45
Rodrigo de Oliveira Dias A virtude da prudência segundo Santo Tomás de Aquino MONOGRAFIA Rio de Janeiro, Dezembro de 2008

A virtude da prudência segundo Santo Tomás de Aquino · ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ... A emergência da doutrina da prudência

  • Upload
    lydiep

  • View
    212

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

MONOGRAFIA

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II

Curso de Filosofia

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Rodrigo de Oliveira Dias

Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia

Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles

Rio de Janeiro

Dezembro 2008

INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada

Grau Obtido __________

Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira

Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Observaccedilotildees da Banca

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Rio de Janeiro

01 de dezembro de 2008

Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando

Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver

ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade

de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo

especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este

trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de

exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos

aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta

graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II

Curso de Filosofia

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Rodrigo de Oliveira Dias

Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia

Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles

Rio de Janeiro

Dezembro 2008

INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada

Grau Obtido __________

Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira

Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Observaccedilotildees da Banca

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Rio de Janeiro

01 de dezembro de 2008

Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando

Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver

ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade

de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo

especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este

trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de

exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos

aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta

graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia

Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles

Rio de Janeiro

Dezembro 2008

INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada

Grau Obtido __________

Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira

Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Observaccedilotildees da Banca

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Rio de Janeiro

01 de dezembro de 2008

Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando

Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver

ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade

de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo

especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este

trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de

exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos

aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta

graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II

Rodrigo de Oliveira Dias

A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino

Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada

Grau Obtido __________

Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira

Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II

Observaccedilotildees da Banca

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Rio de Janeiro

01 de dezembro de 2008

Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando

Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver

ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade

de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo

especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este

trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de

exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos

aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta

graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando

Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver

ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade

de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo

especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este

trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de

exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos

aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta

graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver

ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade

de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo

especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este

trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de

exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos

aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta

graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo

(Santo Tomaacutes de Aquino)

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Resumo

Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e

distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver

A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica

Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir

La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica

Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Lista de abreviaturas De Lib Arb

Ethic

In Ethic

In Sent

QQDD

STh

Virt Comm

IaIIaelig

IIaIIaelig

De Libero Arbitrio

Ethica Nichomachia

Sententia libri Ethicorum

Scriptum super Sententiis

Quaeligstiones Disputataelig

Summa Theologiaelig

Virtutibus in Communi

Prima Secundaelig

Secunda Secundaelig

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 10

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12

2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17

21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17

22 Os haacutebitos e as virtudes 20

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27

32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29

4 Conexatildeo das virtudes 33

41 A primazia da prudecircncia 34

42 A prudecircncia e a caridade 36

Conclusatildeo 40

Referecircncias Bibliograacuteficas 42

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Introduccedilatildeo

O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e

desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado

desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi

incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas

posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi

traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes

conhecemos

Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser

encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)

