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A Sentinela do Anjo

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A Sentinela do Anjo

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Page 1: A Sentinela do Anjo

DOMINGO DO POVO - FORTALEZA, 20 OE MAIO OE 1984

o•

A Autora

So n i. Maria Leal Rodrigues de Freitas.bancária , licenciada em Letras pelaF.wldade de Filosofia do Estad<o. do

Piauí, escreve há algum tempO, mas !lJmenterevelou seu talento durante o ooncuno de contosdo BNB-Dube, Quando foi premiada com O

trabalho "O Guarda·Livros", publicadoposteriormente na Coletânea ""Multicontos",pela entidade promotora. Sua JlES<I..uJsa édirigida à problemática nordestina, • durarealidade de crianças mOD'endo praticamente&em nenllllm. Ulistênc:ia, aoo cooturnes do PO'"nordestino e ao carinho da mãe, que,aparentemente demonstrando falta desensibilidade, reage de maneira dócil ecarinhosa, procunndo dar ao filho, mesmodepois de morto, tudo o que acha que elemerece. Seu penS3meoo é d.esaito em todos osmomentos do conto ... A sentinela do Anjo". Omaior incentivador da autora tem sido o seumarido, a Quem ela define como "o secretário-.-Ç. ..~ ..elto ••.

ialar, levanta-se e vai contemplar o ftlhomorto.

"A cabecin'a dele tá tao baxa! Tira opano da cabeça, dobra com muito cuidado,e transfonna-o numa almofada para omorto. Mas, quando levanta a cabeça dacriança e lhe dá mais conforto no leito damorte, a boca do cadáver se abre e ela sedeixa assustar um pouco. "O xente, aindanão indureceu nem esfriã direito. Tá intéabrindo os quexos."

Tenta compor o roslo do menino>sustentando com força o maxilar inferior.Porém logo que retira a mão, a boca volta aabrir-se, deixando à mostra uma ftlhasalteada de dentinhos brancos, na fendados lábios.

Alguém estende uma tira de pano e elafaz um alça, passando pelo queixo e indo

criancin'a cá, nesse sertão? ,.A seca estiola. A chuva, quando vem,

arrasa o que o homem plantou.Ainda de cócoras, no mesmo canto,

agora a mulher não pode evitar a claridadedo sol que entra. A roupa de a1eodão gritanum estamoado, onde predomina o verd .Na cabeça, um pano encardido e<condeparte dlll cabelos que já estão pintando. NãoSe oode atribuir-lhe uma idade qUalquer.Vista naquele ângulo, é um feixe de carne,nervos e ossos de aparência tão eterna.,quanto as pedras limosas de que estãocheios os caminhos. Calada, ela é uma peçainanimada no compartimento tosco,empoeirado. Mas, quando sua voz salta nomeio dos escarros do fumo, a realidade setinge de vibrações fortes e de gestos Que,embora lentos, pesam na vista e marcamestrias na emoçao. Levanta a maodescarnada onde os dedos estãoimplantados como espátulas estreitas efmas, apontando o menino morto: "Mechamo lsabé da Cunceição e desde que miintendo cuma gente, vivo nessas paragesesquecida de Deus. Todo ano, moço, tãcum um fio dento. Que se há de fau"'? Ohomem tá dento de casa, as nossas tipóiana merma escarpa... Quando dô pur mim,começa a fartá os incOmodo, vem os iniôosdo cachimbo, fico vomitando na hora detratá dos oreá. Num demora, a barriga alisae istufa. Já pari seis anjim. Sete com esse,que vosmicê vê ai, morto."

Seus olhos faíscam, quando aslembranças transparecem. E lhe tremem oslábios, quando a história desfila de dentro,dos RUafdados da memória. Sua faceossuda, queimada pela quentura do tempoe retalhada pelas rugas fundas da fomeprocura o rumo do coroo inerte da criança.Pela primeira vez, depois oue comecou a

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li está o anjinho morto. Puseram ocorpinho arJjortalhado de trapossobre a mesa. "Vela, num carece,não, sêo moço, que é uma nada degente, num teve tempo de pecá".

A barriguinha tão inchada! "A cara da cõda fulã do a1godão ...Foi assim, seo moço,Morreu meu anjim de abração. Foi o que Seademorou mais tempo cum nóis. Os outro.que Deus os tél'" deles; houve Que sódurou uns tempim. Nascia tudo fraquim,com folgo ·je gato ... a boca abrindo efechando, caçando o ar ... Esse, não. Penseiia se criá. Dei de padim pra Sao Franciscodas C/w(as, santo de grandes podê. Maisnum ~ou tombei."

