Ana Cristina Cesar e Alejandra Pizarnik

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    Literaturas hispnicas

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    ENTREAVIDNCIAEAMOARTES

    A n a C r i s t i n a C e s a r e A l e j a n d r a P i z a rA n a C r i s t i n a C e s a r e A l e j a n d r a P i z a rA n a C r i s t i n a C e s a r e A l e j a n d r a P i z a rA n a C r i s t i n a C e s a r e A l e j a n d r a P i z a rA n a C r i s t i n a C e s a r e A l e j a n d r a P i z a rn i kn i kn i kn i kn i k

    Graciela RavettiUFMG/CNPq

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OEstabelece-se aqui uma interlocuo entre duas poetas:Alejandra Pizarnik e Ana Cristina Cesar, evitando acumularinterpretaes que se explicitem com um tipo de raciocnio ede fora analtica que sutura inconsistncias. Considero odiscurso dilacerado e pouco confivel das poetas mediante duasimagens: a mo trabalhadora da artes e a viso inspirada.

    Interessa verificar se conseguem nomear forte, sem cair nosentimentalismo nem na facilidade, exercendo a contento afuno catacrsica da literatura. Mo artes, vidncia e amemria que se confunde com a saudade de um ser infante,presente na subjetividade e perdido para a experincia.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V EAmrica Latina. Poesia. Literatura contempornea.

    Alejandra Pizarnik. Ana Cristina Cesar.

    IIIII

    Vou comear usando duas metforas, a da vidncia e a da mo artes. O poetaorganiza sua via, ao que parece, guiado por um acurado faro que lhe serve para reter apassagem fugidia dos fenmenos e das experincias vitais e, em movimento simultneoou posterior, transform-los em palavras. Essa organizao e reteno o que eu gostariade comparar com o que do arteso. Do trabalho artesanal, que no pintor passa peloestudo das formas da natureza, da geometria, das circunvolues do espao material e,em paralelo, da submisso s habilidades tradicionais da arte que pratica, no caso do

    poeta, o labor consiste no esforo por adquirir o domnio da linguagem potica da tradioe no estudo das formas que lhe permitam aprisionar os fenmenos e as experincias erevel-las mediante a linguagem. Portanto, ele ocupa o lugar do arteso e tambm o dofalcoeiro que pode ou no manter o controle sobre o falco, dependendo de sua percia. 1

    1Rodando e rodando no giro que se alarga/O falco j no ouve o falcoeiro;/ As coisas se desfazem, ocentro j no sustm. Fragmento do poema A segunda vinda, de William Butler Yeats, originalmentepublicado em The Dial, em novembro de 1920.

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    O artista transforma o que foi experincia em obra sempre que ele tenha o poder dedomnio dos materiais que faro possvel essa empreitada.

    Ele pode, ainda, partilhar de uma disseminada crena na funo cognitiva daliteratura em geral e da poesia em particular, crena especialmente popular durante osculo XX e que direcionou grande parte da batalha experimentalista. A poesia damodernidade, desde o romantismo, alm de se propor como uma ferramenta duvidosa e

    evidentemente insuficiente para alcanar o conhecimento, carrega uma plasmao dassaudades da completude e seduz como arena de uma mstica da experincia de plenitudena qual os temas e os tropos ausncia e vazio tm papel protagnico. o que Foucaulteternizou com aquela clebre frase: A fico consiste no em fazer ver o invisvel masem fazer ver at que ponto invsivel a invisibilidade do visvel. 2 Isso tem a ver comum dficit da linguagem que o poeta descobre pronto em sua vida de arteso da palavra.Sem poder dar conta do mundo, a linguagem comparece voltada para si mesma, reagindo incapacidade de dar expresso totalidade e se oferece, humildemente, como incioe chancela da prpria existncia, como prova de umplus de humanidade. A mera palavra,a palavra encantada e recortada do fluxo do discurso, a palavra sem iluses de dar

    conta de mimeses de origem mas que se desvia em um vislumbre de futuro. Palavra que,como diz Alejandra Pizarnik, produziu espanto em Artaud quando o poeta percebeu aimpossibilidade de sentir o ritmo do prprio pensamento ou o da vida da linguagem humana.

    Assim se cruzam as duas metforas: o arteso e o vidente, que acabam produzindoum monstro que contm as duas energias e os dois vetores, o poeta. Pela vidncia, apoesia aquele discurso entre o necessrio e o utpico, entre o hermtico e o banal,mais prximo da fala da loucura que do saber racional, feito saber clandestino e semlugar de legitimao. No se pode exigir do visionrio que ele produza uma obra daqualidade do arteso, porm a poesia moderna tentou acercar as duas linhas, ainda quese constituindo em permanente paradoxo. Porm, acontece que, no caso do poeta, muitas

    vezes a crtica pretende domesticar esses contrastes, sem entender que so a prpriarazo de ser da poesia. Veja-se, se no, o intercmbio de ideias entre Foucault e Magrittesobre as condies de teorizao da arte do sculo XX e da arte como um todo.

    Contudo, o que o poeta faz recolher e encaminhar aquilo que vem dasprofundezas da natureza, das cavidades da experincia de subjetividade, da fora dalinguagem vista em si mesma como energia inexplicvel por sua origem e, finalmente,do conhecimento e domnio das formas poticas tradicionais.

    I II II II II I

    Outra imagem para pensar o poeta moderno e nossas duas poetas: em meados dadcada de 1980 do sculo passado, Juan Jos Saer, escritor argentino radicado na Frana,publicou o romance A ocasio. No captulo quarto, conta-se a histria de Waldo, ummenino que, depois de um trauma, se torna ao mesmo tempo mudo temporrio eenunciador de um discurso hermtico, que emana dele com a dico da poesia

    2FOUCAULT. O pensamento do exterior, p. 30.

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    gauchesca, de cunho popular, em versos octosslabos, e, alm disso, o rapaz possui acondio de orculo. Esse episdio aparece como um extravio digressivo que acompanhao arco temtico do romance: a barbrie e a ignorncia visitada pelos positivistas. Ahistria de Waldo produz um efeito perturbador em dupla chave: por um lado, pareceuma digresso incompreensvel; por outro, cria um contraponto farsesco com a histriatanto dos positivistas como de seus inimigos, capaz de evidenciar uma constelao de

    motivos que se apresentam ao leitor como imagem fugaz de uma possvel figura misteriosa,que na obra de Saer no se explicita.

    O comentrio acima j traz consigo parte dos problemas que abordarei nestetrabalho. Na dramatizao tensa de Saer, o poeta e o visionrio se renem na figuradeforme e medonha de Waldo, pattica e monstruosa. Pardia macabra da figura dopoeta? Ou, pelo menos, a do intelectual?

    O que quero recortar uma cena tipicamente forjada por uma imaginao poticoterica, como a de Saer, com uma considervel carga de dramaticidade, que podesustentar e comunicar a pertinncia de se sondar o nexo entre a loucura monstruosae incompreensvel, ao mesmo tempo enunciadora de um discurso a todas luzes

    inarticulado e desregrado (para introduzir o Rimbaud de Carta vidente) (e destacandoque esse inarticulado na verdade se expressa em octosslabos, conhecimento da tradio)e a clarividncia, que justifica a demanda desesperada e tumultuada do pblico, que sesubmete a tudo para receber a palavra. Com bastante reserva sobre aquilo que a estsubentendido, e que tende a chocar-se frontalmente com a imagem mitificada quepermanece, pstuma e radiante, dos poetas que, como Waldo, na verdade convivemcom uma imagem muito menos prxima da irradiao magnfica da poesia e mais deuma potncia malvola ou, melhor, molesta e incongruente, impossvel de classificar.

