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ANTONIO PAIM A QUERELA DO ESTATISMO 2ª edição revista e ampliada

A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

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ANTONIO PAIM

A QUERELA DO ESTATISMO

2ª edição revista e ampliada

Page 2: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

2

DO MESMO AUTOR

A) Livros

1) História das idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo, Grijalbo/Edusp. 1967,276p. (prêmio

Instituto Nacional do Livro de Estudos Brasileiros - 1968): 2ª edição, São Paulo,

Grijalbo/Edusp, 1974, 431 p.: 3ª edição, São Paulo, Convívio/INL. 1984, 615 p. (Prêmio

Jabuti-85 de Ciências Humanas, concedido pela Câmara Brasileira do Livro); 4ª edição,

São Paulo, Convívio, 1987, X - 615 p.; 5ª edição, Londrina, Ed. da UEL - Universidade Estadual de Londrina, 1997, 760 p.;

2) Tobias Barreto na Cultura Brasileira: uma reavaliação. São Paulo, Grijalbo/Edusp,

1972, 201 p. (em colaboração com Paulo Mercadante);

3) Problemática do Culturalismo. Apresentação de Celina Junqueira. Rio de Janeiro,

Graficon, 1977, 69 p.; 2ª edição, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995, 196p;

4) A Ciência na Universidade do Rio de Janeiro (1931/1945). Rio de Janeiro, IUPERJ,

1977, 161 p.; reedição revista: A UDF e a Idéia de Universidade. Rio de Janeiro. Tempo

Brasileiro, 1981, 144 p.;

5) A querela do estatismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978, 161p.; 2ª edição, revista:

A querela do estatismo. A natureza dos sistemas econômicos: o caso brasileiro. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro, 1994, 212p.(incluído na Biblioteca Básica Brasileira, do

Senado Federal);

6) Pombal na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Fundação Cultural

Brasil - Portugal, 1982, 137 p. (organizador);

7) Bibliografia Filosófica Brasileira - 1808/1930. Salvador, CDPB, 1983, 96 p.; Período

Contemporâneo - 1931/1977. São Paulo, GRD-INL, 1979, 246p.; 2ª edição ampliada 1931/1980, Salvador CDPB, 1987, 124p.; 1981/1985, Salvador, CDPB, 1988, 31 p.;

8) A questão do socialismo, hoje. São Paulo, Convívio, 1981, 145 p.;

9) Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro. Brasília, Ed. da UnB, 1982,

coordenação juntamente com Vicente Barretto e autoria das seguintes unidades: III - A

discussão do Poder Moderador no Segundo Império, 65 p.; IV - Liberalismo,

Autoritarismo e Conservadorismo na República Velha, 50 p. (em colaboração com

Vicente Barretto); IX - O socialismo, 57 p.; XI - A opção totalitária, 80 p.; XII -

Correntes e Temas Políticos e Contemporâneos, 69 p. (em colaboração com Reynaldo

Barros); Estudo de caso - III - Partidos políticos e eleições após a Revolução de 30, 63

p.; versão em 13 vols., em forma de curso à distância. Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, 1995;

10) Evolução Histórica do Liberalismo. Belo Horizonte, Itatiaia, 1987, 99p.; edição ampliada

em forma de Curso à Distância, Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, 1977, 5 v. (em

colaboração com Francisco Martins de Souza; Ricardo Vélez Rodríguez e Ubiratan Borges de Macedo);

11) Evolução do Pensamento Político Brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia-EDUSP, 1989, 463

p. (organizador em colaboração com Vicente Barretto);

Page 3: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

3

12) Curso de Humanidades - História da Cultura. São Paulo, Instituto de Humanidades,

1988, X unidades em 4 fascículos, 267 p.; Política. São Paulo, Instituto de Humanidades,

1989, X unidades em 4 fascículos, 307p.; Moral. Londrina, Editora da UEL, 1997, 308

p.; Religião. Londrina, Editora da UEL, 1997, 452 p.; Filosofia. Londrina, Editora da UEL, 1999, 392 p.. (Em colaboração com Leonardo Prota e Ricardo Vélez Rodríguez );

13) A Filosofia Brasileira. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991, 212 p.

(Biblioteca Breve, vol. 123);

14) Modelos Éticos: introdução ao estudo da moral. São Paulo, Ibrasa-Champagnat, 1992,

113 p.;

15) Fundamentos da Moral Moderna. Curitiba, Ed. Champagnat, 1994, 244 p.;

16) O Liberalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995, 238 p.;

17) Estudos complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil.

Vol. I - Os intérpretes (3ª edição revista de O estudo do pensamento filosófico brasileiro,

1ª edição, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1979, 157 p.; 2ª edição, São Paulo,

Convívio -, 1985, 188 p.). Londrina, Editora da UEL, 1999, 236 p.

Vol. II - As filosofias nacionais. Apresentação de Antonio Braz Teixeira (inclui parte do

opúsculo Das filosofias nacionais, Lisboa, Universidade Nova Lisboa, 1991, 83 p.) - Londrina, Editora UEL, 1997, 172 p.;

Vol. III- Etapas iniciais da filosofia brasileira (inclui o livro Cairu e o liberalismo

econômico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968, 118 p.). Londrina, Editora

da UEL, 1998, 272 p.

