Almeida-Os Direitos Fundamentais Entre Liberais-2005-1

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIAFACULDADE DE DIREITO

    MESTRADO EM DIREITO E ESTADO

    Os direitos fundamentais entre liberais e comunitaristas um debateconstitucional.

    Monografia apresentada na disciplina Dimenses histricase sociolgicas da teoria da constituio, lecionada pelo

    prof. Dr. Cristiano Paixo ao longo do segundo semestre de2005, em cumprimento de 004 crditos no programa demestrado em Direito da Faculdade de Direito da UnB .

    Mestrando: Fbio Portela Lopes de AlmeidaMatrcula 05/56971

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    Sumrio

    Introduo ...................................................................................................................................... 3

    I. Desafios ao liberalismo. ........................................................................................................... 11

    I.1. A crtica comunitarista ao liberalismo. ........................................................................... 11

    I.2. A resposta do liberalismo contemporneo s crticas. ................................................... 17

    II. Epistemologia e teoria poltica se encontram: o relativismo cultural em foco. ................ 25

    II.1. Os desafios da ps-modernidade razo pblica......................................................... 25

    II.1.1. Cincia e razo desafiados: a questo epistemolgica. ......................................... 25II.1.2. A razo pblica vitoriosa: o relativismo como questo poltica. .......................... 31

    III. Direitos fundamentais e diversidade um debate terico-constitucional. ...................... 39

    III.1. Grupos e indivduos - quem so os sujeitos dos direitos fundamentais? .................. 39

    III.2. Qualquer diversidade desejvel? As restries constitucionais ao pluralismosimples....................................................................................................................................... 44

    IV. Consideraes finais.............................................................................................................. 47

    V. Bibliografia.............................................................................................................................. 49

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    Introduo

    A definio de um espao individual para a conscincia moral e religiosa, separado de

    um ethos compartilhado com toda a comunidade poltica, se encontra no cerne da diferenciao

    entre direito e religio/tica1. A definio desse espao individual ocorreu num contexto histrico

    definvel, no qual se torna evidente que o aumento da complexidade da vida social redefiniu os

    princpios ordenadores da sociedade ocidental moderna, cuja juridicidade no podia mais ser

    fundada em princpios ticos supostamente compartilhados por todos.

    Nos sculos XVI-XVII, as rupturas ocorridas no seio da cristandade que levaram

    reforma protestante inauguraram um novo contexto poltico. Antes da reforma protestante, era

    perfeitamente plausvel afirmar que a Europa se encontrava unificada pelo mesmo princpio

    religioso. importante, contudo, frisar que essa afirmao precisa ser um pouco atenuada, na

    medida em que o prprio catolicismo enfrentou algumas rupturas importantes antes da Reforma.

    Ainda no sculo V, por exemplo, os Conclios de feso (431 d.C.) e da Calcednia (451 d.C.)

    dividiram os catlicos entre os monofisistas, que defendiam a tese segundo a qual Jesus Cristo

    tinha apenas a natureza divina, e os nestorianistas, para os quais Jesus reunia duas naturezas

    uma divina e uma humana. As duas cismas enfrentadas pela Igreja Catlica Apostlica Romana

    tiveram natureza poltica - em 1.054, na chamada Cisma do Oriente, a questo poltica se referia

    pretenso das igrejas do Oriente de se tornarem autnomas, negando explicitamente o primado do

    poder Papal, que originou as chamadas Igrejas Ortodoxas (da qual so exemplos a Igreja

    Ortodoxa russa e a Igreja Ortodoxa grega). Entre 1.378 e 1.417, o Cisma do Ocidente, resultado

    do fim do papado de Avignon (uma srie de seis papas cujo pontificado foi sediado nessa cidade

    francesa), gerou novas discusses acerca da legitimidade papal, tendo em vista as manifestaes

    dos romanos para que a sede do papado retornasse a Roma, e de pleitos contrrios que defendiam

    a manuteno da sede da Igreja em Avignon2.

    importante lembrar que essas crises no foram capazes de romper definitivamente

    com o pressuposto bsico de compartilhamento da f catlica por toda a Europa. Mesmo na

    1 Adoto, aqui, a distino feita por Jrgen Habermas entre tica e moral. Essa distino, implcita em Uma teoria dajustia de Rawls, pode ser descrita nos seguintes termos. Consideraes ticas so orientadas pelo conceito de vidaboa, normalmente derivados de normas de ao compartilhadas com uma dada comunidade. Os discursos morais,de outro lado, se referem a uma perspectiva distanciada de todo etnocentrismo, o que exige o igual respeito a todos.Cf. HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Vol. I. trad. Flvio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 131.2 MULLETT, Michael A. Catholic reformation. London: Routledge, 1999, p. 2.

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    Inglaterra, as discordncias dos normandos, ainda nos sculos XI-XIII, com relao ao alto clero

    catlico, no eram divergncias acerca da f catlica, mas com relao legitimidade do papado

    de exercer o controle das instituies religiosas inglesas. Os normandos se percebiam os como

    portadores da verdadeira f crist, o que levou a uma relao tensa com o papado, com perodos

    intercalados de apoio mtuo (como a aliana entre ambos para liberar o clero de qualquer

    controle secular, que culminou na Reforma Cluniacense) e de belicosidade (as reaes da Igreja

    ao descumprimento, por parte de Guilherme II, de vrias das leis eclesisticas em seu reinado,

    entre 1087 e 1100, constituem um bom exemplo histrico)3. importante notar, ainda, que as

    tenses entre a igreja e as instituies polticas seculares mais antiga do que a nfase na reforma

    protestante como marco histrico faz supor. Com efeito, essa tenso vinha dos dois lados: as

    instituies polticas seculares buscavam maior independncia com relao ao papado, e as

    instituies eclesisticas tambm pretendiam alcanar mais liberdade frente aos poderesseculares4.

    Feitas essas ressalvas de forma a assegurar mais preciso histrica, torna-se possvel

    retomar o contexto da definio, na modernidade, de um espao individual de conscincia,

    intrinsecamente ligado questo dos direitos fundamentais. De acordo com Reinhart Koselleck,

    devemos nos voltar para as guerras religiosas a fim de compreender a soluo moderna para os

    conflitos religiosos5. Durante a Reforma Protestante, um fenmeno diferenciado se anunciava:

    embora os protestantes compartilhassem com os catlicos a maior parte de sua doutrina, asdiscordncias no eram apenas polticas, mas relativas ao prprio modo de vivenciar a religio. A

    vivncia religiosa catlica dependia de uma vivncia cujas diretrizes doutrinrias e morais

    decorriam da autoridade institucional do Papa e do alto clero, os nicos autorizados a interpretar

    oficialmente os textos sagrados. O protestantismo, por outro lado, e em linhas gerais, passou a

    acolher a possibilidade de todos interpretarempessoalmente a Bblia. Essa nova atitude perante o

    modo de vivenciar a religiosidade se difundiu amplamente na regio das atuais Holanda,

    3 BERMAN, Harold J.La formacin de la tradicin jurdica de occidente. Trad. Mnica Utrilla de Neira. Mxico:Fondo de Cultura Econmica, 1996, p. 456-7.4 BERMAN, op. cit.,p. 20.5 KOSELLECK, Reinhart. Crtica e crise - uma contribuio patognese do mundo burgus. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo-Branco. Rio de Janeiro: Contraponto e EDUERJ, 1999, p. 21-2.

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    Alemanha e Inglaterra, tornando-se uma rival da autoridade papal na Europa, poltica e

    espiritualmente6.

    Essa situao levantou um novo problema terico, j que defensores de religies

    distintas passaram a disputar, pelo poder poltico, o domnio religioso que deveria prevalecer em

    cada cidade e em cada Estado. A perspectiva de uma sociedade antes unificada por uma nica

    religio compartilhada por todos, luz do princpio segundo o qual a religio do rei a religio

    de todos (cujus rgio, ejus religio), se tornou insuficiente, no sculo XVIII, para lidar

    politicamente com uma nova situao de composio multi-religiosa que comportava, ao menos,

    dois grupos de credos distintos o catlico e o protestante7. A perspectiva platnica de moldar o

    indivduo a partir de sua funo na sociedade passou a ser insuficiente num contexto de

    diversidade religiosa.

    O pensamento de Thomas Hobbes um exemplo paradigmtico de como a teoria do

    Estado lidou com a nova situao histrica, ao lado do liberalismo clssico de Locke e Kant8. Os

    trs encontraram uma soluo filosfica inovadora para resolver esse problema poltico.

    importante ressaltar que a apresentao da soluo do liberalismo clssico para esse problema

    no se reveste apenas de importncia teortico-filosfica, mas de importncia histrica: a soluo

    poltica, como se ver, foi essencialmente a mesma proposta por esses tericos. Tanto a poltica

    quanto a filosofia poltica encontraram a mesma soluo para resolver ofato do desacordo moral,

    isto , o fato de que a sociedade moderna composta por pessoas que defendem as mais diversas

    concepes morais e religiosas. Para garantir a estabilidade poltica, o liberalismo clssico props

    a diviso do mundo social em duas esferas independentes a sociedade civil e a sociedade

    poltica, que corresponde distino entre esfera pblica e esfera privada9.