    Logo aps ter-se instalado em Ocidente, o que Foucault designa como a epistemeclssica (sculos XVII e XVIII), que impe uma proliferante dinmica de ordenamento,

    baseada em sistemas de nomeao e de classificao do mundo, surge um tipo de romancede aprendizado ou formao (Bildungsroman) e um tipo de poesia, bastante praticadapor mulheres, ainda que no s por elas, que encena as tenses entre o indivduo e anatureza3 no sentido de aprendizado de vida e seu correspondente testemunho. Asderrotas, os declnios, as pobres e minguadas conquistas e, em todos os casos, ocupamnesse tipo de literatura os percursos de aprendizado para a vida e para a arte e o contnuodigladiar-se com as misrias epistemolgicas. No raro, os sujeitos ficcionais dessesaprendizados so artistas. O retrato do artista quando jovem (Joyce parodia), o dirioda poeta quando menina (Helena Morley), o poema do escritor ainda adolescente(Rimbaud, Lautramont)... S para referenciar com Foucault, estas inflexes poticasgirariam cegamente em torno ao que deve permanecer invisvel mas ser enxergado como tal.

    Abro aqui a interlocuo entre as duas poetas, modernas e perifricas, secontrastadas com os modelos que elas mesmas escolheram. Alejandra Pizarnik (BuenosAires, 1936-1972) e Ana Cristina Cesar (Rio de Janeiro, 1952-1983). A coerncia ouno da escolha dos textos est somente, ainda que eu ache decisiva, no ato performtico

    3Indivduo, tal como utilizado aqui, implica necessariamente as noes de sociedade, comunidade epertencimento poltico.

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    que tenta se incorporar a outras escritas cujas intensidades se entrecruzam, (as poetasentre si e eu com elas), interessada como estou menos em acumular interpretaes quese explicitem com um tipo de raciocnio seca-lacunas, atos da fora analtica, e mais emsimplesmente considerar o discurso-dilacerado e pouco confivel da poesia de ambas,uma escrita que se deixa minar por suas prprias aporias. A mo trabalhadora da artescaprichosa e a viso fantasmagrica da lrica inspirada so duas inflexes iniciais.

    No h como estabelecer um vis sincrnico estrito entre elas. Outra tentao:opor, para juntar, afinidades com o movimento beatnike as iluminaes de um Rimbaud,a escrita automtica de um surrealismo j extinto embora vigente como espectro, entreas demandas acadmicas frustradas e frustrantes e a escrita em solido, a buscapermanente de um espao textual ambguo limitado pela autoreferncia, a postulaode uma (auto)biografia literria e a montagem de cenrios rituais de aprendizagem, deobservao, de realocao, de leituras, de morte, de cpia, de vinganas.

    As duas conseguem uma simpatia intensa de um tipo de leitor, especialmente dasleitoras, pela figurao reiterada de sentimentos facilmente compartilhados pela maioria,aspectos amplamente trabalhados pela poesia moderna. Com isso, somado s leituras

    crticas que se enredam com a obra em sucessivas ondas interpretativas geracionais,lana-se a rodar o novelo quase impossvel de desembaraar que muita crticaestereotipada alimenta, e se facilita a criao de potentes mitos pessoais que ressignificamo nome prprio, a obra e o devir incessante do corpo potico. As duas poetas tm emcomum a aura de mito pessoal a partir do poder convocatrio e autosugestivo dalinguagem que utilizam (a seduo), das leituras que foram feitas de sua obra ao longodo tempo (especialmente sobre as zonas de opacidade) e, por fim, da conscincia dacondio retrica da linguagem e do poder que esta detm sobre a realidade que elastransfiguram em seus textos porque a poesia corpo lingustico, espao de folha depapel, memria de milagre secreto, est no que se diz e no que no pode ser dito, no

    aqui que se desliza e no que fica.Mas o que importa, para mim, verificar se conseguem nomear forte, semescorregar no sentimentalismo, ou mais ainda, nomear forte para no cair nosentimentalismo nem na facilidade. A duas interessam pelo que escreveram e tambmpelo que deixaram de escrever, ainda que fique em evidncia perturbadora a carnciade autoridade social e intelectual das enunciadoras. Sobre os dilemas de autoridade,me refiro a que Alejandra foi apresentada ao mundo literrio por escritores consagradose prestigiosos, como Octavio Paz e Julio Cortzar, s para mencionar autores maisconhecidos no Brasil. Ana C. apareceu na famosa antologia organizada por HelosaBuarque de Hollanda, 26 poetas hoje, no grupo dos poetas considerados irredutveis amovimentos, junto com Geraldo Carneiro e Afonso Henriques Neto. Esses fatos nofazem outra coisa que avivar a questo do cnone, a vigncia e construo de umainstituio que d ou nega o espao de consagrao e, ainda mais, que proporciona oscaminhos da inteligibilidade. Se isto aqui poesia, da boa, porque assim que se l.

    Tanto uma como a outra foram importantes na vida intelectual de suas pocas ecomunidades; fascinadas pelas artes plsticas e elas mesmas autoras de desenhos; fizeramcom muita expectativa a viagem Europa (Londres, Ana; Paris, Alejandra); escreverammuita correspondncia, postais, mensagens e dirios (mutilados, cerceados pelos

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    consignatrios dos arquivos); dedicaram tempo e esforo a adquirir uma considervelbagagem de leituras; forjaram uma intimidade na escrita que no acho que se possachamar de confidencial; alimentaram amizades importantes para estabelecer dilogospoticos. No caso de Alejandra, Julio Cortzar, Antonio Porchia, Silvia Molloy, OctavioPaz y Olga Orozco. No de Ana Cristina, os poetas marginais, Cacaso, Helosa Buarquede Hollanda, Paulo Leminski, Armando Freitas, talo Moriconi.

    Os livros de poesia que Alejandra Pizarnik publica em vida so: La tierra msajena (1955), La ltima inocencia (1956), Las aventuras perdidas (1958), rbol de Diana(1952), Los trabajos y las noches (1965), Extraccin de la piedra de la locura (1968) e Elinfierno musical (1971). E o que foi publicado na Frana em peridicos literrios. Entre1960 e 1964 morou em Paris, perambulou por diversos trabalhos, passou fome. Dentreoutros, colaborou na revista Cuadernose fez bicos em editoras francesas, traduziu Artaud,Michaux, Aim Csaire e Yves Bonnefoy. Mario Roberto Pelic realizou uma interessanteAntologia e recopilao, disponvel em De la Red. Pela correspondncia de Alejandracom seus amigos, sobretudo durante os quatro anos que morou em Paris, possvelrastrear seus interesses tericos e crticos, seus prazeres poticos e suas intenes

    intelectuais.Ana Cristina Cesar comea a publicar poesias em peridicos em 1959; desenvolveum trabalho jornalstico, cultural, de agito estudantil, docente e de traduo (SilviaPlath, Emily Dickinson, Katherine Mansfield). Em 1979, publica Cenas de abril (poesia)e Correspondncia completa, no Rio de Janeiro. Na Inglaterra, Luvas de pelica (edio daautora, 1980), em 1982,A teus ps, que rene inditos e publicados (editora Brasiliense).Inditos e Dispersos um livro que rene trabalhos seus escritos entre 1961 e 1983.Deste ltimo houve, no final dos noventa, uma nova edio da editora tica e doInstituto Moreira Salles, acrescido de material iconogrfico.