Vol. IV - A Escola Eclética. Londrina, Editora da UEL, 1996, 415 p.;

Vol. V - A Escola do Recife (3ª edição revista e ampliada de A filosofia da Escola do

Recife, 1ª edição, Rio de Janeiro, Saga, 1966, 217 p.; 2ª edição, São Paulo,

Convívio, 1981, 211 p.). Londrina, Editora da UEL, 1999, 252 p.

B) Opúsculos

1) Os novos caminhos da Universidade. Fortaleza, UFC, 1981, 75 p.;

2) O modelo de desenvolvimento tecnológico implantado pela Aeronáutica. Rio de Janeiro,

Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica, 1987, 22 p.;

3) Oliveira Viana de Corpo Inteiro. Londrina. CEFIL. 1989, 31 p.;

4) Roteiro para estudo e pesquisa da problemática moral na cultura brasileira. Londrina,

Editora UEL. 1996, 115 p.;

5) A agenda teórica dos liberais brasileiros. São Paulo, Massao Ohno Ed./Instituto Tancredo

Neves, 1997, 85 p.

6) O krausismo brasileiro. Londrina, Edições CEFIL, 1998, 28 p.

Page 4: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

4

SUMÁRIO

Apresentação da 2ª edição ......................................................................................... 06

Apresentação da 1º edição ......................................................................................... 10

CAPÍTULO I

O ESTADO BRASILEIRO COMO ESTADO PATRIMONIAL: O

DEBATE TEÓRICO ..................................................................................... 11

1. O patrimonialismo segundo Weber ....................................................................... 11

2. A contribuição de Wittfogel .................................................................................. 14

3. A aplicação da categoria à realidade brasileira ..................................................... 17

a. As limitações do estudo pioneiro de Faoro ...................................................... 17

b. A contribuição de Lobo Torres ........................................................................ 20

c. A base social do patrimonialismo segundo Schwartzman ............................... 21

d. Principal resultado do debate ........................................................................... 24

CAPÍTULO II

UMA PRIMEIRA INDICAÇÃO DA PREVALÊNCIA DE FATORES

CULTURAIS: OLIVEIRA VIANA ............................................................. 25

1. Trajetória intelectual ............................................................................................. 25

2. Coroamento da obra de Oliveira Viana ................................................................ 27

3. Os valores básicos da sociedade brasileira ........................................................... 30

4. O lugar de Oliveira Viana em nossa contemporânea história política ................. 34

CAPÍTULO III

A MODERNIZAÇÃO PRETENDIDA POR POMBAL

E SEU ALCANCE ......................................................................................... 38

1. Os valores impostos pela Inquisição ..................................................................... 38

a. Como atuava a Inquisição ................................................................................ 42

b. O destino do ouro ............................................................................................ 44

2. As reformas pombalinas ....................................................................................... 46

CAPÍTULO IV

A TENTATIVA DE ERIGIR O SISTEMA REPRESENTATIVO E SEU

FRACASSO ................................................................................................... 50

1. O significado da experiência (renegada) do Segundo Reinado ............................ 50

2. Aspectos teóricos mais relevantes ........................................................................ 54

a. A doutrina da representação e a organização do corpo eleitoral ...................... 54

b. A questão dos mecanismos moderadores ......................................................... 57

3. Apreciação republicana da experiência imperial .................................................. 59

Page 5: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

5

CAPÍTULO V

O EMBATE DO SÉCULO REPUBLICANO E SEU DESFECHO .......... 61

1. Principais ciclos do período considerado ............................................................... 61

a. Como se dá a confluência entre ideário pombalino e positivismo republicano. 62

b. A primeira versão do intervencionismo estatal na economia ........................... 67

2. Abandono da representação e ascendência do castilhismo: o essencial

do primeiro ciclo................................................................................................... 70

a. O principal resultado do novo ciclo: o castilhismo .......................................... 70

b. A República positivista do Rio Grande do Sul ................................................ 76

c. A contribuição de Vargas ao castilhismo ......................................................... 79

3. Representação e contrafação: a experiência dos anos trinta e do pós-guerra ....... 86

a. Os grandes mitos dos anos trinta .................................................................... 86

b. O sucessivo desvirtuamento da representação ................................................ 91

4. A industrialização pós-64 e sua singularidade ..................................................... 94

a. A formulação do projeto de modernização econômica ................................... 94

b. Principais resultados em termos de infra-estrutura ......................................... 98

c. A distorção básica: a estatização da economia .............................................. 103

d. Atitudes patrimonialistas típicas ................................................................... 105

5. O substrato moral que tem assegurado a sobrevivência do patrimonialismo .... 106

CAPÍTULO VI

DIFERENÇAS NOTÁVEIS ENTRE O BRASIL E OS PAÍSES

CAPITALISTAS ........................................................................................ 111

1. Características da economia capitalista ............................................................. 111

2. A igualdade de oportunidades ........................................................................... 115

3. A distribuição de renda ...................................................................................... 119

4. A questão da democracia ................................................................................... 120

CAPÍTULO VII

ESTRATÉGIA PARA ENFRAQUECER O PATRIMONIALISMO E

FAVORECER O CAPITALISMO .......................................................... 122

Bibliografia ........................................................................................................... 128

Índice Onomástico ................................................................................................ 133.