Deve ter morrido COm pouco mais deum ano. Na casa hurníJde, a mulher está decócoras, num canto escuro. Não chora. Tiralongas fumaças de um cachimbo de barro.De fora, o barulho do martelo teimandocom os pregos tortos. O pai improvisa umcaixão de pinho. Os outros ftlhos foramenterrados no quintal, com camisinha dEpagão, na sombra do umbuzeiro, onde émais fresco.

"Moço, me dexo, de quando em veis,pensar nos desassuntos deste mundo véio.Meu anjim já dava inté u'as passadin'as evéio a abração com a febre. Usamos detoda a erva que sobrou da seca por aqui.Chá de faia verde do mamão, dos rebentoda goiabêra, da cidrêra e da faia santa.Tanta coisa, que já num me acode alembrança em lhe dizê. Tombei mandamorezar, num foi. José? ! De tudo a genteesprumentou, vendo a morte na esprêta,querendo fazê posada. Mais, moço, naquelanoite que o rasga-mortaia gritou na cumeirada casa, eu fiquei sabendo oue meu anjimnum tin'a sarv1ção. Tin'a de se assentá cumDeus Pai, que leyou eles tudo. Pra quê vivê

L---------------------:SO:--n-:•.-a--:Le-a-I:-:F:;;-r-:-e:;ita=§~(;-;2;:';;-; .;:u=g:;:a:-:r=-=.-;eor::n:t;.o:\") 0dard;;;"" uma laçada no crânio pequenino,recoberto de penugem preta.

"Aqui, num é mau lud, nio, leU moço.Assucede é que 01 aJSIlnto do mundo tiotudo virado. Ou seca de esturricá o chão,ou chove pra acaba cum tudo. É um siJlá eIÚnguém qué vê. Passei muita privação praté 01 meus anjim; na hora de botar elelfora, me fartavam as fõçal e ar me davamde beber cachaça, pru mode esquecer a dore fazê fOça na parição. ARara, as muiédaqui de perto, vão tudo pros dolõ tirar 01fio da barrÍ2a. Diz Que corta e arrancam.Cruz, credo, se eu fazia urna afronta dessa aDeus' 01 meUl, lá certo, num tivr.ram vidapra vivê. Mais butei fOca pra té eles. Dei ospeito murchos pra chupá o leite que tin'a.Esse aí vivia no peito. Mais vti a abração ea febre. Eu num digo nada, tô diundo aauipro senhO. mais acho que foi o mau alado.Um dia antes da morte déle, tras antonteroermo, encontrei a fitin'a vermeia com odente de aio do bracim dele, perdido noterreiro. Num demorrou, o bacuriminscangotô o pescoço e inchou o bucho.Foi se acabando, acabando.Agora, tai,ar.iim de Nosso Senhor. Mais vô interrá noCê."iterv, et.:..tIú de caido coberto depapeu azú, com er..feite de pnta q\fe gostotanto! Vai bunito, o meu fio! Num interrono fundo do quitá, que batizado ele é ... eu~~~. afiado de S10 Francisco das

O pai vem do quintal e traz o caixãoligado de pregos. A mulher volta aacocorar. no chão, tragando fumaça docachim"o. Uma vizinha cobre o caixão compapel crepom azul e vai oobndo, aqui eacol2, uns arremates cor de prata, COUtO amãe queria. O pai ohserva, IUOI descendoda cabeleira cheia, panando O martelo deuma mão pra outra, esperando a hora deacabar com aquilo.

Quando vão deitar o corpo do meninono fundo tosco do caixão, a mae se lembraque é bom forrar, porque o coroo é tãotenro! Traz a redinha da criança, suja aindados escrementos da morte, arranca fora ospunhos de fio grosso, e como fez antes como pano da cabeça, dohra a lona fina compaciência e douçura.

Dentro do caixão selado, o corpo doaniinho com eça a desfrutar da paz de nãoser.

Sai o cortejo. O pai e o padrinho levamo esqUife pohre. Atrás a mãe vai sempressa, fumando seu cachimbo de barro.Tamhém acomoanham a vizinha e acomadre que trouxe a ftlha mais velha.

Lá fora, o sol das onze horas tira faíscasdas folhas que ainda resistem à seca do ano.Um vento pesado e morno envolve de pó aprocissão, cuidando o fun da manhã emseguir o seu roteiro de horas.