477).

vontade possui também realidade sensível, logo, não necessariamente está em consonância com a lei moral, daí se explica a necessidade do imperativo categórico, que ordena o cumprimento do dever. Ver: KANT, 2002b, p. 84-87.

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O come do processo educativo em Kant se dá na moralização. Nesta, o

educando finalmente discute os problemas morais de forma específica. Todavia, é

preciso que os estudantes tenham, primeiramente, uma base sólida de princípios

morais. Assim, inicialmente ocorrerá um catecismo moral, i. e., o ensino de deveres

básicos de virtude, e, posteriormente, será dado aos estudantes a oportunidade de

problematizar a moral e dialogar sobre ela, através de exemplos históricos e

casuísmo (MORAN, 2009, p. 477).

Por todo exposto, pode-se concluir, juntamente James Scott Johnston, que

o processo educacional tem por finalidade o ensino da própria autonomia ao

educando. (JOHNSTON, 2007, p. 244).

Atentando para o último momento da educação positiva, qual seja a

moralização do educando, em especial no que concerne ao necessário ensino dos

deveres básicos de virtude, i. e, o catecismo moral, o Direito possui grande

relevância para o processo educativo kantiano.

É que o Direito, na medida em que trabalha com casos em que se aborda a

moralidade, ou justiça, de condutas, teria um papel exemplificador dos deveres de

virtude. Aprendendo e seguindo às normas jurídicas, o educando teria uma boa

amostra dos valares morais da sociedade que ele deverá internalizar. Nesse sentido,

Kant lamenta o fato de que

falta quase totalmente em nossas escolas uma coisa que, entretanto,

seria muito útil para educar as crianças na honestidade, isto é, falta

um catecismo do direito. Este deveria conter em versão popular de

casos referentes à conduta que se há de manter na vida cotidiana e

que implicariam naturalmente sempre a pergunta: isso é justo ou

injusto? (KANT, 2002a, p. 91).

A iniciação no Direito importaria a interiorização dos deveres de virtude

necessários para se proceder à discussão e problematização da moral, último

momento do processo de catecismo moral. Nesse sentido, o Direito, além de atuar

como fator decisivo para a catequização moral. A sua falta em escolas, não poderia

deixar de gerar um incômodo no filósofo de Königsberg.

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Direito

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Na medida, ainda, que a educação tem por objetivo dar ao educando a

maior liberdade possível, garantindo, ao mesmo tempo, que o seu uso não

prejudique a igual liberdade de outros, o constrangimento jurídico (sanção jurídica),

imposto ao educando para garantir a coexistência de liberdade iguais,

consubstancia-se em verdadeiro instrumento de educação, para o fim de “ensinar a

usar bem a liberdade” (KANT, 2002a, 33), para que o educando não dependa dos

outros (autonomia) (KANT, 2002a, 34).

Kant, mesmo sem adentrar no assunto, tem a expectativa de que o

catecismo de Direito possa levar à assimilação dos Direito Humanos, qualificados

como “a menina dos olhos de Deus sobre a Terra” (KANT, 2002a, p. 24).

A educação jurídico-moral é, pois, para Kant, um dos meios mais eficazes

para se promover o aprendizado dos deveres de virtude no seio da sociedade. Além

disso, através de estudos de casos jurídicos populares, o educando poderá,

finalmente, alcançar a capacidade de fundamentação de máximas-morais, podendo

agir autonomamente. Em uma palavra: através do Direito, o indivíduo se torna livre,

tanto no que tange ao resguardado da sua liberdade civil frente à possíveis abusos,

como em relação à liberdade moral (transcendental), pela qual estará, então,

preparado para agir moralmente, assim como realiza, ao mesmo tempo, a

comunidade ética.

Em meio ao grande número de estudos sobre Kant no Brasil e no exterior,

talvez uma parte essencial da doutrina deste filósofo tenha sido, injustamente,

pouco estudada.

Trata-se da pedagogia kantiana, a qual, procuramos mostrar, é essencial

para a compreensão da sua Ética, uma vez superada a aparente incompatibilidade

entre elas. É que, levando em conta a ideia de um reino dos fins (da humanidade,

enquanto comunidade Ética), é preciso integrar à Ética os meios, sem os quais, não

poderemos atingir tal finalidade.

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Nesse diapasão, à formalidade e à consequente universalidade da Ética

kantiana, faz-se necessário impor um elemento empírico, particular, fundamental

para a efetividade da teoria. Trata-se das condições empírico-antropológicas

necessárias para que o indivíduo possa agir moralmente.

Ora, é por meio da educação ou, em Kant, educação moral, que o

indivíduo vai adquirir a maior parte das condições empíricas necessárias ao agir por

dever, já que é através da educação que o homem se torna capaz de ser livre.

A educação moral, por sua vez, guarda íntima relação com o Direito. Em

primeiro lugar o Direito está relacionado com a Disciplina, i.e., com a educação

negativa. Nesse sentido, o Direito atua como limitador da liberdade externa do

indivíduo (aspecto liberal).

O Direito, todavia, possui um papel essencial no processo educativo na

medida em que é um dos principais instrumentos para a consecução da educação

positiva, pela interiorização de valores morais da sociedade, os quais,

posteriormente, vão servir para a capacitação do indivíduo na formulação de

máximas morais.

Impossível, pois, a desvinculação da Ética e da pedagogia kantiana e, as

duas, do Direito. Em Kant, o Direito, a Moral e a Educação estão igualmente e

interdependentemente a serviço do aprimoramento moral da humanidade,

enquanto comunidade ética, o que somente pode se dar, através da liberdade.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

143

JOHNSTON, James Scott. Moral Law and Moral Education: Defending Kantian

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KANT, I. Anthopology from a pragmatic point of view. Tradução do alemão por Lyle

Dowdell. Carbondale & Edwardsville, Southern Illinois University Press, 1996a.

KANT, I. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003a.

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret,

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MORAN, Kate A. Can Kant Have an Account of Moral Education? Journal of

Philosophy of Education Society of Great Britain. Published by Blackwell Publishing,

9600 Garsington Road, Oxford OX4 2DQ, UK and 350 Main Street, Malden, MA

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OLIVEIRA, Mário Nogueira de. Para inspirar confiança: considerações sobre a

formação moral em Kant. Trans/Form/Ação [online]. Vol. 29, p. 69-77, 2006.

Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732006000100005. Acesso em

02 de outubro de 2011.

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O CRIME DE ANAXÁGORAS E A GÊNESE DA IDÉIA DE

LIMITE

Loisima B. B. M. Schiess1

Lossian B. B. Miranda2

Palavras-chave: Impiedade; Aproximações sucessivas; Quadratura do círculo; Lei da

inércia; Constitucionalismo discursivo.

Recentemente encaminhamos ao XXV Congresso Mundial de Filosofia do

Direito e Filosofia Social o artigo

Physikalische und Mathematische Verbindungen Von Justiz Division, no qual

propomos que o método matemático de exaustão tem orígem na prática forense.

Para isto nos baseamos em analogia existente entre a técnica forense antifontiana

da vizinhança enumerativa indutora de causalidade (aproximação sucessiva) e a

conjectura de Antifonte acerca da quadratura do círculo. No presente trabalho nos

concentramos nos motivos que levaram este logógrafo ateniense a propor esta

quadratura, e os desdobramentos desta proposta.

1 AMB – Secretaria de Assuntos da Mulher Magistrada. E-mail: [email protected]. 2 IFPI – Coordenação de Matemática, Piauí. E-mail: [email protected].

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Direito

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Neste artigo propomos que a conjectura de Antifonte sobre a quadratura

do círculo se enquadra no plano de defesa da liberdade de expressão de

Anaxágoras por ocasião do processo judicial que contra ele foi instalado por crime

de impiedade. A partir de fontes históricas construímos um vínculo entre este

processo judicial e o desenvolvimento da análise matemática, da mecânica clássica

e do constitucionalismo discursivo de Robert Alexy. O presente trabalho reforça a

tese unitarista acerca da identidade de Antifonte, bem como os vínculos filosóficos

e históricos entre o direito e as ciências exatas.

Em decorrência de questões políticas, objetivando atingir os partidários de

Péricles e os seus principais colaboradores, entre os quais estava Anaxágoras, fonte

primordial de suas idéias inovadoras, foi instituído um decreto estabelecendo

acusação pública para as pessoas que fossem negligentes para com a religião e

ensinassem novos ensinamentos sobre as “coisas do alto”. Tal era o caso de

Anaxágoras, que ensinava que o sol era formado por metais incandescentes e a lua,

uma pedra.

Nas questões agrárias do antigo Egito teve-se a necessidade jurídica de se

encontrar um quadrado equivalente (de igual área) a um retângulo previamente

dado. Isto levou naturalmente ao problema teórico de se tentar achar a média

geométrica de dois números previamente dados, conforme nos indica Aristóteles

em De Anima. Relativamente a esta mesma questão, a quadratura do retângulo via

régua e compasso, era conhecida pelos primeiros discípulos de Pitágoras.

Anaxágoras (500-428 a.C.), citado por Plutarco em Sobre o Exílio, é tido

como o primeiro pensador na Grécia ao qual se atribui a tentativa deliberada de

efetuar a quadratura do círculo, via régua e compasso, assim procedendo durante

um período em que esteve preso em Atenas por volta de 430 a.C. Quatro anos

após, Antifonte de Atenas (480-411, Grécia) conjectura a quadratura do círculo ao

mesmo tempo em que enuncia o método de exaustão. Tendo sido a prisão de

Anaxágoras um fato político relevante, e sendo Antifonte o primeiro e o mais

famoso logógrafo ateniense no período, numa população com 150 mil habitantes

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não escravos e 35 mil cidadãos, muito provavelmente Antifonte interagiu com

Anaxágoras por ocasião de sua prisão.

A análise matemática se inicia com a conjectura de Antifonte, a qual faz

referência à exaustão de qualquer quantidade de uma grandeza a partir de

sucessivas retiradas de partes cujas quantidades não sejam menores que a metade

da quantidade anterior restante da referida grandeza. Pela citação que faz

Plutarco, talvez Anaxágoras possa ter chegado a este resultado. Porém nada restou

de seus trabalhos a este respeito, além da vaga referência deste escritor greco-

romano. Quanto às contribuições de Antifonte relativamente à sua proposta de

quadratura do círculo, as principais informações vêem de Aristóteles e seus

comentadores Simplício e Temístio.

A análise dos discursos de Antifonte nos revela sempre a presença de um

plano traçado e de argumentos fundamentados sobre a verossimilhança. Para ele,

bem como para a tradição jurídica subseqüente, a verdade é algo de difícil acesso.

Se for possível chegar-se a ela, deve-se fazer todo esforço possível. Se não, deve-se

buscar o que for mais parecido com a verdade, o que mais se aproxime dela.

Antifonte elabora seus argumentos persuasivos construindo uma seqüência de

informações que vão, a cada etapa, se aproximando cada vez mais, por

verossimilhança, daquilo que mais pareça com a verdade.

Aristóteles percebeu claramente que a proposta de demonstração de

Antifonte para a quadratura era diferente do pensamento geométrico. Inclusive a

classificou de irrefutável para os padrões da época. Infelizmente o estagirita não

desceu aos detalhes e às motivações que levaram Antifonte a propô-la. Não há

evidências, da leitura do que restou sobre Antifonte, de que sua conjectura acerca

da quadratura do círculo se refira exatamente a uma quadratura usando

exclusivamente régua e compasso. O que efetivamente se conclui é que ele

afirmava, partindo das aproximações indutoras de causalidade, que o círculo

deveria ser uma figura geométrica para a qual deveria existir um quadrado cuja

área fosse igual à área do círculo. O que ele realmente nos propõe é calcular a

partir de aproximações sucessivas.

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Direito

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O que seria a atividade do geômetra, relativamente à quadratura do

círculo, naquela época, senão a construção com régua e compasso? Se Aristóteles

afirma que não é próprio do geômetra refutar a proposição de Antifonte, muito

provavelmente é porque Aristóteles julgava que a proposta de Antifonte não era de

quadratura via régua e compasso, mas de caráter mais genérico, não excluindo,

inclusive, a possibilidade daquela construção. Se assim não foi, como justificar que

vários matemáticos imediatamente posteriores a Antifonte, tais como Dinostratos,

com a curva de Hípias, e o próprio Arquimedes com sua famosa espiral,

propusessem quadraturas do círculo através de métodos alternativos?

Fora da questão da quadratura do círculo, não se observa o nome

Antifonte em textos matemáticos. O círculo, que usualmente simbolizava a lua e o

sol, representava, entre os antigos gregos, a divindade. Por outro lado, o quatro, na

mesma religião, representava o quadrado, o sólido e o mundo manifestado onde

atuam nossos sentidos.

Defendemos a opinião de que a proposta de quadratura do círculo feita

inicialmente por Anaxágoras e prosseguida por Antifonte se enquadrava em seu

plano de defesa judicial. A vida de Anaxágoras foi inteiramente voltada para o

pensamento científico. Para ele o que mais interessava era a liberdade de poder

ensinar aquilo que julgava ser verdadeiro. Se Anaxágoras e Antifonte provassem

que o círculo e o quadrado eram equivalentes, pelo menos no plano do simbolismo

grego, reduziriam a divindade ao mundo material. Vemos aí um plano de defesa da

dignidade do professor Anaxágoras, feita por seu muito provável aluno Antifonte.

Grande parte da matemática atual foi desenvolvida a partir das tentativas

de se fazer a quadratura do círculo. Tal é o caso da análise matemática, que surge

diretamente da conjectura de Antifonte, e da teoria dos números algébricos e

transcendentes.

Em física, o princípio da inércia de Aristóteles-Galileu, tal como elaborado

por Galileu em Diálogo, segunda jornada, Opera, VII, pp. 171-174, segue a técnica

da vizinhança enumerativa indutora de causalidade de Antifonte, visto que é um

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resultado ideal não observável no mundo físico o qual é o limite de procedimentos

fáticos observáveis. Também convém notarmos que este resultado de Galileu

segue o procedimento básico da busca do ponto médio estabelecido em Ética a

Nicômaco de Aristóteles, pois a lei da inércia surge como um ponto médio, entre

uma infinidade de outras situações possíveis, a saber, uma infinidade contínua de

possibilidades de a bola esférica subir a superfície polida inclinada em movimento

retardado ou descer pela mesma em movimento acelerado.

Para finalizar, notemos que o constitucionalismo discursivo de Robert

Alexy se enquadra plenamente dentro do método antifontiano da vizinhança

enumerativa indutora de causalidade, pois o discurso ideal é um limite de discursos

reais, os quais podem aproximá-lo. Além do mais, os procedimentos de

ponderação, mormente a fórmula peso, buscam pontos de equilíbrio entre as

infinitas possibilidades arbitrárias possíveis, e tudo através de etapas sucessivas

que vão se aproximando do resultado ideal exigido pela pretensão de correção.

Uma das principais pretensões à correção, sob o ponto de vista

“alexyano”, é o conhecimento da verdade. Cada sujeito possui o direito de

conhecer a verdade, embora esta seja de modo absoluto inatingível. No entanto,

cada um possui o direito de dela se aproximar tanto quanto possível, podendo

fazer uso de todos os meios idôneos para isto.

A quadratura do círculo proposta por Anaxágoras e Antifonte constituiu

parte da tese de defesa da liberdade de expressão de Anaxágoras por ocasião de

sua condenação pelo crime de impiedade. A técnica básica de persuasão de

Antifonte era a aproximação por verossimilhança, a qual foi a mesma que ele usou

para criar o método de exaustão na tentativa de fazer a quadratura do círculo e

defender a memória de Anaxágoras. A lei da inércia, a teoria aristotélica da justiça

e o constitucionalismo discursivo de Alexy são idéias que tomam por base o

método antifontiano de vizinhança enumerativa indutora de causalidade.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Navarro, Editores. Calle del Rubio, núm. 25. (Imprenta de la Biblioteca de

Instrucción y Recreo, Rubio 25, Madrid.) XXIV + 319 páginas, 1873.

BECKMAN, Petr. Historia de (pi). Conforme disponibilizado no sítio eletrônico

<http://books.google.es/books?id=t6W9ipT2ZGcC&printsec=frontcover&dq=histori

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CARVALHO, João Pitombeira de. Os três problemas clássicos da matemática grega.

Disponível em <http://www.bienasbm.ufba.br/M20.pdf>. Em 11.10.2011.

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PIRES, A. S. T. Evolução das idéias da física. São Paulo - Livraria da Física Editora,

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ROVIGHI, SOFIA VANNI. História da filosofia moderna. São Paulo: LOYOLA, 1999.

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SCHIESS, Loisima and MIRANDA, Lossian. Physikalische und matematische

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Interpretation And Intuition: Cognitive Sciences And The Model Of Decision Making

Process In Law Held at the 25th World Congress of the International Association for

Philosophy of Law and Social Philosophy (IVR), Frankfurt, 2011.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

151

O DIREITO NOVO E A SINGULARIDADE UNIVERSAL:

FOUCAULT COM BADIOU

Eder Fernandes Santana1

Palavras-chave: Direito Novo; Biopolítica; Estado de Exceção; Singularidade

universal; Metodologia Jurídica Pluralista.

O presente texto se insere no âmbito de projeto de pesquisa que tem

como problemática central a possibilidade de aplicação da proposta de direito

novo, lançada por Michel Foucault, pela via da singularidade universal talhada por

Alain Badiou, como aporte a uma metodologia jurídica pluralista.

Como ponto de partida, a constatação de Mônica Sette Lopes (2008, p. 33)

acerca do quadro atual, em que se debate a Ciência do Direito, “de frustração: a

insatisfação com a insuficiência de todo o abrangente quadro teórico para conter o

conflito”. A escolha da concepção de singularidade universal de Badiou se sustenta

no pressuposto de que ela possibilita o reposicionamento do Direito a partir desse

quadro de frustração.

1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Percebe-se a pretensão de universalidade da Ciência do Direito: dizer de

Todo o conflito, sob acabamento classificatório. A contenção teórica e legal do

conflito se dá por um dizer. Porém, “Tudo não se diz” e, entre os sentidos

trabalhados por Jean-Claude Milner (1987, p. 44) para entender essa afirmação,

vem ao caso: “sempre faltam palavras para dizer alguma coisa, ou: existe o

impossível a dizer”.

No campo da psicanálise, Oswaldo França Neto (2009, p. 120/121) afirma

que “a loucura, ao tentar absorver-se pelo Direito, coloca-o em situação delicada,

de suspensão, em que sua ação exige reposicionamentos dificilmente

universalizáveis”; e dá outros exemplos relativos aos impasses causados pela

inscrição jurídica e social “dos loucos, dos menores infratores, dos imigrantes

ilegais e de todos aqueles que colocam em xeque a universalidade instituída, o

local por excelência onde novas subjetividades possam vir a ser pensadas”.

Simone Goyard-Fabre (2002), em síntese crítica, por vezes ácida, reúne

trabalhos que entende terem como denominador comum a mesma propensão

reducionista, de desagregação e dissolução do direito. Esses trabalhos, a autora os

distingue em três correntes: a) o materialismo, de inspiração marxista, em que

inclui de Marx a Ernst Bloch, passando por Louis Althusser; b) o historicismo, de

Edmund Burke a Friedrich Carl von Savigny; e c) o vitalismo antijurídico, de

Nietzsche a Foucault.

Da leitura de Goyard-Fabre (2002, p. 187), se pode extrair, por sua

pertinência à questão de pesquisa, que nesses trabalhos, especialmente do

vitalismo, não há somente uma “propensão reducionista” do direito, que seria

identificável a partir de um não direito, mas, em especial, uma tomada de posição

frente à crise do legalismo, da tirania do normativo e das “vertigens do universal”,

dos quais resulta ofensa à espontaneidade e à singularidade. Extrai-se ainda uma

recusa da “uniformidade identitária para valorizar a diferença” e da

“homogeneização de tudo o que a vida pode apresentar de heterogêneo”.

Lopes (2008) traz elementos para a análise do quadro (clínico?) de

frustração jurídica apontado. Afirma a quimera do ideal de uma vida inteiramente

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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regulada, que supõe um sentido único para as regras estabelecidas pelo sistema

parlamentarista; o que coloca a questão da ambigüidade das regras e das

diferentes interpretações para um sistema complexo de regras gerais.

Como questão interpretativa, eis o paradoxo: formulação de regras, a

partir de uma “vocação aglutinadora das palavras”, que “deixasse a menor margem

possível para a avaliação ponderadora do intérprete”, ao lado da necessidade de

“deixar a textura aberta que permite a adaptação da regra à variedade das

situações” (LOPES, 2008, p. 33). Esse paradoxo aponta para a frustração: a

tentativa de recobrir o conflito com palavras não convive com a textura aberta às

novas situações, com reforço da incerteza e da imprevisibilidade. A ciência gagueja.

O conflito é objeto de disputa. Lopes (2008, p. 33) argumenta que se

possam considerar os tribunais “lugar de definição dos riscos do conflito”. Os

tribunais apontam uma predefinição, opções antecipadas e avaliação de

comportamentos das partes. Segundo Galanter (1993, p. 73) “Os tribunais não

produzem apenas decisões, emitem também mensagens”. Evidencia-se embate das

partes com o tribunal pela configuração do conflito e decorrente reconhecimento

de direitos. De outro lado, importante a sinalização da autora no sentido de

colocar, com base em Andreas Auer, a idéia de legalidade em discussão.

Com François Ost, Lopes (2008, p. 33) põe a “dificuldade de se analisar

objetivamente ou de isolar as manifestações empíricas do fenômeno jurídico”. Ost

afirma que a validade da norma resulta de critérios jurídicos formais e explícitos e

ainda de uma inteligibilidade reconstruída pelo aplicador com referência a

princípios e valores implícitos.

A situação da Ciência do Direito impõe repensar o direito em novas bases.

Uma proposta nessa direção é a lançada por Michel Foucault, em aula no Collège

de France publicada no volume Em defesa da sociedade (1999), porém não levada a

cabo por esse pensador francês. Foucault propõe um direito novo, ao mesmo

tempo antidisciplinar e liberto do princípio da soberania.