Page 6: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

6

APRESENTAÇÃO DA 2ª EDIÇÃO

Quando publiquei a primeira edição deste livro, em 1978 – decorridos, portanto,

mais de vinte anos – a discussão teórica acerca do Estado, a bem dizer, ensaiava os primeiros

passos. Embora a obra de Raimundo Faoro (Os donos do poder) lhe tenha precedido, foi com

a publicação, em 1975, do livro de Simon Schwartzman – São Paulo e o Estado nacional -

que de fato começou a inquisição acerca de sua natureza profunda, em face da inconsistência

das análises marxistas que o apresentavam como uma estrutura a serviço do latifúndio e do

imperialismo. Simon Schwartzman proclamava alto e bom som: “O fato é que, no Brasil, é

geralmente difícil estabelecer conexões precisas e bem determinadas entre governantes e

decisões governamentais, de um lado, e classes sociais e grupos de interesses específicos, de

outro”. Estava posta a questão de defini-lo como Estado Patrimonial, categoria suscitada por

Max Weber para apontar uma linha de desenvolvimento diferente da que, partindo do

feudalismo e do contrato de vassalagem, desembocou no Estado Liberal de Direito e no

sistema representativo.

Ao invés, portanto, de aglutinar os interesses dessa ou daquela classe, o Estado

achava-se a serviço de si mesmo, tendo se tornado, inquestionavelmente, mais forte que a

sociedade. Schwartzman indicava, também, que não correspondia a uma estrutura

desencarnada, dispondo de uma base social localizada prevalentemente naquelas regiões que

chegaram a ser as mais desenvolvidas (Nordeste e Minas), no Rio de Janeiro e no Rio Grande

do Sul.

Com a Querela do Estatismo pretendia basicamente duas coisas: 1ª) contribuir no

sentido de evitar que nos encaminhássemos, mais uma vez, para as clássicas análises

dicotômicas, tão argutamente criticadas por Wanderley Guilherme dos Santos, já agora

atribuindo todo o mal ao Estado, como me parecia ser a proposta de Faoro, conduzindo o

debate para uma espécie de impasse; e 2ª) chamar a atenção para os componentes culturais do

processo, passo que Schwartzman compreensivamente se recusava a empreender, receoso de

ser vítima de visões impressionistas de difícil mensuração.

A década de oitenta trouxe entretanto ensinamentos verdadeiramente

enriquecedores, que cumpria levar em conta nesta segunda edição.

Seguindo a Schwartzman, reconhecera o que se convencionou denominar de

patrimonialismo modernizador, conceituação sugerida por Ricardo Vélez Rodríguez que o

caracterizou devidamente (*)

Tomara como símbolo dessa dimensão o empenho do Marquês

de Pombal de inserir-nos na modernidade e, contemporaneamente, o programa formulado pela

Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico (1951-1953), que

foi executado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, criado precisamente

para aquele fim em 1952. Chamara a atenção, entretanto, para a circunstância de que a

tentativa de acrescer ao projeto pombalino as instituições do sistema representativo,

empreendida no Segundo Reinado, fora violentamente rejeitada pela elite militar, com a

instauração da República, curiosamente inspirando-se no próprio legado pombalino,

apresentado sob a forma da retórica positivista. Além disto, presenciáramos o que chamei de

(*) “Persistência do patrimonialismo modernizador na cultura brasileira”, in Pombal e a cultura brasileira. Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro, 1982, p. 110-119.

Page 7: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

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“desforra dos estamentos tradicionais”, no Governo Goulart, ao desfigurar o projeto

modernizador do BNDE, colocando-o ao serviço do empreguismo e da corrupção.

No momento em que aparecem tanto São Paulo e o Estado Nacional (1975) como

a primeira edição de A querela do estatismo (1978) parecia evidente que a Revolução de 64

não só assumira a bandeira da modernização como, a partir de Geisel (1974) marchava no

sentido de reencontro com as aspirações democráticas que a haviam originado. Os anos

oitenta vieram entretanto demonstrar que, mais uma vez, os estamentos tradicionais haviam

conseguido subordinar o projeto modernizador aos seus interesses patrimonialistas. A

intervenção do Estado na economia, fórmula transitória para a economia de mercado, tornou-

se um fim em si mesmo. Empreguismo e corrupção voltaram a ser a nota dominante. A

experiência histórica corroborara, deste modo, o caráter patrimonialista do Estado brasileiro.

No plano teórico tivemos dois fatos capitais para o aprimoramento da doutrina do

Estado Patrimonial brasileiro. O primeiro correspondeu à edição, em 1987, de que me

incumbi diretamente, da História Social da Economia Capitalista no Brasil, de Oliveira

Viana, que permanecera inédita durante cerca de quarenta anos. Nesse texto, abandonado

provavelmente por volta de 1948/49, conclui que, ao contrário do que supunha, o Brasil não

era um país capitalista.

O segundo consiste no livro A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no

Estado Fiscal, de Ricardo Lobo Torres (Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1991) que veio

preencher uma lacuna deixada por Raimundo Faoro e, ao mesmo tempo, retirar toda

conotação determinística ao patrimonialismo, recuperando-o como fenômeno cultural. A

caracterização do Estado Patrimonial português repousava justamente na feição assumida por

seu sistema tributário. Lobo Torres demonstrou que também em Portugal a manutenção do

Estado deixou de ter caráter patrimonialista. A compreensão do patrimonialismo requer,

portanto, que se investigue a sua base moral, como aliás pretendia Max Weber.