    Todo e qualquer ato performtico-cultural tm um lastro espao-temporal que

    inexorvel ponto de suspenso da leitura, engasgamento do comentrio e, ainda mais,da interpretao. E o reconhecimento crtico que estas poetas tm recebido at agorano pode nos converter em refns de seus achados e derivaes. Com isso quero dizerque a utilizao aqui ou l dos poemas e dos insights crticos que elas suscitaram, nopor terem sido colocados como emblemas de certas interpretaes, devem considerar-sedecisivos e continuar passando adiante. Digamos que no descarto, mas quero ficarfora da interpretao feminista, da poltica, da institucional, da cannica, da marginal,da mstica e da existencialista, ainda que no perca de vista nenhum dos insightsconseguidos at agora. E sem invalidar os trabalhos realizados, includos a os meus deoutras datas, no se trata de sobrepor ou assimilar uma figura a outra. Sem negar que atentao forte: tentador pensar uma Alejandra Pizarnik como uma proto Ana C.,intervir para criar certas coincidncias no-essenciais das obras, supor uma Pizarniksobrevivendo em Ana C., medir a articulao da distncia entre uma e outra, relacionaro Paulo Leminski de uma ao Antonio Porchia da outra, a Silvia Plath e o Rimbaudcomum s duas e com ele um horizonte de poesia jovem para sempre... Em uma, Alejandra,no h grandes possibilidades de vestir a pele de uma fenomenloga materialista paraatrair mundo material nem de dar entrada, em sua poesia, aos materiais do momentoanterior poetizao. Pretender pegar a potica de Pizarnik parece levar a uma rua sem

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    sada: s referencialidade em dissoluo, um saltar de poesia em poesia, um deambularpor livros e papis, pela palavra j poetizada a polmica cratlica sempre candente ,a catacrese do tempo. Em Ana C., ao contrrio, difcil ignorar o apego materialistaporque parece que a prpria figurao a nasce e se desenvolve, no mistrio das coisas edas aes das pessoas comuns e seus atos banais. A certeza de uma, Alejandra, nospoderes da poesia, rompida sem consequncias graves a rede de interdependncias com

    o mundo prosaico, mantidas as fidelidades s poticas e s concepes artsticas,especialmente s pictricas da modernidade (a Klee, a Magritte); a certeza da outra,Ana C., na inviabilidade mesma da aspirao a qualquer base slida para a sobrevivnciada escrita. A morte na poesia e a morte da poesia, duas faces para refletir que apontampara o que, para muitos leitores, seria a maior epifania do sentido desta poesia, aquiloque lhe daria sua coerncia e ao mesmo tempo a instabilidade. As acerca tambm tudoaquilo que as aproxima da poesia escrita por mulheres segundo a maior parte da crticaque recebem, comumente fundamentada em intenes autobiogrficas declaradas muitasvezes por elas mesmas, o que autorizaria a relao direta do potico com a discriminao,a doena, anulando a incerteza constitutiva da poesia. Relao que muita crtica

    estabelece entre o texto e o contexto social e biogrfico, ainda reconhecendo que opoema, ou o ato de enunciao pode no contar com nem precisar da presenaplena do objeto a que alude. Que enfocam, que dizem, a que se refere a poesia destasduas poetas? Qual o objeto: a voz da conscincia? A conscincia de si como purapercepo sem objeto, a intimidade observada, desdobrada?

    O corpus escolhido mostra inflexes poticas diversas, mas que coincidem noimpulso que, por momentos, parece ser autobiogrfico e, em outros, envereda no esforopor gerar uma rea do imaginrio potico, na qual o no-dito (ainda), o no- representado(ainda) emerge e se deixa perceber. Est claro que iniciar, fundar caminhos para oimaginrio, significa tambm abrir a cultura como um todo para tentar outras vias de

    conhecimento. Pelo ritmo? Pela lngua que, muitas vezes, se volta infncia,laloc

    (comodiz Alejandra)? Pela extrema abstrao do pensamento que, na volta ao cho, encarnanos objetos comuns? Pelas lembranas do que no se pde registrar por no saber, porno poder, mas que esto a na invisibilidade do invisvel?

    A poesia ocupada pela encenao performtica e fictcia de uma histria de si,pelo biografismo que prolifera como testemunho e em intervalos de objetividade. Osespaos de inteligibilidade vestem-se da normalidade que os prprios ritos parodiam.Poder-se-ia perguntar, como hiptese: Os rituais de morte e as performances de suicdioseriam estratgias, ainda que em grande parte inconscientes, para furar a muralha dapouca legitimidade da escrita lrica feminina? O tom vingativo de muitas imprecaes comque as duas preenchem algumas de suas poesias seria tambm um achado nesse sentido?

    Pensar a funcionalidade potica do trao fulcral da poesia de Alejandra descobrirum tom trgico, que estaria na suposio inocente do eu enunciador que expressa sesentir alijado de uma suposta (imaginada) relao perfeita entre mundo e sentido; emAna C. o trao relevante parece ser o da dor causada pela paisagem moderna crispadae, mais que intensificao da autoconscincia, o que se sobressai uma ironia dramticana demonstrao de que a nica possibilidade de sobrevivncia se ater a si mesma.Em ambas, a ficcionalidade potica do sacrifcio testemunhal e da expiao, sempre

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    contida, explicitamente, no artifcio da arte. Dessa perspectiva, na poesia de Alejandrano d para identificar personagens nem situaes concretas se se quer, como termo decomparao, referentes histricos, nomes, paisagens conhecidos; na de Ana C. h umaquase disposio fsica e uma topologia proliferadora dos cenrios, dos objetos e daspessoas, ainda que em uma exemplar anulao dos limites de gneros cano, teatro,lrica, narrativa. As assinaturas das duas, os nomes, tm j categoria de relquias, nomes

    que j no so prprios Alejandra e Ana C. so de domnio pblico, funcionam comopersonagens em narrativas (Teatro, de Bernardo Carvalho) (Alexandra, de OsvaldoLamborghini), em instalaes (Laura Erber), em filmes , e os desfechos das obras, umaespcie de moral da histria,a crtica parece querer recolher fora da literatura, desfechodesolado, reiteradamente (auto)encenado na poesia como comdia e como drama, comotragdia e como divertimento. A ironia disruptiva, um dos tropos fortes de Ana C.; osarcasmo, de Alejandra. A fria vingativa, nas duas.

    Trata-se de uma poesia que est marcada por um dramatismo mrbido, certoglamour kitsch, que se articulam entre objetos e circunstncias convocadas na escritacomoperformancesnas quais se dramatiza, com ritmo obcecado, a morte espetacularizada,a dissoluo da identidade entre objetos que podem ser bonecas ou livros, o desajuste

    por superioridade de percepo, a viso do mundo como impossvel de habitar, o fim dasiluses, a incompreenso, a solido, o enigma da existncia, o desamparo intelectual eafetivo, a intemprie existencial. primeira vista, ningum estaria mais distante dePizarnik que Cesar. Pode-se mostrar, contudo, com que real inteno a poesia destaltima prende-se, como analisava Scrates no Crtilo, procura pela exatido daspalavras para faz-las proliferar at o ponto do estranhamento, com o que a invisibilidadedo invisvel (Foucault) fica tanto ou mais exposto que na poesia mais hermtica e(des)referencializada de Pizarnik. No seria suficiente que a convocao das cenas davida tivesse certos paralelismos facilmente reconhecveis. Estamos ante uma poesiaempenhada em mostrar os objetos e os ordenamentos fora do controle racional, at o

    extermnio (a exausto) das possibilidades do pensamento (Cesar) frente a frente daoutra poesia que chega ao mesmo ponto, mas pelo apagamento insistente da palavra, aafirmao constante da negatividade e do no-reconhecimento (quase absoluto) doreferente, pela rasura repetida. Assim, lidas em contraste, as obras de uma e da outrapoetisa parecem delinear uma figura ao mesmo tempo oposta e complementar: umaoposio bastante frequente na arte moderna (um Magritte e um Klee, um Andy Warhole um Pollock, por exemplo).