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Com respeito à proposta de Foucault, João Chaves (2010, p. 60) identifica

leituras otimistas e pessimistas. É possível identificar Chaves entre os pessimistas,

ao concluir que, na obra de Foucault, “não há um destino coerente ou coordenadas

minimamente precisas para uma teoria do direito” (CHAVES, 2010, p. 166). Como

leitura otimista, Márcio Fonseca (2002, p. 247/248) entende que a idéia de direito

novo assume conotação precisa e se refere a “práticas do direito que estariam mais

próximas da afirmação da autonomia e da liberdade dos indivíduos”.

A proposição por Foucault a que se pense um direito novo é questão que

se mantém em aberto e com potencial para desdobramentos teóricos. Em especial,

por ser desenvolvimento dos estudos das relações de poder e subjetividade, e por

se direcionar à consideração de uma dimensão ética. Nesse bojo, o dispositivo da

biopolítica é fundamental para se repensar o direito.

Michel Foucault, em Microfísica do poder (2004), levanta a hipótese de

que o capitalismo, em seu desenvolvimento na passagem do século XVIII para o

XIX, promoveu a socialização do corpo enquanto força de produção, força de

trabalho. Acrescenta que o controle sobre os indivíduos começa “no corpo, com o

corpo”, que é “uma realidade bio-política” (FOUCAULT, 2004, p. 80). Por

biopolítica, Foucault, em A vontade de saber (2006, p. 155), entende “o que faz

com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz

do poder-saber um agente de transformação da vida humana”.

O poder sobre a vida é exercido sob duas formas: a anátomo-política do

corpo humano no interior das práticas disciplinares, que asseguram a extorsão da

força de trabalho, sua utilidade e docilidade; e via controles regulares numa

biopolítica da população exercidos sobre o “corpo transpassado pela mecânica do

ser vivo e como suporte dos processos biológicos” (FOUCAULT, 2006, p. 152).

É no trabalho de Giorgio Agamben que o conceito de biopolítica alcança

contornos que interessam ao objeto da presente pesquisa, pela via do conceito de

estado de exceção. Com base na leitura de Agamben, França Neto (2009b, p. 123)

traz o exemplo da loucura. O ordenamento não localiza o manicômio senão

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Direito

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excluindo-o, porque o louco excede ao universal pretendido pela ordem – a loucura

como resto inabsorvível –, no que se constitui como segregação do ilocalizável.

Articulam-se, na última fase das elaborações de Michel Foucault os temas

do direito novo, do governo e da resistência como atitude crítica, no eixo dos

domínios do saber, do poder e da subjetividade. Alain Badiou propõe a ética de

uma verdade: “o que dá consistência à presença de alguém na composição do

sujeito que induz o processo dessa verdade” (BADIOU, 1995, p. 51). Nesse campo, a

resistência, em Badiou (1995, p. 23), guarda relação àquilo “que não coincide com

a identidade de vítima”. Passa ainda pela disputa do campo da ética, na tarefa

filosófica de “arrebatar as palavras àquele que prostitui o seu uso” (BADIOU, 1995,

p. 45).

A constituição do sujeito político está hoje, na análise de Badiou (1999, p.

37), suspensa pelas potências cegas da economia, em razão da consequente

supressão, por essas potências, da decisão política. Decorre indispensável

perguntar pela possibilidade de direito sem que haja um sujeito político. É uma

questão premente e que se coloca, ademais, diante da concepção de Badiou

(1999a, p. 89) a respeito da justiça, a qual designa como “aquilo graças a que uma

filosofia designa a verdade possível de uma política”. A verdade de uma política se

funda sobre a igualdade subjetiva da capacidade de discernir o justo e o

pensamento é a capacidade da verdade para o humano, para além da predicação

identitária, de “estar a serviço de um valor universal” (BADIOU, 1999a, p. 90/91).

O universal, para Badiou (2008, p. 41), é experimentável na trajetória

singular do pensamento como disposição subjetiva. A singularidade universal se

constitui pela subtração de toda descrição predicativa. Pela via subtrativa, não há

negação da existência de identificações, mas o reconhecimento do seu caráter

precário e a busca da garantia de existência de um sujeito. O universal se apresenta

como singularidade subtraída aos predicados identitários, ainda que proceda neles

e através deles. A pretensão singular ao universal pela oposição subtrativa às

particularidades evidencia que o jogo dos predicados identitários, ou a lógica dos

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saberes descritivos da particularidade, não permite prever ou pensar uma

singularidade (BADIOU, 2008).

A via subtrativa, afirma França Neto (2009b, p. 656) “não nega a existência

de identificações”, reconhece-lhes o caráter precário e busca “garantir a existência

de um sujeito”, e o universal estaria “no que, em diagonal, provocaria uma

brecha”, “desfazendo a totalização da situação”. Um universal que se dá pela

subtração aos predicados identitários impostos por uma pretensão de Tudo-dizer.

Sob essa luz, cabe persistir na vinculação entre a política, a ética e o direito

na formulação de uma metodologia inserta no pluralismo anti-legalista evidenciado

pela teoria crítica. E seguir na resistência ao “monismo legislativo – ou absolutismo

legalista” a que se refere António Hespanha (2007, p. 51). Hespanha (1998, p. 15)

discorre que a história do direito, como saber formativo, tem como missão

“problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou

seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo”.

Como conseqüência da conceituação, estabelecida pela teoria política

alemã, da soberania como “faculdade exclusiva de criar o direito” (HESPANHA,

2007, p. 46), a teoria do direito e o método de encontrá-lo e desenvolvê-lo foram

colonizados por essa natureza normativa da soberania, pela qual a soberania do

Estado se funda na unidade do direito e o direito fica reduzido à lei.

Cuida-se de proceder a uma crítica à metodologia jurídica que se

vislumbra na trilha da refutação do direito como um a priori, eis que, conforme

Lucas Gontijo (2011, p. 118), “parte da experiência, não só porque cada caso é

único, mas porque só se interpreta a partir da sua experimentação e não se

interpreta senão frente a um caso específico”.

A afirmação do singular implica atravessamento da particularidade.

Decorre, potencializar o pluralismo metodológico proposto por António Hespanha

com a ruptura levantada por Alain Badiou (2009, p. 90) com o legalismo estatal,

cuja lei é “sempre predicativa, particular e parcial”, por entender que o estatal

remete ao “que enumera, nomeia e controla as partes de uma situação”.

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Direito

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Ao Direito, à Ciência do Direito propriamente, fica o desafio de romper a

continuidade com as disciplinas derivadas da prática de controle que visa à

representação do indivíduo nos grupos definidos pelo Estado. Como operar esse

corte, se a própria legislação é instrumento para essa definição identificatória? Em

primeiro lugar, ao seguir a linha antiestatalista e se subtraindo ao princípio da

legalidade, ao expor seu caráter ideológico. Em seguida, assumindo o pluralismo

metodológico potencializado em sua operação via singularidade universal.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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O GRAU DE ESPECIFICIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS:

CUSTOS DE ELABORAÇÃO E APLICAÇÃO DAS

CLÁUSULAS GERAIS

Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega1

Palavras-chave: Cláusulas Gerais; Análise custo-benefício; Precisão e Vagueza;

Regras versus Standards; Aplicação judicial eficiente.

Este estudo desenvolve uma análise econômica do processo de criação e

aplicação das cláusulas gerais, adotando como referência as pesquisa de avaliação

dos custos e benefícios de regras (normas jurídicas precisas) e parâmetros (normas

jurídicas vagas e abertas), elaboradas inicialmente por POSNER e EHRLICH (1974, p.

258). Segundo esses autores, o grau de generalidade e especificidade da norma

jurídica interfere na eficiência do processo judicial. Regras são normas jurídicas

mais precisas com especificações claras da obrigação (e.g. a velocidade limite é

100km/h), enquanto que os parâmetros são normas vagas, abertas e mais

intuitivas (e.g. dever de dirigir cuidadosamente).

As experiências da Alemanha com uso da cláusula geral da boa-fé objetiva

foram investigadas para compreensão das potenciais externalidades positivas e

negativas na aplicação de normas abertas. Foi observado que o transplante legal de

1 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected].

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um instituto jurídico aplicado de modo eficiente no país inventor não garante o

sucesso institucional no país que o importa. O contexto cultural (NORTH, 2005,

p.36) e a disponibilidade de elevado capital humano especializado (SCHÄFER, 2006)

influenciam na eficiente aplicação judicial das cláusulas gerais. Assim, a qualidade e

a eficiência do ativismo judicial decorrente da aplicação de cláusulas gerais como a

boa-fé objetiva é questionada no Brasil.

SCHÄFER (2006, p. 119) teorizou a respeito da eficiência de parâmetros,

normas jurídicas abertas, e regras, normas jurídicas específicas, em países pobres e

ricos. A principal inquietação da pesquisa do referido autor foi a de que as cláusulas

gerais e standards não funcionavam bem e/ou não eram efetivos em países

subdesenvolvidos. Construiu, assim, uma correlação direta entre baixo capital

humano nos países subdesenvolvidos e a deficiente aplicação de normas jurídicas

mais vagas e abertas.

Assim, a discussão envolvendo a função econômica das cláusulas gerais

está inserida neste debate mais amplo sobre a eficiência entre normas jurídicas

mais abertas e flexíveis e regras jurídicas mais precisas. Estudos ainda incipientes

sobre a função econômica da boa-fé objetiva são frutíferos em fornecer insights

sobre a eficiência da cláusula geral. Todavia, a maioria dos estudos de economia

sobre a boa-fé nos contratos tem enfatizado, sobretudo, seus efeitos positivos, sem

aprofundar os potenciais efeitos adversos de cláusulas gerais como a boa-fé

objetiva. Segundo MACKAAY (2008, p.8), ainda é muito difícil encontrar estudos de

análise econômica de cláusulas gerais como a boa-fé, pois a maioria explora o tema

incidentalmente. Portanto, ainda é um tema em processo de teorização.

Em termos gerais, o argumento econômico em favor das cláusulas gerais é

de que normas mais vagas e abertas são mais eficientes do que normas mais

precisas e específicas. Assim, cláusulas gerais como a boa-fé objetiva seriam

capazes de reduzir os custos de transação, possibilitando as partes economizarem

no momento de elaboração do contrato ao não terem de especificar todos os

termos, alocando os riscos para o futuro. Neste caso, assume-se que os custos de

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especificação na elaboração do contrato são muito altos e a probabilidade de

ocorrência de contingência é baixa. Desse modo, um possível evento imprevisível

que suscite uma revisão contratual é mais eficientemente resolvido se for possível

ser aplicada uma cláusula geral aberta como a boa-fé objetiva.

Diversamente, os argumentos econômicos contrários à boa-fé objetiva

enfatizam a incerteza e a falta de clareza que pode ter lugar a partir da aplicação de

cláusulas gerais abertas como a boa-fé. A cláusula geral é entendida como

ineficiente na medida em que abre a porta para um ativismo judicial arbitrário,

aumentando a insegurança jurídica. Previsões legais e contratuais menos claras e

mais vagas desencorajam o investimento. Ademais, o perigo dos Tribunais

realizarem uma aplicação equivocada de uma cláusula geral como a boa-fé objetiva

multiplica os custos para a celebração de contratos futuros. Outro efeito pode ser

percebido: normas abertas e cláusulas gerais podem induzir a uma maior

informalidade que destrói o incentivo das partes em celebrar contratos em

linguagem formal jurídica.

Tradicionalmente, entendia-se que quanto mais as normas jurídicas

fossem específicas, mais previsível seria o resultado. Todavia, a maior

especificidade das regras cria também custos relacionados à alocação não

eficiente, uma vez que regras não abarcam perfeitamente todas as circunstâncias

da conduta sob regulação. Regras podem catalogar excessivamente circunstâncias

não relevantes e não prever exatamente todas as circunstancias prováveis. Geram,

portanto, problemas de super-inclusão e sub-inclusão (KAPLOW, 1992, p.586).

Assim, regras podem produzir perdas sociais, considerando que previsões legais

precisas ex ante não são capazes de se ajustar adequadamente a circunstâncias

não previstas que só são conhecidas ex post. Soma-se, ainda, o problema de se

criar normas jurídicas complexas e desnecessariamente detalhadas. Podem surgir

normas contraditórias e antinomias. Nesse contexto, regras não necessariamente

colaboram para um sistema jurídico mais claro e consistente. Há também custo

adicional de as regras ficarem obsoletas com o tempo e estarem sujeitas à

mudança. Quando os custos adicionais são muito altos, standards (parâmetros e

normas mais abertas) são preferíveis.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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Por outro lado, há normas jurídicas que são intencionalmente elaboradas

de forma mais vaga e aberta como um standard para tornar o processo de

elaboração do direito mais eficiente, transferindo-o dos legisladores para os juízes.

Temas que são muito controversos na arena política e que requerem uma custosa

negociação podem ser regulados por standards por um menor preço. Os Tribunais,

em tese, estariam melhores informados e especializados para julgar eficientemente

a questão. O processo de aprendizagem descentralizada é percebido como

vantajoso enquanto standards podem ser progressivamente especificados e

concretizados ao longo do tempo. Todavia, o custo do processo de criação do

precedente é extremamente elevado. Por esta razão, a opção por standards e

normas mais vagas e abertas é recomendável em casos de heterogeneidade

(ambigüidade relativa à conduta a ser regulada) e quando o ambiente é

freqüentemente sujeito à mudança. Standards, todavia, demandam uma

particularização e especificação judicial que pode conduzir à insegurança jurídica.

Abrir a porta para especificação judicial significa também ter de considerar os

custos do erro judicial. Normas jurídicas vagas e abertas representam um custo

adicional no monitoramento e fiscalização das atividades dos Tribunais, uma vez

que tornam o controle social contra a corrupção mais difícil; em oposição as regras

que usualmente são apontadas como uma alternativa para coibir usurpação e

equívocos judiciais (POSNER; EHRLICH, 1974, p. 266).

Em resumo, regras aumentam os custos de elaboração da norma jurídica

ex ante, minimizando os custos de aplicação judicial e administração da justiça ex

post; enquanto os parâmetros – standards – economizam os custos de

especificação ex ante, aumentando, no entanto, os custos de especificação da

aplicação judicial que se dá ex post. Nesse sentido, a escolha eficiente entre regras

e parâmetros envolve a escolha entre um sistema legal que privilegia legislador ou

o juiz como produtor das normas jurídicas. A atividade de criação das normas

jurídicas na esfera de competência do legislador (upper level) e a aplicação na

esfera de competência do judiciário (lower level) depende da maturidade

institucional do país envolvido. Como a performance institucional reflete

competências individuais de legisladores, assessores jurídicos, advogados, juízes, a

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existência de profissionais especializados é uma variável importante a ser

analisada.

A contribuição de SCHÄFER (2006, p.128) possibilitou o avanço do debate

nos seguintes pontos: i. a eficiente distribuição do capital humano entre o setor

que elabora regras (centralized upper-level) e o setor de interpretação e aplicação

das normas vagas (descentralized lower-level) do sistema jurídico influencia na

escolha ótima entre a vagueza e a precisão das normas jurídicas; ii. O processo de

elaboração de regras, centralizado na atividade política do legislador, envolve a

geração de um bem público; iii. Decisões tomadas no topo (upper-level) são menos

flexíveis e se distanciam dos problemas; iv. O investimento de capital humano no

topo (upper-level) é realizado para tornar as normas jurídicas mais precisas. Todos

esses elementos em conjunto permitem concluir que, havendo um ambiente com

vasta disponibilidade de capital humano altamente qualificado e especializado, a

mudança do sistema baseado em regras para um baseado preferencialmente em

standards e normas jurídicas mais vagas é eficiente e recomendável.

Para SCHÄFER (2006, p. 133) um sistema baseado em standards é mais

vantajoso em países industrializados e desenvolvidos, que podem se beneficiar da

grande oferta de juízes altamente treinados para criar o direito a partir do caso.

Ganham com o processo de aprendizagem que tem lugar com a atividade de

interpretação e aplicação do direito realizada de forma descentralizada da base

para o topo, aprimorando, assim, o sistema jurídico. Por outro lado, o elevado

custo de aplicação e administração de cláusulas gerais em países em

desenvolvimento, associada à existência de capital humano insuficiente para

atender a demanda, é um problema que repercute na eficiência da prestação

jurisdicional.

A experiência verificada no Direito Europeu Continental com a introdução

de cláusulas gerais como a boa-fé objetiva e a dignidade da pessoa humana são

fundamentais para que se percebam os efeitos da inversão que vem acontecendo

em países em desenvolvimento, como o Brasil. Enquanto que os Estados europeus

privilegiaram uma aplicação criteriosa das cláusulas gerais, observando a eficiência

e a repercussão social a longo prazo; o que se verificou no Brasil foi uma

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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banalização daquelas que foram chamadas para fundamentar (justificar) toda sorte

de decisões. Isso acaba por transformar as cláusulas gerais num recurso estratégico

e muitas vezes retórico que alimenta um ativismo judicial, cuja qualidade é

questionável.

Estados que já alcançaram um grau de maturidade elevado e vivenciaram

historicamente experiências de transição, como o caso da Alemanha, podem hoje

se beneficiar das externalidades positivas da aplicação das cláusulas gerais. O custo

de administração e controle de um sistema jurídico baseado preferencialmente em

standards é extremamente elevado. A introdução de standards demanda

profissionais com formação altamente especializada, que não é satisfatória em

países em desenvolvimento como o Brasil, cujos juízes lidam diariamente com uma

quantidade enorme de processos, submetendo-se a metas de produtividade que

não avaliam a eficiência de sua decisão, nem a sua repercussão no bem-estar social

a longo prazo.

Desse modo, escasso capital humano em um sistema jurídico que

privilegie standards e cláusulas gerais é extremamente temerário. Ao invés de

cláusulas gerais reduzirem os custos de transação, o efeito é o oposto. Na

insuficiência ou deficiência de capital humano especializado, há o aumento

exagerado dos custos de transação. O Brasil está inserido no contexto daqueles

países que mantém uma ampla e custosa estrutura judiciária, mas que ainda não

alcançou o nível adequado de capacidade institucional e qualificação especializada

para aplicação de standards, como teorizado pela análise econômica. Esse estudo

pretendeu, assim, lançar o novo olhar da análise econômica para um antigo

problema – a ineficiente aplicação judicial das cláusulas gerais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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O LUGAR DA FILOSOFIA NA CIÊNCIA DO DIREITO

Daniel Carvalho Ferreira1

Lara Marina Ferreira2

Maria Fernanda Salcedo Repolês3

Palavras-chave: Filosofia; Teoria do Direito; Filosofia Política.

Em A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental

(2006), Edmund Husserl diagnostica a crise existencial e histórica das ciências

européias, cindidas e incapazes de dialogar entre si, o que implicaria também uma

crise da filosofia, incapaz de ser a metalinguagem destinada a nomear a totalidade,

e assim dar unidade às ciências. Essas crises enunciam enfim, a própria crise da

razão ocidental, que se assenta sobre o binômio ciência e filosofia. Em seu ensaio,

Husserl salva ambas, apostando que a própria razão permite-nos aprender e

explorar novos territórios imersos no mundo-da-vida e diversificar os temas e as

abordagens existentes.

1 Faculdade de Direito da UFMG (mestrando). E-mail: [email protected] 2 Faculdade de Direito da UFMG (mestranda). E-mail: [email protected] 3 Faculdade de Direito da UFMG (professora). E-mail: [email protected].

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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O texto indicado pode ser visto como um dos marcos inaugurais do debate

sobre o tema a partir do início do século XX e que reverbera em questões atuais.

Assim, a nossa comunicação propõe-se ao resgate dessa discussão no âmbito da

relação sempre dúbia entre filosofia política, filosofia do direito e ciência do

Direito. Dúbia porque, em que pese a anunciada e repetida necessidade de se

romperem as tradicionais fronteiras entre os saberes (SANTOS, 1987), a prática

acadêmica de produzir ciência, e em especial a ciência jurídica, parece ter

dificuldade em desenvolver pesquisas que efetivamente promovam diálogos entre

disciplinas (NOBRE, 2003).

Permeando essa dificuldade aparentemente técnica, gravitam questões

fortes4 particularmente difíceis de responder em tempos de tanta fluidez,

velocidade e incertezas: o que é ciência, e em que medida ela se diferencia da

filosofia? O que é ciência do Direito e o que a distingue da filosofia do Direito? E

qual é o lugar da filosofia política na ciência jurídica?

É preciso reconhecer, de início, a complexidade das questões e a

dificuldade – ou impossibilidade – de oferecer respostas completas. Afinal de

contas, estamos acostumados a oferecer soluções teóricas sempre parciais,

coerentes com determinado ponto de vista, escola, referências bibliográficas,

programa de pós-graduação... Ainda assim, cientes da incapacidade de oferecer

uma solução final, nos contentamos em apresentar o próprio esforço de

compreensão como produto.

Segundo Horkheimer (1983), deve-se reconhecer que o sucesso da ciência

positivista reside na adoção de estratégias descontextualizadas, pois, para que seja

possível a observação científica, é preciso isolar o objeto de seu contexto único,

com a finalidade de extrair seus elementos essenciais. Dessa forma, a ciência pôde

se especializar e potencializar seus resultados, mas criou o seguinte paradoxo: na

medida em que conhecemos mais de cada vez mais objetos, conhecemos menos a

perspectiva integral em suas inter-relações.

4 Sobre a classificação de questões forte e de questões fracas na modernidade, indispensável a leitura de Santos, 2008.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

169

Como solução para esse problema, o filósofo da Escola de Frankfurt

apresenta a necessidade de se recontextualizar a Filosofia – que também teria

sofrido esse processo de especialização - para capacitá-la em sua tarefa de, a partir

dos resultados das ciências particulares, estabelecer conexões interpretativas de

uma perspectiva integral. Essa tarefa da filosofia, entretanto, deveria ser realizada

a partir de modelos localizados e contextualizados, com base em diagnósticos

específicos, sem recorrer a sistemas filosóficos abstratos que pretendam

apresentar explicações últimas (Horkheimer, 1983a).