O fenômeno decisivo consiste entretanto na débâcle do socialismo. A hipótese de

que os sistemas econômicos ou eram capitalistas ou eram socialistas perdia a sua razão de ser.

As revelações sobre o atraso da antiga União Soviética, tornadas públicas a partir de

Gorbachov, e a vasta pobreza em que se debatia todo o Leste Europeu não somente vieram

confirmar que se tratava da Grande Mentira, como reiteradamente afirmara o ex-marxista

polonês Leszek Kolakowski, mas sobretudo tornar plenamente atuais as análises de Karl. A.

Wittfogel (O despotismo oriental, 1957), segundo as quais o Estado czarista dominava

virtualmente a economia, correspondendo o Estado Soviético à simples exacerbação desse e

de outros de seus aspectos. Torna-se evidente que o comunismo nada mais era que uma das

virtualidades do Estado Patrimonial, sendo esta a categoria fundante.

Valendo-me de uma oportunidade que me foi oferecida pela Universidade Gama

Filho, com a qual mantive estreitos vínculos ao longo de mais de dez anos, antes de

aposentar-me das atividades docentes, sistematizei as idéias antes resumidas e apresentei-as

em forma de tese de Livre-Docência. Para debatê-la e avaliá-la, os professores Manoel José

Gomes Tubino (Vice-Reitor Acadêmico) e Renato Cerqueira Zambroti (Diretor de Apoio ao

Professor) constituíram uma Banca integrada por três de meus antigos colegas na própria

UGF, os professores Ítalo da Costa Jóia, Vicente Barretto e Ricardo Lobo Torres, além de

dois eminentes economistas, os professores Ralf Zerkowski e Roberto Campos. No

fundamental, a Banca concordou em que o Brasil não pode efetivamente ser caracterizado

como um país capitalista. As divergências começam na parte afirmativa. Roberto Campos

ponderou que há muita semelhança entre o patrimonialismo tomado como categoria geral, na

Page 8: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

8

descrição de Weber, e a experiência histórica do mercantilismo ibérico. Referiu

concretamente estes aspectos: as coalizões entre o setor privado e o Estado; a excessiva

regulamentação (tendo lembrado as famosos Pragmáticas que, a pretexto de controlar

importações, estabeleciam o modo de trajar dos vários segmentos da população, razão pela

qual tornaram-se instrumentos privilegiados no estudo dos grupos sociais da época) e,

finalmente, a presença aplastante do Estado, inclusive sustentando reservas de mercado. O

Estado Moderno, na Península Ibérica, certamente afeiçoou-se ao mercantilismo, forma

transitória de gestão econômica. Contudo, com a superação do ciclo mercantilista, decorrente

sobretudo da Revolução Industrial, deu-se a permanência das estruturas que talvez seja

apropriado batizar de patrimonialismo. Ainda assim, não descarto a hipótese de que a questão

deva ser aprofundada, isto é, que se efetive confronto específico entre as categorias

patrimonialismo e mercantilismo, a fim de avaliar qual das duas denominações seria mais

adequada para a nossa circunstância (ibérica). Vicente Barretto também gostaria que se

conceituasse melhor a relação entre ciência econômica e moral social, que entende ser mais

ampla que a por mim pretendida, ao circunscrevê-la a questões tais como o desenvolvimento

econômico. Sem querer minimizar o significado do tema, entendo entretanto que estaria

deslocado do contexto geral da obra.

Apontaria, como mais significativas, as seguintes alterações em relação à primeira

edição:

1ª) Supressão da referência ao momento teórico ISEB/ESG, exigente de análise

mais circunstanciada, cuja efetivação acabaria tangenciando o eixo do debate;

2ª) Havia admitido que a idéia de desenvolvimento, que no interregno democrático

pós-46 fora patrocinada pelo pessedismo, em franca oposição ao udenismo, perdera, no

período subseqüente a 64, toda conotação partidária, revestindo-se de feição consensual.

Deste modo, teria assumido caráter moral, justamente o que sustenta os mecanismos

moderadores requeridos pela sociedade. A longa recessão dos anos oitenta evidenciou,

entretanto, que há grupos sociais muito fortes que se opõem a toda espécie de

desenvolvimento, identificado com o capitalismo, propugnando uma espécie de organização

social onde não haja grandes empresas (e talvez nem mesmo propriedade privada). A proposta

é assim mesmo confusa (e inconsistente), embora o PT e a Igreja Romana tenham conseguido

popularizá-la, respaldados naturalmente na tradição contra-reformista, com seu ódio ao lucro

e à riqueza. De todos os modos, a premissa (o desenvolvimento como tendo transitado para a

esfera moral) estava errada. No Brasil não há de fato moral social de tipo consensual, que é o

ingrediente fundante das instituições do sistema representativo. De sorte que, do ponto de

vista estritamente moral, o exercício das funções de árbitro, pelas Forças Armadas, em nome

do desenvolvimento (havia evidenciado que a segurança não assumira idêntica feição moral,

isto é, consensual) não tem de fato cabimento. Esta seria a retificação a fazer, nos próprios

termos em que colocara a questão na primeira edição. Contudo, no período posterior à

abertura política, pertenci à assessoria do Ministério da Aeronáutica, na gestão Moreira Lima