    Sabe-se que a arte deve mais prpria arte que observao direta da natureza.A obra literria est conformada por blocos de acumulao de princpios formaisconvencionais assim como por conjuntos de temas articulados com diversas perspectivas,por um lado, e recomposies da conveno no intercmbio com outras artes e disciplinas,

    por outro. Uma espcie de histria literria e de arquivo dos diversos achados da arteatravs do tempo pode ser entrevista em cada corpo de textos que se estuda. Em grandeparte, a histria reconhecvel nos textos, os dilogos com a tradio (ou as tradies)revelam o empenho e a energia concentrados no trabalho, a mo do arteso.

    No Crtilo, Plato parece delinear as duas matrizes que desenvolvemos aqui. Naesteira de Rimbaud e de Artaud que se configuram com mais clareza as linhas mestrasda vidncia proftica como atributo da poesia.

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    No Crtilo, Plato faz Scrates traar um paralelismo entre atividades artesanais,o instrumento, o arteso que o utiliza, e o fabricante que o constri, para chegar concluso de que a ao de nomear tem um instrumento, que o nome, um arteso,que o dialtico, e um fabricante, que o legislador-nomeador. No final da primeiraparte do Crtilo fica claro que pode que (...) no seja banal a imposio de nomes (...)com que Crtilo teria razo (...) o arteso dos nomes no qualquer um, s aquele que

    enxerga no nome que cada coisa tem por natureza e capaz de aplicar sua forma tantos letras quanto s slabas, com o que se esboa um sentido (talvez nesse raciocnioassistimos ao estgio inicial da mimese de Plato). O nome em si que se pode encarnarem diferentes formas lingusticas. Scrates se preocupa pela exatidoque o nome deveriater, razo pela qual o nomear nunca poderia ser obra de um homem qualquer, necessrioalgo a mais. Descartados os sofistas como oficiantes privilegiados do ato de nomear uma ironia de Scrates , o filsofo prope, ento, recorrer aos poetas, quer dizer, verque o que Homero fez a respeito do nomear. Scrates lembra que so muitas, belas egrandiosas as passagens nas quais Homero distingue os nomes que, aos mesmos objetos,do os homens e os deuses. Depois disso, e de forma no muito diferente da que

    Octavio Paz ensaia como prefcio a um dos livros de Pizarnik, como veremos adiante, odilogo se embrenha por uma disparatada conversa sobre etimologias, o que afinal abreo caminho para outra sutileza de Scrates, abrindo uma distncia entre conhecer ebuscarou descobrir os seres. Com que nomes conheceu ou descobriu as coisas o nomeador,pergunta Scrates, se os nomes primevos ainda no exist iam? Como aceitartranquilamente isso, indaga Scrates, se parece que estamos de acordo em que impossvel conhecer ou descobrir as coisas, salvo conhecendo seus nomes ou descobrindoseus significados? Resulta, assim, que a prpria nomeao est presa a uma aporia (todarelao com o tema foucaultiano do carter performativo do discurso que, aparentandodefinir, na realidade programa e controla, no mera coincidncia). Quer dizer, a palavra,

    por si s, no poderia ser, de forma alguma, um instrumento para o conhecimento (aquelesuposto poder epistemolgico da poesia de que falavamos no incio apareceria aquidescartado). Scrates postula que tem que haver um mdio, distinto do nome, tantopara conhecer quanto para buscar os seres. O nomeador pode se enganar no seujulgamento sobre a realidade. Inclusive parece claro que Scrates abre bem apossibilidade de que o engano inicial pode at ser inocente, s que a natureza humanatende a esconder o erro e a adaptar a realidade linguagem, e no o contrrio (a umanoo idntica chega Lacan, sculos depois). No Crtilo, afinal, conclui-se que al inguagem , efetivamente, um caminho incerto e enganoso para aceder aoconhecimento, nada confivel. Scrates, com efeito, no desfaz a aporia, mas a formula.

    Essa , tambm, uma das aporias que est na base da poesia das duas artess enomeadoras que so Pizarnik e Cesar. A poesia tem, para elas, uma funo catacrsica,fundada na vidncia potica e no trabalho artesanal, atividades que se revezam paradar conta do que se sabe de antemo impossvel: conhecer, nomear com exatido, darconta do mundo. O arteso nomeador e o vidente unem-se para dar feio a um tipo depoeta ao qual grandes nomes nos tm acostumados.

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    I I II I II I II I II I I

    Gostaria agora de considerar, j introduzido o tema da morte, que uma formatangencial de falar do tempo, uma dimenso temporal que se vincula fortemente a umtipo de figurao na poesia moderna: a infncia. Vidncia e infncia, na poesia moderna,so imediatamente assimilados s figuras de Rimbaud e de Lautramont. Nas artes

    plsticas, Paul Klee um dos exemplos e modelos mais mo, porque ele muitas vezesexpressou a sua adeso modelar infncia. O mito da infantilidade dos meus desenhoscertamente tem seu ponto de partida naquelas composies lineares, nas quais tenteiligar uma representao objetiva, digamos um homem, com uma apresentao pura doelemento linear.4Klee fala na necessidade, para a criao artstica, de se reverter aosprimrdios da arte, buscando inspirao nas imagens feitas por crianas, pintores popularese naf assim como pelos loucos.

    Na Carta a Georges Izambarde na Carta a Paul Demeny,5Rimbaud afirmou o quepara ele era o sentido do poetar: tornar-se vidente. E os procedimentos necessrios paraconsegu-lo passavam pelo desregramento de todos os sentidos sem que pudesse se contarcom remdio nenhum para curar a dor que o exerccio desse fazer produziriainexoravelmente. Sofre o poeta, exposto ao reconhecimento das foras do mundo, linguagem, ao desmascaramento dos mantos de certeza e de fora retrica estendidospor sobre os enigmas da existncia. O poeta est entregue ao poetar, o escritor noescolhe: escolhido pela poesia. No pensa, pensado pelo pensamento. EU um outro,repete o poeta quando se assume como instrumento do que se conhece como arte; ele propriamente a madeira que se descobre violino. Na Grcia, afirma Rimbaud, diferenados tempos atuais, a poesia ritmava a Ao,no como na contemporaneidade em que apoesia se reduz a simples jogos e passatempos. Ao no mundo, interveno, Performance,acrescento eu. Porque o desregramento dos sentidos se consegue na experimentaoem si mesma, convertidos o corpo e a mente em laboratrio potico que, ao mesmo

    tempo em que tortura, produz o prazer no s da criao como o da procura deconhecimento. assim como a grande literatura ruma ao desconhecido, o poeta descea la cueva de Montesinos, com dom Quixote, ou ao desvo de Carlos Argentino Daneri,com o Borges de El Aleph,o Dante da Comdia vai ao prprio inferno, e tudo para ver,conhecer, saber, apreender. O senso de responsabilidade o faz carregar consigo ahumanidade (inclusive os animais, diz Rimbaud) para que tambm sinta e aprenda comele, entenda a lngua que ele achou com tanto esforo, lngua de dicionrio ilimitado eincessante que se pretende em direo lngua universal, materialista, visvel, quelevar a poesia a passar frente da ao, j no ritmando com ela e sim a carregando atiracolo. O progresso no consistir no novo por si mesmo, porm, paradoxalmente, a

    vidncia e o encontro com o desconhecido exigem formas novas, portanto, o domniodas velhas formas que sero desconstrudas e reconstrudas.

    4KLEE. Sobre a arte moderna e outros ensaios, p. 67.5RIMBAUD. Poesia completa, p. 152 et seq. A traduo e os dados sobre esse texto foram tomados de:RIMBAUD. Carta a Georges Izambard. Disponvel em: . Acesso em: mar. 2008. doi: 10.1590/S1517-106X2006000100011. Traduo de Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ).