    6 importante notar que a Reforma Protestante teve conseqncias e causas distintas em cada um desses lugares,mas no cabe aqui um maior aprofundamento. Sobre esse ponto, ver THACKERAY, Frank W.(Editor). The

    protestant reformation, c. 1517-1648. in:Events That Changed the World Through the Sixteenth Century. Westport:Greenwood Publishing Group, Incorporated, 2001, p 161-165.7 Thackeray, op. cit., p. 163.8 importante notar que, apesar de Thomas Hobbes no se enquadrar na categoria do liberalismo, sua proposta desoluo poltica para os problemas religiosos essencialmente a mesma que a de Kant e a de Locke. Mas precisofrisar que a soluo hobbesiana partiu de uma concepo de Estado Absolutista, ao passo que os liberaishistoricamente criticaram o absolutismo.9 importante lembrar que essa distino, em si, no originria da modernidade, j que encontra razes no

    pensamento clssico. Aristteles, por exemplo, j apontava a distino entre o mundo privado em que os cidados daplis deviam satisfazer suas necessidades fsicas e materiais, e o mundo poltico (a gora) onde realizavam plenamente as suas potencialidades morais e intelectuais. Essa perspectiva fica mais evidente no pensamentoaristotlico que, para o propsito de observar como a distino pblico/privado era concebida no mundo grego,

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    O liberalismo clssico precisou redefinir a distino entre o pblico e o privado, e a

    soluo para o problema foi isolar a conscincia individual, transportada para o mundo da moral

    privada, e a atribuio de direitos fundamentais. O mundo poltico passa a ser fundado na

    autoridade poltica secular, que em Hobbes se formaliza pelo direito absoluto exercido pelo

    soberano. Assim, o homem foi partido em dois: os atos e as aes so submetidos lei soberana,

    mas a convico individual livre10.

    possvel dizer que a soluo liberal, fundada na perspectiva lockeana que busca na

    tolerncia e na atribuio de direitos fundamentais os princpios capazes de solucionar o

    problema do desacordo moral11, prevaleceu na teoria constitucional na forma das liberdades

    religiosas. Todavia, essa soluo sempre foi questionada na filosofia poltica. O filsofo mais

    comumente lembrado por sua crtica ao liberalismo Georg Hegel. De acordo com o filsofo

    alemo, as concepes morais surgem dos relacionamentos do indivduo estabelecidos em

    diferentes contextos morais e sociais (de acordo com a diviso tripartite proposta por Hegel, esses

    contextos seriam a famlia, a sociedade civil e o Estado). Nos domnios pblicos do direito e da

    poltica, o carter tico dos cidados prevalece sobre a perspectiva liberal, segundo a qual os

    cidados so meros portadores de direitos que reduzem o Estado a um mero contrato privado

    entre distintas partes, revogvel a qualquer momento12.

    A constituio estatal, na perspectiva hegeliana, mais que uma norma que garante

    direitos individuais, modelo tpico da concepo liberal: constitutiva da prpria ordem

    fundamental da vivncia social, personificada no Estado de modo a produzir a supremacia do

    exemplar, especialmente no tratamento filosfico dado economia na perspectiva aristotlica, que relegada aoespao privado da vida dos cidados, onde se luta pela sobrevivncia na luta contra a escassez de recursos materiais.A propsito, ver o Livro I de ARISTTELES. A poltica. Trad. Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Martins Fontes,1998. Para uma reconstruo histrica do desenvolvimento da distino pblico/privado, ver ARAUJO PINTO,Cristiano Paixo. Arqueologia de uma distino o pblico e o privado na experincia histrica do direito. In:OLIVEIRA PEREIRA, Claudia Fernanda (org.). O novo direito administrativo brasileiro. Belo Horizonte: Forum,2003.10 KOSELLECK, op. cit., p. 37.11 A tolerncia com relao a aqueles que diferem dos outros em questes religiosas to aceitvel para oEvangelho de Jesus Cristo e para a razo genuna da humanidade, que parece monstruoso que os homens sejam tocegos que no percebam a sua necessidade e as suas vantagens, claras como a luz. (...) Estimo acima de todas ascoisas a necessidade de distinguir exatamente os deveres exigveis pelo governo civil daqueles derivados da religio,

    bem como os limites que definem um e outro. Se isso no for feito, no h como encerrar as controvrsias quesempre surgiro entre os que tm, ou fingem ter, de um lado, uma preocupao pelo interesse das almas humanas e,de outro, o cuidado com a sociedade civil. (negrito do autor, traduo livre). LOCKE, John. A letter concerningtoleration (1689). Disponvel em . Acesso em: 27 nov. 2005.12 KENNY, Michael. The politics of identity. Cambridge: Polity Press, 2004, p. 61.

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    interesse geral e da soberania estatal13. Nesse sentido, o indivduo hegeliano deve ser incorporado

    na prpria ordem social, assumindo como seus princpios ticos e morais os princpios definidos

    pela comunidade poltica. O pensamento hegeliano suprime o espao privado, que cede por

    completo aos valores compartilhados no mundo poltico, numa ntida reao ao Estado liberal,

    que subordinava o mundo poltico aos valores privados. Nas palavras de Fioravanti:

    A constituio estatal , assim, a norma de direito pblico que est chamada a impor-se sobre atradicional estrutura privada da constituio estamental e feudal. Mas no s isso. Est pensada com afinalidade de combater todo tipo de privatismo, e em particular aquele que deriva de uma concepogeral da constituio que v nela uma pura norma de garantia das propriedades e dos direitosindividuais. Nessa concepo, que se conecta com a matriz individualista da Revoluo, Hegel v quaseanulado o valor poltico do Estado, reduzido a um conjunto de poderes encaminhados, do ponto de vistainstrumental, garantia dos direitos. Como afirmara em seus Fundamentos de filosofia do direito, de1821, um Estado cujo fim ltimo seja cuidar dos interesses dos particulares terminar sendoconsiderado por estes como um mero instrumento para usar e ordenar segundo as circunstncias14.

    No Estado hegeliano, suprime-se qualquer possibilidade de diversidade ao nvel da

    conscincia, na medida em que todos os valores individuais devem ser suprimidos em face dos

    valores pblicos assumidos no mundo poltico. De qualquer modo, Hegel prope uma sria

    crtica ao projeto liberal, ao questionar a prpria possibilidade de conceber uma estrutura

    constitucional fundada na oposio entre o mundo pblico e o mundo privado, locus reservado

    conscincia individual. Em termos semelhantes, Carl Schmitt questiona o constitucionalismo

    liberal, que teria tirado das constituies seu contedo poltico, firmando a desconexo entre a

    carta constitucional e o princpio democrtico (a soberania popular). Para ele, a conexo entre

    constituio e democracia somente poderia se realizar a partir da unidade do povo no Estado,

    atravs da vontade do presidente eleito15.

    O problema posto pelas guerras religiosas do sculo XVI est longe de ter sido

    consensualmente resolvido pela teoria constitucional. Os acontecimentos do sculo XX, longe de

    eliminar a tenso entre diversidade religiosa e unidade poltica, a potencializou enormemente.

    Ao longo desses quase cinco sculos, basicamente duas linhas de resposta foram propostas. A

    primeira linha, que passa pelo liberalismo (contemporaneamente representado por autores como

    13 importante perceber na concepo hegeliana uma importante reao aos movimentos revolucionrios na Europado sculo XIX.14 FIORAVANTI, Maurizio. Constitucin de la antigedade a nuestros dias. Trad. Manuel Martinez Neira.Coleccin Estructuras y processos. Serie Derecho. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 136.15 FIORAVANTI, op. cit., p. 154.

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    John Rawls, Ronald Dworkin, Gerald Gaus e Stephen Macedo16.), aposta numa distino precisa

    entre o mundo pblico e o privado, o que asseguraria um consenso poltico mnimo na esfera

    pblica capaz de garantir a estabilidade de um mundo social composto por pessoas que no

    concordam entre si em boa parte das questes ticas substantivas. A segunda linha, que passa por

    Hegel, representada contemporaneamente pelos autores comunitaristas (principalmente

    MacIntyre, Sandel e Taylor), e aposta na impossibilidade factual do projeto liberal, j que o

    prprio mundo poltico depende, tambm, das crenas compartilhadas pelos indivduos numa

    determinada comunidade, e impossvel sustentar a privatizao da conscincia, j que ela

    mesma depende de valores introduzidos pela comunidade poltica.

    Se no sculo XVI o problema da diversidade religiosa era o nico tematizado pela

    teoria poltica, o sculo XX ampliou consideravelmente o leque de conflitos culturais. No

    apenas a religio que gera o desacordo moral: os cidados das contemporneas sociedades

    pluralistas divergem entre si acerca de praticamente tudo, desde questes de gnero a questes

    morais e religiosas, passando pela compreenso tica vinculada a determinadas comunidades

    histricas e de imigrantes. Esse fenmeno de radicalizao da diversidade cultural tem sido

    chamado, pela teoria poltica, de multiculturalismo, e abrange temas bastante abrangentes,

    como o nacionalismo, questes relativas identidade cultural, sexual religiosa, racial e tnica.

    Apesar de muitos se referirem ao multiculturalismo como uma postura terica frente questo da

    diversidade cultural presente nas sociedades contemporneas, penso que esta uma posturaequivocada. O multiculturalismo no uma postura terica, mas o reconhecimento de um fato

    sociolgico abordado por diferentes perspectivas terico-constitucionais, como o liberalismo, o

    republicanismo e o comunitarismo. um tema central no apenas da teoria poltica

    contempornea, mas de nossa vida poltica real, onde j se tornaram comuns referncias

    poltica do reconhecimento17, poltica da identidade18 ou ao reconhecimento das

    16 Habermas, como se ver mais adiante, poderia ser enquadrado como um autor liberal, nesse debate. No penso queele seja uma alternativa ao debate entre liberais e comunitaristas, e minhas razes sero apontadas mais adiante.Para uma posio diferente, que entende a posio habermasiana como uma terceira alternativa ao debate, verCITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justia distributiva elementos da filosofia constitucionalcontempornea. Rio de Janeiro: Lmen Iuris, 2004.17 TAYLOR, Charles. The politics of recognition. In: GUTMANN, Amy (org.). Multiculturalism: examining the

    politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.18 KENNY, Michael. Op. cit.

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    diferenas19. No momento em que escrevo, por exemplo, os jornais noticiam o caos causado na

    Frana (j espalhado para outros pases europeus) por violentos protestos de imigrantes oriundos

    do norte da frica como reao sua excluso poltica, religiosa e econmica20, o que denota a

    urgncia de se discutir e implementar politicamente solues capazes de lidar com contextos

    multiculturais.

    A questo multicultural no apenas poltica ou terica, mas tambm pode ser

    discutida a partir de uma perspectiva constitucional. De acordo com Michel Rosenfeld, as

    questes multiculturais esto presentes na teoria constitucional moderna h alguns sculos, como

    mostrou a breve incurso na histria poltica europia. Todavia, o que mudou drasticamente foi a

    compreenso relativa a essas questes, em parte por uma nova onda de movimentos

    constitucionalistas ocorridos em todo o planeta, especialmente como reao aos trgicos

    acontecimentos do Holocausto e, mais recentemente, ao colapso da Unio Sovitica, que levou a

    novos movimentos nacionalistas na Europa oriental21.

    Identidade e diferena, universalismo e relativismo, democracia majoritria e direitos

    das minorias essas constituem algumas das tenses tematizadas pelo multiculturalismo que

    proporcionam uma abertura para a discusso constitucional. Embora essas questes tenham suas

    especificidades, importante perceber que todas partem de uma tenso eminentemente moderna:

    as dificuldades relativas constituio de um mundo poltico comum que saiba reconhecer e lidar

    de forma no-discriminatria com as vrias identidades parciais afirmadas num contexto de

    pluralismo22.

    importante compreender como essas questes tm sido tematizadas pela filosofia

    poltica contempornea, no apenas para saciar uma curiosidade filosfica, mas para ter

    conscincia de que a perspectiva filosfica assumida pode levar a concepes constitucionais

    completamente distintas. Nesse sentido, esse artigo se prope a revisar alguns dos debates

    contemporneos relativos ao modo pelo qual podemos compreender o fenmeno multicultural.