de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem

excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema

Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma

hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate

Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre

estas

Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual

assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente

tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta

virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre

as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas

Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as

virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta

virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes

anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar

no quadro das virtudes

Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo

qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-

nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais

significativas recebidas pelo Angeacutelico

Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as

virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras

nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

11

Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute

estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre

elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como

entender sua distinccedilatildeo especiacutefica

Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo

sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre

esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo

desta virtude na conquista da felicidade

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes

Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia

no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao

menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e

identificar suas diferenccedilas

Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu

que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida

especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez

que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna

do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia

natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente

relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico

Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir

da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash

347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes

(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A

sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a

coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva

Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma

Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da

alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as

demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria

deve dirigir as outras virtudes

O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens

e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das

virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2

isto eacute a melhor vida para o homem

As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte

racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco

1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

13

A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3

Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas

irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por

essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de

dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva

A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por

essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza

especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que

mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor

agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de

parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas

ou morais que consistem em dominar seus impulsos

Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que

conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa

medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo

ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-

se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a

razatildeo

Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos

escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria

praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente

com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes

intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute

contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca

dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo

com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se

encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a

virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a

parte inferior da alma

3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

14

A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7

Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais

perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute

alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma

felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute

alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia

pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as

accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees

particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir

para a εὐδαιμονία

Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a

metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica

a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles

utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de

ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar

com a proacutepria εὐδαιμονία

A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua

natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute

manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria

natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a

degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo

da sua proacutepria natureza

O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com

o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao

contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia

com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo

6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

15

Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a

direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da

prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as

palavras de DrsquoArc Ferreira

A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8

Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a

realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma

entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal

compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu

pensamento

Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem

como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se

com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria

uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo

dialeacutetico

Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das

virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem

ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ

καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser

alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste

modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave

compreensatildeo de virtude como meio

O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande

aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas

a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia

8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

16

neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num

primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus

No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste

momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e

estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade

natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos

permite adquiri-la agrave vontade13

Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que

aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando

o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a

tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo

com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia

Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14

Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da

prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita

da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia

Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia

perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua

aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que

percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto

da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e

estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico

13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes

Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum

super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus

e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig

O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu

bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira

grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua

estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre

os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores

Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17

Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs

que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados

posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras

trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase

simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os

anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a

IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272

A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da

obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do

seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como

nos diraacute Jean-Pierre Torrel

15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

18

O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18

Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de

fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas

obras de Tomaacutes

As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19

surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como

fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos

melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois

revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise

do pensamento do Doutor Comum21

Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O

mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era

frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia

Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que

consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo

sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das

quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente

QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees

que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco

questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De

spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as

questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo

V) seriam relevantes

18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

19

Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas

acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia

apresentam-se da seguinte maneira

Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio

Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees

sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo

Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria

A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que

se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do

Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de

retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia

feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda

pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo

Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e

especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e

aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia

No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos

verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras

constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada

em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave

consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em

quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos

em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas

Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

20

Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes

Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de

modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua

importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes

analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma

Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico

sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz

Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23

Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig

e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate

22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o

tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de

propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia

Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as

distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos

23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

21

e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e

pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo

Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as

faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo

da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado

de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem

conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para

querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade

podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela

Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por

serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs

tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos

e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser

classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior

isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza

superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas

virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que

se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo

chamadas sobrenaturais25

As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao

homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente

distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham

por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude

eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a

seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como

diz Santo Tomaacutes

Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra

24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

22

bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26

Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a

tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum

de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos

retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave

natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente

De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando

pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a

faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar

propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa

caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o

ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que

possuem o nome propriamente de virtudes

Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28

Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos

quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da

alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que

dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da

alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e

da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29

A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua

funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas

palavras do Pe Lima Vaz

A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as

26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

23

duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30

Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande

admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo

aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o

arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as

virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e

sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes

intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa

qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do

homem em sua inteireza inclusive seu agir

23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito

verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar

das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais

Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma

Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes

propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as

virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem

conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade

do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste

modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla

a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos

Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais

especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los

Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica

30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

24

permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32

Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia

a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os

primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave

demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto

de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo

ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a

ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso

determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto

e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem

agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais

especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao

passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento

Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas

virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas

contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito

de accedilotildees particulares

A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e

por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada

no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que

A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita

Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave

definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a

virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a

obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um

patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos

elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-

las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se

32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

25

() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34

Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem

viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem

de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes

propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais

Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e

portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos

os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de

virtude moral

Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o

apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo

claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber

prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza

Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais

mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e

abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante

A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois

era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social

por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre

os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao

outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo

privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a

considera a mais importante das virtudes morais

As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da

disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza

eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a

temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

26

virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais

e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz

respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que

natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta

Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja

dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos

conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e

intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes

poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo

() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37

O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute

justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria

Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir

37 STh I-II q 58 a 4

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma

Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel

relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma

no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade

desta virtude para a vida plenamente humana e social

Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta

virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees

sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para

isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da

questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig

31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da

palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao

longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns

entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo

segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a

partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo

essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39

Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se

acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera

bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria

versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o

que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que

() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40

38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

28

Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas

duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita

como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto

anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes

humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e

delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua

praacutetica

Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das

demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio

agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e

das morais por um lado e aproximando-se de outro

Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material

pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as

demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo

da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais

virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de

sua sede

A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante

possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43

Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto

da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas

levam em consideraccedilatildeo a bondade

() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44

Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se

dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade

uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio

41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

29

speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio

agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como

veremos

32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu

fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com

esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde

se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute

justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees

particulares no que se refere ao agir

Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do

silogismo praacutetico que consiste no seguinte

A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45

A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em

linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da

filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese

Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que

significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos

poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese

para o estudo da atividade da prudecircncia

A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o

intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da

atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai

conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a

45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

30

prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os

primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam

eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente

conhecidos pelo conhecimento de seus termos

Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais

pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47

Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica

pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito

chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios

pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim

Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo

no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar

compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio

sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos

fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do

conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a

deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito

Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50

O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como

este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do

silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como

exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio

da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e

julgado

47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

31

Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta

ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a

prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina

qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da

prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51

De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes

morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper

ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52

A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser

utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista

da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da

sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que

haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser

respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie

enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes

conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a

prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para

alcanccedilar o Absoluto

La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53

Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana

pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de

fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao

Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

32

Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida

propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em

relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas

A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as

virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser

conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia

muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes

A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede

relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais

possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o

ato como potecircncias passivas

Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em

vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das

virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo

Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e

estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a

outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

4 Conexatildeo das Virtudes

Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a

intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes

cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a

virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos

dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria

peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas

A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem

totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por

estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a

necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em

potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua

completude ao seu fim

Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55

O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica

do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja

substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por

suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu

fim56

Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais

detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a

importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute

necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e

seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem

54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

34

41 A primazia da prudecircncia

Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se

a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes

adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes

morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a

prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se

fundamentadas

Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila

apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in

communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes

palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia

e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada

imprudenterdquo58

Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais

estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza

humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios

possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins

Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins

da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios

cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-

se que as virtudes cardeais satildeo conexas

A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser

ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas

sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo

propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as

outras virtudesrdquo60

Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia

57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

35

natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61

Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina

instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa

espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as

disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas

accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo

possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as

virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo

Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as

virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute

justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as

disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude

por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade

() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63

A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes

mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar

a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do

mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia

precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente

sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por

sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se

harmonizar com a verdade

Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a

bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a

prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que

satildeo prudentes

61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

36

A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64

Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo

que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes

cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar

que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais

O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes

intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute

consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a

exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do

mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais

42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento

da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo

da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais

Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e

sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as

teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila

pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute

necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios

necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins

conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65

Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais

enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees

humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao

homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila

64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

37

ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos

atos humanos satildeo infundidas por Deus66

Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as

virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a

prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as

virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam

duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo

distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67

Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar

em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e

que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-

aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes

adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim

mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo

modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo

seraacute a mais excelente69

Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por

pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes

da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas

virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70

Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem

Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da

virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso

considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo

essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute

esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal

66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

38

Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas

cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem

elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra

nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia

Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das

virtudes adquirida como nos demonstra Torrel

Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73

Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da

das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do

homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes

inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim

sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes

morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de

modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais

as virtudes infusas satildeo conexas

A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de

todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes

infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico

Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76

73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

39

Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais

adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem

ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem

conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a

regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77

77 STh II-II q 23 a 6

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude

intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de

prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada

entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso

trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e

relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes

Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e

tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da

primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo

cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o

aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no

pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado

propriamente sobre a virtude da prudecircncia

A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de

que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui

exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente

intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre

estas virtudes e as morais

Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma

sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por

isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita

sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia

A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a

prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual

e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da

felicidade

Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional

deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute

tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a

accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo

necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e

esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

41

superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano

agrave luz da verdade recta ratio agibilium

Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem

viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a

vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo

quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o

fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute

demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes

morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

Referecircncias Bibliograacuteficas

AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995

AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008

______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008

______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001

______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980

______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005

ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007

BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945

DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008

GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946

GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001

______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951

GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007

HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000

LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008

LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000

LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993

MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985

MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008

43

NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993

PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002

PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960

REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006

SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998

SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999

______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000

TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999

______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008

VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004

______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008