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    O tema da infncia reconhecvel como habitualmente utilizado em tropospoticos, desde o Barroco fundador dos tempos da Colnia, na Amrica Latina, tantopelos intelectuais da cidade letrada quanto nas produes beligerantes e conflituosasdas novas sociedades formadas ao calor das guerras de conquistas e colonizao,geralmente para referir-se ao estado da aquisio de uma voz escrita, oral ouperformtica reconhecida por uns e outros. A carncia de ser algum, de ter um lugar

    no mundo, de posicionar-se em um espao de poder a partir do qual articular um discursoque possa ser levado a srio habitualmente adjetivado no discurso crtico como: precoce,infantil, ingnuo, simples, tonto, puro, inocente, entre outros, dependendo dosideologemas defendidos na ocasio. A aquisio de um discurso representacional edirecionado, objetivo e cientfico, que consiga estabelecer simbologias inteligveisquando no alegorias legais das subjetividades individuais, ou de comunidades, dentrode um cenrio multicultural e heterogneo como o da Amrica Latina desde seusincios, foi adjetivado frequentemente com essa metfora. Como forma de resistncia ede autoidentificao, assumindo a dico de autobiografias de diversos tipos ou deautofices identitrias individuais ou comunitrias a escrita de poesia com fatores

    mais ou menos evidentes de infncia adquire significados diferentes ao longo da histriacultural de Amrica Latina, sobretudo na poca de formao dos Estados Nacionais, nosculo XIX.

    Diferentes e no poucas vezes contraditrios, os alcances significativos da metforada viagem (associada s lembranas das viagens reais) assume a forma de noesepistemolgicas ou de conceitos-ferramentas de impacto ideolgico. A fora de inseroe a produtividade desta matriz derivam, em grande parte, de sua fcil assimilao e desua enganosa obviedade, em qualquer contexto em que seja utilizada. uma matriz toantiga e com aspecto to referencial que costuma contar com a anuncia e aprovaodos leitores de todas as pocas, talvez porque toca em algum ponto da memria coletiva

    e relembra a sensao de intemprie e de medo que acompanha a infncia. Arepresentao da infncia ou sua simples meno metafrica tangencial ou direta uma reconhecvel forma de interveno simblica em espaos de elaborao deidentidades. Em oportunidade da invocao da infncia, a prpria ou a de outro, opoema assim como o relato parece conter e desdobrar os gros, as cifras que, dealguma enigmtica forma, oferecem respostas a interrogantes que assombram de formaobsedante a posio no mundo que alcana o sujeito adulto, sugere a esperana derecuperar um passado que ilumine e potencie o presente. Pode, tambm, deixar entrevera fora de certos impulsos de vingana (raiva) pela emergncia de um passado querevela o projeto social hegemnico de transformar meninos e meninas indmitos, criativos,com desejo e nostalgia de liberdade, em adultos que servem voluntariamente o sistemae garantem assim sua continuidade, eternizando as contradies. Em relao s artesem geral e literatura em particular, a metfora da infncia se articula rememoraode origens, s aventuras da paternidade e da maternidade e tambm s noes familiarescomo ptria, razo pela qual se fala em infantilizao da arte, por exemplo, como unaespcie de percepo pejorativa e julgamento de valor geralmente ligado consideraodo tempo como uma substncia de desenvolvimento linear, palpvel e cujas magnitudespodem ser medidas com certa exatido. Uma regio como a latino-americana muitas

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    vezes definida e descrita como de historia recente, passando totalmente despercebidotodo o passado anterior conquista, na tentativa de dar conta de uma posio infantilse comparada, por exemplo, quelas ocupadas pelas literaturas da velha Europa. Assim,a arte (e a literatura) apreciada com argumentos que podem muitas vezes se pareceralgo incomodamente com um ciclo vicioso analtico, onde no se sabe mais se o territriosimblico em processo de crescimento (perifrico, em outras denominaes ainda mais

    cegas) seria o mesmo que dizer infantil ou imatura, ou, pelo contrrio, que desafiaprevises sobre um futuro incognoscvel. Recentemente, o tema da infncia tem sidotratado pelo filsofo italiano Giorgio Agamben, mas considerar essa vertente, aindaque produtiva, nos levaria para outro caminho e no temos espao aqui para tanto.

    Na obra de Pizarnik, a figurao da infncia funciona como um estilete prontopara furar a superfcie lisa do poema. Aparece no s nas bonecas e nos desenhos infantis,mas na voz de uma menina que, dialogando com o eu do poema, pressiona para sair dapriso; menina que se materializa e que tende a carregar uma teoria sobre o tempo.Veja-se este fragmento de Infierno musical:La hermosura de la infancia sombra, latristeza imperdonable entre muecas, estatuas, cosas mudas, favorables al doble monlogo

    entre yo y mi antro lujurioso, el tesoro de los piratas enterrado en mi primera personadel singular.6

    A isso h que acrescentar um olhar marginal construdo como um buraco panpticoe uma enunciao que fala de bonecas estripadas, de torturas, de condessas sangrentas,de mquinas de tortura, da objetivao de dores muito fsicas e muito artificiais aomesmo tempo. As bonecas parecem signos-simulacro da vida acenando para aenunciao, assim como a escrita um simulacro-suplemento da existncia qual podeser dado um sentido, ainda que embaado. Em atos rituais que muito se parecem, asbonecas do um toque de horror sinistro, mas tambm se oferecem como uma garantiacontra a destruio por ser menos vulnerveis, remedos de corpo. Como a Condessa

    sangrenta, cuja histria a fascinou at o ponto de escrever sobre ela, Alejandra d voza um eu lrico que recusa as foras benficas que de algum modo poderia receber domeio em que mora; prefere a altivez do confronto mortal com a sociedade e com a vida.

    No caso de Ana Cristina, poemas como Atrs dos olhos das meninas srias,Recuperao da adolescncia( sempre mais difcil/ancorar um navio no espao)oferecemuma figurao semelhante, com a imagem de uma menina por trs tanto da voz poticaquanto do que essa voz consegue explicitar quando observa mulheres e as reinventa napoesia. Ou em versos como os que praticamente fechamA teus ps: (p. 118) O posto 6,/onde passei minha infncia e minha adolescncia, /como est mudado! ou este outro,ouam s /fico tentando te mandar um pedacinho de onde / estou mas fica faltandosempre, onde a memria da infncia uma forma de dimensionalizar o tempo. Agrandeza da infncia oferece medidas de tempo e se prope como aleph do conhecimentointuitivo que da acuidade do olhar para trs depende a incapacidade de captar opresente.

    6PIZARNIZ. Obras completas. Poesa completa y prosa selecta, 158.

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    I VI VI VI VI V

    Penso nos legados destas poetas propostos basicamente de argumentos a favor decerta negao / negatividade. Do trabalho constante pela rememorao do conhecido,do vivido e do desejado, em contraste com o que se espera da vida, se chega verificaodas expulses, das marginaes permanentes, do aparecimento do no-dito (no-

    existente, no-possvel, no-entendvel, no-permitido) que compe a palavra do corpodesejante e perecvel a terra, o sexo, o cadver, os sentidos no perptuo movimentodo existir no tempo histrico. Ao todo, posso pensar que estas poetas desenham mapasde reas de conhecimento e funcionamento epistemolgico (social, cultural, afetivoetc.) muitas vezes (quase sempre) percebidos pelos leitores como hermticos, ainda quecom poder convocatrio e tons que se querem profticos, derivados do dilogo ou doconfronto, que esses poemas estabelecem com os mapas que os leitores desenham deseus prprios mundos perceptivos. Definitivamente, um trabalho pelo nomear forte econstante que refunda, a cada verso, a funo catacrsica da literatura. Afinal, a poesiad forma a qu?