Com base nesse quadro e a partir de um diálogo com Weber (1993) e

Lukács (2003), Horkheimer confirma o “problema da jaula de ferro” e anuncia que,

nesse processo de especialização, a política, originariamente orientada por valores,

torna-se cada vez mais orientada com respeito a fins, com características mais

burocráticas e tecnocratas. Por outro lado, a especialização da ciência em

instituições (universidades, institutos, academias, etc.) também apresenta o

esvaziamento do discurso valorativo das pesquisas.

Diante desse problema, Horkheimer (1983) apresenta a necessidade de se

reconhecer o caráter político da própria teoria, composta ao mesmo tempo de

empirismo e idealidade. Sobretudo a filosofia deve ser compreendida como uma

tomada de posição assumida diante dos dados e, nesse sentido, deve se aproximar

da política para debater e anunciar o mundo que queremos.

Portanto, quando a ciência elege um objeto de estudo, esse processo é

permeado por valores. Quando uma determinada questão aparece como

problemática, ela reflete os valores e interesses de uma determinada sociedade.

Entretanto, os resultados das pesquisas científicas não devem ser axiologicamente

orientados. Reconhecido o componente político de toda teoria, cabe ao cientista

dar um passo atrás em seu objeto para verificar os valores que o elegeram como

tal. Cabe, por sua vez, ao filósofo, dar dois ou três passos atrás para refletir não

apenas sobre os valores que selecionaram determinado objeto, como também

sobre o que fazer com os resultados apresentados.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

170

Na medida em que se compreende atualmente o direito como

instrumento de integração social decorrente de um processo no qual legitimidade e

legalidade se apresentam como as duas faces da mesma moeda (HABERMAS,

2003), afirma-se que além de a ciência do Direito, enquanto teoria, apresentar

estruturalmente componentes políticos, seu objeto é também eminentemente

político. Essa afirmação é ratificada e fortalecida pelo acoplamento estrutural

promovido pela constituição entre os sistemas políticos e jurídicos, na medida em

que o primeiro oferece validade ao segundo e por sua vez, o segundo oferece

legitimidade ao primeiro (LUHMANN, 2002; CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2011).

Nesse sentido, Marcos Nobre afirma que:

o sentido último de uma norma jurídica é o resultado de uma disputa

interpretativa cuja lógica é fundamentalmente política. Tanto no

nível da regulamentação como no da aplicação, as normas ganham

sempre um rumo interpretativo determinado e nunca definitivo.

(NOBRE, 2008)

Com Pierre Bordieu (2003), podemos agregar a essa reflexão o fato de que

a filosofia do direito, filosofia política e ciência do direito encontram-se em campos

que disputam o poder de nomear o mundo. Fazer a compreensão de cada um

prevalecer, como “a” interpretação do objeto estudado não é apenas um problema

epistemológico; é acima de tudo um problema político e social, que se reflete em

uma disputa pela dominação da cultura. No caso do campo jurídico, manifesta-se,

de forma típica, nas disputas entre os teóricos (professores universitário etc.s) e os

práticos (advogados etc.) em torno da prerrogativa de “dizer o direito”.

(BOURDIEU, 2003.)

Como visto, enquanto teorias, essas três áreas de conhecimento

apresentam componentes eminentemente políticos, fato que é potencializado na

medida em que todas elas convergem seus focos de atenção a um objeto que

agrega, a um só tempo, questões referentes ao poder e às normas jurídicas. Na

disputa pela interpretação correta, a filosofia do direito, a filosofia política e a

ciência jurídica correm o risco de, ao apagar outras possibilidades de olhares,

perderem de vista elementos importantes para conhecer seu objeto e

principalmente para tomar posições diante das questões que se apresentam. A

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

171

parcialidade das soluções teóricas oferecidas reflete a posição em que nos

encontramos no interior do campo de produção do saber científico, caracterizado

pela luta em torno do exercício do poder de nomear o mundo por meio de um

trabalho classificatório.

Ao questionar se ainda restam perguntas à filosofia do direito em um

mundo globalizado, Agustín Squella (2005) afirma a necessidade da teoria se

colocar a certa distância do fenômeno para que ela possa colaborar com a tarefa

de oferecer respostas difíceis a questões difíceis. A partir do mesmo pressuposto,

mas incluindo os argumentos expostos por Horkheimer, na espiral filosófica que

pretendemos demonstrar aqui – contínuos afastamentos e questionamentos em

relação à teoria e à prática -, vislumbra-se a necessidade de um posicionamento

metodológico politicamente orientado.

Dito de outro modo, assumindo a complexidade como marca da pós ou

hiper-modernidade, e reconhecendo como valor a necessidade de inclusão de

diversas perspectivas na construção do conhecimento e nos processos de tomadas

de decisões, a adoção de posturas abertas, dialogais, inter e transdisciplinares

aponta como comportamento positivo para lidar com a relação entre ciência

jurídica, filosofia do direito e filosofia política.

Uma última questão deve ser indicada: reconhecer o caráter político de

toda teoria, seja ela científica ou filosófica, não é o mesmo que reduzir a política à

teoria. Como alerta final, diante do desafio hoje de fazermos ciência e filosofia para

uma “sociedade de risco”, é importante apontar a necessidade de agregar

conhecimentos “profanos” e “a-científicos”, os conhecimentos plurais que são

produzidos pelas ações sociais e políticas realizadas concretamente (REPOLÊS,

2006).

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

172

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Kelsen, Luhmann e Habermas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005

HARBERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad.

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HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Em: HORKHEIMER, Max.

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LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. México

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e as tarefas da pesquisa em direito. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n.º 82, p.

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REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Afinal, para que serve uma teoria?

Fundamentos e Fronteiras do Direito, v. 1, p. x-xx, 2006.

SANTOS, Boaventura de Souza. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de

Pascal. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, março 2008: 11-43.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

174

O NAVIO AFUNDADO E O SUBMARINO – A MEMÓRIA DO

LEGADO JURÍDICO-POLÍTICO GRECO-ROMANO NA

IGREJA MEDIEVAL

Philippe Oliveira de Almeida1

Palavras-chave: Filosofia da História do Direito; Idade Média; Recuperação do

Direito Romano; Formação do pensamento jurídico ocidental.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche notabilizou-se por recorrer a

metáforas escatológicas para refletir acerca da Vida do Espírito. O autor comparou

a consciência ao estômago, organismo que incorpora e assimila a si a substância de

outros, com o fito de conservar a vida. Nesse esquema, o esquecimento seria

equivalente à digestão – e a memória, à dispepsia2. O sistema filosófico hegeliano

apresenta-se como memória do Espírito no tempo; em contrapartida, o sistema

filosófico nietzschiano se propõe ser, até certo ponto, ode ao esquecimento. À

filosofia compete ruminar e absorver, no presente, o passado da cultura. Nietzsche

trava uma luta estrênua com a história, e, ansiando por originalidade, tenta, em

vão, libertar-se da influência de seus predecessores. Como sugere o crítico literário

1 Mestrando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. E-mail: [email protected]. 2 Termo médico que designa "dificuldade de digestão", popularmente conhecida como "indigestão".

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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Harold Bloom, “Nietzsche enlouqueceu porque não conseguiu parar de estudar as

nostalgias, mesmo quando clamava por inovação” (BLOOM, 2009, p. 248-249). Daí

que, na obra do filósofo, o esquecimento e a memória configurem sintomas,

respectivamente, da saúde e da enfermidade da consciência. A propósito,

Nietzsche afirma:

Esquecer não é uma simples vis inertiae [...], mas uma força inibidora

ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós

experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em

nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos

chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo

da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. [...] – eis a

utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da

porta, zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que

logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança,

orgulho, presente, sem o esquecimento! O homem no qual esse

aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser

comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada

consegue “dar conta”... Precisamente esse animal que necessita

esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte,

desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo

auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos

casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-

poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples

indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos

dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um

prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da

vontade [...] (NIETZSCHE, 1998, p. 47-48).

Para Nietzsche, o sentido histórico pode tornar-se nocivo à vida dos

indivíduos e dos povos, pois, no entender do autor, todo agir requer esquecimento;

devemos nos instalar, “sem vertigem e medo”, “no limiar do instante” (NIETZSCHE,

2003, p. 08-09). Somente como memória da vontade, isto é, como instrumento útil

ao desenvolvimento de uma civilização, pode a cultura histórica ser preservada.

Valendo-se do arsenal teórico de Nietzsche, o filósofo francês Rémi Brague

defende a existência de dois modelos de apropriação cultural: a digestão e a

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

176

inclusão. A primeira representaria “o processo de apropriação no qual o objeto é

tão profundamente interiorizado que perde sua dependência”, sendo suprimida

“toda diferença entre o sujeito que se apropria e o objeto apropriado” (BRAGUE,

2010, p. 203). A segunda, em contrapartida, se constituiria em “uma apropriação

em que aquilo que é apropriado é mantido em sua alteridade e cercado pelo

próprio processo de apropriação, processo cuja própria presença reforça a

alteridade daquilo que é apropriado” (BRAGUE, 2010, p. 203). Aqui residiria, para

Brague, a diferença entre o Ocidente, marcado pela via da inclusão, e as demais

civilizações, caracterizadas pela via da digestão. Segundo o autor, a Europa seria

uma cultura excêntrica, isto é, cujo centro radica-se fora dela mesma, projetado na

Antiguidade. Ruminante, incapaz de dissolver o passado no presente, a civilização

ocidental se manteria permanentemente aberta ao saber dos antigos, dominada

pelo problema da “consciência histórica”, da consciência da realidade como

história. Daí que as revoluções, não raro, surjam ao homem ocidental como

renascenças.

“Triunfo da barbárie e da religião” – nesses termos o historiador inglês

Edward Gibbon referiu-se à Idade Média. Media aetas, intermezzo entre a

Civilização greco-romana e a Civilização tecnocientífica hodierna, o Medievo

representaria uma ruptura face às luzes da Antiguidade. Nesse cenário, a Igreja

teria atuado para que a fé se sobrepusesse à razão, o dogmatismo se impusesse ao

pensamento sistemático autônomo.

Contrariando tal leitura, dirá o historiador do Direito Michel Villey: “A

despeito de nossos preconceitos, não há nada mais contrário ao dogmatismo que a

inteligência medieval, respeitosa da transcendência, consciente da fragilidade de

todas as opiniões humanas, dialética, disposta a acolher a contradição” (VILLEY,

2005, p. 127). Nessa esteira, Brague negará a tese da incompatibilidade entre a fé

bíblico-cristã e a ciência greco-romana, e identificará, na Idade Média, a

radicalização do modelo da inclusão: tomando emprestado elementos da cultura

greco-latina, a Cristandade, capitaneada pela Igreja, reivindicaria, a todo momento,

a herança do mundo antigo, sendo, dessa maneira, atravessada por uma série

ininterrupta de renascenças. Na lição de Brague, “a Idade Média é uma época,

talvez a única época da história, que jamais aceitou ser uma Idade Média. Sempre

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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quis ser um renascimento, desde o início. E nunca hesitou em ir buscar fora de si

aquilo de que necessitava [...]” (BRAGUE, 2010, p. 64). Nesse sentido, o Ocidente

latino teria, ao longo do Medievo, aprendido a aprimorar, desenvolver e prolongar

informações culturais do passado, não pretendendo, entretanto, exauri-lo; jamais

esquecendo a alteridade de suas fontes, volta incessantemente a elas. Como afirma

o historiador Jacques Le Goff, a Idade Média é a “barqueira dos valores e das

conquistas do passado na Europa” (LE GOFF, 2007, p. 21).

Na preservação do legado da cultura antiga, a Igreja desempenhará papel

determinante. É o cristianismo, como aponta Le Goff (2007, p. 26), o instrumento

que possibilitará a fusão entre os germânicos e os latino-europeus. Diante das

invasões bárbaras, a religião, na bela imagem proposta pelo escritor G. K.

Chesterton, “transformou um navio afundado [qual seja, o Império Romano] em

um submarino. [...] depois de ficarmos enterrados sob o entulho de dinastias e clãs

[formas de organização política dos germânicos], nós nos levantamos e nos

lembramos de Roma” (CHESTERTON , 2008, p. 242). “Antes do eclipse da cultura

greco-latina [nos ensina Roberto S. Lopez], uma plêiade houve de pensadores

originais que consorciou a nova religião e a filosofia” (LOPEZ , 1965, p. 38). Não

houve uma supressão, mas, antes, uma suprassunção do cultura antiga pela fé

bíblico-cristã. Na lição do helenista Werner Jaeger: “Desde luego, el proceso de

cristianización del mundo de habla griega dentro del Império romano no fue de

ningún modo unilateral, pues significo, a la vez, la helenización del cristianismo”

(JAEGER, 1965, p. 12-13). Assim, tornaram-se indissociáveis os destinos da fé bíblica

e do pensamento greco-romano. Reconhecendo-se como legatária do Império

Romano, a Igreja trabalhou, não raro contra o sistema feudal, pela manutenção do

saber – e do poder – da Antiguidade.

É evidente que, ao revisitar o mundo antigo, a Igreja não pretendia

arrastar consigo, inutilmente, as indigestas pedras do saber histórico –

transformado em “ciência do vir-a-ser universal” (NIETZSCHE, 2003, §4). Ao

contrário, procurava conhecimentos estrategicamente aplicáveis a seus problemas

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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mais imediatos – combates contra inimigos internos e externos. Para falarmos

como Nietzsche, buscava ela uma memória da vontade.

Natural, pois, que a tradição do pensamento jurídico-político do Império

Romano tenha sido progressivamente resgatada pela religião – ou, mais

precisamente, pelo Bispo de Roma. Com o fito de, por um lado, assegurar a

unidade doutrinária e institucional do Catolicismo (contra inimigos internos), e, por

outro, garantir a independência do “poder eterno” ante o “poder secular” (contra

inimigos externos), a Igreja de Roma se espelhou na estrutura organizacional do

Império. A invasão lombarda forçou o Bispo de Roma a tornar-se um soberano

secular. Ademais, as reivindicações de autonomia das Igrejas de Jerusalém,

Constantinopla, Antioquia e Alexandria face ao Trono de São Pedro levaram-no a

recorrer a um discurso de legitimação que remetia à ordem jurídico-política da

Antiguidade, visando a salvaguardar poderes jurisdicionais noutras dioceses. O

Romano Pontífice fez-se, então, o principal herdeiro do Império Romano, e a Igreja,

gradualmente, começou a organizar-se como uma monarquia papal centrada em

Roma. Acerca do tema, ensina Lopez:

A velha Roma, do Tibre, destronada pelos Bárbaros, desvalorizada

pelos Bizantinos, abandonada pelos burgueses e pelos nobres,

encontrou na sua miséria uma nova razão de grandeza. As bases da

sua carreira medieval vieram-lhe do passado antigo. A doutrina da

supremacia do Bispo de Roma sobre os colegas tinha se desenvolvido

lentamente, no tempo em que a cidade era a capital dum imperador

pagão; mais rápidos foram os seus progressos com os imperadores

cristãos ali não residentes. Em 445, um dos últimos Augustos do

Ocidente, Valentiniano III, ordena ao episcopado das suas províncias

que aceite como lei “tudo quanto for sancionado pela autoridade da

Sé apostólica”. Todavia, esta autoridade choca ainda com tenazes

resistências interiores e exteriores (LOPEZ, 1965, p. 33).

A aristocracia e o clero, instruídos no saber dos antigos, garantem a

autoridade de uma nova elite cristã. O governo dos bispos irá, mesmo, reciclar a

arquitetônica administrativa do mundo antigo, trabalhando pela coesão da

Cristandade. Ensina Le Goff:

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Direito

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o Ocidente da Alta Idade Média é uniformizado por essa

cristianização. Em primeiro lugar está o governo, em toda essa área,

dos bispos cujo poder cresce, particularmente na administração das

cidades, e entre os quais se distinguirá, a partir do século VII, um

grupo mais importante de superiores chamados arcebispos. Com os

bispos, o Ocidente cristão se divide em territórios que são, na

essência, retomados das antigas divisões administrativas romanas.

São as dioceses (LE GOFF, 2007, p. 40-41).

Abundante literatura moderna3 mostra que, em sua busca por

legitimidade, o Bispo de Roma utilizou diversos documentos falsos – dentre os

quais os mais conhecidos são os Decretos de Pseudo-Isidoro e a Doação de

Constantino –, na tentativa de vindicar sua filiação ao Império. Como, certa feita,

disse Nietzsche: “Quando não se tem um bom pai, é preciso inventar um”. Opondo-

se à anarquia feudal, a Igreja, mais e mais burocratizada e uniformizada, muitas

vezes ocultou, sob a bandeira do “retorno às origens”, o esforço de invenção de

uma Antiguidade que viesse ao encontro de suas aspirações sociais. Porém, tais

empreitadas não desprivilegiam o papado medieval; antes, acentuam a dimensão

de politicidade que ele tentou conferir à “consciência histórica”. Enquanto dinastias

e clãs marcavam seus domínios pela força das armas, a Igreja procurava

fundamentar seu projeto de transformação do mundo temporal na lembrança do

Direito Romano, abandonado quando o sistema coercitivo que subsidiava o

Império desmoronou. Seja traduzindo, seja transcriando, no presente cristão, o

pensamento jurídico-político dos pagãos, a Igreja não repudia, mas acolhe a razão

greco-romana, em seu aspecto mais concreto: no âmbito da eticidade do Direito.

Sobre as falsificações, poderíamos dizer, parafraseando La Rochefoucauld: “A

hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.

Após a “querela das investiduras”, a Igreja trabalhou para afirmar a

potestas absoluta e a libertas Ecclesiae, implementando uma técnica jurídica

marcada pela racionalização formal-normativa e estruturando uma ciência jurídica

3 Por todos, v. DÖLLINGER, Ignaz von. O papa e o concílio. Tradução de Rui Barbosa. São Paulo: Saraiva, 1930.

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apta a interpretar e comentar a técnica jurídica implantada4. Como conseqüência

desse empreendimento, a Baixa Idade Média assistiu ao renascimento do Direito

Romano e da razão grega. Referido renascimento, porém, foi antecedido de um

diálogo, jamais interrompido, entre as elites pensantes da Alta Idade Média e o

saber dos antigos. A tradição judaico-cristã não derrotou o paganismo, mas se

apropriou de estruturas da cultura greco-romana para satisfazer suas pretensões

holísticas e sobreviver em uma Europa caracterizada pelas cisões decorrentes das

migrações dos povos bárbaros. A progressiva transferência do poder legislativo no

seio da Igreja, que passou dos concílios ao papa, demandou a inclusão de

mecanismos do passado. Há uma dialética de continuidade-descontinuidade entre

a Antiguidade e o Medievo, irredutível ao esquema ternário que representa o

período medieval como Idade das Trevas, oco de onda entre duas cristas”

(BRAGUE, 2010, p. 51). A demanda precede a oferta: o renascimento medieval do

século XII e o renascimento humanista do século XIV não procurariam o modelo

dos antigos, se já não o houvessem encontrado. O encontraram, dantes, no legado

da Igreja medieval.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERMAN, Harold J. Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental.

Tradução de Eduardo Takemi Kataoka. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

BLOOM, Harold. Onde encontrar a sabedoria? Tradução de José Roberto O’Shea.

Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

4 Acerca do tema, recomendamos a leitura de BERMAN, Harold J. Direito e revolução: a formação da tradição jurídica ocidental. Tradução de Eduardo Takemi Kataoka. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

Page 181: Anais Da Jornada Completo

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BRAGUE, Rémi. Mediante a Idade Média – filosofias medievais na cristandade, no

judaísmo e no islã. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2010.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo

Cristão, 2008.

DÖLLINGER, Ignaz von. O papa e o concílio. Tradução de Rui Barbosa. São Paulo:

Saraiva, 1930.

JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo y paideia griega. Tradução de Elsa Cecilia

Frost. México: Fondo de Cultura Económica, 1965.

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen.

Petrópolis: Vozes, 2007.

LOPEZ, Roberto S. Nascimento da Europa. Tradução de A. H. de Oliveira Marques.

Lisboa: Edições Cosmos, 1965.

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo

César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, segunda dissertação.

NIETZSCHE, Friedrich W. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e

desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de

Janeiro: Relume Dumará, 2003.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia

Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Page 182: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

182

O PROBLEMA DO EXATO CONTEÚDO DA NORMA

JURÍDICA NOS PENSAMENTOS DE TERCIO SAMPAIO

FERRAZ JR. E HANS KELSEN

André Almeida Villani1

Palavras-chave: Norma jurídica; Linguagem; Hermenêutica jurídica; Ferraz Jr., Hans

Kelsen.

O debate a cerca do problema da norma jurídica enquanto conceito

perdura há muito. Considerado por diversas correntes, em especial as positivistas,

como objeto central do Direito, o conceito de norma jurídica tem em sua definição,

identificação e aplicação alguns dos maiores problemas tanto da Filosofia do

Direito, da Teoria Geral do Direito, quanto da própria Linguagem. Nesse sentido, o

que pretende-se discutir neste trabalho é justamente a questão do que se constitui

a norma jurídica e, principalmente, como tal conceito é operacionalizado, em

especial no campo da Linguagem.

Para tanto, há de se levantar, inicialmente, os marcos teóricos sob os quais

está fundado este trabalho. Tais marcos são, basicamente, dois: o pensamento de

Tercio Sampaio Ferraz Jr. e a Teoria Pura de Hans Kelsen.

1 Faculdade de Direito da UFMG. [email protected]

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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A dupla abstração para Ferraz Jr.

O já clássico problema dos enfoques teóricos de Ferraz Jr. – o enfoque

dogmático e o enfoque zetético – servirá de ponto de partida. Afirma o jusfilósofo

que o problema da Ciência do Direito deriva justamente de seu objeto, o direito

(conceito que engloba a ideia de norma jurídica), não ser um dado, mas um

resultado, que deve, não só a sua existência, mas também sua própria realização, a

uma prática interpretativa (FERRAZ JR., 2010, p. 16). A partir disso, de acordo com

o autor, as diversas teorias do direito tentam explicar tal objeto de acordo com

diferentes enfoques, genericamente classificados como dogmático e zetético.