(1985-1989), o que me deu oportunidade de participar de vários encontros, entre professores e

militares, para discutir o papel das Forças Armadas. Num desses seminários, impressionou-

me vivamente o argumento de Edmundo Campos Coelho, do IUPERJ, de que a moderação

não pode exercitar-se de posições de força. A eventualidade do recurso a esta teria que ser

invocada por uma instância exclusivamente moral, como é o caso da Suprema Corte dos

Estados Unidos. Além disto, no exercício daquelas funções de assessor, travei relações de

amizade com o Ten. Brigadeiro Murillo Santos, que tinha a esse respeito convicções muito

precisas e que me deu para ler a obra The Soldier and the State, de Samuel Huntington, onde

se comprova que intervenções das Forças Armadas na política constituem sempre indício de

Page 9: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

9

baixos níveis de profissionalização. Murillo Santos é autor de uma obra capital a esse respeito

– O caminho da profissionalização das Forças Armadas, 1991 – na qual defende a tese de

que o Marechal Castelo Branco tinha esse entendimento, ao mesmo tempo em que acredita

que a tradição profissionalizante de nossas Forças Armadas é mais forte que os impulsos

intervencionistas na política, que Castelo denominava de milicianos, para distingui-los

nitidamente do que seria a verdadeira vocação do Exército. De modo que a admissão, ainda

que apenas da própria discussão, do exercício de funções moderadoras pelas Forças Armadas,

correspondia a uma hipótese equivocada. Para não deixar de explicitar integralmente o meu

entendimento, acrescentarei o que se segue. Todos sabemos, desde a advertência de Goethe,

que sendo a Justiça o valor mais alto, a Ordem é mais urgente, razão pela qual podemos nos

defrontar ainda com situações exigentes do recurso à força para manter a ordem. Contudo,

não deve caber à própria organização militar decidir de sua oportunidade nem fazê-lo para

substituir as instituições do sistema representativo. A precariedade do funcionamento destas

últimas, em nosso país, não é razão suficiente para daquelas abdicar, mesmo porque somente

elas podem facultar a estabilidade política, que é o bem maior na convivência social;

3ª) Esta segunda edição é mais conclusiva que a primeira. Embora não se possa

negar a existência do que se convencionou chamar de patrimonialismo modernizador, isto é, a

formação de uma elite técnica justaposta à burocracia tradicional, esta última obteve franca

supremacia em duas oportunidades históricas recentes, sob Jango e sob os governos militares

e subseqüentes, colocando o projeto modernizador a reboque do empreguismo e da corrupção.

De sorte que a estratégia mais aconselhável à sociedade consiste em tentar reduzir as funções

do Estado, cuidando de retirá-lo da economia e de todas as esferas onde não seja

imprescindível. Essa plataforma não pode reduzir-se a cortes percentuais no Orçamento, como

tem sido a praxe recente, mas no reexame circunstanciado das diversas estruturas

burocráticas, com o propósito de eliminar tudo quanto deixe de justificar-se de uma ótica

liberal, vale dizer, antipatrimonialista. Quanto a avaliar de antemão as chances de um tal

projeto, a julgar pela experiência secular, seriam nulas. Contudo, corresponderia a uma

temeridade afirmá-lo desde que ninguém conhece, de fato, como começam as tradições

culturais, bastando ter presente o inusitado da derrocada do Muro de Berlim e das estruturas

patrimonialistas do Leste Europeu, ainda que não se saiba o que irá surgir em seu lugar. Ainda

assim, não passaria de uma ingenuidade supor que a tradição patrimonialista brasileira possa

ser superada sem a formação de partidos políticos comprometidos com a representação (e não

com a burocracia que está super-representada no Parlamento); o aprimoramento do sistema

eleitoral e a emergência de uma liderança liberal competente, questões todas exigentes de

prazos dilatados. As dificuldades e resistências na privatização da infra-estrutura, nesta

década de noventa, constituem evidências da força do patrimonialismo.

Agradeço ao Senador Lúcio Alcântara, presidente do Conselho Editorial do

Senado -–e a Joaquim Campelo e Carlos Henrique Cardim, que o integram – a inclusão deste

livro na Coleção Biblioteca Básica Brasileira.

Agosto, 1999

A.P.

NOTA

(*) “Persistência do patrimonialismo modernizador na cultura brasileira” in Pombal e a cultura brasileira. Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982, p. 110-119.

Page 10: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

10

APRESENTAÇÃO DA 1ª EDIÇÃO

Este ensaio pretende discutir o tema da estatização evitando a posição dicotômica

vigente. Inspira-se, deste modo, nas análises desenvolvidas por Wanderley Guilherme dos

Santos.

Deve-se, com efeito, a Wanderley Guilherme a advertência quanto à característica

de que chegou a se revestir a ensaística política brasileira, especialmente a partir da década de

trinta. A esse propósito escreveu: “A percepção dicotomizada, ou maniqueísta, da realidade é

uma forma especial de perceber o conflito político. De conformidade com a matriz dicotômica

existem conjuntos de atributos e/ou processos sociais que não podem existir senão

simultaneamente – por exemplo, populismo demagógico, corrupção administrativa e

subversão comunista, ou, alternativamente, democracia, industrialização e independência

nacional. Convém repetir que a peculiaridade da matriz não é a percepção do conflito, mas a

maneira como o percebe, a qual aliás não passa de uma forma embrionária de percepção

segundo as regras dos jogos de soma zero”. (*)

Parece-lhe que Euclides da Cunha inicia a tradição que busca descobrir uma

dicotomia à qual se possa atribuir a origem das crises; descrevê-la no passado histórico

nacional e, finalmente, propor a alternativa com vistas à sua eliminação. Contudo, aos

estudiosos dos anos trinta (Santa Rosa, Martins de Almeida, Alcindo Sodré, Azevedo Amaral

e Nestor Duarte) é que competiria transformar esse esquema em autêntico paradigma.