    As duas poetas se utilizam de imagens de anjos, que resultam em formas etreas ede feio metafsica, quimeras que de repente assaltam e que muito lembram os anjosbenjaminianos. Ana C. esboou certos anjos, muito materiais, por certo: aquele queregistra, o que extermina a dor, o anjo encouraado, as Charlies Angel (as panteras),entes que deslizam e escorregam, inefveis e muito materiais, pela superfcie da cultura,procurando fincar p, mas encontrando s os buracos entre os objetos visveis e os rastrose resduos da civilizao, os reflexos nos espelhos onde a outra, que sou eu assombra.Kerouak e os poetas on the roadcomparecem para realar os sentimentos do eu empricoque a poesia dilata, complementa ou at substitui por sentimentos fictcios, a fim deexplorar a realidade e estabelecer identidade plena de seus eus mltiplos e referenciais,como seus textos explicitam.

    E esse duplo de estranhamento e desespero, esse sou outra de Ana C. me trazAlejandra, quase toda ela, para o mesmo vacilante espao. Que contm o Eu sou ooutro, os outros de Magritte; o Eu um outro, de Rimbaud; o Borges e o outro. A artese a vidente.

    VVVVV

    So quatro as etapas que a crtica encontra em Alejandra, bastante bvias, porsinal. A de seus escritos juvenis. A da que escreve durante sua estada na Frana, em

    Paris, de 1960 a 1964, basicamente A rvore de Diana (1962). A terceira, j de volta aBuenos Aires, Los trabajos y las nochese a ltima, Extraccin de la piedra de la locura e Elinfierno musical.

    No A rvore de Diana escrito na Europa no pouco significativo que sejaento quando se revela com maior intensidade a experincia do duplo, o eu noconsistente, a palavra furiosa e vingativa, a elaborao de uma enunciao da margem.A intensificao da saudade da infncia precisamente na viagem. A memria como

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    resgatando um Paraso perdido e as memrias do futuro, as vises, com o terror de nopoder nem saber nomear, a enunciao minada (este canto me desmente). Um exercciode desprendimento de si, de estranhamento do que poderia se considerar o ntimo quese faz objetividade, o passado que passa a se confundir com o futuro. desse tipo deviso que se alimenta a clarividncia potica? De ver o futuro no passado?

    Em Los trabajos y las noches, livro no qual o referente, que antes era enigmtico

    ou inexistente, agora se identifica com um TU no que parece uma intensa parbase.Como em um estado entre o dormir e o velar fundem-se passado e presente, o concretoe o alucinante, dilatada ao mximo a capacidade de percepo, projetada como viso.

    Em Extraccin, o duplo bem eu um outro. A metfora do canto, prosopopeia. a msica, a morte, o que eu quero dizer nas noites variadas como as cores do bosque.O estado de interfases vai enunciando, em prosopopeia, um progressivo desprendimentoda realidade a partir do qual analisa seu entorno fsico e mental.

    Acredito que o legado especfico de Pizarnik o momento do fim, de clausura,essencialmente moderna ainda, presa aos pressupostos das vanguardas histricas, queforam possveis at os anos 1960, ainda que seja extremamente reducionista despachar

    Alejandra como um remanescente de poticas francesas. No prefcio ao livro rbol deDiana (1962), Octavio Paz escreve:

    rvore de Diana de Alejandra Pizarnik. (Quim.): cristalizao verbal por amlgama deinsnia passional e lucidez meridiana em uma dissoluo de realidade submetida s maisaltas temperaturas. O produto no contm uma s partcula de mentira. (Bot.): a rvorede Diana transparente e no d sombra. Tem luz prpria, cintilante e breve. Nasce nasterras ressecadas da Amrica. A hostilidade do clima, a inclemncia dos discursos e agritaria, a opacidade geral das espcies pensantes, suas vizinhas, por um fenmeno decompensao bem conhecido, estimulam as propriedades luminosas desta planta. Notem razes; o talo um cone de luz ligeiramente obsessiva; as folhas so pequenas, cobertaspor quatro ou cinco linhas de escrita fosforescente, pecolo elegante y agressivo, margensdentadas; as flores so difanas, separadas as femininas das masculinas, as primeiras

    axilares, quase sonmbulas e solitrias, as segundas em espigas, espoletas e, mais rarasvezes, puas. (Mit. e Etnogr.): os antigos acreditavam que o arco da deusa era uma ramadesgarrada da rvore de Diana. A cicatriz do tronco era considerada como sexo (feminino)do cosmos. Qui se trata de una figueira mtica (...). O mito alude possivelmente a umsacrifcio por desmembrao: um adolescente (homem ou mulher?) era destroado cadalua nova, para estimular a reproduo das imagens na boca da profetisa (arqutipo daunio dos mundos inferiores e superiores). A rvore de Diana um dos atributos masculinosda deidade feminina. (...) (Fis.): durante muito tempo se negou a realidade fsica darvore de Diana. Com efeito, devido a sua extraordinria transparncia, poucos a podemver. Solido, concentrao e uma agudizao geral da sensibilidade so requisitosindispensveis para a viso. Algumas pessoas, com reputao de inteligncia, reclamamque, apesar de sua preparao, no veem nada. Para dissipar seu erro, suficiente recordarque a rvore de Diana no um corpo que se possa ver: um objeto (animado) que nosdeixa ver alm, um instrumento natural de viso. Alm disso, una pequena prova decrtica experimental desvanecer, efetiva e definitivamente, os preconceitos da ilustraocontempornea: colocada frente ao sol, a rvore de Diana reflete seus raios e os rene emum foco central chamado poema, que produz um calor luminoso capaz de queimar,fundir e at volatilizar os incrdulos. Recomenda-se esta prova aos crticos literrios denossa lngua.

    Octavio PazParis, abril de 1962 (PIZARNIK. Obra completa.Poesa completa y prosa seleta, p. 67-68).(Traduo minha)

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    Paz l esse livro de Alejandra como uma provocao ao estado contemporneo dacrtica literria, aos impasses das leituras tcnicas parasitrias e, ao mesmo tempo, comodesafio s (im)possibilidades de compreenso. O poema visto como um instrumentode viso, e no como representao em espelho de objetos referenciados ou histricos.O poema, como tal, pode ou no ser percebido, e isso depender da disposio do leitore das possibilidades de traduo da linguagem figurativa que o ele possa realizar.

    O prprio ttulo do livro rvore de Diana introduz, em certa forma, a polmicacratiliana e deixa o leitor na mesma inconcluso, como no podia ser de outro modo. Aspossibilidades de leituras comeam pelo ttulo do livro e so bastante diversas, comoestabelecer uma relao direta de Diana com a mitologia, passando pelas possveisconfluncias entre Octavio Paz e Alejandra Pizarnik, amigos e poticamente afinados,at a ressignificao do ttulo lembrando que a rvore de Diana era o nome com que seconhecia a Arbor filosofica dos alquimistas (fenmeno que se produz quando se foraum metal a sair de uma soluo de um dos seus sais usando um metal menos precioso. Jno sculo XV h descries de uma experincia onde uma gota de prata-viva introduzida em uma soluo de nitrato de prata e se observa a separao da prata numdesenho semelhante s agulhas de um pinheiro e a outras formas arbreas que crescem

    e se movimentam), tudo leva a colocar em tenso o ato de nomeao em si (neste caso,nomear o livro), nomear as coisas, escrever os nomes, figurar, poetar.