De maneira geral, há de se expor aqui ideias desse pensador relativas aos

dois enfoques. Quanto ao primeiro, é de grande importância a própria função da

norma jurídica. Segundo Ferraz Junior, o direito, enquanto dogmática, está

diretamente ligado à possibilidade de sua operação, tendo em vista a

decidibilidade de conflitos. A explicação de tal fato pode ser dada expondo-se a

relação entre o jurista e o fato social, relação essa que ocorre de maneira

essencialmente mediata. Por sua vez, essa mediação se dá sob a afirmativa de que

o jurista só pode compreender o fato social por meio da norma jurídica, que atua

como um critério comum, tido como um dado objetivo. Consiste tal ato num

procedimento de incidência, aplicação do direito à realidade social.

Contudo, encontra-se aqui o primeiro problema a ser enfrentado pelo

jurista, o de identificação do direito a ser aplicado. Atua neste momento, então, o

pensamento dogmático, na tentativa de identificar premissas com base no

princípio da inegabilidade dos pontos de partida (FERRAZ JR., 2010, p. 67). Ora, tais

premissas não podem ser outra coisa senão as próprias normas jurídicas. Tem-se,

nesse procedimento de identificação, a primeira abstração.

Já com relação ao enfoque zetético, há de se retratar aqui o problema da

interpretação da norma jurídica. Ferraz Jr. parte da ideia de que as normas jurídicas

utilizam-se de palavras, que são signos linguísticos. Dessa forma, para que se

aplique a norma (após o primeiro processo de abstração), é necessário estabelecer

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um sentido à mesma, que perpassa, justamente, pela interpretação desses signos.

Este processo, por sua vez, ocorre de maneira complexa, dentro de um detalhado

fenômeno comunicativo (que não necessita de ser, aqui, explicitado) e busca não

um sentido verdadeiro da norma, mas, retomando o aspecto da decidiblidade para

o qual se volta o direito, o sentido mais adequado, que melhor realiza o sentido

axiológico do mesmo, no qual, segundo Ferraz Jr (2010, p. 222), está incluída, até, a

noção de justiça. É esta, pois, a segunda abstração.

Confirma-se assim, o problema inical da Ciência do Direito proposto por

Ferraz Jr., no qual se comunicam zetética e dogmática, por meio de um processo de

dupla-abstração referente à norma jurídica.

Na análise feita pela Teoria Pura do Direito, acerca do estudo do seu

objeto, observa-se que a norma jurídica é o elemento maior do direito: é somente

por ela que tem a conduta humana relação com a Ciência jurídica. Tal fato se deve

à própria natureza da norma, enquanto esquema de interpretação, como expões o

pensador:

“Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é

prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de

adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar

que a norma, como sentido específico de um ato intencional dirigido

à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de

vontade cujo sentido ela constitui (KELSEN, 2009, p. 6).

Partindo desse conceito, Kelsen delimita os sentidos em que uma conduta

humana pode ser traduzida. Quando um indivíduo realiza um ato de vontade

visando a conduta de outro, sempre haverá um “dever-ser” subjetivo relativo ao

primeiro. Contudo, somente quando tal “dever-ser” tiver um sentido objetivo é que

o mesmo será dotado de obrigatoriedade, não somente do ponto de vista daquele

que realiza o ato de vontade, mas, inclusive, do de um terceiro desinteressado

(KELSEN, 2009, p.8). Ora, somente uma norma pode estabelecer o sentido objetivo

de um ato. A partir disso, pode-se dizer que o sentido objetivo de Kelsen, isto é,

quando um ato de vontade é dotado de obrigatoriedade, devido à norma jurídica,

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

185

representa um primeiro processo de abstração no mesmo sentido em que a

identificação do direito a ser aplicado o é para Tercio Sampaio Ferraz Jr..

Dando continuidade, passa-se agora à diferenciação de norma jurídica e

proposição jurídica no pensamento de Hans Kelsen, o que será necessário para se

estabelecer a segunda abstração no âmbito da Teoria Pura. Com a intenção de se

fundar uma Ciência do Direito, Kelsen afirma que esta é responsável, unicamente,

por descrever o direito, seu objeto. Levando em conta que o direito tem como

elemento principal a norma jurídica, uma Ciência do Direito tem de realizar

enunciados, até mesmo valorativos, a cerca desse elemento. Ora, da mesma forma

que uma fórmula da Física referente ao ponto de ebulição da água não se confunde

com a própria água, um enunciado ou proposição referente a uma norma jurídica

também não podem ser confundidos com a própria norma. É nesse sentido que

uma proposição jurídica, isto é, “juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem”

(KELSEN, 2009, p. 80) não se confundem com as normas jurídicas, que, por sua vez,

não são enunciados, mas mandamentos, imperativos. Tal qual afirma o autor em

outra obra (KELSEN, 1986, p. 34): “(...) enunciado é o sentido de um ato de

pensamento, e a norma, como foi observado, é o sntido de um ato de vontade

intencionalmente dirigido a uma certa conduta humana.” Por isso, afirma Kelsen,

uma norma não é verdadeira ou falsa, tal qual uma proposição, mas válida ou

inválida.

Através de tal diferenciação, afirma Kelsen que as normas podem ser

expressas por meio da linguagem, de acordo com fórmulas (proposições), mas que

essas não se confundem já que aquelas são, na verdade, puramente o sentido de

um ato, não provido de verbalização. Há neste ponto a segunda abstração, isto é, a

formulação verbal, feita através da linguagem daquele sentido (objetivo) dado pela

norma jurídica a um ato da conduta humana.

Por fim, tendo em vista os processos descritos de dupla abstração da

norma jurídica no pensamento tanto de Tercio Sampaio Ferraz Jr. quanto de Hans

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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Kelsen, a intenção deste trabalho é a de realizar uma comparação entre ambos e

estabelecer a possibilidade de se chegar ao exato conteúdo da norma jurídica.

Ao se comparar os processos de dupla-abstração anteriormente expostos

chega-se a algumas conclusões. Com relação à primeira abstração pode-se dizer

que, de certa forma, ambos os autores descrevem um mesmo processo, porém, de

pontos de vista diferentes. Ferraz Jr., quanto a essa matéria, observa o direito pelo

prisma do operador do direito, isto é, qual direito que deve ser aplicado a

determinada conduta. Kelsen, por sua vez, o faz sob o o prisma da Ciência: é

necessário identificar qual conduta humana pode ser colocada no âmbito do

direito, isto é, aquela que pode ser traduzida num sentido objetivo dado por uma

norma. Percebe-se, assim, que ambos os processos são processos de identificação.

Quanto à segunda abstração parece, à primeira vista, que divergem os

pensadores. Tercio afirma que as normas utilizam-se de palavras, ao passo que em

Kelsen, as proposições jurídicas são as fórmulas da linguagem. Entretanto, afirmam

ambos a mesma coisa: não há como se alcançar o exato conteúdo da norma

jurídica. Para o primeiro, há de ser realizado um processo de interpretação,

enquanto que para o segundo, a prórpia verbalização da norma já constitui coisa

distinta dessa. Sendo esse um processo complexo, abstração da abstração (da

conduta humana (ser) até um sentido ou uma interpretação normativa (dever-ser))

realizado, principalmente, por meio da linguagem, é possível inferir que não há

como ter acesso direto à norma jurídica. Essa deverá sempre ser expressa por meio

da língua, de tal forma que interpretações e problemas hermenêuticos sempre

envolverão a definição deste conteúdo.

Tal fato conduz a um outro problema, como, então, pode-se chegar à

decisão de um conflito, sendo esse um dos maiores própositos do direito?

Retornando à questão linguística, Ferraz Jr. afirma que o próprio conflito se dá

numa situação comunicativa estruturada de acordo com as próprias normas

(FERRAZ JR., 2011, p. 288). A decisão, portanto certamente envolve um processo

hermeneutico, já que envolve linguagem. De acordo com Kelsen, tal processo é

feito, ao se aplicar o direito, pelos órgãos competentes. Nesse, verifica-se nas

relações entre as normas jurídicas do ordenamento (enquanto sistema dinâmico),

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

187

certa determinação do ato de aplicação do direito, que se dá pela hierarquização

entre as normas, de modo que uma superior delimita uma inferior. Contudo, tal

determinação nunca é completa (KELSEN, 2009, p. 388), de forma que a mesma

forma uma moldura, dentro da qual deve-se fundamentar a interpretação dada.

Ora, muito do que Kelsen se esforçou para realizar (delimitar o objeto da Ciência do

Direito), no plano de aplicação da norma jurídica torna-se bastante amplo: dentro

dessa moldura, qualquer interpretação é possível. Tem-se aí um novo problema.

A partir disso, vê-se que contribuição do jusfilósofo brasileiro, neste ponto

é bastante relevante. Para Ferraz Jr. o conflito jurídico é institucionalizado, o que

lhe dá uma característica única e fundamental: a finitude. Essa, por sua vez, deve-

se à noção de controle, poder. Nesse sentido, o discurso dogmático, baseado nos

topoi, que não pode se desvincular da argmunetação e do uso racional da

linguagem, voltado para a operacionalidade do direito e para o processo decisório,

possui não somente uma função descritiva, como também, valorativa, que

perpassa questões ideológicas, capazes de definir mais claramente o processo de

interpretação. Sendo assim, a moldura kelseniana parece mais bem delitmitada,

minimizando o problema da interpretação do conteúdo da norma jurídica.

Por fim, deve-se lembrar que não há, neste trabalho, a pretensão de se

resolver o problema exposto, mostrando um caminho para o que está contido na

norma jurídica, bem como uma solução para o processo decisório, mas justamente

apontar essas questões e esclarecê-las, expondo-as por meio de uma análise

comparativa de teorias já consolidadas na doutrina jurídica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

188

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,

dominação. São Paulo: Atlas, 6º ed, 2011.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 8º ed., 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986.

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Direito

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ORDEM CONCRETA E DECISÃO A PARTIR DO

PENSAMENTO DO NÓMOS EM CARL SCHMITT

Gabriel Lago de Sousa Barroso1

Palavras-chave: Filosofia do Direito; Filosofia do Estado; Ordem Concreta; Antítese

phýsis-nómos.

O trabalho tem por objeto analisar como o conceito grego de nómos é

recepcionado na obra do jurista e filósofo político alemão Carl Schmitt (1888-1985),

a partir de sua tentativa de fundamentação da ordem jurídica e axiológica por meio

do conceito de ordem concreta. A investigação procura, com isso, unir

coerentemente duas fases do pensamento de Carl Schmitt, a saber: i) a fase

dedicada ao problema da soberania como decisão, expressa sobretudo na primeira

versão do escrito Teologia Política (1922); ii) a fase de crítica parcial ao

decisionismo, em que Schmitt procura fundamentar sua teoria a partir do conceito

de ordem concreta, expressa no escrito Sobre os três modos de se pensar a ciência

jurídica (1934).

1 Mestrando em Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]; [email protected].

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A hipótese do trabalho é que Carl Schmitt, no escrito de 1934, empreende

a crítica parcial do decisionismo expresso em Teologia Política, pois reformula seu

próprio conceito de decisão em conexão com o conceito de ordem concreta. A

decisão aparece, então, não como uma creatio ex nihilo da ordem jurídica e

axiológica, mas como o restabelecimento de uma ordem nomotética perdida em

meio ao relativismo cultural de uma sociedade – a decisão que reafirma a ordem

concreta. A reflexão de Schmitt se conecta aqui com sua recepção do conceito de

nómos, na medida em que procura interpretá-lo para além da clássica antítese

phýsis-nómos, buscando a essência originária do conceito, anterior à relativização

imposta por essa oposição. O nómos aparece como as raízes culturais, coincidentes

com a ordem concreta, a partir da qual é possível fundar, em um segundo

momento, a ordem normativa. A instabilidade dessa ordem concreta é cancelada

pela decisão, que restabelece a univocidade do nómos relativizado.

Partindo dessa hipótese, o itinerário do trabalho se divide em três

momentos: i) um breve incurso filológico sobre a evolução do conceito de nómos

na cultura grega e sua ligação com a fundamentação da Ética (em sentido amplo)

enquanto disciplina filosófica; ii) a interpretação do conceito de nómos por Schmitt

e sua relação com o conceito de ordem concreta; iii) a reelaboração do conceito de

decisão, segundo a teoria da ciência jurídica fundamentada na ordem concreta.

A Ética enquanto disciplina do pensar filosófico emerge na Grécia antiga a

partir da crise da pólis como substância ética imediata, e de seu surgimento como

ciência resultam certamente problemas em dois campos diversos, antes

consolidados em plena harmonia com as sociedades existentes: por um lado, trata-

se de um problema de prescrição, ou seja, de investigação da boa ação ou

determinação de uma normatividade do agir; por outro lado, encontra-se o

problema da Ética na sua fundamentação, a velada busca pela recuperação da

unidade axiológica perdida, a partir de bases que se revelem suficientemente

seguras para suportar a construção do homem em sociedade. Enquanto a

prescrição era já parte constituinte do costume da sociedade grega arcaica,

certamente a necessidade de fundamentação é uma preocupação típica de uma

ciência do éthos, sem a qual não pode almejar qualquer aceitação (LIMA VAZ, 2004,

p. 61-68).

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Direito

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A fundamentação se faz necessária a partir do momento em que valores

constitutivos da pólis tradicional tornam-se problemáticos. É certo que o século V

a.C. foi, para os gregos, repleto de profundos questionamentos morais,

principalmente ligados aos conceitos fundamentais daquela sociedade – o bem, o

justo, a virtude. O ápice desse movimento de desconstrução é atingido no século IV

a.C., com o relativismo moral presente nas doutrinas sofistas. Há uma reviravolta

no discurso sobre valores, de modo que entre os gregos passa-se a falar sobre

aquilo que existe “por phýsis” em contraposição àquilo que “não existe por phýsis”,

ou seja, que “existe por nómos” (GUTHRIE, 1995, p. 57). O nómos – a lei ou o

costume – deixa de ter um conteúdo sagrado, unívoco, contrapondo-se à phýsis – a

natureza ou a realidade. Assim é que, enquanto Hesíodo pôde falar de Zeus, como

aquele que promulgou “uma lei para todos os homens” (PLATÃO, 2002, 322 d, p.

66-67), Górgias se refere já em uma lei da ocasião2. O nómos adquire um conteúdo

relativo, bem como a organização social sofre com as ausências de bases rígidas. A

phýsis é vista como realidade, aquilo que sequer faz sentido querer demonstrar. Do

jogo desses dois termos, ou da tentativa se fundar leis em bases correspondentes à

realidade, seja qual for essa realidade, depreende-se uma linha-mestra para a

compreensão da Ética na história da Filosofia.

Este problema – a fundamentação do nómos – é encontrado também nas

reflexões de Carl Schmitt, transvestido em sua crítica ao normativismo e na

tentativa de fundar a ciência do direito em um pensamento que supere certas

aporias do decisionismo, o que resultará, na obra de Schmitt, na fundamentação do

direito em um pensamento da ordem concreta.

A noção de ordem concreta (konkrete Ordnung) encontra-se exposta no

escrito de Schmitt intitulado Sobre os três modos de se pensar a ciência jurídica.

Schmitt procura diferenciar o pensamento do direito em três diferentes

possibilidades: o direito como regra, modo que se identifica com o normativismo;

2 DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker: Gorgias. Vol II. 10ª ed. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1961, fr. 06.

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como decisão, cuja expressão é o decisionismo; e, por fim, pensar o direito como

ordem concreta, posição que Schmitt defende e apresenta como predominante na

tradição alemã.

Cada modo do pensar jurídico arroga para si a certeza de haver desvelado

o sentido e a essência do direito. Para o pensamento de ordem concreta, a ordem

ou o jurídico não é concebido como regra ou conjunto de regras, já que a regra é

apenas o instrumento dessa ordem primordial, assumindo, é verdade, uma função

reguladora, mas apenas restrita frente ao todo que constitui a ciência jurídica. O

jurídico, em realidade, pressupõe uma ordem característica de cada povo, sobre a

qual é baseada toda a regulação normativa.

Mas em que consiste essa ordem concreta que antecede a regulação

normativa? A análise feita por Carl Schmitt do fragmento do poeta grego Píndaro, o

nómos basileús, indica um caminho para a determinação desse conceito. O

fragmento foi recepcionado a partir de Heródoto e do Górgias de Platão, em trecho

em que Cálicles empreende forte crítica a Sócrates. O fragmento diz:

Rainha é a lei de tudo o que há no mundo:

dos deuses, dos mortais.

É ela que

com seu pulso de ferro justifica os mais violentos atos (PLATÃO,

2002, 484 b, p. 183).

Lei é a tradução para nómos, que reina sobre os mortais e imortais.

Segundo Schmitt, o normativismo, revelando sua impessoalidade característica,

interpreta a passagem de forma a concluir que só a lei deve governar, Lex como

único Rex, em contraposição aos governos pautados por decisões pessoais,

fundados no arbítrio da vontade individual.

Schmitt interpreta de forma bem diferente o fragmento. Segundo ele, o

vocábulo nómos não poderia ser interpretado aqui como norma ou regra, mas

significa necessariamente direito, “o qual é tanto norma como decisão, como,

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Direito

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sobretudo, ordem”, já que “noções com as de rei, senhor, vigilante ou governor,

mas também juiz e tribunal, nos transladam imediatamente às ordens

institucionais concretas que não são meras regras.” (SCHMITT, 1996, p. 14). A

interpretação tida por “normativista” evoca a prevalência da norma abstrata sobre

a realidade, tornando-a imputável de forma a domá-la.

No entanto, ainda que as normas procurem formar a realidade, não

mantém uma conexão genética com ela. O direito como basileús não pode ser só

um conjunto de regras, não pode resumir o Estado a uma mera função da norma. O

normativismo, na verdade, não afirma a Lex como Rex, mas submete o Rex à lei,

criando uma ordem normativa contra o governante. “A lei destrói, com esse

‘governo da lei’, a ordem concreta do rei ou do governante; os senhores da Lex

suplantam o Rex” (SCHMITT, 1996, p. 15).

Schmitt resolverá esse problema identificando o fundamento do direito

em algo anterior à regulação abstrata. A ordem enquanto nómos basileús indica o

conceito total de direito, o qual compreende uma ordem e comunidade concretas,

certamente não definidas pela artificialidade da norma abstrata que pretende

regular a realidade.

A interpretação de Schmitt, em verdade, exclui a antítese phýsis-nómos e

afirma, ao contrário, um nómos original, próximo da phýsis concreta. O nómos

relativizado implica em sua artificialidade, pois parte do pressuposto de sua

produção consciente pelo homem, como a norma abstrata em nosso sistema

jurídico. Como Aristóteles refere-se ao dinheiro, que é produzido segundo o

nómos, ou seja, por convenção (ARISTÓTELES, 1133a [30]), também a norma

poderia ser produzida independentemente da realidade que procura regular. O

nómos é aqui um Dever imposto, distante do Ser que o conforma.

O pensamento de ordem concreta impõe, portanto, a exclusão de uma

dualidade como ser e dever ser, mas também se refere a um nómos que deve ser

considerado indistinto de uma phýsis contraposta. A ordem, em verdade, funda-se

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na própria phýsis como realidade, que é o nómos de um povo considerado segundo

sua tradição e existência.

Em conformidade com a proposta de um pensamento de ordem concreta

e o problema da fundamentação do nómos, Schmitt irá reformular a abrangência

de seu conceito de decisão, como formulado anteriormente na Teologia Política. A

decisão passa a se referir à ordem concreta, e, da força pessoal de decisão do

soberano que em Hobbes criava ex nihilo essa ordem, Schmitt retira a possibilidade

de sobrevivência do Estado pela reafirmação da ordem. Por esse motivo, a decisão

deve ser compreendida, “desde o pensamento da ordem concreta, como

consequência de uma ordem já dada, como restabelecimento e não como

estabelecimento da ordem.” (SCHMITT, 1996, p. 30).

A decisão, situada fora de uma “ordem jurídica”, surge dessa ordem e

procura restabelecer seu domínio. A decisão repõe a normalidade. A norma é

insuficiente, pois não engloba o conceito de exceção, e, assim, pressupõe a

normalidade, um “médium homogêneo”, para que possa ser efetiva3. A decisão, no

entanto, também pressupõe algo, isto é, pressupõe os fundamentos de uma vida

concreta, mas vai muito além das limitações da norma jurídica, pois devido à

pessoalidade que lhe é característica pode lidar com o descontrole da exceção,

reestruturando, mediante um ato, a ordem perdida.

Fica aqui mais que evidente as conexões com o pensamento de ordem

concreta e com o problema da fundamentação do nómos. A “ordem” que

permanece é aquilo que Schmitt chamaria, mais tarde, de ordem concreta. A

ordem é o nómos, a partir do qual emana tanto a regra quanto a decisão. Este o

significado real do nómos basileús. O direito ou a ordem concreta compõe tanto a

norma quanto a decisão, mas a norma não pode jamais arrogar para si o título de

verdadeira realidade, da mesma forma que a decisão não cria uma ordem ex nihilo,

mas apenas reestrutura uma unidade perdida.

3 Ver: SCHMITT, Carl. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. 8ª ed. Berlin: Duncker & Humblot, p. 19.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1133a [30].

DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker: Gorgias. Vol II.

10ª ed. Berlin: Weidmannsche Verlagsbuchhandlung, 1961.

GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus, 1995.

LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. 4ª ed. São Paulo:

Loyola, 2004.

PLATÃO. Diálogos. Protágoras, Górgias, Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2ª ed.

Belém: EDUFPA, 2002.

PLATÃO. Protágoras. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2002.

SCHMITT, Carl. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. 8ª

ed. Berlin: Duncker & Humblot.

SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Trad. Montserrat

Herrero. Madrid: Tecnos, 1996.

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

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O VALER E O SABER DA JUSTIÇA E DA VERDADE NO

DIREITO

Arnaldo Afonso Barbosa4

Palavras-chave: Justiça; Verdade; Direito Objetivo; Direito-ciência.

Intriga-me primeiramente a desproporção dos intensos cuidados

dispensados à justiça do direito objetivo em relação à justiça do Direito-ciência.

Quanto à justiça do direito objetivo, pode-se dizer que tem sido o tema

mais recorrente da literatura jurídica em matéria filosófica, seja para afirmá-la

como elemento interno, estruturante, do direito objetivo, no âmbito de uma

Ontologia Jurídica, seja para afirmá-la como elemento externo do direito objetivo,

de caráter político, norteador do direito objetivo, no âmbito de uma Axiologia

Jurídica. Em ambos os casos, ou o direito objetivo como ente de justiça ou o direito

objetivo como função da justiça.

Quanto à justiça do Direito-ciência, grassa um profundo silêncio,

certamente devido à convicção de que a justiça só se predica dos atos da vontade e

4 Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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não dos atos da inteligência. Não cabendo, pois, predicar a justiça da ciência, não

caberia predicá-la à Ciência do Direito. Em outras palavras, não havendo ciência

justa ou injusta, não haveria Ciência do Direito justa ou injusta.

No que tange à verdade no direito, intriga-me o negligenciado estudo da

verdade tanto no âmbito do direito objetivo quanto no âmbito do Direito-ciência,

negligência muito mais sentida naquele âmbito do que no âmbito do Direito-

ciência. Inquietante, ademais, a desproporção, em desfavor do estudo da verdade

no âmbito do direito objetivo, em relação aos estudos que se realizam no âmbito

do Direito-ciência, ainda que mesmo nesse âmbito haja quem lhe negue qualquer

pertinência.

Por outro lado, grassa a convicção de que seria um nonsense falar-se num

“direito verdadeiro”. O que melhor lhe corresponderia à noção intencional, é a de

direito vigente, enquanto expressão da existência do direito objetivo, ou modo

próprio do existir do direito objetivo, ou do direito válido, seja formalmente, seja

materialmente, seja socialmente válido. Direito objetivo verdadeiro no sentido de

vigente ou válido, pois.

A vigência ou a validade, modo de existir do direito objetivo, vê-se, não se

exaure nos aspectos formais de sua elaboração ou nos aspectos sociais de sua

observância e aplicação. Garcia Maynez alude à validade material do direito

objetivo, fazendo-a corresponder à conformidade de seu conteúdo com os ditames

dos valores positivos em função dos quais as consequências jurídicas são

imputadas normativamente aos fatos jurídicos.

Nesse ponto transparece a ligação de interdependência entre a verdade

jurídica e a justiça jurídica, ou seja, entre o direito verdadeiro e o direito justo.

Direito de verdade (verum) é direito justo (bonum), e direito justo (bonum) só pode

ser o direito verdadeiro (verum), pois do jus falsum nada se pode predicar

enquanto direito, pois direito não é, nem, pois, a justiça (bonum).

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Todas essas inquietações se entrosam e culminam em uma superior

indagação: seria admissível uma justiça do direito objetivo ou do Direito-ciência

sem uma concomitante verdade do direito objetivo ou verdade do Direito-ciência?

Ou seja, uma justiça jurídica sem uma verdade jurídica?

No exato ponto da resposta a essa superior indagação reside o sentido

desta comunicação que nada mais representa, para mim, do que um ponto de

parada para refletir, agora com a ajuda dos filósofos desta Jornada, sobre a busca

de uma concepção que tenho esboçado em minhas aulas, concernente à íntima

relação de interdependência existente entre os valores da justiça e da verdade no

direito.

Entendo que o valor jurídico da justiça está condicionado pelo valor

jurídico da verdade, pois um juízo de justiça que tem como assento um juízo de

falsidade, não pode ser senão um juízo de falsa justiça, ou seja, um juízo de

injustiça.

Entendo também que, embora interdependentes, o valor condicionado da

justiça jurídica é superior em amplitude ao valor condicionante da verdade jurídica,

uma vez que a justiça implica não só a consciência da verdade, mas, sobretudo, a

ação conforme a verdade, sendo que o valor da verdade implica, antes, a

consciência da verdade.

Dada uma tal interdependência, não me parece compreensível e

justificável a razão pela qual tanto se fala em justiça do direito objetivo e tão pouco

se fala em verdade do direito objetivo; praticamente nada se fala em justiça do

Direito-ciência e, quando algo se fala, tão pouco também se fala em verdade do

Direito-ciência e, quando tão pouco se fala, algumas vezes, como já observado, é

para negá-la no âmbito dessa ciência.

Sobre a interdependência primária do valer e do saber dos valores

jurídicos da justiça e da verdade, inicio com a proposição de costumeira lembrança,

de que tanto a justiça quanto a verdade são valores jurídicos como, destarte,

também o são muitos outros valores.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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Trata-se em geral da justiça jurídica como se fosse um valor predicável

propriamente do direito objetivo, enquanto que a verdade, um valor predicável

propriamente do Direito-ciência. A justiça do direito objetivo é entregue assim à

Ontologia Jurídica,5 não cuidando ela da verdade do direito objetivo. E da verdade

do Direito-ciência, cuida a Epistemologia Jurídica, não cuidando ela da verdade do

direito objetivo.

Não me parece ir nisto uma simples distinção. Parece-me que é feita aí

uma separação entre essas disciplinas do conhecimento filosófico em razão de se

fazer uma separação, não só uma distinção, entre os valores da justiça e da

verdade jurídicas, fazendo-se esta anterior separação em razão de se fazer

também, em última análise, uma separação entre o ser (valer) e o saber dos

valores.

Perceptível separação, uma vez que, como já observado, a Ontologia

Jurídica cuida intensamente da justiça do direito objetivo e nem tanto ou nunca,

talvez, da verdade do direito objetivo e, por sua vez, a Epistemologia Jurídica cuida

da verdade do Direito-ciência, negligenciando a verdade do direito objetivo.

Ao invés de simplesmente distinguir para não confundir e melhor

compreender o foco tanto da Ontologia Jurídica quanto da Epistemologia Jurídica,

o que se nota pela rama dessa separação, tendo em vista o trato da mesma pelas

correspondentes e referidas disciplinas, é que de uma convencida separação se

trata.

Finalmente, distinta é a questão da “verdade no Direito-ciência”, a qual se

refere não mais à ciência verdadeira e justa, mas à função da verdade no Direito-

ciência ou ao trato que a Ciência do Direito dispensa ao valor da verdade.

5 Assumido o conceito segundo a qual o valor é um dos elementos essenciais do direito, como, por exemplo, da concepção das teorias tridimensionais do direito.

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200

Desde Jesus,6 Platão,

7 Aristóteles

8, os filósofos se perguntam

incansavelmente sobre a verdade, sedentos de um maior e melhor saber sobre sua

natureza, possibilidade e importância em todos os campos do saber. Mas os

filósofos do direito, o que nos têm revelado sobre a função e a importância da

verdade no campo do Direito-ciência?

Podemos elencar diversas respostas, mas me permito explorar apenas

uma: a que encontra fundamentação na visão de um ilustre jurista, presença

marcante e enriquecedora nesse evento, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., de que a

moderna Ciência Dogmática do Direito não lida com a verdade.

Vejamos o que diz esse jurista:

Partindo do conceito de que a investigação científica “sempre faz frente ao

problema da verdade” (FERRAZ JR., 2008, p. 63), ou seja, da pressuposição máxima

das ciências, sejam quais forem, e sejam quais forem os seus objetos, que é a da

alternativa “falsa ou verdadeira”, (FERRAZ JR., 2008, p. 63) diz o jurista que o

fenômeno da positivação cortou a possibilidade de a ciência do direito trabalhar

com enunciados científicos, ou seja, que aspiram a verdade, descritivos da

realidade e transmissores de uma informação precisa sobre a realidade.

Assim,

Essa situação modifica o status científico da Ciência do Direito, que

deixa de se preocupar com a determinação daquilo que

materialmente sempre foi direito, com o fito de descrever aquilo

que, então, pode ser direito (relação causal), para ocupar-se com a

oportunidade de ditas decisões, tendo em vista aquilo que deve ser

direito (relação de imputação). Neste sentido, seu problema não é

propriamente uma questão de verdade, mas de decidibilidade

(FERRAZ JR., 2008, p. 63.64).

6 “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida...” (João, 14:6). 7 “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são." (Crtas.,385b;v.Sof.,262 e; Fil.,37c). 8 "Negar aquilo que é, e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade." (Met.,IV,7,1011b 26 e segs.;v.V,29.1024b 25).

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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Coerentemente, relata o jurista, os enunciados da Ciência do Direito são

de caráter persuasivo, assumindo a forma de orientações, recomendações e

exortações, (FERRAZ JR., 2008, p. 59-60), não sendo, por isto, verificáveis e

refutáveis, como são os enunciados das teorias científicas (FERRAZ JR., 2008, p. 64).

Enfim, diferentemente das ciências que têm à frente, sempre, o “problema

da verdade”, (FERRAZ JR., 2008, p. 63) o problema da Ciência do Direito é outro,

“não é propriamente uma questão de verdade, mas de decidibilidade” (FERRAZ JR.,

2008, p. 64) Enfim, assim sendo, a chamada Ciência do Direito cumpre, de fato, “as

funções típicas de uma tecnologia” (FERRAZ JR., 2008, p. 60).

Se assim for, resta cabalmente explicada a indiferença da Filosofia do

Direito pelo valor da verdade no Direito-ciência e, coerentemente, no próprio

direito objetivo. Se o problema do Direito-ciência é um problema antes ligado à

razão da vontade (decidibilidade), pertinente à Ética, pois, do que à razão da

inteligência (verdade), pertinente à ciência, pois, inútil perquirir sobre esta, e

importante perquirir sobre aquela; inútil perquirir sobre a verdade e importante

perquirir sobre a justiça independentemente da verdade.

Estão aí, levados às últimas consequências, na análise fria e terrível de

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., os resultados da continuada indiferença da Filosofia

do Direito pela verdade no Direito-ciência: a negação da própria Ciência do Direito

e a redução do saber jurídico a uma Tecnologia Jurídica, em que o problema central

não é mais a realização do valor de justiça ancorado no valor da verdade, mas

simplesmente a decidibilidade de conflitos.

Cansados do discurso filosófico da justiça desacompanhado do discurso

filosófico da verdade, ou seja, do discurso abstrato, sem pé na realidade do mundo

e da vida, já que a verdade é a única via de acesso racional à realidade, os cientistas

do direito desligaram-se de ambas. Inventaram um tipo de saber de status diverso

do “status científico da Ciência do Direito” (FERRAZ JR., 2008, p. 89) Inventaram

uma Dogmática Jurídica cujos enunciados têm sua validade ancorada tão somente

na relevância prática, (FERRAZ JR., 2008, p. 90) formulando-se em função de

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corroborar a previsão de que “uma problemática social determinada seja

solucionável sem exceções perturbadoras” (FERRAZ JR., 2008, p. 89).

Adeus, pois, ao valer e ao saber da justiça e da verdade no direito. Adeus...

à humanidade.

Termino essas reflexões, em sua grande parte bem verdes ainda reflexões,

para dizer aos filósofos dessa Jornada, que continuo acreditando que fora da

realidade não há saída para a Humanidade. Que a única via de acesso racional à

realidade é a verdade. Que a verdade, no que concerne ao direito e ao Direito-

ciência, é função da justiça. Que há uma Ciência do Direito a construir com base na

verdade e em função da justiça, e que há uma Tecnologia do Direito a construir

com base nessa Ciência do Direito, e não independentemente dela, o que seria a

nossa ruína.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6ª. ed. rev. amp.

Atlas: São Paulo, 2008.

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Direito

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PASSAGEM DO ESTÉTICO E PASSAGEM DO JURÍDICO EM

CONTEXTO DE CAOS: OU DO EXPRESSAR DA ARTE E DO

DIREITO NO LIMIAR DO SÉCULO XX

Thiago Álvares Feital9

Victor Hugo Criscuolo Boson10

Palavras-chave: Arte; Direito; Pós-guerra; Racionalidade.

Pretende-se discorrer acerca da revisão da criteriologia do justo e do belo

ante a crise mundial do início do século XX, que acabou por inaugurar, no caso da

arte, ou retomar, no caso do direito, concepções que representaram a emergência

de novas mentalidades. A tais fenômenos denominamos passagem do estético e

passagem do jurídico.

Já no mundo grego Aristóteles havia lançado a idéia de que a poesia, a

pintura e a escultura constituíam artes miméticas, orientadas para a tentativa de

imitação da natureza. Em Aristóteles a mimese enquanto tentativa de reprodução

9 Graduando em Direito pela UFMG. E-mail: [email protected]. 10 Graduando em Direito pela UFMG. E-mail: [email protected].

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do real, reprodução que carrega a capacidade de criação, não o faz passivamente,

num imitar apático dos fenômenos, mas acrescenta uma nova dimensão,

transfigurando a realidade representada na realidade da obra. Com isso, a

Antiguidade aporta o conceito de simulação: a obra perfeita é aquela capaz de

dissimular a sua condição de objeto de arte, capaz de fazer o espectador tomar a

aparência pela realidade. É, ela mesma, um aparente que se quer real, que se dá

por real. A perfeição na arte grega, portanto, consiste, como nos elucida o mito de

Pigmaleão, na capacidade de fazer da Galatéia simulacro uma Galatéia mulher, isto

é, fazer com que o objeto artístico se transmute, aos olhos do espectador, naquilo

que pretende ser. A obra Laocoonte (I-II a.C. aproximadamente) produzida no

período helenístico, – período no qual há uma exacerbação da necessidade de

aproximação entre a arte escultórica e a simulação do belo – tem servido de

ilustração à estética grega, oferecendo material para debates acalorados no âmbito

da Estética. Trata-se de um exemplo magistral de simulação: o corpo nu, de modo a

evidenciar a tensão muscular, a boca entreaberta prestes a gritar, a expressão de

desespero, o abdômen contraído... Toda a técnica empregue em Laocoonte

encontra-se a serviço da condução do espectador, deslocando-o da representação

rumo à realidade. É preciso que a obra transite do mármore à carne, que o

mármore simule a carne.

Ainda que não seja prudente empregar generalizações para um período da

História da Arte tão fértil e contraditório, parece que o legado aristotélico é

continuado – no que concerne à compreensão do trabalho de criação como

trabalho mimético – pelo Renascimento. Comungando do mesmo ambiente e das

mesmas preocupações, filósofos e artistas encontraram nos studia humanitatis as

ferramentas necessárias para a construção de uma arte que fosse, como quer

Botticelli, “o mundo mais uma vez, parecido como não parecido com ele”.

A assertiva de Botticelli nos conduz àquilo que o período terá de mais

característico: o artifex florentino não deseja mais fazer de sua obra uma

simulação, como pretenderia um contemporâneo do Laocoonte. O que se deseja

agora é provocar uma obliteração das formas reais em favor de uma suposta forma

ideal. A partir de então, nenhuma técnica será empregue para convencer o

espectador de que o que tem diante de si é a própria realidade. Muito antes pelo

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Direito

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contrário, se as formas devem ser perfeitas, se as linhas devem convergir com

exatidão para o ponto de fuga e se as cores devem ser vivas e frescas, é porque a

arte, incumbida de desvelar o mundo das Ideias, não pode se dar ao luxo de

ostentar imperfeições.

Neste sentido, o mármore – que para Michelangelo, nada era além do

suporte onde poderiam ser desveladas as grandes ideias – retoma o seu lugar no

mundo da técnica, torna a ser pedra e não se exige mais que sua natureza seja

dissimulada. Assim, o seu David não pretende ser um simulacro de homem, mas a

manifestação da beleza que emana de Deus numa aproximação muito particular da

filosofia de Ficino. O artifex não é mais um escamoteador, mas um deus.

Michelangelo pintando, esculpindo e projetando, é o próprio Deus a construir o

mundo; o “mundo mais uma vez” de Botticelli.

Num panorama muito breve, do Barroco (1600, aproximadamente) ao

Realismo (1830, aproximadamente), do Academicismo à Art Naïf, a arte ocidental

caminhará conservando, de certo modo, a máxima de que a arte deveria articular-

se enquanto mimesis da realidade, o que, naturalmente, não elidiu em momento

algum a possibilidade de criação de “outros mundos”, mas vinculou todo exercício

do imaginário a um compromisso para com a figuração, pelo menos até o

despontar do século XX.

Subvertendo os valores até então em voga – aqueles zelosamente

guardados pelo seu baluarte, o academismo – o século XX lança-se, primeiramente,

à aventura de dilacerar o liame entre Arte e Natureza. Assim, é paradigmática a

declaração de Emil Node: “A imitação fiel e exata da natureza não cria uma obra de

arte. Uma estátua de cera, que se confunde com o modelo natural, nada provoca

além de repugnância”. Trata-se de manifestação explícita do desejo de romper com

o aristotelismo (a teoria do mimetismo nas artes), rompimento, aliás, que o artista

afirma ter se adiantado algumas décadas ao seu próprio pronunciamento: “‘A arte

mais perfeita encontramo-la entre os gregos. Na pintura, Rafael é o mestre dos

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mestres’. Era isso o que ensinavam todos os professores de arte havia vinte ou

trinta anos.”

Num segundo momento, ainda de subversão e ruptura para com o real,

movimentos como o Surrealismo e a Scuola Metafisica vão se encarregar de

expurgar a razão, talvez definitivamente, da arte, através do reconhecimento cada

vez mais corrente de que “a loucura constitui um fenômeno inerente a todas as

manifestações artísticas”.

A explicação de Lyotard para que o abandono dos grandes relatos

artísticos tradicionais ocorresse no despontar do século XX se dá pelo fato de tal

contexto ter sido marcado como período de desestabilidade da realidade, que já

não poderia mais constituir matéria para experiência da representação, dado seu

caráter caótico.

De fato, os tormentos de duas grandes guerras, disputas bélicas e

ideológicas, insegurança política e econômica, excesso das formas de violência, em

caráter global, assinalaram para um dos contextos mais sombrios da história

universal. Se a arte respondeu a tal conjunto de transformações de modo a

abandonar o normativismo das formas e da tentativa de representação do real,

esvaziando-se de parâmetros usualmente utilizados, a construção do direito

caminhou em sentido outro, qual seja, o de apegar-se materialmente à

racionalidade ética para atuar como instrumento de liberdade.

A relação entre direito e razão configurou-se, desde os remotos tempos de

construção da cultura humana, jamais como algo evidente, mas sempre numa

relação dialeticamente problematizada. Mas é com a Modernidade que essa

dialética apresenta-se como dicotomia. A tradição denominada juspositivista, que

tem suas origens em Hobbes, tende a apresentar o direito e a racionalidade como

idéias excludentes, de forma que o fenômeno jurídico desvincula-se de qualquer

pretensão ético-politica. Tal distanciamento entre direito e razão –que aqui pode

ser traduzida por justiça - surge com a pretensão de uma separação da análise do

Direito de todas as circunstâncias e esferas sociais que o rodeiam. Assim, o

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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distanciamento do direito de sua base social, ética, política, cultural e

antropológica é também a desvinculação entre direito e racionalidade.

Nesse sentido é que John Austin, em seu positivismo, apresenta o

soberano não somente como ente prolator da norma, mas como figura inexorável

para a composição de sua juridicidade. Elide do direito positivo qualquer metafísica

ou importância axiológica, que se traduz em direito posto, resumido em vontade

emanada por autoridade e desvinculado de qualquer perspectiva moral. Idéia esta

sintetizada pela máxima de que “o critério de legalidade é questão de fato, não de

valor.”.

Também em Kelsen, o direito teria por característica basilar o formalismo,

é válido independentemente de seu conteúdo ou finalidade, até mesmo porque o

fundamento de sua validade – a norma fundamental – não abarca nenhuma

substância material. Separando abissalmente direito e moral, em sua teoria é de

sublinhar a completa ausência de preocupação com a idéia transcendente de

justiça, pois a configuração da norma, que implica na de regra, já é critério auto-

suficiente do justo e do injusto, num culto apologético ao pleno arbítrio do

legislador.

Assim é que, brevemente, numa síntese das diversas doutrinas cuja matriz

seja vinculada à idéia do formalismo, o aparte entre direito e moral fora

responsável historicamente pela condução de uma arbitrariedade identificável,

ausente de quaisquer parâmetros substancialmente racionais.

Mas ainda que a cultura ocidental tenha se abatido pelo mito jurídico da

arbitrariedade do soberano, podemos dizer, com Bobbio que, em sentido oposto

ao da matriz juspositivista – que analisa o jurídico abrindo mão de seu conteúdo

axiológico – o filósofo do direito não se contenta em conhecer a realidade empírica

do direito, mas quer investigar o problema do valor do direito, com base no qual se

julga o direito passado e se procura influir no direito vigente.

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Dessa forma, ante um contexto caótico de duas grandes guerras e

instabilidades, a majoritária resposta da filosofia do direito caminhou no sentido de

não mais legitimar os abusos do soberano, impregnando ao “construir” do direito

uma fundamentação racional, pretensamente ética, instaurando-se a passagem do

jurídico.

O pós-guerra mostrou ao mundo a fragilidade de uma idéia de direito que

se alija de horizontes éticos, não sendo demais lembrar a sordidez da patologia

nazi-facista, que fez o homem repensar-se enquanto pessoa, retomando a

consciência de sua centralidade, simbolizada pela conquista da Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948). É assim que na seara da filosofia do direito,

consolidou-se como tendência a defesa de paradigmas que se evidenciam pela

aproximação entre direito e moral a partir de uma dimensão valorativa e,

sobretudo, substancialmente racional.