    Nesse contexto, sero apresentadas a compreenso liberal do multiculturalismo e as crticas

    19 FRASER, Nancy. Da redistribuio ao reconhecimento. In: SOUZA, Jess.Democracia hoje: novos desafios paraa teoria democrtica contempornea. Braslia: Editora UnB, 2001, p. 245.20 Paris se acalma, mas violncia se alastra por pases da Europa. Folha online, So Paulo, 16 nov. 2005. Mundo.Disponvel em . Acesso em: 16 nov. 2005.21 ROSENFELD, Michel. Comment: Human rights, nationalism, and multiculturalism in rhetoric, ethics and politics:a pluralistic critique. In: Cardozo Law Review, vol. 21, p. 1225.22 SEMPRINI, Andrea.Multiculturalismo. Trad. Laureano Pelegrin. Bauru: EDUSC, 1999, pp. 43-44.

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    http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89520.shtmlhttp://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89520.shtml
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    feminista, habermasiana e comunitarista perspectiva liberal, com base em trs eixos temticos:

    (i) as crticas comunitaristas ao liberalismo e a resposta liberal; (ii) a tenso epistemolgica

    suposta no debate; e (iii) a distino entre direitos individuais e direitos comunitrios e a

    relevncia desse debate para a teoria constitucional. Ao final dessa seo, pretendo defender a

    tese de que as discordncias entre liberais e comunitaristas so menos relevantes do que se

    costuma acreditar e que uma determinada construo do princpio da tolerncia liberal pode ser

    parte de uma resposta da teoria constitucional para a questo multicultural.

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    I. Desafios ao liberalismo.

    I.1. A crtica comunitarista ao liberalismo.

    Talvez um dos principais pontos de discordncia entre liberais e comunitaristas esteja

    no modo pelo qual a esfera pblica compreendida. O movimento comunitarista pode serentendido como uma reao ao renascimento do liberalismo poltico a partir de 1971, com a

    publicao de Uma teoria da justia, de John Rawls. O marco terico do qual os comunitaristas

    partem encontra suas razes no pensamento de Georg Hegel, de Marx e de Aristteles. A idia

    aristotlica de que a justia est enraizada numa comunidade cujo vnculo primrio um

    entendimento compartilhado tanto acerca do bem individual quanto do bem da comunidade1

    pode ser enfatizada como a tese central do comunitarismo.

    Nesse sentido, so lanadas dvidas quanto distino entre o mundo pblico e omundo privado suposta na raiz do pensamento liberal, na medida em que o liberalismo supe a

    possibilidade de se encontrar um fundamento independente de nossas pressuposies morais

    privadas para discutirmos questes pblicas. Ou seja: a esfera pblica liberal precisa encontrar

    um fundamento diferente de nossas crenas individuais morais e religiosas, e esse

    empreendimento tido por impossvel pelos autores comunitaristas. As implicaes polticas da

    crtica comunitarista so eminentemente conservadoras. A comunidade defendida por essa

    corrente filosfica assentada em tradies, costumes e identidades estabelecidos historicamente.

    Para Sandel, por exemplo, a famlia serve de modelo de comunidade e de evidncia de um bem

    maior que a prpria justia, e a preservao dos valores comunitrios pode ser um pressuposto

    suficiente para banir atividades moralmente ofensivas praticadas pelos indivduos2.

    Em resumo, possvel apontar que as crticas comunitaristas ao liberalismo se renem

    em trs grupos principais. Os grupos de crticas so os seguintes: o liberalismo tem uma

    concepo equivocada da pessoa; assume uma teoria universalista da justia, bem como uma

    concepo ingnua da neutralidade perante as diversas culturas3. A seguir, essas crticas sero

    apresentadas, de modo a resumir o cerne do debate entre essas duas vertentes tericas da filosofia

    1 Traduo livre de MACINTYRE, Alasdair.After virtue.Notre Dame: Notre Dame University Press, 1981, pp. 232-3.2 Ver, por exemplo, SANDEL, Michael.Morality and the liberal ideal. In: The New Republic, 07 de maio, 1984, p.17.3 Acerca dessas crticas, especialmente na filosofia de John Rawls, ver MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Rawlsand communitarianism. In: FREEMAN, Samuel (org.). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge:Cambridge university press, 2003.

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    poltica contempornea. Em seguida, sero apresentadas as respostas liberais a essas crticas, de

    modo a estabelecer os parmetros da discusso a ser realizada pela teoria constitucional.

    A primeira crtica comunitarista postula que o indivduo liberal constitudo apenas

    por sua vontade, liberado de todas as conexes comunitrias, sem valores comuns, costumes ou

    tradies. um indivduo cuja vida no compartilha valor algum com os cidados de sua

    comunidade poltica. Homens e mulheres numa sociedade liberal no compartilham uma nica

    cultura moral na qual podem aprender como devem viver: no h um consenso acerca de uma

    determinada concepo da boa vida. O nico vnculo com os outros indivduos, diz a crtica

    comunitarista ao liberalismo, se d pelos direitos atribudos a cada indivduo. Essa talvez a

    principal tese defendida pelos comunitaristas, o que denota o vnculo com o pensamento

    hegeliano. A esfera pblica liberal, na perspectiva comunitarista, essencialmente um lugar

    colonizado por consideraes privadas de indivduos portadores de direitos. A razo fundamental

    para a crtica concepo liberal de pessoa se deve formulao rawlsiana da posio original,

    em Uma teoria da justia. De acordo com Rawls, representante contemporneo do

    contratualismo, um acordo justo acerca dos bens sociais primrios pode ser alcanado apenas se

    as partes que firmarem esse acordo estiverem em uma condio denominada de vu da

    ignorncia, na qual no sabem nada a respeito de sua posio particular real4. Os comunitaristas

    apontam que esse desacoplamento radical do indivduo de sua natureza e de suas concepes

    ticas impossvel psicologicamente5

    .

    De acordo com a segunda crtica comunitarista, veiculada especialmente por

    MacIntyre e Michael Walzer, a teoria liberal foi desenvolvida para aplicar princpios universais e,

    assim, incapaz de atender aos modos diferentes pelos quais as vrias culturas incorporam os

    mais diversos valores6. Essa crtica importante, por revelar um importante aspecto do

    comunitarismo a justificao apriorstica dos valores de qualquer comunidade. Os valores

    aceitos comunitariamente so justificados apenas pelo prprio consenso material em torno deles.

    Como no h nenhuma base independente de avaliao dos valores comunitrios, devemosaceitar que os valores de qualquer comunidade esto justificados pelo mero consenso intra-

    4 A respeito do vu da ignorncia, ver RAWLS, John. Uma teoria da justia.Trad. Almiro Pisetta e Lenita MariaRimoli Esteves. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 146-153.5 Essa crtica especialmente veiculada no primeiro captulo de SANDEL, Michael. Liberalism and the limits ofjustice. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, pp. 15-64.6 A esse respeito, ver MACINTYRE, Alasdair, op. cit., e WALZER, Michael. Esferas da justia: uma defesa dopluralismo e da igualdade. Trad. Jussara Simes. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

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    comunitrio em torno deles. Como se ver na seo II, essa tese poltica se sustenta sobre a

    radicalizao do relativismo epistemolgico aplicado s vrias diferentes culturas. Essa tese

    tambm mina qualquer tentativa comunitarista de lidar com a distino pblico/privado, j que,

    associada primeira crtica, segundo a qual todos os valores do indivduo so, necessariamente,

    derivados dos valores aceitos por sua comunidade, supe que os valores privados devem ser os

    mesmos valores publicamente aceitos. O comunitarismo, assim, mina qualquer espao para a

    diferena no interior de uma nica comunidade poltica. Esse tema ser melhor explorado na

    seo III.

    Um tema comum literatura comunitarista a crtica filosofia anti-perfeccionista

    dos autores liberais, que defendem um ideal de neutralidade7. O perfeccionismo tico o

    princpio segundo a qual a ao moral aquela que maximiza a perfeio das realizaes

    humanas na arte, na cincia e na cultura8. O liberalismo contemporneo, de modo geral, prope

    que a razo pblica deve se fundar em princpios razoveis e aceitos (ou aceitveis) por todos os

    cidados, independentemente da concepo de bem aceita e vivenciada por cada um. Assim, as

    questes pblicas devem ser resolvidas a partir de uma concepo neutra perante as diversas

    culturas, religies e concepes morais. Nessa medida, os liberais anti-perfeccionistas defendem

    a prioridade do direito sobre o bem (e, conseqentemente, sobre a moral). Sandel, MacIntyre e

    Taylor suspeitam dessa tese: para eles, o anti-perfeccionismo gera conseqncias indesejadas, j

    que algumas prticas e formas de vida culturais simplesmente no poderiam sobreviver a no serque fossem promovidas pelo prprio Estado. Alm disso, a distino entre o direito e a moral

    sobre a qual o ideal de neutralidade se sustentaria depende de um pressuposto pouco tematizado,

    o de que o direito assume, ele prprio, um ideal moral particular assume, assim, uma concepo

    particular de bem. Isso, de acordo com o comunitarismo, mina inevitavelmente a pretenso

    liberal de neutralidade do direito. importante notar, ainda, o vnculo entre o comunitarismo e o

    perfeccionismo, no sentido de que o perfeccionista defende que a comunidade poltica deve fazer

    julgamentos a respeito daquilo que tornaria a vida de seus membros boa. O anti-perfeccionista,

    por sua vez, defenderia que esses julgamentos deveriam ser feitos por cada cidado, e ao Estado

    caberia apenas assegurar as condies objetivas para que esses julgamentos fossem realizados.

    7 importante lembrar a exceo de Joseph Raz, um liberal perfeccionista. A propsito, ver seu The morality offreedom. Oxford: Oxford University Press, 1996.De acordo com Raz, o princpio da autonomia perfeccionista, umavez que, em sua concepo, os indivduos no so autnomos por acreditarem no valor de suas crenas, mas sim

    porque devem viver em busca de objetivos vlidos independentemente de suas crenas.8 Essa a definio de John Rawls, em Uma Teoria da Justia, op. cit., p. 359.