    Em alguns livros, como rbol de Diana e Los trabajos y las noches, Alejandraexperimenta, nos limites do gnero, poemas breves que revelam sua filiao a algumaslinhas da vanguarda europeia dos anos 1920 e 1930, especialmente o surrealismo e apoetas como Artaud, Rimbaud e Mallarm (da aprendizagem deles, o artesanato). Desteltimo, a experimentao com a pgina em branco, com textos nos quais o no-escritose sobressai. A brevidade e a concentrao como figuraes do universo fraturado e aexperincia da desordem e da desintegrao progressiva: a ausncia, o nada e a destruiopela assuno do sentimento da morte. Tudo acompanhando a luta ferrenha pela palavra

    (O inferno musical) que a ocupa obsessivamente at a morte. No o que se fixa, oque h entre duas detenes.EntreA rvore de Diana e Os trabalhos e as noites, poderamos sugerir certa passagem

    entre a percepo de uma realidade sombria, hermtica, onde pseudo-sujeitos marcadospelos pronomes pessoais sem referentes possveis a cenrios e imagens mais familiares.

    1He dado el salto de m al alba.He dejado mi cuerpo junto a la luzy he cantado la tristeza de lo que nace2stas son las versiones que nos propone:un agujero, una pared que tiembla...3slo la sedel silencioningn encuentrocudate de m amor mocudate de la silenciosa en el desiertode la viajera con el vaso vacoy de la sombra de su sombra

    (PIZARNIK. Obra completa.Poesa completa y prosa selecta, p. 69-70.)

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    O jogo de pronomes pessoais se equilibra entre um eu que no se corresponde comum corpo unificado referencial e que parece propor uma designao estranhada, umns e um ela que alterna com o eu. A narratividade inicial transforma-se em apstrofeou vocativo e se refere a atividades do sujeito lrico, o que fala no poema. No umtrabalho metafrico estrito, mas conclui o fragmento, que ocupa as trs primeiras partes,com trs fortes imagens que poderamos ler com certo carter alegrico: a silente no

    deserto, a viajante com o copo vazio e, finalmente, a mais inumana de todas, a sombrade sua sombra. O uso do tempo pretrito perfeito d uma impresso de artificialidadepor se tratar de uma poeta que teoricamente utilizaria a variao lingustica do Rio daPrata, na qual o uso desse tempo verbal menos significativo que na Espanha, porexemplo, embora seja utilizado em muitas situaes, sobretudo na escrita potica. Digoartifcio porque o uso reiterado cria um distanciamento de qualquer coloquialismo, pelainsistncia no uso do pretrito perfecto, evidentemente escolhido por sua sonoridade eefeito de passado recuperado. O estranhamento se acentua com o isomorfismo semnticona estrofe: sede se continua com deserto e com nenhum encontro para, continuao,dar lugar sequncia de apstrofes compostos por alegorias em sequncia. Qualqueruma das alegorias poderia se constituir em figuraes ou mise -en-abyme do eu lrico detoda a obra de Alejandra.

    Em Los trabajos y las noches:

    POEMAT eliges el lugar de la heridaen donde hablamos nuestro silencio.T haces de mi vidaesta ceremonia demasiado pura.REVELACIONESEn la noche a tu ladolas palabras son claves, son llaves.El deseo de morir es rey.

    Que tu cuerpo sea siempreun amado espacio de revelaciones.

    EN TU ANIVERSARIORecibe este rostro mo, mudo, mendigo.recibe este amor que te pido.Recibe lo que hay en m que eres t.DESTRUCCIONES

    en besos, no en razonesQuevedo

    Del combate con las palabras ocltamey apaga el furor de mi cuerpo elemental.

    (PIZARNIK. Obra completa.Poesa completa y prosa selecta, p. 91-92).

    Nesta, que a sequncia inicial de Los trabajos y las noches, os poemas nos deixamem uma paisagem mais familiar, ainda que as imagens sejam construdas por figuraesbaseadas em oxmoros: hablar el silencio, entregar o que na verdade se pede. H um tu quesupe ou deixa imaginar um eu que fala no poema. Para o leitor acostumado a ler poesiae at para aquele que tem o hbito de prestar ateno s letras de msica, o cenrio doamor sensual, do amor humano surge com certa nitidez. Porm, aparece, insidioso evelozmente, o tema da linguagem voltada sobre si mesma, o do combate com as palavras.

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    Contudo, a inumanidade persiste no livro, como o uso de pronomes e de nomes queconvocam monstruosidades referenciais, como os vigias, as sombras, os perdoadores, osque cometieron mil rostros mos, em Histria antiga:

    HISTORIA ANTIGUA

    En la medianoche

    vienen los vigas infantilesy vienen las sombras que ya tienen nombrey vienen los perdonadoresde lo que cometieron mil rostros mosen la nfima desgarradura de cada jornada

    (PIZARNIK. Obra completa.Poesa completa y prosa seleta, p. 108).

    falta ou excesso o que revolta? Identidade, mesmidade, mesmice? O espaopovoado de signos encontrados, de significao muito pautada, um espao que em AnaC. parece atormentar com o peso da mesmice e em Pizarnik mais leve, leveza provocadapela prpria incongruncia dos s ignos que tm a espessura de uma selva de(in)cognoscncia. O espao existente povoado de seres incorpreos, vazio para a

    percepo normal, de Pizarnik, em Ana C. vivido como demasiado cheio. Desnudarou preencher o espao, no ser esse trabalho de Ssifo que d a medida da cultura naconstante procura de sua dimensionalidade? na linguagem que est j dada de por siessa dimensionalidade?

    A poesia dessas duas poetas fala, predominantemente, do prprio poetar. E quefuno essa? A de procurar sadas, a de cavar caminhos, deixar sair o selvagem quehabita o ser, permitir o descontrole do infante que permanece sempre espreita. Poetar liberar. E liberar tem consequncias polticas. A excentricidade uma doena mortal.Condena a ser lido, como dizia Sousndrade, pelo menos daqui a cinquenta anos. Poetar um desregramento da conveno, dos sentidos, do espao marcado e legalizado.

    Ana C. deixa em seus ltimos poemas uma espcie de testamento, documentrio,marcas que lega como testemunho de uma vida, rastros possveis, como o faria um presona cadeia marcando as paredes, substantivos banais, cenas triviais, o mundo em seupeso mximo. Testemunho e premonio, vises do futuro, todo sinal uma profecia,escreve. Para ser lida s por quem tenha coragem e sabedoria para isso, como um desafio.Com a determinao de tecer uma filigrana antimontagem no se juntam as coisas, osseres e as experincias para construir uma dialtica de interpretao compulsiva que,se utilizada como ponto de comparao com outros discursos, ficam parecendo formasprimitivas, esboos, tmidos ou enfticos ensaios condicionados a uma objetividadeproblematizada.

    Fica difcil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele l para desvendar mistrios e fazperguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biogrficos. Noperdoa o hermetismo. No se confessa os prprios sentimentos. J Mary me l toda comoliteratura pura, e no entende as referncias diretas (Cesar.A teus ps, p. 90).

    Na poesia de Ana C. h um evidente ritmo truncado e quem enuncia o anjo queregistra, anjo que extermina a dor. A enunciao entre a trivialidade dos atos do cotidianoe as percepes mais agudas dos vazios vai realizando uma pesquisa sobre as possibilidades

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    da linguagem. Mas, que pode a poesia, que pode o poeta? Ainda que profetize. Qual oautntico labor do poeta? O fogo do final? Se for papel que desistiu de dar recados, papel para qu?