Há um volta ao direito natural, por meio da afirmação das correntes

jusnaturalistas pós-kantianas –inauguradas no século XIX; sendo que a idéia de

direito natural passa a ser concebida não mais como transcendência eterna e

imutável, mas como conteúdo variavelmente determinável e que pretende

conduzir o direito por imperativos racionalmente consentidos. Assinalamos

Radbruch como ponto de partida para uma teoria pós-kantiana dos direitos

naturais no pós-guerra, ao lançar mão de célebre artigo acerca da justiça, um

epílogo à defesa da liberdade, seguido por outros tantos autores, como Del Vecchio

e Maritain, na seara internacional, valendo lembrar, no contexto brasileiro, o

pensamento de Edgar Mata Machado.

Em suma, desconsiderando diversas teorias e simplificando por demais a

questão, dizemos que o jusnaturalismo reaparece no debate jusfilosófico do pós-

guerra como tentativa de racionalização de uma conjuntura jurídica escassa de

substancialidade ético-normativa, num esforço próprio de efetivação da paz.

Ante a crise mundial do início do século XX, houve uma revisão da

criteriologia do justo e do belo, marcada pelo rompimento entre arte e razão e pelo

reencontro histórico entre discurso jurídico e racionalidade.

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Enquanto o paradigma da arte abandonou o intento de transmitir ao

intérprete a noção de verdade por meio da representação mimética do objeto-

representado, ou mesmo de desvelar o mundo das ideias, que se fazia mediante

um exercício plenamente racional pela busca do belo, a filosofia do direito

abandonou em grande medida o legado de uma tradição formalista – que aduzia a

não vinculação do jurídico à reprodução de qualquer idéia transcendente –

apegando-se à pretensão de ordenação materialmente racional, na tentativa de

constituir-se o avatar da paz para o futuro.

Ante um contexto de caos, o artista, ente também político, pugnou por

projetar no estético o protesto aos abusos de seu tempo, por meio de um apelo às

imagens do não sentido, do inimaginável, caótico e instável, inaugurando um novo

modus faciendi artístico, em que o mesmo pensar é também ser. O direito, por

meio da filosofia do direito, por outro lado, deontologicamente, objetivou-se no

sentido de constituir-se negação do real, superação da desordem, perfazendo um

dever-ser pautado por diretrizes morais transcendentes (jusnaturalismo pós-

kantiano), escassas de materialização naquele momento repleto de incertezas.

Assim é que, à guisa de conclusão, talvez possamos tomar direito e arte

como instâncias catárticas; esta, expressando sensivelmente o ser do artista no

objeto-arte, e, aquele, constituindo-se projeção da racionalidade ética mediante a

objetivação de imperativos de dever-ser convergentes para a afirmação da

liberdade em detrimento do poder.

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PODER E JUSTIÇA NAS TRAGÉDIAS DE SHAKESPEARE

Rodrigo A. Suzuki D. Cintra1

Palavras-chave: Shakespeare; Tragédia; Teoria do Poder; Teoria da Justiça;

Moralidade.

Existe uma dificuldade inicial em falar sobre poder e justiça na obra de

Shakespeare. O autor não escreveu tratados ou ensaios sobre o assunto. O que

podemos fazer é procurar na tessitura de suas peças, na armação do enredo, na

caracterização das personagens, nas metáforas e outros jogos de linguagem,

elementos que apontem para uma leitura que torne possível pensar o poder e a

justiça neste autor. Da mesma maneira que ele não tratou diretamente destes

temas, nos parece que talvez seja possível encontrar elementos que os

caracterizem através de uma análise, por assim dizer, um tanto quanto tortuosa.

Não investigaremos o poder e a justiça diretamente, nas obras em que é mais que

óbvio que tenham uma dimensão política, como no caso dos dramas históricos

ingleses, mas sim, através de um caminho mais sinuoso, procuraremos, nas

grandes tragédias, os contornos de uma concepção de poder afinada diretamente

pela dimensão da justiça.

1 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campus Campinas. Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP. E-mail: [email protected].

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Sustentamos, no entanto, que apesar desse caráter esguio com que

conduziremos nossa análise das dimensões relativas ao poder e a justiça,

Shakespeare foi um pensador político de primeira ordem. Sua poesia dramática

explora nas tragédias, através das deliberações e ações públicas de políticos,

homens do Estado e cidadãos os problemas essenciais associados com a vida e o

jogo político (MURLEY; SUTTON, 2006, p. 2).

Isto tudo significa, sobretudo, que alçaremos o texto à dimensão de

imagem. As imagens traçadas ao longo das peças têm uma capacidade de síntese

fenomenal e podem nos ajudar a construir e, consequentemente preencher de

significado, a relação entre poder e justiça na obra trágica de Shakespeare. Como

podemos ler em uma frase de Caroline Spurgeon:

[...] o poeta, sem o saber, deixa a descoberto seus gostos e

desgostos, observações e interesses, associações de ideias, atitudes

mentais e crenças mais profundas, em suas imagens e através delas,

os retratos verbais que desenha a fim de iluminar algo

completamente diferente nas falas e nos pensamentos de seus

personagens (SPURGEON, 2006, p. 14).

O que está em jogo na tragédia shakespeariana, nos parece, é uma

concepção em que poder e justiça se manifestam de uma maneira indissociável. O

que significaria dizer, por certo, que a questão da efetividade do exercício do poder

depende necessariamente de uma certa legitimidade que somente a justiça

poderia proporcionar. A análise desta imbricação necessária aponta para nossa

hipótese de que a tragédia se configura enquanto modo de pensar, sentir e

representar em uma certa construção que coloca em jogo o campo do direito e o

campo do político a partir de uma estrutura estética.

Nesta relação de dependência recíproca entre o núcleo estruturante da

política, ou seja, o poder, e o núcleo central do direito, a justiça, podemos

encontrar, na obra de Shakespeare, uma dimensão verdadeiramente cósmica a

interferir nestes conceitos. Essa cosmologia, própria de um pensamento ainda não

liberto completamente da esfera religiosa como centro, como não poderia deixar

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de ser, trás consigo toda uma maneira trágica de entender o mundo da vida. O

conceito de justiça no período elisabetano é de uma verdadeira expressão da

ordem do cosmos. Como explica Mcginn (SISSON, 1963, p. 13), uma espécie de

justiça cósmica controla a sequência de eventos, de modo que tudo leva ao melhor.

Existe um motivo maior, mais profundo, para as coisas acontecerem da maneira

como acontecem. Vale dizer: o que acontece, deveria acontecer. O que implica em

uma visão moralizante de causalidade. O dramaturgo escrevia, em suas peças, um

posicionamento em que a justiça humana refletia sua concepção de justiça divina

(SISSON, 1963, p. 02). Podemos ler em Shakespeare que quando as coisas vão mal,

caminhando para a injustiça, não é somente a sociedade organizada que sai

perdendo, mas tudo se passa como se a própria natureza estremecesse.

Mas claro que esse modo de pensar também implica em uma certa

moralidade específica. Shakespeare era um grande moralista neste sentido. Hazlitt,

sobre o assunto, escreve que, em certo sentido, Shakespeare não era, de forma

alguma, um moralista; e, em outro sentido, ele foi o maior de todos os moralistas.

Ele foi um moralista no mesmo sentido em que a natureza também é (HAZLITT,

2006, p. 175). Shakespeare, como reforça Mcginn, traz a moralidade para o coração

de seu drama porque a moralidade, ela mesma, é parte da natureza. É parte do que

nós chamamos, comumente, de natureza humana, nossa natureza como pessoas

responsáveis e autônomas (HAZLITT apud McGINN, 2006, 178).

A leitura das obras do dramaturgo parece confirmar a afirmação de

Rousseau: “Aqueles que tratam de política e moralidade separadamente nunca

compreenderão nenhuma das duas.” Com efeito, a ligação entre política e direito,

em Shakespeare, passa sempre por uma moral própria da tragédia. Afinal, a

moralidade é parte da natureza, se por natureza entendermos tudo aquilo que diz

respeito ao mundo da vida. É curioso, nesse sentido, que Shakespeare não copia a

natureza exatamente, na medida em que podemos ter, perfeitamente, príncipes

que, apesar de estarem no poder, não têm qualquer legitimidade porque não estão

compromissados com ideais de justiça. Shakespeare conforma a natureza, descreve

o que é próprio dos homens e do mundo de modo a criar uma natureza a sua

imagem e semelhança. Aqui, o termômetro do real é plenamente invertido, não

lemos as obras a partir de sua comparação com o real. Mas acompanhamos o real a

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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partir da leitura das grandes obras. Somente alguns gênios da história de uma

cultura compartilhada podem tornar isso possível. Shakespeare é um deles.

É dessa maneira que, na caracterização dos personagens shakespearianos,

os governantes precisam obrigatoriamente ser justos. Os personagens

shakespearianos são, sobretudo, pessoas que estão imersas em um universo em

que a ética comanda. Eles são definidos por suas qualidades morais, seus vícios e

virtudes, sua propensão ao bem e ao mal (HAZLITT apud McGINN, 2006, 178). E no

caso dos governantes, é evidente que os bons governantes são aqueles que

atendem o interesse da comunidade como um todo, enquanto os maus

governantes correspondem aqueles que pensam apenas na dimensão de como

alcançar o poder e nele se manter.

Isso traz uma exigência de caráter moral, político, jurídico e estético.

Talvez mais que isso: é uma obrigação natural, pensando em natureza como tudo

aquilo que pode ser útil ao homem. Na construção da degradação por que passam

homens e mulheres de poder nas tragédias, Shakespeare, inevitavelmente, trata do

poder e da autoridade política a partir de uma perspectiva múltipla.

A capacidade de fazer escolhas, dentro deste universo múltiplo, parece ser

essencial para a correta compreensão da dimensão trágica. Os personagens

shakespearianos deliberam escolhas, implementam decisões e refletem sobre as

consequências de terem escolhido uma possibilidade, ao invés de outra. Todas as

grandes tragédias shakespearianas lidam com o momento essencial em que a

escolha é feita, tornando possível que uma complicação se estabeleça e que a peça

se encaminhe para um momento de resolução. Se os personagens não são,

propriamente, predeterminados, são, pelo menos, predispostos a certas escolhas

devido a suas personalidades e a influência das circunstâncias (ALVIS, 2000, p. 04).

O trágico, em sua perspectiva moderna, shakespeariana, assim o é porque

ao meio de uma profunda liberdade de ações individuais, escolhemos sempre o

caminho errado. O que não significa que não somos responsáveis por nossos atos.

No mundo elisabetano, estamos em um universo essencialmente cristão, no qual o

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princípio do livre-arbítrio é de suma importância (HELIODORA, 2004, p. 122). O que

ocorre é que a essência da política, que podemos dizer está em nossa capacidade

de escolha, ou seja, nas nossas ações, pode ser diretamente conectada a essência

do trágico. O dispositivo trágico também opera na dimensão de um mundo de

escolhas. A questão é que ao meio da multiplicidade de ações, o trágico sempre

aponta para a fatalidade. Esse é, de certa maneira, o caráter triste e inexorável da

política, representado pela dimensão da fortuna, deusa desregrada e contingente.

Na tragédia shakespeariana, se seguirmos os ensinamentos de A. C.

Bradley, o que encontraremos é que os atos dos heróis, de certa maneira,

contribuem sempre para a sequência de atos que resultará no desastre final. Tudo

se passa como se eles mesmos fossem autores de seu próprio infortúnio. A escolha

por uma determinada ação encaminha para outra, sendo a sua causa, e ao final do

encadeamento de ações, temos o desastre (BRADLEY, 2009, p. 08-09). Como

elucida Bradley:

A catástrofe é, basicamente, a reação ao ato abatendo-se sobre a

cabeça do agente. É um exemplo de justiça; e a ordem que, presente

tanto dentro dos agentes como fora deles, faz com que ela se cumpra

infalivelmente, é, portanto, justa. O rigor da sua justiça é terrível,

sem duvida, pois a tragédia é uma história terrível; mas a despeito do

medo e da compaixão, conta com a nossa aquiescência, porque

nosso senso de justiça é satisfeito (BRADLEY, 2009, p. 22).

Discordamos, no entanto, profundamente, da leitura de Bradley quando

diz que é um erro chamar a ordem do mundo trágico de justa. Para este autor,

qualificar de “justo” o mundo trágico seria utilizar tal palavra de uma maneira vaga,

não explicada. Está certo que, devido ao fim trágico, os personagens podem não

receber, efetivamente o que merecem. Cordélia, Desdemona e Ofélia, por

exemplo, são vítimas de profunda injustiça na ordem de suas respectivas peças.

Porém, a tragédia vai se desenvolver, exatamente, em torno desta injustiça. O ato

do herói que põe em movimento a sequência de eventos que culminarão no final

trágico o responsabiliza e, ao mesmo tempo, introduz a injustiça na lógica da peça.

É somente ao fim da tragédia, depois de inúmeras mortes, intrigas, lutas pelo

poder, brigas familiares, que Shakespeare vai providenciar um desfecho em que a

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Direito

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ordem e a justiça voltam a prevalecer. É uma certa ideia de trágico que organiza o

mundo da política e do jurídico de maneira conjunta, portanto, reconhecemos, sim,

uma ordem justa a servir de horizonte final das tragédias de Shakespeare. Claro

que isso não vai significar um final feliz, na medida em que se tratam de tragédias,

mas, pelo menos, apontará para um final em que a justiça foi restabelecida e o

poder volta, de alguma maneira, a obedecer o direito, ou seja, a ter uma

legitimidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVIS, John E. Introductory: Shakespearean poetry and politics. In: ALVIS, John E.;

WEST, Thomas G. (orgs.). Shakespeare as a political thinker. Durham: Carolina

Academic Press, 2000.

BRADLEY, A. C. A tragédia shakespeariana. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

HAZLITT, Willian apud McGINN, Colin. Shakespeare´s philosophy – discovering the

meaning behind the plays. New York: HarperCollins Publishers, 2006.

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2006.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

217

PRISÃO EM FLAGRANTE E IMAGINAÇÃO

Ana Clara Matias Brasileiro1

Clara Souza Garcia Saar2

Marcelo Campos Galuppo3

Palavras-chave: Prisão em flagrante; Presunção; Imaginação; Decisão judicial.

Partindo da definição posta por Robert Nozick em “The Nature of

Rationality” a qual se refere à imaginação como habilidade de pensar em novas e

úteis possibilidades, é possível perceber que a imaginação é elemento fundamental

na formulação de hipóteses. Nesse sentido, nota-se sua importância para a ciência

do direito, principalmente no que tange questões em que é preciso pressupor um

fato que fundamentará decisões judiciais.

1 Graduanda do 3º período do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail de contato: [email protected]. 2 Graduanda do 3º período do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. 3 Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: [email protected].

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Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

218

No cerne dessa discussão tem-se a questão da prisão em flagrante

presumido, prevista no Art. 302, IV CPP, o qual ocorre quando alguém é

encontrado logo depois da ocorrência do fato, com instrumentos, armas, objetos

ou papéis que façam presumir ser ele o autor do delito. Observa-se que esse tipo

de flagrante consiste numa ficção, uma vez que se toma o ato praticado como

continuação do delito cometido, expandindo os limites da flagrância, inicialmente

composto pela observação visual do ato de execução do crime (flagrante próprio).

A presunção/imaginação consiste no ato de relacionar um fato já

conhecido a outro que se espera conhecer, de modo que torne possível unir esses

dois eventos e formular uma hipótese. É possível perceber claramente essa

construção relacionada à questão do flagrante a partir de um exemplo. João

namora Maria, que é amada por Pedro. João toma conhecimento do fato e jura

matar Pedro. Algumas semanas depois João é visto portando uma arma próximo à

casa de Pedro, onde esse é encontrado morto, com um tiro no peito, logo após a

visita de João ao bairro. João seria preso em flagrante, uma vez que foi visto

próximo ao local e portando a arma do crime, além de ter exteriorizado,

previamente, a vontade de realizá-lo. Entretanto, nota-se que não é possível

afirmar com absoluta certeza a culpa de João pelo delito. Essa seria, então,

presumida, imaginada por meio das ligações realizadas entre a declaração da

vontade de João (jura de morte a Pedro), o fato de ele ter sido encontrado com a

arma próximo à casa da vítima no dia do crime, e ter ocorrido, de fato, a morte de

Pedro. Essa presunção ocorreria fundamentando-se nas verdades particulares, já

descritas acima, atreladas umas as outras por meio da imaginação daquele que

efetuou a prisão.

No entanto, poderia também se presumir que, ao ter sido preterido por

Maria, Pedro dá um tiro em seu próprio peito, configurando uma hipótese de

suicídio. Nesse caso, João, que havia saído em direção à casa de Pedro com

intenção de matá-lo, o encontra morto e toma a arma para si, sem que tenha, no

entanto, nenhuma relação com o crime. Nota-se com esse exemplo que, quando

não se sabe de fato o que ocorreu, principalmente na ausência de testemunhas

oculares, ou gravações que mostrem a execução do ato, o passo inicial da

investigação é dado por meio das hipóteses, formuladas pela imaginação. Parte-se

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

219

de um fato que é suposto – não precisa ser provado nem enunciado – para chegar

a um fato desconhecido, que se presume (Malatesta, 2005, p. 194).

Apesar de a presunção estar positivada no Código de Processo Penal

Brasileiro, observa-se, por parte dos aplicadores do direito, restrições à utilização

da palavra imaginação para se referir ao processo de formulação de hipóteses. A

tendência é buscar respostas nas alternativas já conhecidas, ignorando o fato de

que muitas vezes a resolução do caso concreto requer justamente o oposto. Nesse

sentido, vê-se que a dificuldade relacionada à imaginação ocorre quando se tenta

substituí-la pela lógica simplista, possuidora de um "um caráter objetivo" que lhe é

dado pela lógica formal. Nesse caso, é escolhida como verdadeira a hipótese mais

lógica, provável, nos termos matemáticos, esquecendo-se que o papel de formular

hipóteses cabe apenas ao ato de imaginar. Sendo assim, é notável a propriedade da

frase “without the imaginative generation and testing of new possibilities,

rationality alone will get us only to a local optimum, to the best of the alredy given

alternatives” (Nozick, 1993, p. 173). Vê-se, então, que sem a imaginação serão

consideradas apenas hipóteses já conhecidas, que podem ser de grande valor ou

não dependendo do caso concreto.

Marilena Chauí fundamenta, nesse sentido, o perigo da permanência no

senso comum, uma vez que nem tudo que se presume, nem tudo o que se

pressupõe, nem tudo que se intui como correto ou errado realmente o é. Percebe-

se, então que não é possível encontrar a certeza naquilo que foi presumido,

diferentemente do que acreditam os aplicadores do direito e sua visão objetivista.

O que é possível, por meio da imaginação, presunção, é a formulação de hipóteses

que podem ou não ser verdadeiras. A formulação dessas hipóteses é apenas o

primeiro passo da investigação de um crime, de modo que é impossível negar a

existência da imaginação no meio judicial, embora não seja possível, mesmo que

por meio da utilização de outro termo, vincular a imaginação/ presunção à certeza

imediata da autoria de um delito.

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220

Para que haja a fundamentação da certeza judicial é preciso observar,

antes de tudo, a diferença entre verdade e certeza, pois embora os dois conceitos

estejam relacionados, nem sempre é possível tomá-los como sinônimos, tendo em

vista que o primeiro é conformidade entre ideia e realidade, enquanto o segundo

consiste em acreditar conhecer tal correspondência. Dessa forma, é percebida a

possibilidade de erro em relação a esse tipo de percepção que fundamenta a

convicção de se ter conhecimento.

É preciso, antes que se discuta a certeza, buscar o modo como se chega à

verdade. Apenas quando o espírito (alma) a percebe, ela pode ser tomada como

posse pelo homem. Essa percepção pode ocorrer de diversas formas, embora exija

em todas elas a faculdade da inteligência, que, para alguns, pode alcançar a

verdade por si só (verdade inteligível), ou com auxilio dos sentidos (verdade

sensível).

É necessário descartar do âmbito da certeza criminal, toda convicção

fundamentada apenas pelas verdades inteligíveis, uma vez que essas originam

certezas puramente lógicas; racionais, de modo que desconsideram a

materialidade dos fatos humanos e a necessidade de obtê-los por meio dos

sentidos (Malatesta, 2005, p. 28). Desse modo, observa-se que a Ciência do Direito,

principalmente no que se refere ao Direito Penal e Processo Penal, busca a certeza

mista, que combina a consciência do mundo físico através da sensibilidade com o

intelecto, responsável pela reflexão daquilo que foi tomado pelos sentidos. Kant

afirmava que o conhecimento é alcançado quando, a partir do plano da

sensibilidade, os objetos são fornecidos, e o plano do entendimento torna possível

pensá-los. Uma das críticas feitas por esse filósofo se refere ao fato de a verdade

ser vista como harmonia entre o conhecimento e seu objeto, fundamentando-se

nas regras do entendimento e princípios da sensibilidade, descartando a verdade

material das proposições empíricas (Ricoeur, 2006, p. 56). Em Kant, também se faz

presente a noção de que a imaginação é elo entre os dois “troncos”, sensibilidade e

entendimento, que fundamentam o conhecimento humano.

A partir dessas definições, tem-se que a prova é obtida a partir de um fato

material que guia a outro, cuja natureza pode ser física ou moral, de modo que

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Direito

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esse conduz ao conhecimento de um novo acontecimento, antes despercebido,

que será o fundamento da prova. Desse modo, nota-se que cabe ao intelecto

nortear, por meio do raciocínio, a ligação entre desconhecido e o que já é sabido.

É fundamental ressaltar a importância da realidade objetiva na construção

da certeza no juízo criminal. Essa necessidade é vista devido às variadas formas em

que um delito pode ocorrer, além das diversas conexões com objetos e sujeitos que

poderão ser úteis à solução do caso. Nesse sentido, torna-se clara a impossibilidade

de determinar todas as possibilidades da manifestação de um crime, considerando

que cada caso é um caso individual possuidor de suas próprias características.