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    Isso leva diretamente concluso de que o comunitarismo no pode supor a existncia

    de um espao independente em que as razes sejam articuladas publicamente, com base em

    razes que todos poderiam aceitar. impossvel para o comunitarismo aceitar, por exemplo, a

    concepo habermasiana de esfera pblica, fundada na tica do discurso, que exige a aceitao de

    um princpio de universalizao, pelo qual se estabelecem as condies para o julgamento

    imparcial, onde so vlidas as normas de ao s quais todos os possveis atingidos poderiam

    dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais9. Assim, o

    comunitarismo e qualquer teoria do direito fundada na concepo do compartilhamento de

    valores no pode oferecer as bases do dilogo entre comunidades que no compartilham seus

    valores ticos. Pode oferecer apenas duas alternativas, a serem discutidas na seo III o

    separatismo, com o subseqente fracionamento da sociedade plural em vrias comunidades

    isoladas, e a assimilao, forando as diversas comunidades a compartilhareticamente os valorescomunitrios.

    As crticas comunitaristas colocam o pensamento liberal em srias dificuldades, mas

    os liberais no se furtaram difcil tarefa de refut-las. Na verdade, o dilogo entre autores

    liberais e comunitaristas foi to produtivo e gerou tantas concesses de ambos os lados da

    controvrsia que, hoje, h vrios tericos cuja posio ambgua. Decerto h liberais radicais,

    como Robert Nozick e Friedrich Hayek, que defenderiam pontos de vista bastante prximos aos

    criticados pelos comunitaristas, assim como h comunitaristas radicais, grupo em que se destacaa posio de MacIntyre, cuja proposta de resoluo do desacordo moral nostlgica e pressupe

    a rejeio da prpria modernidade, sugerindo que as pessoas voltem a viver em pequenas

    comunidades em que possam compartilhar suas concepes ticas e religiosas com todos os seus

    concidados.

    Mas h uma grande zona cinzenta entre as duas posies, onde a discusso pode se

    tornar mais proveitosa. Penso que entrariam nessa zona cinzenta autores como Will Kymlicka,

    e mesmo Charles Taylor, tipicamente lembrado como um comunitarista radical, classifica suaprpria posio como liberal e busca justificar seus pontos de vista a partir de pressuposies

    liberais10. Talvez um caso exemplar dessa seja o de Michael Walzer, por vezes categorizado entre

    os autores comunitaristas, principalmente por sua crtica teoria da justia de John Rawls.

    9 HABERMAS, Jrgen. op. cit., p. 142.10 TAYLOR, Charles, op. cit., p. 52.

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    Todavia, na maior parte das vezes, ele mesmo se intitula um liberal e, de fato, defende posies

    que, como se ver, bastante prxima do que autores exemplares do liberalismo contemporneo,

    como o prprio Rawls e Dworkin, defenderiam. Vejamos o caso de Walzer.

    Michael Walzer aponta que as crticas comunitaristas ao liberalismo podem ser

    reunidas em duas perspectivas contraditrias: a descritiva e a terica11. A perspectiva descritiva

    assume que a teoria poltica liberal representa acuradamente a prtica social liberal. Assim, as

    sociedades contemporneas ocidentais so realmente tal como descritas pela teoria liberal so

    compostas por indivduos radicalmente isolados, egostas racionais, protegidos e divididos por

    seus direitos inalienveis, que no compartilham nenhuma tradio religiosa ou moral. Cada

    cidado de uma democracia liberal se imagina realmente livre, desencarnado12 de qualquer

    concepo moral derivada de uma comunidade. A sociedade liberal, vista luz dessa perspectiva

    comunitarista, realmentefragmentada, contraposta a um ideal de comunidade que o lugar da

    coerncia e da conexo com valores e prticas compartilhadas. A perspectiva terica, por sua

    vez, argumenta que a teoria liberal representa equivocadamente a realidade. Ningum

    independente de laos sociais, autnomos e independentes para escolher qualquer concepo

    moral que desejar. Todos nascemos numa famlia e vivemos em vrias comunidades nossa

    vizinhana, colegas de escola e de trabalho. No escolhemos essas comunidades, mas nascemos

    nelas ou as herdamos13.

    importante notar que as duas perspectivas so mutuamente incompatveis: a

    perspectiva descritiva assume que o liberalismo realmente est certo quanto descrio das

    modernas sociedades liberais, fragmentadas entre cidados que no concordam em quase nada. O

    que a perspectiva descritiva questiona como deveriam ser essas sociedades, e no como elas

    so. nesse sentido que se torna possvel a compreenso da nostalgia da filosofia de MacIntyre.

    O autor parte do que considera o fracasso do Iluminismo, cuja defesa dos valores universais

    considerada a causa da crise moral instaurada no ocidente. O Iluminismo, na perspectiva de

    MacIntyre, desenraizou os valores particulares de cada comunidade, forando-as a assumirvalores universais, o que levou a um vazio tico no preenchido pelos princpios universais

    11 A descrio das duas perspectives seguir a exposio de Michael Walzer em The communitarian critique ofliberalism.12 Em ingls, unencumbered self - expresso cunhada por Sandel para descrever os agentes da posio originalrawlsiana, desencarnados em virtude do vu da ignorncia e no conhecerem nenhum fato concreto de sua posiona vida social.13 Walzer, Idem, p. 10.

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    propostos pelo Iluminismo. Partindo de uma defesa da tica aristotlica das virtudes, MacIntyre

    defende que a moral e deve ser formada pela insero do indivduo em sua comunidade, a partir

    de valores compartilhados com todos. No existem valores universais, mas vrias concepes de

    bem, mas cada sociedade deve admitir que seus membros defendam uma nica dessas

    concepes, seja ela catlica, muulmana, kantiana, aristotlica ou qualquer outra. A diversidade

    intra-social um problema que deve ser extirpado, sob pena de se instaurar uma crise moral

    geral. Como garantir as condies do compartilhamento de toda a vida social, no mundo

    contemporneo? A soluo de MacIntyre simples o nico lugar que pode satisfazer o requisito

    tico do compartilhamento de valores uma pequena comunidade: o Estado-nao um lugar

    imprprio para isso14.

    Todavia, se a perspectiva descritiva estiver correta, ento a perspectiva terica no

    est, pois se fundamenta no entendimento de que a descrio liberal da sociedade est errada, j

    que as mesmas sociedades ocidentais descritas pela perspectiva comunitarista descritiva como

    fragmentadas, na verdade, so compostas por pessoas que compartilham laos ticos e

    concepes de bem definidas. Michael Walzer argumenta que as duas perspectivas, para serem

    mantidas coerentemente, dependem de um ajustamento nas duas teses, de modo a torn-las

    corretas e mutuamente sustentveis. De acordo com ele, a vertente terica do comunitarismo est

    correta quando aponta que as sociedades liberais realmente so compostas por indivduos

    relativamente dissociados, mas est equivocada quando diz que no h nada compartilhado entreos cidados de uma sociedade assim. A segunda perspectiva ajuda a compreender esse fato,

    quando aponta que o liberalismo no descreve adequadamente nossa realidade social, tendo em

    vista que nascemos e vivemos numa famlia e compartilhamos laos e valores ticos com vrias

    pessoas. O problema que, se tomamos uma verso radical da segunda perspectiva, somos

    14 A esse respeito, ver a seguinte passagem, que contrape o modo de vida das pequenas comunidades com relaoao modo imperial que assimila todas as concepes ticas: H algumas tendncias importantes no pensamento deMacIntyre que parecem restringir o raciocnio aristotlico-tomstico ao modo de vida de pequenas comunidades,como: esse tipo de raciocnio tende a surgir sempre que uma pequena comunidade atinge o consenso mnimo a

    respeito do desenvolvimento humano; o domnio do imprio tem sido e continuar a ser inimigo de tal tomismocomunal; e o raciocnio aristotlico-tomstico uma realizao de nossas capacidades naturais que nos levam parao reconhecimento de nossa dependncia de um poder maior que o nosso e que, quando reconhecido, nos leva areconhecer nossa falta de auto-suficincia. Apesar disso, essa perspectiva (se , realmente, parte da proposta deMacIntyre) repousa em uma tese muito menos historicista que a maior parte do pensamento de MacIntyre, uma vezque alega que o raciocnio aristotlico-tomista surge naturalmente a partir de uma realidade humana bsica ao invsde surgir de uma prtica social e histrica. Assim, a questo real se o tomismo est ligado a prticas que lhe dosustentao ou se pode formular uma alegao mais universalista de ser o modo apropriado de raciocnio de todas as

    pequenas comunidades que escaparam corrupo do imprio. Traduo livre de MURPHY, Mark C. AlasdairMacIntyre. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 200.

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    levados ao raciocnio equivocado segundo o qual compartilhamos e devemos compartilhar

    todos os valores ticos com as pessoas prximas a ns. Esse um equvoco que a primeira

    perspectiva no permite cometer, ao nos lembrar que as democracias liberais so, de fato,

    fragmentadas, embora menos do que um liberalismo mais radical pressuponha.

    Cabe ainda esclarecer uma tese que mina o aspecto comunitarista da tese de Walzer.

    Ele se esquece do fato de que muitas das comunidades da qual os cidados de uma sociedade

    liberal fazem parte tambm so escolhidas, e no apenas herdadas ou porque tais cidados

    nasceram nelas. um fato, nas sociedades liberais, que muitas pessoas nasceram em famlias

    catlicas, mas isso no implica dizer que devero seguir, necessariamente, a f catlica. Podem

    simplesmente se converter ao budismo poropo, ao cientismo ou ao agnosticismo por razes

    refletidas e crticas, de forma to fervorosa e sincera quanto qualquer pessoa nascida na Arglia

    defenderia a religio muulmana. A escolha tambm um fator importante a ser considerado

    numa sociedade pluralista, e costuma ser desprezado pela crtica comunitarista, segundo a qual a

    nfase liberal na escolha traduz a questo da identidade em termos simplrios, como a escolha da

    cor de uma camisa ou de uma cala jeans.

    importante ainda lembrar, embora j tenha apresentado essa questo brevemente,

    que, do ponto de vista de uma teoria constitucional, o comunitarismo rejeita a tese de que o

    indivduo necessariamente portador de direitos fundamentais. Essa tese principalmente

    apresentada por Michael Sandel. De acordo com ele, aceitar que a vida poltica deve ser baseada

    em direitos pressupe a crena de que a justia deve ter absoluta prioridade sobre todas as nossas

    concepes morais, mas a aceitao da prioridade da justia implica a tese de que a identidade de

    cada indivduo pode ser estabelecida independentemente de sua concepo moral. O problema

    que, para Sandel, a identidade constituda pela prpria concepo moral de cada cidado e,

    assim, a justia no pode ter prioridade alguma na vida poltica em relao s vrias concepes

    morais presentes na sociedade15.