    Preciso comear de novo o caderno teraputico.No como o fogo do final. Um cadernoteraputico outra histria. deslavada. Sem

    luvas. Meio bruta. um papel que desistiu dedar recados. Uma imitao da lavanderia comsuas mquinas a seco e suas prensas a vapor. Umrelatrio do instituto nacional de comrcio,rspido mas ditoso, inconfessadamente ditoso.Nele eu sou eu e voc voc mesmo. Todos ns.Digo tudo com ais vontade. E recolho os restosdas conversas, ambulncia. Trottoir na casa.Umas tantas cismas. O teraputico no se faz deinocente ou de rogado. Responde e passa aschaves. Metlico, estala na boca, sem cascata.E de novo.

    (Fogo do final.In: Cesar. A teus ps, p. 53).

    A luta entre a gramtica e a figurao em Ana C., especialmente em A teus ps,se joga entre as diversas formas de enumerao sobre as que essa poesia se ergue, comouma dinmica de input que desenha a figura da etapa da modernidade na qual ossignificados se constroem no fragmentrio, no contraditrio, no fludo, no deslizante.Entre a enumerao e os processos identificatrios interminveis, a recusa a ser petrificadacomo proftica. A metafsica triturada no liquidificador das imagens da mdia, masno se descarta, ou um pesadelo do qual preciso acordar. A poesia de Ana C.transforma, filtra, engole, vomita a percepo de um real impossvel. a expiao damodernidade. Poesia urbana que paira sobre a cidade moderna, da perspectiva dasofisticao intelectual que deixa um gosto amargo e a mirada irnica e rasante sobre asuperfcie esnobe. Um pensamento da contaminao como tentativa de encarar osmltiplos contedos do saber contemporneo, da cincia e da tcnica at as artes e aesse saber miditico, para reconduzi-los de novo a uma unidade, a qual j no terianada de dogmtico ou de verdadeiro; , antes, um saber explicitamente residual quetm muitos caracteres da divulgao, um saber que se coloca como uma verdade fracae nada totalizante ou explicativa, a verdade da inconsistncia e precariedade dossaberes possveis sobre o mundo. Simultnea, a passagem do tempo convoca o arco damemria, que se revela com a forma da morte e da dissoluo das coisas e dasexperincias, dos seres vivos e do prprio conhecimento, com a nostalgia e o medo deperder o que nunca se teve. Todas as idades tm encontro marcado no sonho e na

    viglia, em breves alephs, sees da memria cujo acesso totalmente enigmtico aindaque surjam como epifanias nos mais inslitos objetos, como reminiscncias inesperadasque aparecem, fugazes, e que perduram como lembrana da lembrana, livres daobrigao de comunicar, com a nica meta de se subsumir como um objeto a mais nacorrenteza da poesia. Objetos sobre os quais, pelo menos, possvel passar os dedos.

    Ana C. opera como um regente de vozes que falam nos poemas mas cujaidentificao, desmaterializada a referncia, abre um fenda para o leitor: quem, o que

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    e quantos falam nesses poemas? A literatura no conta, a poesia no diz, a literaturafaz. O poeta mesmo a madeira que se descobre violino.

    O que a literatura, o que poesia, o que no ? O que isso de literatura? Que textomaluco esse, que conta e, ao mesmo tempo, no conta, que tem um assunto e, naverdade, no tem um assunto e diferente do nosso discurso usual, que diferente dacorrespondncia, que diferente do dirio? Mesmo que eu pegue um dirio, como tentei

    fazer, mesmo que eu pegue um dirio e coloque ali como literatura, mesmo assim continuaa haver uma histria que no pode ser contada. um tormento e, de repente, engraadotambm. Voc no pode contar (. ..) (Cesar.A teus ps,p. 262).

    Sem progressos argumentativos, as sentenas dos poemas, ao redor de dois ou trspontos do incio ao fim, com movimentos similares, s vezes idnticos, vo se produzindoao ritmo da repetio. A repetio parece, ento, mais que um elemento de estilo, umaconsequncia inevitvel, algo que provm de uma grande fora negativa, de uma tenazresistncia a se deixar engolir por uma realidade que j chega em forma de imagemdigerida, que j existe como clich. A repetio poder ter um efeito de repique, deespelhamento, de devoluo, de no-assimilao, ao mesmo tempo em que quase

    musical, um ritmo persistente, dissonante, estranhado. Trata-se da nomeao constante,da enumerao gaguejante. A escrita parece renovar constantemente, palavra porpalavra, o acordo com o leitor, como se de repente a memria tivesse sido extinta e oolhar procurasse, como com fome de conhecimento, que que ? Que que era? Comoera? Era isto? isto? Mas, que o que vejo?

    Ou a aparente simples encenao que se descontrola na sintaxe e oblitera acoerncia e a coeso, as palavras impem sua materialidade e travam a narrao, anarrao supera os obstculos e acaba dizendo mais do que prometido. Trata-se de umaoposio entre o evidente e o oculto, o secreto combate entre a compreenso de umcontedo alm de seus conceitos, a estrutura da verdade do percebido como um conceito

    filosfico, mas cuja demonstrao impossvel. A musicalidade da poesia, sua sonoridade,viria a proporcionar um sentido vedado palavra prosaica (nos dois sentidos de prosa ede banal), o papel que no quer mais dar recados, ainda que essa palavra seja a da poesiaque, em um sentido mais profundo, sempre insuficiente. Isso parece postular umparalelismo, uma mimese, uma correspondncia de ordem superior. A que paralelismoincompreensvel se referem tanto Alejandra quanto Ana Cristina? A que semelhanamaterial acenam?

    A performance escrita destas poetas a da mo que sofregamente, preguiosa elenta, realiza o trabalho manual da escrita, o artesanato lento e inequvoco de irnomeando o mundo e se performando entre o eu biogrfico, a imaginao cujos objetosso compartilhados em uma cultura especfica, a inveno literria que de todas asfontes se alimenta e a procura, nunca cnica ainda que quase sempre irnica, mas quereconhece que ainda que se saiba da impossibilidade do conhecimento integral domundo, ou mesmo se tenha apenas um relance da limitao humana para conhecer,ainda assim, a mo continua o trao. A mo artes mo com luva, luvas de pelica; amo que desenha, recorta e cola; a mo que pinta, articula e estripa as bonecas. Aviso a que se faz poesia, o instrumento que serve para desvendar o pouco que se podealmejar como conhecimento. O poder potico da morte a mais forte conscincia de

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    um devir-aniquilao. A paisagem da infncia, paisagem da vida, paisagem da morteem simultneo. O trabalho, o artesanato ardente e excitante, a sensao de estar criando,como um peregrino que vai atrs de uma iluso redentora, e no sabe se o caminho queest seguindo o verdadeiro.

    E finalizo com Scrates no Crtilo: Definitivamente, Crtilo, qui as coisas sejamassim, ou qui no.

    RRRRR E S U M E NE S U M E NE S U M E NE S U M E NE S U M E NSe establece aqu una interlocucin entre dos poetas: AlejandraPizarnik y Ana Cristina Cesar, evitando acumularinterpretaciones que se expliciten con un tipo de razonamientoy de fuerza analtica que suture inconsistencias. Considero eldiscurso-dilacerado y poco confiable de las dos poetas entrelas dos imgenes: la mano trabajadora de la artesana y la visinfantasmagrica de la inspirada. Me interesa verificar siconsiguen nombrar fuerte, sin caer en el sentimentalismoni en la facilidad, ejerciendo a contento la funcin catacrsica

    de la literatura. Mano artesana, videncia y la memoria que seconfunde con la nostalgia de un ser infante, presente en lasubjetividad y perdido para la experiencia.

    PPPPP A L A B R A SA L A B R A SA L A B R A SA L A B R A SA L A B R A S ----- C L A V EC L A V EC L A V EC L A V EC L A V EAmrica Latina. Poesa. Literatura contempornea.

    Alejandra Pizarnik. Ana Cristina Cesar.

    RRRRR E F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A S

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