Dessa forma, o mais importante a se destacar, no que tange à certeza e à

verdade criminal, consiste no fato de que não há verdades evidentes da razão, mas

apenas verdades possíveis, fundamentadas pelas provas, que devem servir de base

para o convencimento, afastando as hipóteses que interfiram na certeza, de forma

a estabelecer sua legitimidade. Nota-se, portanto, que o convencimento é tido

como o apogeu da convicção, considerando sua justificação pelo intelecto. Ele deve

ocorrer baseando-se essencialmente nas provas, desvencilhando-se de tudo aquilo

que lhe for estranho, inclusive as concepções pessoais do juiz.

É apresentada também na obra “A lógica das provas em matéria criminal”,

a definição da sociabilidade do convencimento (2005, p. 55), que prevê que, para

que a certeza moral do juiz seja legitimada, coincida com a consciência social, de

modo que a certeza da criminalidade possa ser reconhecida por qualquer homem.

A partir dessa exposição das definições de verdade e certeza, insere-se a

questão da prisão em flagrante. O flagrante é insuficiente para garantir a

condenação do acusado, de modo que se tem a necessidade de percorrer todo o

caminho em direção ao convencimento do juiz acerca do crime. O que de fato

ocorre em relação à flagrância é a possível diferenciação do valor da prova em cada

uma das espécies definidas pela doutrina. Por exemplo, na ocasião de um flagrante

próprio, aquele em que há certeza visual do crime, a prova será tomada como de

excelente valor, fundamentando em sua forma a “segurança da culpabilidade” –

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termo do Min. Adaucto Cardoso (Betanho, Moura, & de Moraes, 2004, p. 432). Da

mesma forma, é vista a relativa força probante do flagrante impróprio e

presumido, uma vez que não é encontrada em nenhum desses a mesma certeza

visual observada no flagrante próprio. Nesses casos, tem-se que o percurso

verdade – certeza – convencimento visto no processo, deverá ser feito baseando-se

na conexão do sujeito ao fato por meio da imaginação; presunção.

É importante ressaltar que, caso haja a condenação de um réu preso em

flagrante, com base no Art. 302, inciso III ou IV CPP, é possível considerar que

houve a positivação do uso da imaginação por meio da sentença, uma vez que se

toma como impossível o conhecimento real dos fatos, de modo que a condenação

é fundamentada pela hipótese, fomentada pela imaginação, mais plausível e

provável, baseando-se, evidentemente, pelos requisitos necessários para a

ocorrência de uma sentença condenatória.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, R. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001.

BETANHO, L. C., MOURA, M. T.; DE MORAES, M. Z. Código de Processo Penal e sua

interpretação jurisprudencial, volume 3. São Paulo: Revista dos Tribunais 2004.

BITTAR, E. C.; DE ALMEIDA, G. A. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas S.A

2002.

CASTELO BRANCO, T. O. Da prisão em flagrante: doutrina, jurisprudência,

legislação, postulação em casos concretos. São Paulo: Saraiva,1980.

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

223

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. In: Vade Mecum Saraiva. São Paulo: Saraiva, 2011.

DICIONÁRIO MICHAELIS. Editora Melhoramentos. Uol. Disponível em

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-

portugues&palavra=presumir. Acesso em 2011 de Outubro de 12, 2009.

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2005.

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RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

TOURINHO FILHO, F. D. Processo Penal, 3º volume. São Paulo: Saraiva, 2007.

Page 224: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

224

SÓCRATES E A OBEDIÊNCIA À LEI NO DIÁLOGO CRÍTON

Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho1

Palavras-chave: Platão; Sócrates; Lei; Justiça.

Assim como vários foram os estudiosos que tentaram interpretar o diálogo

Críton de Platão, numerosas foram as conclusões a que eles chegaram. Sócrates foi

visto desde sofista, passando por precursor de uma espécie de contrato social e

apologista do direito positivo, até um mero escravo da lei. Neste trabalho não se

buscará concluir a hercúlea tarefa de se chegar ao verdadeiro significado do

diálogo. O objetivo é tão somente analisar os argumentos apresentados por

Sócrates e verificar a utilidade destes para a Filosofia do Direito, especialmente no

tocante à legitimidade e obediência à lei. Para a realização do trabalho a

metodologia utilizada será somente o estudo do diálogo Críton e de textos que

tratem desta obra. Não serão examinados outros textos de Platão, tão pouco de

outros autores como Xenofonte.

O diálogo se dá entre Sócrates e seu amigo Críton, e se inicia com os

empenhos deste para que o mestre de Platão fuja da prisão. Críton diz que

Sócrates estaria agindo injustamente ao ficar na prisão e aceitar a pena capital, pois

1 Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected].

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Direito

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deste modo ele facilitaria a própria morte como querem seus inimigos. Além disso,

afirma que seria vergonhoso caso Sócrates morresse, pois o povo acharia que

tendo a possibilidade de pagar para salvar seu amigo da prisão, Críton teria

escolhido poupar seu dinheiro. Por fim, Críton ainda pondera que ele seria privado

para sempre da companhia de seu amigo caso ele morresse, e que, ao aceitar a

punição, Sócrates iria deixar seus filhos órfãos e abandonados.

Após ouvir os argumentos de Críton, Sócrates afirma que ainda que o

destino esteja contra ele, jamais poderá abandonar os princípios básicos que

sempre professou, pois estes sempre lhe afiguraram o mesmo e sempre foram

estimados de igual maneira. Assim, manterá seu antigo hábito de analisar todas as

razões apresentadas e somente se sujeitar à única que lhe pareça mais justa. Só

tentará sair da prisão sem a anuência dos atenienses se tal ação for justa; sendo

injusta, deve-se renunciar a tal ideia.

Os argumentos desenvolvidos por Sócrates podem ser divididos em duas

partes: a primeira, em que Sócrates debate diretamente com Críton, e a segunda,

chamada de prosopopeia das leis, em que estas são personificadas e dão

continuidade ao diálogo.

A primeira parte se inicia com Sócrates afirmando que não devemos levar

em consideração as opiniões daqueles que são insensatos e ignorantes, pois destas

só poderá sobrevir o mal, a injustiça e a ruína. Devemos somente ouvir aquele que

sabe o que é justo e o injusto, e este único juiz é a verdade. O segundo argumento

de Sócrates é o de que jamais devemos cometer injustiças, ainda que sejamos

vítimas delas, pois todas as injustiças são em si mesmas, indignas e maléficas, diga

o que disser a multidão, decorram delas o bem ou o mal.

Na segunda parte, em que as leis conversam diretamente com Críton,

essas dizem a Sócrates que foram elas que permitiram seu nascimento, sustento e

educação, sendo, deste modo, seu filho e servo, e devendo-lhes respeito e

veneração. Como uma forma de gratidão é preciso obedecer, honrar e humilhar-se

diante da pátria mais do que diante de um pai, e sendo ímpio praticar uma

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violência contra o último, muito mais ímpio é praticá-la contra a pátria. Por fim,

elas afirmam que as atitudes de Sócrates, ao longo da vida, demonstram que as leis

de Atenas sempre lhe agradaram e lhe pareceram justas. Ao permanecer na cidade

pelos seus setenta anos Sócrates demonstrou concordar com a maneira de a

cidade administrar a justiça, e, deste modo, assumiu o compromisso de cumprir as

leis, não sendo justo desobedecê-las, mas somente tentar persuadi-las caso estas

lhe pareçam injustas.

Após a apresentação de todos os argumentos, Sócrates conclui que

deveria permanecer na prisão e morrer, pois estaria cometendo um ato injusto ao

fugir da cidade. A questão que então se coloca é: nos dia de hoje seria possível um

cidadão da pólis decidir tomar a mesma atitude de Sócrates?

Dois mil e quinhentos anos nos separam do diálogo de Platão. Esta

distância alterou profundamente a ideia que temos a respeito da pessoa e do

Estado. Não compartilhamos mais do pensamento grego no qual o indivíduo é visto

como uma unidade que só possuía um sentido dentro da pólis. Assim, caso pudesse

decidir, dificilmente alguém abriria mão de sua vida para não cometer uma

injustiça contra o Estado. Mas o Críton não se refere somente a estas situações

extremas, e aqui está sua pertinência para a Filosofia do Direito contemporânea.

As leis do diálogo não são comandos impostos, não se tratam de regras

aplicadas por meio da coerção. Também não são regras cumpridas simplesmente

porque o cidadão não tem escolha e só lhe cabe obedecer às regras vigentes. São

normas com as quais cidadão concorda e aceita. Leis firmadas por meio de um

compromisso assumido de forma livre e renovado diariamente. É verdade que

independentemente do fundamento da obrigação legal ser a vontade divina, uma

coação, a falta de opção ou o ânimo individual, em todos os casos existirá um dever

de cumprir as regras, e pode até ser que em um Estado onde o nível de coerção

sobre o indivíduo seja altíssimo, o grau observância das leis seja maior do que onde

elas sejam cumpridas devido à vontade individual. Mas apenas onde existam leis

que o cidadão considera justas, e por isso concorde livremente em submeter-se a

elas, existirá de fato uma democracia. Somente assim as leis de fato terão força,

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

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pois seu fundamento não será externo, mas sim interno, a livre vontade do

cidadão.

É importante ressaltar que não está se pregando uma obediência cega às

leis, nem tampouco a sacralização delas. O fato de ser justo cumprir as leis que

livremente aceitamos não significa necessariamente que o conteúdo delas e das

decisões judiciais também será justo. O diálogo nos mostra claramente que a

observância dos comandos estatais pode levar-nos a injustiças, no caso, a morte de

Sócrates. Mas, ainda que soframos injustiças, não deveríamos retribui da mesma

forma, pagando o mal com o mal. Se os indivíduos passassem a simplesmente

ignorar e descumprir as normas da pólis sempre que as tomassem como injustas,

todo o Estado desmoronaria. Como as próprias leis de Atenas declaram, um Estado

não pode subsistir se os indivíduos não obedecem as sentenças legais. O que o

diálogo propõe é que ao se deparar com uma regra ou decisão injusta cabe ao

cidadão confrontar tal ordem. A postura não pode ser de fuga, omissão, e sim de

aproximação, de uma dialética que tem o intuito de construir algo melhor. Deve-se

buscar, por meio da persuasão, mostrar que o Estado está agindo de modo injusto,

e deste modo convencê-lo a adotar uma postura compatível com os ditames da

justiça.

Conclui-se que o importante não é uma obediência pacífica das ordens

estatais, e sim uma postura ativa do cidadão, postura esta que o ligue às leis, tanto

por meio de um compromisso assumido livremente, e que é renovado todos os

dias, quanto por meio de um embate, que busca alcançar uma sociedade de fato

justa. Este é o caminho para alcançarmos um Estado vivo e diretamente coletivo

que deixamos para trás há dois mil e quinhentos anos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Page 228: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

228

KENLEN, Hans. A Ilusão da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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VLASTOS, Gregory. Studies in Greek Philosophy. New Jersey: Princeton University

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Page 229: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

229

UMA LEI PROIBITIVA NECESSARIAMENTE RESTRINGE

A LIBERDADE?

João Andrade Neto1

Palavras-chave: Liberdade; Licença; Independência; Conflito de direitos

fundamentais; Ponderação.

Este trabalho se insere no âmbito de estudos da Teoria Geral do Direito,

com repercussões para a Hermenêutica Jurídica, o Direito Constitucional e a Teoria

dos Direitos Fundamentais.

Frequentemente, quando uma nova lei entra em vigor e proíbe uma

conduta antes considerada lícita, o Poder Legislativo e a própria lei são acusados de

restringir indevidamente a liberdade dos cidadãos. Diante dessa crítica, as

autoridades estatais e os setores da sociedade que apoiaram a promulgação do ato

legislativo tendem a defendê-lo mediante a formulação de argumentos acerca da

razoabilidade, da utilidade e da necessidade da regra legal. Alegam que o prejuízo

aos direitos dos cidadãos é insignificante ou muito inferior às vantagens advindas

1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); analista judiciário lotado no Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG); aluno do Núcleo Acadêmico de Pesquisa (NAP), da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: [email protected].

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da situação social que a lei favorece; que ela é benéfica à maioria da população e

atende aos interesses da sociedade como um todo; e que, diante da gravidade do

problema social que se pretendia resolver, não havia outra opção. Nesses termos, o

debate público se constrói entre aqueles que apoiam a medida, apesar das

restrições à liberdade que ela implica, e aqueles que a desaprovam porque ela

restringe desarrazoada, inútil ou desnecessariamente a liberdade de ação dos

indivíduos. Raramente se problematiza, porém, a premissa de que a promulgação

de uma lei proibitiva limita a liberdade.

Um caso recentemente ocorrido no Brasil é exemplar. Em 20 de junho de

2008, foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a Lei 11.705/2008 (BRASIL,

2008b), que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) (BRASIL, 1997). A

finalidade da Lei Seca, como ficou popularmente conhecida, era, de acordo com o

caput do art. 1º da Lei 11.705/2008: “[...] estabelecer alcoolemia 0 (zero) e [...]

impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do

álcool [...]” (BRASIL, 2008b). Entre as mais significativas mudanças promovidas pela

nova legislação, destaca-se a nova redação dada ao caput e ao parágrafo único do

art. 276 do CTB pelo inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b).

Os dispositivos alterados passaram a dispor que o condutor em cujo

sangue for detectada qualquer concentração de álcool estará sujeito a multa,

suspensão do direito de dirigir por doze meses, retenção do veículo até a

apresentação de condutor habilitado, e recolhimento do documento de habilitação

(BRASIL, 1997). A lei admite que o Poder Executivo regulamente as margens de

tolerância para casos específicos (BRASIL, 1997). Isso foi feito pelo Decreto

6.488/2008, art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º, segundo os quais, até que uma resolução do

Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) discipline a matéria, nos termos de uma

proposta a ser formulada pelo Ministro de Estado da Saúde, a margem de

tolerância será: de um décimo de miligrama de álcool por litro de ar expelido dos

pulmões, se a aferição for feita por aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro);

e de dois decigramas de álcool por litro de sangue nas demais situações. (BRASIL,

2008a).

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Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

231

Essa e outras mudanças promovidas pela Lei Seca provocaram a reação da

Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel). A

entidade ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.103 (BRASIL, 2011),

na qual alega faltarem razoabilidade e proporcionalidade ao inciso III do art. 5º da

Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b), o qual alterou o caput e o parágrafo único do art.

276 do CTB (BRASIL, 1997). A impetrante defende que a redação original do CTB

“[...] já era bastante drástica [...]” e, “Agora, desceram o limite a zero [...]”, de

modo que “[...] um único copo de chope ou vinho pode ultrapassar esse limite [...]”

(BRASIL, 2011).

A Abrasel afirma ser um erro punir qualquer dosagem de álcool no sangue,

sem exigir que essa concentração seja capaz de “[...] influenciar, afetar,

comprometer a lucidez, ou algo parecido [...]”. Argumenta que “[...] os acidentes de

trânsito provocados pela influência do álcool ocorrem somente a partir da

concentração de 8 decigramas por litro de sangue [...]” (BRASIL, 2011). Entende

que a Lei Seca como um todo prejudica o direito de lazer da maioria dos indivíduos,

que bebem “[...] como parte da atividade social [...]”, e é nociva aos agentes

econômicos envolvidos com restaurantes e entretenimento, “[...] setor econômico

que ocupa mais de 10 milhões de brasileiros [...]” (BRASIL, 2011).

Não se desconhece que pendem contra outros dispositivos da Lei Seca

alegações da inconstitucionalidade. Tais acusações se resumem basicamente à

violação dos princípios constitucionais da presunção de inocência e da não

incriminação. No entanto, aqui, a análise se concentrará apenas nos principais

argumentos invocados contra o inciso III do art. 5º da Lei 11.705/2008 (BRASIL,

2008b). Eles constituem, como demonstra a petição inicial da ADI 4.103,

argumentos sobre a razoabilidade, a utilidade e a necessidade da nova regra, que

atenta, segundo afirma a impetrante, contra a “liberdade individual” do cidadão

(BRASIL, 2011).

Partindo dessa situação-problema, pretende-se demonstrar que as

discussões acerca da constitucionalidade de um ato legislativo, como a Lei Seca

Page 232: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

232

(BRASIL, 2008b), tendem a mascarar a verdadeira premissa em que se baseia

grande parte da opinião pública, especializada ou não: a suposição de que toda lei

proibitiva restringe o direito dos indivíduos à liberdade de ação. Os argumentos

sobre a razoabilidade, a utilidade e a necessidade da lei pressupõem essa ideia de

violação à liberdade, mas defendem ou atacam tal violação conforme os prejuízos

trazidos a alguns cidadãos pela nova determinação legal sejam compensados ou

não pelos benefícios advindos para a coletividade. Em geral, ignora-se que a

promulgação de uma lei pelo Poder Legislativo, por si só, não restringe a liberdade

das pessoas, uma vez que não existe um direito de liberdade a priori.

Para tanto, adota-se como marco teórico da investigação a afirmação de

Dworkin (2007, p. 411) de que é “absurdo” supor a existência de “[...] qualquer

direito geral à liberdade [...]” do modo como ela “[...] tem sido tradicionalmente

concebida por seus defensores [...]”: como a ausência de restrições impostas “[...]

ao que um homem poderia fazer, caso desejasse [...]”. O autor propõe duas

concepções para o termo liberdade: a licença, que diz respeito ao “[...] grau em que

uma pessoa está livre das restrições sociais ou jurídicas para fazer o que tenha

vontade [...]”; e a independência, que se refere ao “[...] status de uma pessoa como

independente e igual e não como subserviente.” (DWORKIN, 2007, p. 404).

Uma vez que “Toda lei prescritiva diminui uma liberdade como licença,

antes disponível para os cidadãos [...]” (DWORKIN, 2007, p. 405), admitir que o

sistema jurídico garante essa liberdade a priori leva ao paradoxo de que nenhuma

liberdade é garantida, pois a própria existência do Direito, e dos direitos e deveres

individuais que o compõem, nega a possibilidade de os indivíduos agirem com

licenciosidade. A liberdade juridicamente reconhecida é, portanto, aquela

entendida como o direito de independência (ou não submissão). Nesse sentido,

nem todas as leis proibitivas ameaçam a liberdade individual. Ao contrário, grande

parte delas é necessária para protegê-la. Só violam a liberdade aqueles atos

legislativos que desrespeitam o direito dos indivíduos de serem tratados com igual

consideração, o que ocorre em “[...] situações nas quais os homens fossem [são]

impedidos de fazer alguma coisa que [...] devem [poder] fazer” (DWORKIN, 2007, p.

412), ou seja, nos casos de restrições “[...] a atos particulares considerados

Page 233: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

233

especialmente importantes [...]” (DWORKIN, 2007, p. 277), como as liberdades

fundamentais.

Decorrem dessa concepção de liberdade, que tem raízes em Montesquieu

(1979) e Constant (1985), conclusões substancialmente diferentes daquelas que se

podem obter a partir da conhecida distinção de Isaiah Berlin (2002) entre a

liberdade negativa (o agir sem sofrer limitações de terceiros) e a positiva (o

governar a si mesmo). Dworkin (2007) concilia a liberdade com as restrições

impostas pela lei. Ele permite entender que toda prescrição coletiva constrange a

vontade dos indivíduos sobre os quais incide, sem que por isso eles se tornem

necessariamente menos livres.

Considerando essa doutrina e a situação-problema anteriormente

identificada, a hipótese deste trabalho é que as restrições impostas por uma lei ao

suposto direito de os indivíduos agirem de modo licencioso não são contrárias ao

Direito, já que a liberdade como licença não é juridicamente tutelada. As restrições,

no entanto, podem constituir ameaças à liberdade entendida como independência

– e nesse caso são antijurídicas –, mas apenas quando a prescrição legal ofende

liberdades específicas dos cidadãos, constitucionalmente asseguradas. Só nessas

hipóteses de ofensa real a direitos, há que se cogitar da razoabilidade, da utilidade

e da necessidade de uma lei, pois os juristas que admitem esses mecanismos de

ponderação – e nem todos os admitem – condicionam a possibilidade de

sopesamento, por óbvio, à existência de dois princípios ou direitos opostos a

sopesar (BARROSO, 2008). Se não há uma liberdade ameaçada, não pode haver

ameaça a ser ponderada.

No caso da Lei Seca, portanto, não têm razão aqueles que alegam que a

baixa concentração de alcoolemia exigida dos condutores pelo inciso III do art. 5º

da Lei 11.705/2008 (BRASIL, 2008b) e pelo Decreto 6.488/2008 (BRASIL, 2008a) é

desarrazoada, inútil e desnecessária. Os argumentos nesse sentido erram, na

medida em que pressupõem a existência de um conflito entre as novas proibições

legais e o direito de liberdade como licença – direito que, na verdade, não existe.

Page 234: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

234

Nem há que se falar em ameaça à liberdade como independência em

função de uma suposta limitação imposta pelo inciso III do art. 5º da Lei

11.705/2008 (BRASIL, 2008b) a direitos fundamentais, como a liberdade de ir e vir.

Ninguém possui o direito de dirigir depois de consumir bebidas alcoólicas, e o

Estado está autorizado a exigir dos condutores habilitados o cumprimento de

certas condições para manter a habilitação. Ressalte-se, por fim, decorrer dessa

mesma autorização que o Poder Público não só pode como deve coibir os

conhecidos e elevados índices brasileiros de acidentes de trânsito causados por

motoristas alcoolizados – uma vez que esses acidentes, sim, ameaçam liberdades

fundamentais ou causam danos a direitos constitucionalmente assegurados, como

a vida, a incolumidade física e a propriedade dos demais cidadãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE NETO, João. Liberdade e segurança: um conflito entre direitos

fundamentais? Anais: artigos completos/I Congresso da Associação Mineira de Pós-

Graduandos em Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2010.

BARROSO, Luís Roberto. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos

fundamentais e relações privadas. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: Estudos sobre a humanidade: uma

antologia de ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997.

Brasília, DF, Diário Oficial da União, 24 set. 1997, p. 21201.

Page 235: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

235

BRASIL. União. Decreto 6.488, de 19 de junho de 2008. Brasília, DF, Diário Oficial da

União, 20 jun. 2008a, p. 6.