    Vejamos como o liberalismo responde a essas crticas.

    I.2. A resposta do liberalismo contemporneo s crticas.

    Ao mesmo tempo em que as crticas comunitaristas colocam o liberalismo em srias

    dificuldades, parecem incapazes de oferecer uma alternativa terica (que tem implicaes

    15 Ver, especialmente, o captulo I de SANDEL, Michael.Liberalism and the limits of justice, op. cit.,pp. 15-64.

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    jurdico-polticas srias, como se ver na seo III) razovel ao fato do pluralismo, ou seja,

    situao concreta das sociedades ocidentais modernas, constitudas por cidados que podem

    discordar acerca de seus valores ticos, embora convivam num mesmo espao geopoltico.

    importante lembrar, novamente, da grande zona cinzenta situada entre as alternativas

    puramente liberais e comunitaristas, que s vezes tornam o debate mais grave e menos

    produtivo do que poderia ser.

    O filsofo liberal contemporneo que mais debateu com os comunitaristas , sem

    sombra de dvidas, John Rawls. Uma afirmao categrica como esta poderia parecer perigosa

    primeira vista, j que Ronald Dworkin escreveu recentemente sobre a possibilidade de uma

    comunidade liberal. Mas, quando olhamos para a trajetria filosfica da obra de Rawls, fcil

    notar que o caminho percorrido entre a publicao de Uma teoria da justia (doravante

    denominado TJ, publicada em 1971) e O liberalismo poltico (LP, 1993) marcado pela

    pretenso de responder s crticas comunitaristas dirigidas a sua obra.

    Na verdade, talvez as crticas comunitaristas dirigidas a TJ fossem injustas, tendo em

    vista que a preocupao central da obra era responder aos utilitaristas, na poca os tericos

    dominantes da filosofia tica e poltica dos Estados Unidos16. Nesse sentido, justifica-se o apoio

    de TJ na teoria da escolha racional para justificar que a idia de utilidade era insuficiente para

    tornar uma sociedade justa, j que era o tipo de apoio terico buscado na poca pelos economistas

    para lidar com os problemas de distribuio de renda numa sociedade capitalista17. Assim, Rawls

    travou um importante debate com os economistas, demonstrando cabalmente que o homo

    economicus tinha boas razes para sustentar sua vida social em razes de direito fundadas em

    pressupostos constitucionais de justia, e no em razes de utilidade ou de maximizao de

    riqueza.

    Assim, embora Rawls fizesse uma importante defesa das liberdades fundamentais e da

    democracia18 como princpios de justia que podem ser consensualmente aceitos na posio

    16 RAWLS, Prefcio edio brasileira, TJ, p. XIV.17 Ver, por exemplo, MIRRLEES, J. A. The economic uses of utilitarianism. In: SEN, Amartya; WILLIAMS,Bernard. Utilitarianism and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.18 Tanto os direitos fundamentais quanto a democracia esto insculpidos no primeiro princpio de justia da teoriarawlsiana. Esse um importante ponto do debate de Rawls com Habermas, j que, para o terico alemo, a estruturaargumentativa de Rawls pressupe que a democracia deve ser restrita por razes de direito fundamental. Contudo,essa uma leitura enviesada de TJ, como o prprio Rawls responde, j que seu primeiro princpio de justia asseguraque as liberdades polticas esto includas dentre as liberdades bsicas, que renem os direitos fundamentais. A

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    original, o que seria uma permanente fonte de incluso de culturas minoritrias se tornou o n

    grdio da disputa com os comunitaristas, que o acusaram de todas as trs deficincias dirigidas ao

    pensamento liberal apontadas na seo anterior. Os artigos escritos aps a publicao de TJ, que

    culminaram em LP, podem ser compreendidos como a tentativa de defender TJ das crticas

    comunitaristas. Nesse sentido, o problema principal a ser solucionado a questo da estabilidade

    das instituies liberais e democrticas diante das grandes divergncias existentes na sociedade.

    Nas palavras de Rawls:

    O liberalismo poltico procura uma concepo poltica de justia que, assim esperamos, possaconquistar o apoio de um consenso sobreposto que abarque as doutrinas religiosas, filosficas e moraisrazoveis de uma sociedade regulada por ela. A conquista desse apoio permitir responder nossasegunda questo fundamental: como os cidados, que continuam profundamente divididos em relaos doutrinas religiosas, filosficas e morais, mantm, apesar disso, uma sociedade justa e estvel19?

    Como apontado, as principais crticas comunitaristas se referem concepo de

    pessoa abstrata aceita pelo liberalismo, s pretenses de universalidade e idia de

    neutralidade. Vejamos como Rawls responde a tais crticas.

    Com relao crtica comunitarista segundo a qual o liberalismo supe uma viso

    desencarnada de pessoa, Rawls postula que ela partiu de uma leitura equivocada da posio

    original. O papel da posio original em TJ uma situao puramente hipottica, que serve

    apenas para ajudar a identificao de princpios de justia a partir de uma posio moral

    imparcial que no parta de uma posio especfica da sociedade. O projeto rawlsiano pretende

    desenvolver uma teoriaprocedimental capaz de evitar que as pessoas recorressem a suas

    posies especficas no mundo social para discutirem a respeito dos princpios de justia que

    regulamentariam a vida de todos os cidados20.

    respeito do debate entre os dois, ver HABERMAS, Jrgen.Reconciliation through the public use of reason: remarkson John Rawlss political liberalism. The journal of philosophy. Vol. 92, n. 03 (Mar., 1995), 109-131, e RAWLS,John. Political Liberalism: Reply to Habermas. The Journal of Philosophy. Vol. 92, Issue 3 (Mar., 1995), 132-180.Para uma posio similar e mais aprofundada acerca da relao entre democracia e direitos fundamentais no

    pensamento de Rawls, ver GUTMANN, Amy. Rawls on the relationship between liberalism and democracy. In:

    FREEMAN, Samuel. op. cit., pp. 168-199.19 RAWLS, John. O Liberalismo Poltico. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. Braslia: tica, 2000, p. 52. Rawls serefere ao problema da estabilidade como o segundo problema que o liberalismo poltico se prope a resolver. O

    primeiro problema investigado em TJ, e se refere aos princpios de justia que serviriam de diretrizes para explicare servir de base para a crtica das instituies liberais e democrticas existentes. LP busca demonstrar que esses

    princpios poderiam ser consensualmente aceitos por uma sociedade pluralista. Destaquei o poderiam paraenfatizar que, para Rawls, seria perfeitamente plausvel que outros princpios de justia fossem melhores que os

    propostos em TJ, mas o nus da prova do crtico.20 Rawls quer evitar, no design de sua posio original, o seguinte. Se as pessoas, ao decidirem os princpios de

    justia que deveriam reger a sua sociedade concreta, soubessem sua posio social concreta, poderiam simplesmente

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    A posio original apenas um critrio contra-ftico para assegurar a imparcialidade

    do discurso, que tem papel idntico s condies ideais de fala, de Habermas21. A diferena

    fundamental est no fato de que, para responder ao problema da estabilidade da concepo de

    justia, Rawls no pode recorrer a uma teoria da linguagem22, como faz Habermas, pois precisa

    de uma concepo poltica independente de qualquer teoria filosfica mais controversa. Ao

    aceitar a teoria pragmtica dos atos de fala desenvolvida por Austin e por Searle, que no

    consensualmente aceita nem entre os filsofos, a estabilidade da teoria habermasiana fica

    comprometida por depender de um consenso no-discursivo acerca da teoria do agir

    comunicativo. Quem no aceita a teoria do agir comunicativo como uma teoria verdadeira ou

    pelo menos razovel tem boas razes para rejeitar toda a teoria habermasiana acerca do direito e

    da democracia23. precisamente essa instabilidade que Rawls precisa evitar em TJ, e por isso

    precisa de uma perspectiva no-fundacionalista para discutir sua teoria da justia24.

    decidir de forma a privilegiar a si mesma. O homo hominis lupus hobbesiano est implcito aqui, pois no h razoalguma para supor que as outras pessoas agiriam de forma altrusta. Pressupor o altrusmo seria, alm de contra-intuitivo, uma ingenuidade, mormente quando consideramos que as sociedades contemporneas so diversas e nocompartilham nenhum critrio tico. Uma pessoa rica provavelmente privilegiaria os mais ricos em detrimento detodos os outros, e seu poder econmico poderia minar qualquer possibilidade de justia. Ao assegurar condieseqitativas de poder e de discurso na posio original, Rawls estipula condies razoveis para que se possa discutira respeito dos princpios sem deixar de levar em considerao que todos so livres e iguais.21 Esse ponto foi enfatizado por OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Critique of public reason revisited: Kant as anarbiter between Rawls and Habermas. Disponvel em . Acessoem: 24 nov. 2005.22 Isso no significa dizer que Rawls ignore o giro lingstico. Alm disso, em vrios momentos cita Davidson,Quine, Searle, Strawson e Wittgenstein, avaliando suas consideraes acerca da linguagem, sem, contudo, secomprometer com uma posio com uma filosofia da linguagem. Alm disso, de certo modo, TJ antecipa vrias dasconsideraes habermasianas e de Dworkin, ao buscar em Kohlberg um respaldo psicolgico de sua teoria da justia.Cf. TJ, p. 692 e seguintes. Mas preciso observar o fato que a validade da teoria rawlsiana no depende da teoriade Kohlberg, j que essa teoria psicolgica apenas um exemplo capaz de se tornar um ndico da validade de suateoria.23 Essa uma questo que mostra como o dilogo entre filosofia e cincia pode ser frutfero. A relao entre filosofiada mente e filosofia da linguagem destacada por John Searle, que mostra como a sua teoria dos atos de faladepende de uma teoria da mente compatvel com nossos conhecimentos biolgicos. Diz o autor: H cerca de duasdcadas, comecei a trabalhar com questes de filosofia da mente. Precisava de uma explicao da intencionalidade,tanto para estabelecer uma base para minha teoria dos atos de fala quanto para completar essa teoria. A meu ver, afilosofia da linguagem um ramo da filosofia da mente; portanto, nenhuma teoria da linguagem completa sem uma

    descrio das relaes entre mente e linguagem e de como o sentido a intencionalidade derivada de elementoslingsticos fundamentado na intencionalidade intrnseca da mente/crebro, mais bsica em termos biolgicos.SEARLE, John.A redescoberta da mente. Trad. Eduardo Pereire e Ferreira. So Paulo: Martins Fontes, 1997. po. 01-02. O problema que, admitido esse caminho que me parece razovel, j que, antes de sermos seres sociais, somosseres biolgicos se a teoria da mente proposta por Searle se revelar falsa, sua teoria dos atos de fala precisa serrevista. E parece que esse o caso, j que sua teoria da mente, que postula uma intencionalidade originria que sestaria presente na mente humana, viola a premissa metodolgica bsica da cincia moderna o naturalismometodolgico, segundo o qual o cientista deve se restringir a buscar fenmenos e causas naturais, sem apelar a

    premissas sobrenaturais, como Deus ou algum outro pressuposto no-explicvel sequer em princpio por razesnaturais. Sem a premissa naturalista, o conhecimento emprico fica sujeito s falcias da ignorncia e do terceiro

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    http://www.geocities.com/nythamar/debate.htmlhttp://www.geocities.com/nythamar/debate.html
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    Desse modo, a crtica comunitarista de Sandel, segundo a qual a posio original

    pressupe que as pessoas so desencarnadas do mundo e das condies da vida social, no se

    sustenta. O ponto de vista que Rawls pretende destacar, lanando mo da posio original, que

    as pessoas tm um senso de justia a partir do qual podem refletir e revisar suas atitudes a partir

    de um ponto de vista no qual assumem o respeito pelas outras pessoas como livres e iguais a si.