No debate acerca da estatização tem vigorado a mesma visão dicotômica. A

ingerência do Estado na vida econômica do país é encarada preferentemente do ângulo do

empreguismo e da burocratização, perdendo-se de vista a componente modernizadora que a

singulariza. Por outro lado, os que colocam em primeiro plano a necessidade de ser

aprimorada a nossa capacidade gerencial reduzem o sistema representativo às fracassadas

experiências brasileiras, onde sobressai o caráter supérfluo e parasitário de suas instituições.

Agradeço a Cândido Mendes, que me sugeriu o tema, e aos diversos amigos que

acompanharam a elaboração do texto, formulando críticas e sugestões, estimulando-me a

concluí-lo, em especial Roberto Saturnino, Mauro Guia e Vicente Barretto.

Rio de Janeiro, abril de 1978

A.P.

NOTA (*) Paradigma e história – a ordem burguesa na imaginação social brasileira. Rio de Janeiro, 1975, p. 32.

Page 11: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

11

CAPÍTULO I

O ESTADO BRASILEIRO COMO ESTADO PATRIMONIAL:

O DEBATE TEÓRICO

A doutrina do Estado Patrimonial, como veremos mais detidamente, aponta para

uma outra linha de desenvolvimento político, diferente daquela seguida pelas principais

nações do Ocidente. Enquanto estas encontraram uma base moral para sustentar o sistema

representativo e promover o grande progresso alcançado pelo capitalismo, os que não

conseguiram superar as tradições patrimonialistas apresentam expressivos contingentes de

pobres, geralmente contrapostos a burocracias poderosas e privilegiadas. Na medida em que

assente a poeira do grande pesadelo deste século representado pela experiência soviética,

talvez possamos concluir que não tenha passado de um desenvolvimento do Estado

Patrimonial.

A aplicação dessa doutrina à circunstância brasileira, que também estudarei de

forma adequada, logo adiante, apresenta os seguintes resultados:

1º) Embora a base do Estado Patrimonial sejam um sistema fiscal peculiar em que

não se distinguem, precisamente, o patrimônio do Príncipe e do Estado, há uma componente

cultural que pode sobreviver a essa separação, exercitando-se o patrimonialismo pela

apropriação e usufruto das receitas públicas pela burocracia estatal, como se dá na

circunstância brasileira, que procurarei caracterizar devidamente;

2º) a valoração contra-reformista não foi superada em nossa cultura e, a rigor,

nunca foi enfrentada criticamente, de modo radical, combinando-se de certa forma com as

reformas pombalinas e perpetuadas em nosso século pela pregação socialista. Com efeito, a

crítica e a indisposição luso-brasileira com o capitalismo é anterior à sua existência entre nós;

e

3º) o patrimonialismo brasileiro dispõe de uma base social sólida, capaz de dar-lhe

sustentação seja em regimes autoritários seja em regimes democráticos.

1) O PATRIMONIALISMO SEGUNDO WEBER

Max Weber (1864/1929) tentou decompor as dimensões básicas da vida social e

que costumam encontrar-se superpostas: a autoridade, o interesse material e a orientação

valorativa.

Weber enfatizava que os homens se orientam por uma pauta de valores,

contrapondo-se frontalmente ao pensamento do século XIX que pretendeu reduzir o indivíduo

e seus valores a um processo biológico ou social. Mas igualmente negava que a componente

Page 12: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

12

moral emprestasse racionalidade à ação, como supuseram os filósofos do século XVIII.

Contra a idéia do século XVIII – escreve Bendix – sustentou que os princípios

morais existem dentro de um contexto social e histórico; que isto se verifica mesmo em

relação à moral prática com pretensões melhor fundadas de universalidade; que algumas das

idéias morais mais insignes foram concebidas e promovidas em luta contra o uso estabelecido

e os interesses criados, em formas tipicamente não racionais. Mas, prossegue:

“Contra a tendência do marxismo ou do darwinismo social em buscar

determinantes sociais ou biológicas, argumentou que as idéias e o comportamento individual

também possuem uma dimensão irredutível, que deve ser entendida em seu sentido intrínseco.

Esta complexa posição intermediária entre o racionalismo e o reducionismo reflete-se nas

definições (...) que destacam a importância do significado para compreender o

comportamento do homem na sociedade. O significado origina-se no indivíduo do mesmo

modo que em sua interação com os outros e Weber, ao definir o tema próprio da sociologia,

assinala ambos os aspectos. A “ação” abrange todo o comportamento humano quando o

indivíduo atuante lhe atribui algum significado subjetivo e na medida em que o atribui”. (1)

A ignorância da componente moral torna incompreensível o surgimento do

capitalismo, como bem o demonstrou Weber na análise das relações entre a ética puritana e o

aparecimento da empresa de tipo capitalista. E não apenas isto; a eliminação do valor moral

torna incompreensível toda mudança e inovação sociais de certa magnitude.