BRASIL. Lei 11.705, de 19 de junho de 2008. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 20

jun. 2008b, p. 1.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4103.

Relator: Ministro Luiz Fux. Requerente: Associação Brasileira de Restaurantes e

Empresas de Entretenimento - Abrasel Nacional. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=410

3&classe=ADI&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>.

Acesso em: 4 nov. 2011.

CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In:

Revista Filosofia Política, n. 2. Porto Alegre: L&PM, 1985.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 2. ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2007.

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously: with a new appendix, a response to

critics. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978.

HÖFFE, Otfried. Justiça Política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e

do estado. Tradução de Emildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la. Do espírito das leis.

Introdução e notas de Gonzague Truc; tradução de Fernando Henrique Cardoso e

Leôncio Martins Rodrigues. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. col. Os

Pensadores.

Page 236: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

236

UM OLHAR SOBRE A CRISE NO ENSINO JURÍDICO:

HERÁCLITO DE ÉFESO E A INDISSOCIABILIDADE DO

ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO NOS CURSOS

JURÍDICOS

Sandrelise Gonçalves Chaves1

Palavras-chave: Heráclito de Éfeso; Indissociabilidade do

ensino/pesquisa/extensão; Cursos jurídicos.

Durante uma recente apresentação dos seminários na disciplina “Hegel,

Nietzsche e Heidegger – Leituras Pré-socráticas”2 3, em que foi apresentado o texto

de Heráclito de Éfeso constante da obra “Os Pré-socráticos” de José Cavalcante de

Souza (1978), surgiu a ideia de relacionar os pensamentos do filósofo originário

com a questão atual da educação jurídica no país.

1 Graduada em Direito pela FEAD. Especializada em Consultoria Jurídica Empresarial pelo PRAETORIUM. Mestranda em Direito e Justiça no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Linha de Pesquisa: Direito, Razão e História. Projeto de Pesquisa: Hermenêutica como Instrumento de Realização da Justiça, sob orientação do Professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos. Advogada. E-mail: [email protected]. 2 Seminário apresentado no dia 26/10/2011. 3 Disciplina ministrada pelo professor Doutor Andityas Soares de Moura Costa Matos.

Page 237: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

237

Este resumo pretende apresentar o início da pesquisa com vistas a um

artigo, e até parte da Dissertação de Mestrado, que tem como tema principal a

crise na educação jurídica brasileira. A análise pretendida neste resumo,

entretanto, é voltada, especificamente, para a dissociação entre ensino, pesquisa e

extensão – funções básicas e essenciais à vivência universitária – numa perspectiva

hermenêutica, valendo-se dos fragmentos de Heráclito de Éfeso, comentados por

Hegel. Nesse momento é importante esclarecer que há também comentários sobre

Heráclito advindos de outros autores, como Nietzsche e Heidegger, contudo, para

este resumo, dada a limitação a ele inerente, a análise ficará adstrita aos

comentários de Hegel.

O maior desafio nessa pesquisa é saber como articular, por meio do

pensamento heraclitiano, os três vieses da educação (ensino/pesquisa/extensão),

que, na prática, encontram-se desvinculados, como ressalta Hupffer4 ao dizer que

“sua operacionalização converte-se no maior desafio do ensino no século XXI,

exigindo esforço para ultrapassar as fronteiras da sala de aula e, assim, construir

um currículo vivenciado.”.

Sobre a crise no ensino jurídico, Matos (2010), ao fazer uma leitura da

obra de Rodrigues (2005), ressalta que não se trata de uma crise, mas várias crises

jurídicas sendo as principais para esse estudo, as crises “crise didático-pedagógica”

na qual se estabelece a diferença entre o acúmulo de conhecimento e o real

aprendizado e a “crise curricular” já que as instituições de ensino buscam cumprir

apenas o mínimo necessário para o funcionamento. Nessas duas crises, revela-se a

ausência da pesquisa e da extensão e, também, da interdisciplinaridade que

possibilitaria aos estudantes uma visão mais abrangente do Direito.

E, tendo em vista o diálogo proposto como tema, cabe saber como as

ideias de Heráclito de Éfeso podem contribuir para o problema da ausência de

articulação entre ensino, pesquisa e extensão nos cursos jurídicos.

4 HUPPFER, 2006, p. 290.

Page 238: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

238

Pretende-se demonstrar como filósofo Heráclito de Éfeso pode contribuir

para a melhoria da educação jurídica no Brasil, resgatando a necessidade de se

articular as funções básicas do ensino superior, fazendo com que os bacharéis em

Direito se conscientizem acerca da função social do curso jurídico.

Para tanto, é necessário: a) investigar os problemas relacionados a

massificação do ensino jurídico, principalmente a dissociação do

ensino/pesquisa/extensão; b) buscar os fragmentos de Heráclito com vistas ao

enfrentamento do tema; c) propor uma correlação dos temas, do ponto de vista

hermenêutico; e d) contribuir, por meio do estudo, para uma visão inovadora e

(re)estruturadora do ensino jurídico no país.

Para a elaboração de trabalhos científicos na grande área da Filosofia do

Direito, mais especificamente na Hermenêutica Jurídica, é apropriado o uso de

métodos analítico-descritivo – para uma abordagem teórico-reflexiva sobre a

educação no país –, jurídico-dialético – valorizando a interpretação – e jurídico-

teórico – para acentuar os aspectos conceituais, ideológicos e doutrinários do

campo que se pretende investigar.

Sendo assim, revelar-se-ão os sentidos conceituais, ideológicos e

doutrinários das contribuições feitas por Heráclito e os autores que se propuseram

a estudar o dito filósofo.

São, pois, justamente essas vertentes que orientam a criação de um

sistema teórico-metodológico que permita olhar/analisar o objeto (crises do ensino

jurídico), propondo-lhe, no entanto, soluções possíveis.

E, para ordenar as informações, o raciocínio, que aqui será o indutivo-

dedutivo, uma vez que ambos se complementam e, se vistos isoladamente, podem

prejudicar no desenvolvimento do tema.

Page 239: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

239

Heráclito de Éfeso é considerado um dos pensadores pré-socráticos de

maior relevância, por tratar “com vigor o problema da unidade permanente do ser

diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias”.5

Em síntese, depreendem-se dos fragmentos do filósofo originário as

seguintes afirmações: a) existência de uma unidade fundamental em todas as

coisas; b) que todas as coisas estão em movimento. Obviamente, há outras

afirmativas que podem ser retiradas dos fragmentos, mas essas duas importam,

por hora, ao presente estudo.

Hegel6, ao comentar os fragmentos, ressalta que Heráclito foi o primeiro a

trazer para o pensamento filosófico a metafísica especulativa, com vistas a

conhecer toda a realidade.

Dessa visão faz-se necessário pensar que o conhecimento da realidade

como um todo não é possível através do conhecimento fragmentado. Nesse

mesmo sentido, Matos7 comenta a perspectiva humana de tudo dividir sendo que

“o grande desafio que nos impõe quando tentamos entender a origem de tudo

reside em uma limitação demasiado humana: nossa visão bipolar da realidade, sem

a qual não conseguimos organizar minimamente a vida”.

Para Heráclito – de acordo com a citação do Sexto Empírico8 – “A parte é

algo diferente do todo; mas é também o mesmo que o todo é; a substância é o

todo e a parte”. Nesse ponto, cabe o questionamento motivador da

pesquisa: como o pensamento heraclitiano de processo/movimento, pode

contribuir para a articulação do ensino, da pesquisa e da extensão nos cursos

jurídicos?

5 SOUZA, 1978, p.73. 6 SOUZA, 1978, p. 92. 7 MATOS, 2011, p. 100. 8 SOUZA, 1978, p. 94.

Page 240: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

240

O movimento é como princípio da natureza segundo o qual “Tudo flui

(panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo”9. Fazendo uma ligação ao

conhecimento que deveria ser produzido nos cursos de graduação em Direito, esse

também está (deveria estar) em constante movimento.

Contudo, com o aumento descompassado de cursos jurídicos no Brasil10

com vistas ao quantitativo (quantidade de alunos, arrecadação de valores pelas

instituições de ensino superior privadas etc.), a qualidade da educação jurídica vem

sofrendo com a (re)produção de conhecimento sem qualquer conteúdo reflexivo

ou crítico, contrapondo-se a qualidade que era almejada por Heráclito.11

Tais habilidades (capacidade de reflexão12

e crítica) podem e devem ser

trabalhadas mediante a articulação daquilo que se aprende em sala (ensino), com o

aprimoramento através da pesquisa e com a exteriorização que se dá através da

extensão.

Nesse movimento, é possível a apreensão da realidade pelos alunos dos

cursos de graduação em Direito, permitindo-os o aprendizado capaz de torná-los

aptos a efetivamente produzir conhecimentos que vise à melhoria dos espaços nos

quais eles se inserem. Entretanto, não é ocorre pela “maioria esmagadora dos

cursos de Graduação em Direito”13

que se dedicam apenas ao ensino (o que

também é questionável).

Esse deveria ser o objetivo de todo e qualquer curso de graduação:

aprimoramento de conhecimento para a melhoria da vida. E, sobretudo, deve ser o

objetivo das graduações em Direito, pois “o Direito oferece a seus cultores uma

formação humanística rigorosa, disponibilizando-lhes conhecimentos básicos sobre

9 SOUZA, 1978, p. 92. 10 Do site da OAB colhe-se a informação atualizada de que “existem hoje nada menos que 1.174 cursos de direito em todos os estados – um aumento de 612% em relação aos 165 credenciados em 1991” (OAB, 2011). 11 “Um para mim vale mil, se for o melhor” (DK 22 A 49) 12 “Heráclito afirma que o universo é gerado não segundo o tempo, mas segundo a reflexão” (DK 22 A 5) 13 MATOS, 2007, p.119

Page 241: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

241

o mundo em que vivemos”14

e dali advém (ou deveria advir) os egressos capazes de

lutar pela Justiça – fim maior do Direito.

A articulação do tripé (ensino/pesquisa/extensão) se dá a partir do

momento que o ensino em sala de aula, gera as dúvidas que motivam a pesquisa,

pesquisa essa que será experimentada muitas vezes através da extensão que

novamente gerará conhecimentos para troca de experiências em sala de aula,

tornando-se um ciclo. É nessa contraposição que se dá o conhecimento da

realidade.

E aqui, retomando o pensamento de Heráclito que proporcionou essa

reflexão, os homens se tornam descompassados (axýnetoi)15

em relação a verdade

quando se atêm as coisas de forma particular. Ou seja: o conhecimento da

realidade se dá com a compreensão da oposição dos contrários e das partes como

um todo. Assim entendeu Hegel quando afirma que “os homens acham em geral

que quando devem pensar algo, isto teria que ser alguma coisa singular; isto é a

ilusão” 16

.

À luz de tais considerações, pode-se pensar que a dissociação do ensino,

da pesquisa e da extensão não permite ao indivíduo o conhecimento da realidade.

De outro ângulo, se articulados, colocados em contraposição, permitem a

verdadeira educação jurídica, pois isso levaria ao Lógos, visto aqui como “essa coisa

que é e não é, mas se torna, movendo-se da passagem do Ser para o não-Ser,

perceptível apenas no fluir”17

.

Há cerca de quinhentos anos antes de Cristo, o filósofo tido como

“Obscuro” apresentou suas reflexões sobre o mundo. Seus fragmentos,

atravessando os longos mais de dois mil e quinhentos anos, lido e relido por outros

14 MATOS, 2007, p. 39. 15 “Destes logos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir que tão logo tenham ouvido; (...)” (DK 22 B 1). 16 SOUZA, 1978, p. 102. 17 MATOS, 2011, p.96.

Page 242: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

242

autores, ainda permite o repensar sobre a contemporaneidade, sendo um

“passado-sempre-presente”18

. As lições de Heráclito sobre o mundo como um

constante processo de transformação, propõe um pensar sobre a fragmentação o

conhecimento que temos hoje nos cursos jurídicos.

Dessa forma, o que se pode concluir a partir das contribuições do filósofo

originário é que somente o na luta dos contrários19

, nasce a harmonia20

, ou seja: na

articulação das funções básicas da universidade, se dá a verdadeira educação

jurídica.

Sendo assim, sem qualquer pretensão conclusiva, já que esse é apenas o

começo de uma pesquisa (de um pensamento), vale reafirmar, nas palavras de

Hegel, esse citando Sócrates, que “aquilo que nos foi transmitido de Heráclito valeu

sua conservação”21

e nos convida à reflexão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HUPFFER, Haide Maria. Educação jurídica e hermenêutica filosófica. Tese –

doutorado – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação

em Direito, Orientação Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, Ciências Jurídicas, 2006, 381p.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Direito: perguntas e respostas: questões

teóricas, acadêmicas e ético-profissionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

18 MATOS, 2011, p. 96. 19 “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei (...)” (DK 22 B 53) 20 “ (...) o contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia” (DK 22 B 8) 21 SOUZA, 1978, p.102

Page 243: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

243

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. “É mesmo o ser e o pensar”: notas sobre

realidade e linguagem no pensamento grego originário. Revista Ética e Filosofia

Política, n° 14, volume 2, Outubro de 2011, p. 87-102.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Massificação e crise no ensino jurídico.

In: GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; LIMA, Paula Gabriela Mendes (Coord.)

Pedagogia da Emancipação: desafios e perspectivas para o ensino das ciências

sociais aplicadas no século XXI. Belo Horizonte, Fórum, 2010, 263p, p. 83-110.

OAB. Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Disponível em

<http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=22173> Acesso em 31 de julho 2011.

SOUZA, José Cavalcante de (org.) Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e

comentários. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Page 244: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

244

ÍNDICE REMISSIVO

Alteridade, 84

Amizade, 84

Anaxágoras, 146, 147, 148, 149

Animais, 29, 33

Aplicação judicial eficiente, 161

Aproximações sucessivas, 145

Argumentação jurídica, 114

Arte, 205, 206, 207

Atienza, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 62,

109, 118

Atienza, Manuel, 47

Autonomia, 128

Autopoiese, 133

Biopolítica, 72, 152

Ciência do Direito, 198, 199, 200,

201, 202, 203, 204

Ciências da mente, 42

Ciências sociais aplicadas, 42

Cinismo, 72, 73, 78

Cláusulas Gerais, 161

Coerência, 114

Comportamento ético, 42

Comportamento normativo, 42

Conciliação, 10

Conflito, 84

Conflito de direitos fundamentais,

231

Constitucionalismo, 121, 150, 173

Constitucionalismo discursivo, 145

Constituição, 22, 34, 35, 36, 37,

38, 39, 41, 55, 56, 62, 64, 114,

122, 173, 174

Contraditório, 90

Crise democrática, 17

Page 245: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

245

Crítica, 22, 28, 72, 173, 174

Cursos jurídicos, 238

Custo-benefício, 161

Decisão judicial, 219

Democracia, 17, 22, 23, 24, 28, 84

Democracia deliberativa, 23

Democracia representativa, 17

Desobediência Civil, 121

Dignidade, 128

Direito e democracia, 17

Direito e Democracia, 28, 34, 40,

173

Direito Novo, 152

Direito Objetivo, 198

Direito Romano, 175, 180, 181

Direitos do homem, 72

Direitos Fundamentais, 35, 121,

231

Educação, 90, 138, 143, 244

Escravidão, 90, 101

Essencialismo, 79

Estado de Exceção, 152

Evolução do Estado, 121

Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, 62,

183, 184, 185, 186, 187, 188

Filosofia da História do Direito,

175

Filosofia do Direito, 33, 46, 55, 65,

66, 72, 84, 90, 121, 126, 145,

160, 173, 175, 183, 190, 203,

224, 226, 228, 240

Filosofia do Estado, 190

Formação do pensamento jurídico

ocidental, 175

Governabilidade, 23

Governança social, 23, 28

Heráclito, 92, 98, 99, 238, 239,

240, 241, 242, 243, 244

Page 246: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

246

Hermenêutica, 54, 55, 59, 90, 231,

238, 240

Hermenêutica Filosófica, 54, 55

Hermenêutica jurídica, 183

História Efeitual, 34, 38, 39

Idade Média, 175, 177, 180, 181,

182

Identidade, 34

Igualdade, 15, 40, 128, 129

Imaginação, 219

Impiedade, 145

Independência, 126, 231

Indissociabilidade do

ensino/pesquisa/extensão, 238

Integridade, 114

Jurisdição Constitucional, 54

Justiça, 12, 23, 55, 121, 133, 160,

198, 226, 230, 237, 238, 243

Kant, Immanuel, 43, 74, 131, 138,

139, 140, 141, 142, 143, 144,

222

Kelsen, Hans, 61, 62, 133, 134,

136, 137, 173, 183, 184, 185,

186, 187, 188, 209

Legitimidade, 10, 17

Lei, 20, 22, 55, 56, 57, 64, 145,

193, 226, 232, 233, 235, 236,

237

Lei da inércia, 145

Liberdade, 15, 138, 231, 236

Licença, 231

Linguagem, 113, 183

Lógica, 90

Metodologia Jurídica Pluralista,

152

Miguel Reale, 65, 66, 70, 71

Moldura kelseniana, 60

Momentos do Direito, 60

Moral, 28, 79, 138, 143, 144, 150

Moralidade, 212

Natureza humana, 42

Page 247: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

247

Nomos, 190, 191, 192, 193, 194,

195

Norma jurídica, 183

Nova Retórica, 47, 48

Ordem Concreta, 190

patriotismo constitucional, 35, 36

Perelman, 47, 48, 49, 50, 51, 52,

53

Perelman, Chaïm, 47

Physis, 190, 191, 192, 194, 195

Platão, 94, 95, 129, 193, 202, 226,

228, 230

Poder, 15, 22, 38, 54, 56, 57, 122,

212, 231, 232, 234, 236

Política, 54, 84, 98, 168, 173, 190,

191, 195, 237, 245

Ponderação, 231

Pós-guerra, 205

Precisão, 161

Presunção, 219

princípios, 25, 27, 29, 44, 77, 95,

116, 117, 118, 119, 128, 138,

140, 141, 154, 222, 227, 233,

235

Prisão em flagrante, 219

Processo, 10, 221, 222, 224, 225

Quadratura do círculo, 145

Racionalidade, 205

Razão, 79, 238

Reconhecimento, 10, 34

Regras, 161, 163

Relativismo, 133

Representatividade, 23

Schmitt, Carl, 84, 190

senciência, 30, 31

Sentenças Aditivas, 54

Shakespeare, William, 212, 213,

214, 215, 217, 218

Page 248: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

248

Singularidade universal, 152

Síntese dos opostos, 90

Sócrates, 43, 93, 94, 95, 96, 193,

226, 227, 228, 229, 244

Sorteio, 17

Standards, 161, 164, 167

Sujeito Constitucional, 34

Suprassunção, 60

Teoria da argumentação, 60

Teoria da Argumentação, 47, 133,

224

Teoria da Justiça, 212

Teoria do Direito, 34, 90, 138, 168

Teoria Tridimensional do Direito,

65, 66, 68, 71

Teubner, Günther, 133, 134, 135,

136, 137

Tragédia, 212

Utilitarismo, 29

Vagueza, 161

Verdade, 40, 59, 198

Page 249: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

249

ÍNDICE DE AUTORES

Alessandra Margotti dos Santos Pereira ............................................ 17

Alexandre Araújo Costa ...................................................................... 54

Ana Clara Matias Brasileiro .............................................................. 219

Andityas Soares de Moura Costa Matos .................................. 121, 238

André Almeida Villani ....................................................................... 183

Ariane Shermam Morais Vieira .......................................................... 10

Arnaldo Afonso Barbosa ................................................................... 198

Brahwlio Soares de Moura Ribeiro Mendes ..................................... 133

Bruno Meneses Lorenzetto ................................................................ 84

Clara Souza Garcia Saar .................................................................... 219

Cláudia Rosane Roesler .................................................................... 114

Cristiano Soares Barroso Maia ........................................................... 54

Daniel Carvalho Ferreira ................................................................... 168

Eder Fernandes Santana ............................................................. 72, 152

Eduarda Cellis da Silva Campos .......................................................... 29

Page 250: Anais Da Jornada Completo

Belo Horizonte, 24 a 26 de novembro de 2011.

250

Flávia Siqueira Costa Pereira .............................................................. 34

Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega .......................................... 161

Freitrich Augusto Ribeiro Heidenreich ......................................... 17, 23

Gabriel Lago de Sousa Barroso ......................................................... 190

Igor Alves Noberto Soares .................................................................. 65

João Andrade Neto ........................................................................... 231

Joyce Karine de Sá Souza .................................................................. 121

Katya Kozicki ....................................................................................... 84

Lara Marina Ferreira ......................................................................... 168

Letícia Alonso do Espírito Santo ....................................................... 128

Loisima B. B. M. Schiess ................................................................... 145

Lossian B. B. Miranda ....................................................................... 145

Lucas Macedo Salgado Gomes de Carvalho ..................................... 226

Luiz Augusto Lima de Ávila ................................................................. 90

Marcelo Campos Galuppo .............................................. 17, 23, 34, 219

Marcelo Corrêa Giacomini.................................................................. 79

Marco Antônio Sousa Alves ................................................................ 47

Maria Fernanda Salcedo Repolês ..................................................... 168

Page 251: Anais Da Jornada Completo

Anais da V Jornada Brasileira de Filosofia do

Direito

251

Pâmela de Rezende Côrtes ................................................................. 42

Philippe Oliveira de Almeida ............................................................ 175

Ricardo Antonio Rezende de Jesus ................................................... 114

Rodrigo A. Suzuki D. Cintra ............................................................... 212

Rosana Ribeiro Felisberto ................................................................... 10

Sandrelise Gonçalves Chaves ........................................................... 238

Thiago Álvares Feital ......................................................................... 205

Victor Freitas Lopes Nunes ................................................................. 60

Victor Hugo Criscuolo Boson ............................................................ 205

Vinícius Silva Bonfim .......................................................................... 34

Vítor Amaral Medrado........................................................................ 34

Vìtor Amaral Medrado ..................................................................... 138