    Essa resposta j estava presente em TJ25, mas, em LP, outro tipo de resposta se torna possvel.

    Nessa obra, a concepo de pessoa defendida a depessoa como cidado, que Rawls considera

    implcita na cultura poltica das sociedades liberais democrticas. O conceito de cidado dissocia

    a idia de pessoa de qualquer concepo tica particular, que o equvoco do comunitarismo de

    Sandel, Taylor e MacIntyre, na medida em que consideram o vnculo essencial entre a concepo

    pblica de pessoa e as determinadas concepes culturais, religiosas e ticas que elas defendem.

    Assim, a concepo rawlsiana de justia consegue responder crtica comunitarista: suaconcepo de pessoa no desencarnada, uma vez que depende de uma cultura poltica pblica

    particular, presente nas sociedades liberais democrticas.

    A segunda crtica e a terceira crticas comunitaristas sustentam (i) que o liberalismo

    defende a aplicao de normas universais incapazes de tornar possvel o atendimento das

    diferentes concepes defendidas pelas mais diferentes culturas e (ii) que o liberalismo no

    neutro perante as vrias concepes ticas e, portanto, ao assumir aprioridade do direito sobre o

    bem, exclui injustificadamente determinadas culturas que seriam anti-liberais. No fundo, as duascrticas partem do mesmo pressuposto terico e sero avaliadas conjuntamente. De acordo com

    essa crtica, o liberalismo no seria capaz de acomodar na mesma sociedade comunidades

    culturais diferentes que no aceitam os princpios universais e supostamente neutros defendidos

    pela cultura liberal. Essa crtica depende de uma concepo epistemolgica falsa, que ser

    excludo, cujas estruturas lgicas so as seguintes: dado que sou ignorante da causa de A, logo s pode ter sido B.A primeira parte do argumento comete a falcia da ignorncia porque, partindo da ignorncia com relao ao que sequer explicar, no possvel concluir absolutamente nada. A segunda parte do argumento comete a falcia doterceiro excludo: se eu no sei a causa de A, e no posso concluir nada com relao a isso, tambm no posso

    concluir que s B pode explicar A, pois estou aprioristicamente excluindo outras respostas, ao menos em princpio,plausveis. Para uma explicao sobre como a teoria da mente de Searle supe violar o pressuposto metodolgiconaturalista, ver DENNETT, Daniel C.A perigosa idia de Darwin: a evoluo e os significados da vida. Trad. TalitaM. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 415.24 importante notar uma importante diferena entre Rawls e Habermas nesse aspecto. Habermas tambm buscaevitar uma perspectiva fundacionalista, embora necessite da teoria dos atos de fala para articular funcionalmente suateoria da ao comunicativa, ao passo que Rawls no depende da veracidade de sua posio original, assumida comohipottica desde o incio e articulada como um artifcio metodolgico para permitir a discusso procedimental acercados princpios de justia.25 TJ, p. 13.

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    avaliada na seo II a idia de que culturas diferentes no compartilham (e no podem

    compartilhar!) absolutamente nada em comum. Como visto, entretanto, a concepo do

    liberalismo poltico apia-se na tese de que as sociedades pluralistas precisam assegurar um

    consenso sobreposto entre as vrias culturas diferentes, apoiado na cultura poltica pblica que

    compartilhada por todos. Mas essa cultura poltica pblica no depende de nenhuma concepo

    de mundo particular, ao mesmo tempo em que sustentada por todas (embora possa ser

    justificada independentemente de cada uma delas) na medida em que supe o consenso

    sobreposto entre as vrias concepes particulares de bem com relao aos princpios jurdico-

    constitucionais que regulamentam sua vida comum, fundado na idia de pluralismo razovel, ou

    seja, que cada concepo de bem deve respeitar todas as outras.

    Rawls no defende o pluralismo simples, ou seja, a tese segundo a qual as sociedades

    democrticas devem acomodar qualquer forma de pluralismo. Assim como toda a tradio liberal

    defende desde Locke, a estabilidade poltica depende de um acordo pblico cuja violao leva

    desagregao da vida social. Esse o problema que os comunitaristas apontam que as sociedades

    liberais no conseguem resolver, mas a soluo rawlsiana, mais tarde tambm defendida por

    Ronald Dworkin e por Jrgen Habermas, resolve sem apelar para concepes ticas capazes de

    unir a todos26. A concepo de Rawls, Habermas e Dworkin puramente procedimental e

    depende de um consenso dialogado (e no cristalizado) defendido por todas as concepes de

    bem presentes na sociedade acerca de um princpio de tolerncia generalizado politicamente naforma de princpios constitucionais que exclui apenas os que precisam recorrer a concepes

    ticas pr-polticas para lidar com as situaes de desacordo moral e que, portanto, excluem as

    condies da vivncia comum.

    26 Nesse sentido, o caminho da filosofia habermasiana se aproxima cada vez mais da proposta rawlsiana em LP. EmIntolerance and discrimination, Habermas afirma o seguinte: Nessa base de reconhecimento recproco das regras

    de comportamento tolerante podemos encontrar uma soluo para o paradoxo que levou Goethe a rejeitar atolerncia como benevolncia insultante e assistencialista. Cada ato de tolerncia precisa traar uma caractersticaque devemos aceitar e, simultaneamente, traa os limites acerca do que pode ser tolerado. No pode haver inclusosem excluso. E to logo essa fronteira seja traada de forma autoritria, isto , unilateralmente, o estigma daexcluso arbitrria permanece inscrito em qualquer tolerncia. Somente a delineao universalmente convincente dafronteira que requer que todos os envolvidos reciprocamente levem em considerao as perspectivas dos outros

    pode a tolerncia enfraquecer a ameaa da intolerncia. Todos os que poderiam ser afetados por prticas futuras precisam concordar acerca das condies nas quais devem exercer livremente a tolerncia. Traduo livre deHABERMAS, Jrgen. Intolerance and discrimination. In: International journal of constitutional law. Vol. 01, Num.01. Oxford: New York University School of Law e Oxford University Press, 2003, p. 05.

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    Assim, torna-se necessrio um critrio fundamentado em consideraes de justia para

    excluir vises de mundo intolerantes. nesse sentido que Rawls fala em prioridade da justia

    sobre o bem: consideraes de justia fundadas no direito so necessrias para excluir

    concepes de bem intolerantes. Esse ponto compartilhado por Rawls, Habermas e Dworkin.

    Em Habermas, parte desse critrio se refere violao das condies ideais de fala, que

    estabelecem um critrio contra-ftico para possibilitar as condies capazes de viabilizar o agir

    comunicativo. Os grupos sociais que violam essas condies podem sofrer a intruso por parte do

    poder poltico. Alm disso, em Habermas, encontra-se a idia rawlsiana de consenso sobreposto,

    que estabelece as condies do discurso constitucional, encontra seu equivalente funcional na

    tese habermasiana acerca do patriotismo constitucional27. A violao do consenso sobreposto (ou

    do patriotismo constitucional) pode levar reao poltica contra os infratores, na medida em que

    as condies procedimentais do discurso foram violadas. Em Dworkin, o critrio de reaocontra os intolerantes encontrado na reao contra os grupos que pretendem impor os seus

    padres de bem-estar volitivo a toda a sua comunidade poltica, que pode compartilhar apenas um

    padro de bem-estar crtico, cujo respeito exigvel de todos28.

    Assim, a segunda e a terceira crticas comunitaristas tambm se tornam infundadas. O

    liberalismo e a vida democrtica no podem se sustentar perante toda e qualquer comunidade,

    numa situao de pluralismo simples no qual se deve aceitar qualquer tipo de comunidade

    cultural. No aceita, assim, o rtulo de relativista cultural, mas o nus da prova de quedevemos aceitarqualquer coisa como razovel do comunitarista o liberalismo poltico requer

    apenas o consenso e o respeito a princpios constitucionais que tornam possvel a vida e a

    convivncia comuns. As crticas comunitaristas ao modelo constitucionalista liberal

    fundamentam-se numa tese equivocada: a de que o relativismo cultural absoluto e, portanto,

    27 A cultura poltica de um pas cristaliza-se em torno da constituio em vigor. Toda cultura nacional, sob a luz daprpria histria, amolda em cada caso um tipo de leitura diferente para os mesmos princpios tais como soberaniado povo e direitos humanos -, os quais tambm se corporificam em outras constituies republicanas. Sobre a base

    dessa interpretao, um patriotismo constitucional pode ocupar o lugar do nacionalismo original. (...) Presumo queas sociedades multiculturais s podero manter-se coesas por meio de uma cultura poltica como essa (...).HABERMAS, Jrgen. O Estado nacional europeu sobre o passado e o futuro da soberania e da nacionalidade. In:A incluso do outro. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. So Paulo: Edies Loyola,2002, pp. 141-2.28 A propsito do papel regulador das condies ideais de fala na filosofia habermasiana , ver MORRIS, Martin.Rethinking the communicative turn: Adorno, Habermas, and the problem of communicative freedom. New York:State University of New York Press, 2001, pp. 104-5. A respeito da posio de Dworkin com relao aos interessescrticos e volitivos, ver DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Trad. Jussara Simes. Martins Fontes: So Paulo,2005, pp. 338-9.