Weber não pretende, contudo, reduzir a sociologia à axiologia. Muito ao contrário.

A interpretação axiológica, a seu ver, escapa à análise que se pretenda científica. O

reconhecimento da componente moral não exclui que se expresse na forma de interesse

material e que este busque consolidar-se através da autoridade. As constelações de interesses

se correlacionam, pois, com valores morais e com tipos de dominação, achando-se excluída a

possibilidade de, a partir de tais componentes, esgrimir-se esquemas simplificatórios. Weber

inovou igualmente na análise das formas de dominação. Considerou-as tomando três

princípios de legitimação, a que correspondem estruturas: 1) a dominação legal; 2) a

dominação tradicional e 3) a dominação carismática. Na dominação tradicional estabeleceu

dois tipos básicos: o patrimonialismo e o feudalismo. Como se sabe, Weber não pretendia

fazer história mas, levando-a em conta, isto é, partindo da experiência histórica, recolher

elementos para configurar tipos-ideais aptos a explica a realidade social, não tomada em

bloco mas considerando fenômenos passíveis de delimitação acabada, a exemplo do que faz

qualquer ciência.

As formas tradicionais da dominação distinguem-se da moderna pelo modo de sua

legitimação, predominando nesta última os procedimentos legais. Contudo, entre os tipos

tradicionais aparece, na Europa, o feudalismo de vassalagem onde o poder do barão não

procede diretamente do soberano, o que exige o estabelecimento de normas, direitos e deveres

nas relações entre as duas instâncias. Assim, o feudalismo ocidental ofereceu a matriz

primitiva a partir da qual se chegou à idéia do pacto político como fundamento da distribuição

de poderes, tomada como ponto de referência para a modernização da estrutura tradicional

típica, o Estado patrimonial. Neste, as relações de domínio sedimentam-se como o

prolongamento dos poderes do patriarca familiar.

Weber afirmou que “a organização política patrimonial não conhece nem o

conceito de competência nem o da autoridade ou magistratura no sentido atual, especialmente

na medida em que o processo de apropriação se difunde. A separação entre os assuntos

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13

públicos e privados, entre patrimônio público e privado, e as atribuições senhoriais públicas e

privadas dos funcionários desenvolveu-se só em certo grau, dentro do tipo arbitrário, mas

desapareceu”.

Mais explicitamente: “o Estado patrimonial é o representante típico de um

conjunto de tradições inquebrantáveis. O domínio exercido pelas normas racionais se substitui

pela justiça do príncipe e seus funcionários. Tudo se baseia então em considerações pessoais.

Os próprios privilégios outorgados pelo soberano são considerados provisórios”. (2)

Weber considerava o antigo Egito e o Império Chinês como as formas mais

desenvolvidas de patrimonialismo. Também o Estado russo evoluiu para assumir essa forma

depois de Ivan IV, isto é, da polarização em torno de Moscou, a partir do século XIV. No

Ocidente, proliferam soberanos patriarcas na Época Moderna.

O vassalo, observa Weber, “no sentido literal e específico do termo”, teve que ser

um “homem livre, isto é, um homem não submetido ao poder patrimonial de um senhor”. A

par disto, como a relação feudal, em seu caráter pleno, somente pode pertencer a uma camada

de senhores, agrega-se àquela primeira qualificação a exigência de um modo de vida senhorial

(cavalheiresca) e, especialmente, a eliminação de todo trabalho desonroso que não consista no

exercício das armas. Com a impossibilidade de atender a toda a descendência dessa camada

de barões feudais, a prática do domínio feudal irá requerer, subseqüentemente, ascendência

nobre cada vez mais dilatada.

O fato de que o direito do vassalo nos distritos clássicos do feudalismo europeu se

baseava num contrato, estratificou a divisão de poderes de forma mais avançada que a

estrutura patrimonial. Foi portanto muito importante, prossegue Weber, esta penetração, em

todo o sistema, do espírito de uma garantia da posição ocupada pelo feudatário, mediante um

contrato bilateral, garantia que ultrapassava de muito a concessão de privilégios, pelo senhor,

condicionada por circunstâncias meramente tradicionais. E conclui:

“Trata-se do que faz com que a estrutura feudal – frente ao domínio patrimonial

puro, baseado na coexistência, por um lado, da dupla vinculação pela tradição e pelos direitos

apropriados e, por outro, do livre-arbítrio e da graça do senhor – se aproxime a uma

organização jurídico-política pelo menos relativamente constitucional”. (3)

Outra característica distintiva do feudalismo, apontada por Weber, consiste na

redução ao mínimo de suas funções administrativas. O feudalismo de vassalagem somente se

interessa pela sorte de seus súditos na medida em que isto diz respeito aos seus próprios

interesses econômicos. O patrimonialismo, em contrapartida, persegue a apropriação

sucessiva de novas funções, desde que equivale à elevação de seu próprio poderio e de sua

importância ideal, criando ao mesmo tempo a possibilidade de benefícios adicionais para seus

funcionários. Por isto mesmo, assinala, o ideal dos Estados patrimoniais é o título de “pai do

povo”, o que leva ao exercício do que se poderia denominar de “política social”, voltada para

o bem-estar das massas.