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    qualquer forma de vida aceitvel. A prxima seo se presta a avaliar essa tese e a mostrar que

    sua aceitao mina qualquer possibilidade de dilogo pblico entre culturas diferentes, e que isso

    contra-intuitivo do ponto de vista constitucional.

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    II. Epistemologia e teoria poltica se encontram: o relativismo cultural em foco.

    II.1. Os desafios da ps-modernidade razo pblica.

    II.1.1. Cincia e razo desafiados: a questo epistemolgica.

    No faz muito tempo que os epistemlogos defendiam concepes de cincia como as

    seguintes: a cincia progride de forma indutiva, acumulando teorias verdadeiras confirmadas

    pela evidncia emprica; ou opera de modo dedutivo, testando as teorias contra os fatos e contra

    outras formulaes tericas capazes de refut-las; ou, ainda, concebendo as teorias cientficas

    como instrumentos eficientes de predio1. Essa perspectiva, dominante na vida acadmica at

    pelo menos a dcada de 1960, confiava cegamente na autoridade da cincia, cujo sucesso terico

    exercia fascnio e parecia ter uma superioridade epistmica inigualvel por outros modos de

    raciocinar, como a religio ou a metafsica. Os inmeros obstculos tericos enfrentados2,

    contudo, pareciam superveis.

    Com a publicao de duas obras filosficas, esse estado de coisas comeou a mudar.

    Em 1962, Thomas Kuhn publicou A estrutura das revolues cientficas, onde

    defendia que a compreenso do desenvolvimento cientfico pressupunha uma perspectiva

    historicizada que levasse em considerao fatores sociolgicos, como o compartilhamento de

    valores por uma dada comunidade cientfica, e no apenas a lgica das teorias cientficas. Esses

    fatores formam o ncleo do paradigma a partir do qual uma determinada comunidade cientfica

    opera, e inclui fatores sociolgicos, metafsicos e lgicos

    3

    . Os fatores sociolgicos incluem os

    1 Ver, a propsito, como exemplos do programa indutivo, o chamado empirismo lgico, as seguintes obras:SCHLICK, Moritz. O fundamento do conhecimento. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1975;

    NEURATH, Otto. Proposiciones protocolares. In: AYER, A. J. El positivismo logico. Buenos Aires: Fondo deCultura Econmico, 1965; CARNAP, Rudolf. Philosophy and logical syntax. Londres, 1935. Talvez os principais(ou, ao menos, os mais conhecidos) opositores a essa perspectiva, defensores de uma perspectiva terica mais

    prxima do dedutivismo, foram Karl Popper e Imre Lakatos. preciso, entretanto, notar que no so projetosdedutivistas no sentido ingnuo segundo o qual os fatos e, portanto toda a realidade, dependem apenas da teoria. A

    propsito de suas contribuies, ver POPPER, Karl.A Lgica da Pesquisa Cientfica. 14. ed. So Paulo: EditoraCultrix Ltda, 2002; POPPER, Karl. Conjecturas e Refutaes. Braslia: Ed. da UnB, 1982; e LAKATOS, Imre. Ofalseamento e a metodologia dos programas de pesquisa cientfica. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan

    (orgs.). A crtica e o desenvolvimento do conhecimento: quarto volume das atas do Colquio Internacional sobreFilosofia da Cincia, realizado em Londres em 1965. Trad: Octavio Mendes Cajado. So Paulo: Cultrix: Ed.Universidade de So Paulo, 1979. Teorias instrumentalistas tm entre seus principais marcos tericos as filosofias deJohn Dewey, Willian James e Charles Sanders Pearce.2 Esses obstculos incluem o ceticismo de Hume contra o indutivismo, os paradoxos de Russel, o teorema de Gdel eas teses de Quine da subdeterminao das teorias pela evidncia observacional. HAACK, Susan.Defending science within reason: between scientism and cynicism. New York: Prometheus books, 2003, p. 20.3 Ver MASTERMAN, Margaret.A Natureza de um Paradigma. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan, op. cit.,

    p. 75. Para evitar confuses conceituais tpicas dos debates, preferi usar a expresso lgicos no lugar dosparadigmas de artefato, como sugerido pela autora.

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    valores compartilhados pelos cientistas que lhe do um certo sentido de identidade4;os fatores

    metafsicos constituem o conjunto de crenas dos cientistas, como uma lente que permite aos

    cientistas ver o mundo de uma determinada forma; eos fatores lgicos, que dependem em certo

    sentido dos fatores sociolgicos, mas no por completo, j que alguns deles so universalizveis,

    como a exatido nas predies e o nmero de problemas resolvidos pelo paradigma 5. Alm

    disso, de acordo com Kuhn, diferentes paradigmas so incomensurveis, ou seja, os defensores de

    um determinado paradigma podem no ter sequer a possibilidade de compararo seu paradigma

    com o outro, pois compartilham diferentes pressupostos metafsicos. No h um critrio nico

    pelo qual o cientista deva julgar o mrito de um paradigma, j que os proponentes de programas

    competitivos aderiro a conjuntos diferentes de padres e vero o mundo de formas diferentes 6.

    Em 1975, com a publicao de Contra o mtodo: esboo de uma teoria anrquica do

    conhecimento, Paul Feyerabend proclamou que no h um mtodo cientfico nico, que apelos a

    racionalidade e a evidncia so mera retrica e que a histria da cincia mostra que a idia de

    que a cincia pode ser governada por regras fixas e universais no-realista, e que a nica regra

    metodolgica capaz de explicitar o modus operandi da cincia o vale-tudo7. Alm disso,

    Feyerabend se vale da incomensurabilidade proposta por Thomas Kuhn para afirmar que a

    racionalidade cientfica no melhor que a racionalidade da astrologia, a religiosa ou a do

    vodu, mas que apenas melhor entrincheirada pelo Estado8.

    Assim, as perspectivas das antigas posturas cientificistas, que pressupunham a

    superioridade da racionalidade cientfica, comearam a minar as prprias consideraes acerca da

    prpria possibilidade da racionalidade. Socilogos da cincia (Bloor e o programa forte da

    sociologia do conhecimento9), filsofos sociais (ligados principalmente aos movimentos

    feminista e multiculturalista, como ris Marion Young, Nancy Frazer, Luce Irigaray, Taylor e

    Sandel), alm dos normalmente classificados entre os autores ps-modernos, dentre os quais se

    4 KUHN, Thomas. Posfcio. In:A estrutura das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2000, p. 230-1.5 KUHN, op. cit., p. 252.6 CHALMERS, Alan, O que a cincia, afinal?. Trad. Raul Fiker. 1. ed. So Paulo: Brasiliense, 1993, p. 133.7 FEYERABEND, Paul. Contra o mtodo: esboo de uma teoria anrquica do conhecimento. Trad. Octanny S. daMota e Lenidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1975, p. 27.8 FEYERABEND, op. cit., p. 464.9 Tambm chamada de Escola de Edimburgo. A propsito, ver PALCIOS, Manuel. O programa forte da sociologiado conhecimento e o princpio da causalidade. In: PORTOCARRERO, Vera (org.). Filosofia, histria e sociologiadas cincias abordagens contemporneas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.

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    destacam Baudrillard, Latour, Lacan, Deleuze e Guattari, passaram a questionar a validade das

    descobertas cientficas e a prpria idia de objetividade e de racionalidade.

    Susan Haack e Christopher Norris postulam que esses movimentos partiram de

    consideraes equivocadas dos trabalhos de Wittgenstein, Kuhn e Feyerabend, alm de

    incorporarem acriticamente (ou deturparem, em alguns casos) concepes extradas do

    pensamento de Heidegger e Foucault10. Essas crticas consideram que o ideal de honestidade

    cientfica, respeito pela evidncia ou a preocupao com a verdade so ilusrias e se reduzem a

    questes retricas e de poder poltico. Alm disso, recuperam as filosofias de Quine, Kuhn e de

    Feyerabend para proclamar que as dificuldades decorrentes da subdeterminao e da

    incomensurabilidade entre paradigmas so insuperveis e que, portanto, as pretenses

    epistemolgicas acerca da objetividade da cincia so indefensveis, a no ser que palavras como

    objetividade e verdade sejam reduzidas a consensos lingsticos socialmente determinados11.

    importante notar que um aspecto desses movimentos supem que o resultado da

    atividade cientfica determinado socialmente e apenas isso12: a cincia, portanto, incorpora

    todos os preconceitos presentes na vida social. o caso, por exemplo, de Boaventura de Sousa

    Santos e de Luce Irigaray. Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, denuncia que a teoria da

    evoluo de Darwin absorveu a ideologia do liberalismo econmico de Malthus13. verdade que

    o prprio Darwin reconhece que sua tese acerca da seleo natural, desenvolvida em A origem

    10 O restante da considerao das crticas racionalidade seguir a exposio de Susan Haack, importanteepistemloga contempornea, cujos interesses acadmicos incluem epistemologia, filosofia da cincia, feminismo e

    pragmatismo. A exposio seguir, em grande parte, HAACK, Susan. Manifesto of a passionate moderate unfashionable essays. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. Christopher Norris analisa e desconstri,

    passo a passo, vrios dos crticos da racionalidade cientfica mencionados, como Deleuze, Heidegger e o programaforte da sociologia da cincia. Ver NORRIS, Christopher.Against relativism philosophy of science, deconstructionand critical theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd, 1997.11 HAACK, op. cit., pp. 20-1.12 Essa tese normalmente conhecida como construtivismo social. importante notar que a relao do movimento

    ps-moderno com a cincia ambgua. s vezes, seus defensores pretendem envernizar o discurso ps-moderno comconceitos cientficos utilizados indevidamente, de modo a alcanar um efeito retrico de aceitao social. Veja-se a

    seguinte passagem de Lacan: Assim que o rgo ertil vem simbolizar o lugar da jouissance, no em si mesma,nem sequer em forma de imagem, mas como a parte faltante na imagem desejada: isso porque igualvel ao -1 dasignificao produzida acima, da jouissance, que ele restitui pelo coeficiente de seu enunciado funo da falta designificante (-1). A passagem citada est em SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais o abusoda cincia pelos filsofos ps-modernos. Trad. Max Altman. Rio de Janeiro e So Paulo: Record, 1999, pp. 38-9. Aassociao entre o rgo ertil e -1 no faz o menor sentido, nem matemtico, nem psicolgico, nem comoanalogia ou metfora. simplesmente um uso equivocado e falacioso da matemtica para sustentar uma posio emteoria psicolgica.13 SANTOS, Boaventura de Sousa.A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia, vol. 1. 2. ed..So Paulo: Cortez, 2000, p. 86.

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    das espcies foi desenvolvida a partir de sua leitura do Ensaio sobre os princpios da populao,

    de Malthus. Mas, e esse o ponto importante, isso no significou em absoluto uma incorporao

    ideolgica da teoria malthusiana. O ponto essencial era uma questo emprica: Darwin j havia

    colhido as evidncias empricas que mostravam o fato da evoluo, ou seja, que os organismos

    evoluam gradualmente de uma espcie para outra, mas no havia formulado ainda uma teoria

    capaz de explicar isso. O modo pelo qual Malthus apresentou a luta entre homem e ambiente, que

    gera uma situao de escassez de recursos a partir da qual se torna necessrio lidar a partir de

    uma luta pela sobrevivncia, era a chave terica da soluo do problema. Darwin viu na luta pela

    sobrevivncia um princpio universal, que era parte da soluo terica que ele buscava. E essa

    apropriao da teoria de Malthus, embutida na teoria da seleo natural, s se sustentou porque a

    teoria, at hoje, to consolidada como a nica explicao compatvel no apenas com todos os

    fatos conhecidos da diversidade biolgica e da relao entre os organismos vivos e os fsseis jencontrados, como tambm com a geologia, a fsica e a qumica conhecidas, que se torna

    simplesmente implausvel que se trata apenas de uma apropriao ideolgica do capitalismo14.

    Se a questo fosse ideolgica, o darwinismo teria sido abandonado h muito tempo, e questes

    ticas como a clonagem ou os transgnicos nem teriam surgido, por impossibilidade ftica,

    j que o suporte terico que deu origem tecnologia capaz de tornar essas questespossveis a

    sntese neodarwinista, que combinou teoricamente a gentica mendeliana com a teoria da seleo

    natural. Desenvolver a engenharia gentica ou mesmo vacinas contra a varola sem o

    conhecimento da teoria darwinista seria to provvel quanto dar uma caneta para um macaco e

    ele escreverHamlet.

    Mas o socilogo portugus no se restringe afirmao dessa tese: para ele, alm de

    ocidental e capitalista, a cincia moderna sexista15. Para fundamentar essa afirmativa, o autor

    cita como exemplo a sociobiologia que, de acordo com ele, transfere a ordem social para a ordem

    natural, afirmando que o reino animal est cheio de machos avidamente promscuo em

    perseguio de fmeas que se mantm passivas, lnguidas e expectantes at escolherem um

    parceiro, o mais forte ou o mais bonito e, citando Ruth Bleier, que Dessa forma, os

    14 Esse ponto ressaltado pelo historiador e filsofo da biologia Michael Ruse. Ver RUSE, Michael. Charles Darwinand the Origins of Species. In: RUSE, Michael (org). But is it science? The philosophical question in thecreation/evolution controversy.New York: Prometheus Books, 1996, p. 79-80.15Op. cit., p. 87.

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    sociobilogos tentam atribuir causas naturais a fenmenos de origem social16. importante

    notar que a sociobiologia no atribui papis mais ativos para os machos em relao ao papel

    das fmeas, que se colocariam como passivas apriorsticamente: na verdade, a sociobiologia

    mostrou que tanto machos quanto fmeas esto ativamente (do ponto de vista da teoria evolutiva)

    e progressivamente desenvolvendo estratgias diferentes para assegurar maior eficincia na

    transmisso gentica (o uso da expresso para assegurar apenas funcional, no teleolgica)17.

    Nesse sentido, a prpria diviso dos sexos produto da seleo natural. Boaventura cita Luce

    Irigaray como exemplo de crtica feminista epistemologia moderna18. Ser que as crticas da

    autora ao sexismo da cincia so capazes de sobreviver a um exame acurado? Vejamos um

    trecho de sua autoria:

    E = mc2uma equao sexuada? Talvez seja. Consideremos a hiptese afirmativa, na medida em

    que privilegia a velocidade da luz, em comparao com outras velocidades que nos so vitalmentenecessrias. O que parece indicar a possvel natureza sexuada da equao no precisamente o seu usoem armas nucleares, mas sim o fato de ter privilegiado o mais rpido19.

    A teoria da relatividade uma das teorias cientficas mais bem sedimentadas, tendo

    sobrevivido a todas as tentativas de refutao. No sexista por privilegiar a velocidade da luz,

    que a velocidade mais rpida conhecida. Alis, o nus da prova o de Irigaray de mostrar que

    velocidade e masculino so duas variveis necessariamente acopladas. Se esse acoplamento

    no for necessrio, ento tanto Irigaray quanto Boaventura ontologizaram esse acoplamento a

    partir de uma percepopreconceituosa da prpria necessidade de o papel da mulher implicar

    lentido. Ou seja, os dois tericos cristalizaram uma percepo parcial da sociedade em sua

    prpria teoria, e a a tese defendida por eles se torna incoerente, pois acusam a fsica de sexismo,

    embora a prpria crtica incorpora preconceitos acerca da prpria mulher, que passa a ser

    ontologicamente concebida como cooperativa, lenta e amvel.

    16Idem, p. 88.17 O processo de seleo sexual complexo e intrincado. A posio da fmea, ao escolher o macho, no passiva:ela precisa ao mesmo tempo desenvolver estratgias seletivas que permitam, v. g., no caso dos mamferos, em que a

    prole necessita de maior tempo para se tornar independente dos pais, a seleo de machos que sejam fiis, fortes ecapazes de proteger a prole. Esse papel, visto dessa perspectiva, ativo. Ao mesmo tempo, permite descrever omacho como passivo, na medida em que ele escolhido pela fmea. Palavras como ativo e passivo so vazias do

    ponto de vista da teoria da seleo natural, e na verdade nem so utilizadas pelos bilogos. Cf., a propsito,HAMILTON, William. The Evolution of Altruistic Behavior. In: The American Naturalist, 1963.18Idem,p. 88, n. 21.19 IRIGARAY, Luce. Sujet de la science, sujet sexu? In: Sens et place des connaissances dans la societ. Paris:Centre Nacional de Recherche Scientifique, 1987, p. 100. Apud SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean. Op. cit., p. 112.

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    correto que a hiptese do sexismo pode ser assumida num sentido correto. Como o

    prprio Boaventura de Sousa Santos aponta, a teoria aristotlica da supremacia do homem sobre a

    mulher um caso certo em que isso aconteceu20. Mas em ambos os casos h uma clara falcia

    naturalista, em que se apontou que porque assim na natureza, ento necessrio reproduzir

    socialmente esse modelo. Nessa tese fraca, perfeitamente plausvel concordar com a crtica do

    sexismo da cincia, mas nesse caso a cincia to sexista quanto qualquer outra teoria social,

    como a prpria sociologia, que ontologiza o preconceito. Mas a prpria considerao crtica

    tpica da atividade cientfica que permite o desacoplamento do preconceito como conceito

    ontologicamente vinculado a um determinado gnero. Todavia, a tese forte, segundo a qual h um

    vnculo estrutural entre conceitos do conhecimento cientfico e dominao por gnero

    simplesmente uma tese insustentvel.

    Assim, a primeira relao entre ps-modernos e cincia tenta mostrar que a cincia

    socialmente determinada. Dessa crtica, perfeitamente plausvel aceitar que a cincia uma

    atividade social, mas equivocado assumir que todos os seus conceitos so apenas determinados

    em virtude dos valores sociais. O papel da evidncia e da coerncia das teorias cientficas, bem

    como de seu poder de previso e de explicao precisa ser considerado, que tm um papel

    importante na atividade cientfica. Se uma teoria simplesmente no consegue explicar um fato ou

    responder s crticas e problemas que surgem, simplesmente uma teoria inadequada. Isso

    levanta uma questo objetiva importante coerncia e evidncias empricas tm um papelimportante na atividade cientfica, o que no significa dizer que so os nicos critrios a serem

    utilizados, nem que os valores sociais tambm no sejam aspectos importantes. A cincia

    social, mas seus outputs precisam responder a questes objetivamente e publicamente

    concebveis: o conhecimento cientfico no apenas resultado de processos de negociao

    sociais21.

    Com isso, as crticas de Thomas Kuhn e de Feyerabend levaram a um movimento

    crtico de contestao atividade cientfica que, contudo, contm uma srie de abusos. Todavia, a

    20 SANTOS, op. cit., p. 87.21 Um caso importante que mostra o perigo de entender a cincia apenas como o fruto de uma ideologia ocorreu naUnio Sovitica. Na poca, rejeitou-se a teoria darwinista porque continha valores capitalistas em prol de umateoria biolgica socialista, proposta por Lysenko. O resultado dessa teoria biolgica aplicvel agricultura foidrstico: a produtividade agrcola despencou e a crise de abastecimento simplesmente geraram um colapsoeconmico que foi um fator consideravelmente importante para gerar movimentos de contestao ao regimesovitico. Cf. KREMENTOSOV, Nikolai. Stalinist Science. Ewing: Princeton University Press, 1996, p 57.

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  • 8/8/2019 Almeida-Os Direitos Fundamentais Entre Liberais-2005-1

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    prpria caracterizao desses movimentos como abuso poderia ser criticada como uma falta de

    compreenso da teoria de Feyerabend e Kuhn: se aceitarmos a tese da incomensurabilidade, a

    caracterizao do abuso se torna insustentvel, pois o crtico e o criticado esto apenas em

    mundos diferentes, onde no podem compreender um ao outro. a onde a epistemologia e a

    teoria poltica se encontram.

    II.1.2. A razo pblica vitoriosa: o relativismo como questo poltica.

    A tese da incomensurabilidade da forma como apresentada rejeita a possibilidade de

    entendimento entre mundos que operam sob a gide de paradigmas diferentes. De uma

    perspectiva epistemolgica, isso implica a aceitao implcita da tese do construtivismo social: a

    cincia uma atividade socialmente determinada e, portanto, impossvel comparar paradigmas

    diferentes.

    Essa tese aceita implicitamente nos movimentos multiculturalistas, feministas e ps-

    modernos22. Como as diferentes formas de vida no tm nada em comum e concebem o mundo

    de modo totalmente diferente, a razo perde seu espao por ser um modo culturalmente

    determinado de raciocinar que no pode ser imposto a outras pessoas. o que se pode

    perceber, por exemplo, na seguinte passagem escrita por ris Marion Young:

    Em muitas situaes formais os brancos de classe mdia que tiveram acesso educao agemcomo se tivessem um direito de falar e como se suas palavras fossem carregadas de autoridade,

    enquanto os locutores de