A experiência histórica iria demonstrar que, na Europa, com as exceções

conhecidas, Estados patrimoniais e feudais iriam marchar para a estruturação de formas legais

de dominação, sob o impacto do avanço do capitalismo. Contudo, a ordem de precedência

deu-se naquelas áreas em que a burocracia estamental patrimonialista se revelou mais débil.

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14

A esse propósito escreve Weber: “Não é casual que o capitalismo especificamente

moderno brote justamente pela primeira vez naquele país, Inglaterra, onde a estrutura de

dominação condicionou uma redução ao mínimo do poder burocrático, assim como, já o

capitalismo antigo havia alcançado seu ponto máximo em análogas circunstanciais”. (4)

2) A CONTRIBUIÇÃO DE WITTFOGEL

Karl August Wittfogel (1896/1988) é considerado um dos autores que propiciou

desenvolvimento criativo da teoria weberiana do Estado Patrimonial.

Nasceu em Woltersdorf (Alemanha) e doutorou-se na Universidade de Frankfurt

em 1928. Tornou-se pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais dessa Universidade, onde

permaneceu até 1933, emigrando para os Estados Unidos para escapar do nazismo,

vinculando-se inicialmente à Universidade de Columbia. Em 1939 tornou-se diretor do

Projeto de História Chinesa mantido pela Low Memorial Library, de Columbia. Depois de

1947 foi professor de história chinesa na Universidade de Washington. Publicou The Natural

Foundation of Economic History (1932) e Russia and the East (1936). Sua contribuição

intelectual foi avaliada, em 1978, por G.L. Ulmen (The Science of Society: Toward and

Understanding of the Life and Work of Karl August Wittfogel).

Considera-se que seu livro mais importante seja O Despotismo oriental. Estudo

comparativo do poder total, cuja primeira versão apareceu em 1957.(5) Formulou com

precisão o sentido de sua pesquisa através da seguinte pergunta: como se formaram Estados

mais fortes que a sociedade?

A pergunta é de todo pertinente porquanto fora da tradição constitucionalista do

Ocidente, o que se vê na imensa maioria dos países são organismos estatais que, ao invés de

se colocarem a serviço da sociedade, a submetem e dominam.

Wittfogel encontrou a resposta ao estudar as civilizações que se estruturam em

torno da agricultura de irrigação. Essa atividade, na medida em que veio a assumir certas

dimensões, exigiu um novo tipo de propriedade, que não se transmitisse por simples sucessão

hereditária nem se fracionasse; consolidou atividades paralelas, como a construção e a

manutenção de obras hidráulicas que, por sua vez, pressupunham sistemas de defesa. Assim,

em torno dessa agricultura de irrigação, em determinadas regiões do mundo, formaram-se

gigantescas estruturas estatais, poderosas o suficiente para estender seu domínio. Wittfogel

fez estudo minucioso e detido dessas sociedades, denominando-as hidráulicas, tanto no

Oriente como na América, com o propósito de averiguar traços comuns e peculiaridades.

É interessante resumir algumas de suas observações relativas à Península Ibérica

que nos permitem, ao mesmo tempo, identificar as particularidades distintivas do que na

terminologia weberiana se chama Estado Patrimonial:

“Antes da invasão árabe, a península ibérica abrigava uma civilização feudal

primitiva, comportando uma agricultura irrigada de pequena escala e, provavelmente, poucas

empresas hidráulicas. Diferenciando-se profundamente, nesse aspecto, dos romanos que

dominaram a Europa Ocidental, os conquistadores árabes da Espanha conheciam

perfeitamente a agricultura hidráulica e apressaram-se, no novo habitat, em levar a cabo

aquelas obras que se tinham revelado extremamente proveitosas em seu país de origem. Sob a

dominação muçulmana, a irrigação artificial foi melhorada e estendida, segundo os modelos

orientais, compreendendo o emprego de métodos governamentais: sua direção era uma

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15

prerrogativa do Estado. Assim, a Espanha muçulmana torna-se mais que marginalmente

oriental. Passa a constituir-se em verdadeira sociedade hidráulica, administrada de modo

despótico por funcionários nomeados e submetida a impostos segundo os métodos agro-

estatais de taxação. O exército mouro passa de tribal a mercenário ... Um sistema

protocientífico de irrigação e de cultura teve por complemento conhecimentos

extraordinariamente avançados nos domínios tipicamente hidráulicos da astronomia e da

matemática. A Europa feudal contemporânea nada tinha de comparável a lhe opor”. (6)

Wittfogel indica que, com base nas informações disponíveis, sabe-se que, na

segunda metade do século XIV, a capital da Liga Hanseática, Lubeck, abrigava 22 mil

habitantes e Londres cerca de 35 mil. No apogeu do califato ocidental, sua capital, Córdoba,

tinha população avaliada em um milhão de habitantes e Sevilha, em 1248, contava com mais

de 300 mil.

A Rússia esteve submetida a dois tipos de influência despótica estruturada

segundo o modelo estudado por Wittfogel: bizantina e mongol. Disso resulta uma

circunstância que em geral se perde de vista: a concentração do poder total em mãos da

burocracia czarista. É interessante passar em revista os fatos alinhados por Wittfogel para

depois tentar descobrir em que teria inovado a burocracia soviética.

Na Rússia pós-mongol, isto é, depois do término da ocupação mongol, no século

XVI, manteve-se intacta a estrutura do Estado absoluto, até a revolução de fevereiro de 1917,

em que pese haja sido o país submetido a sucessivas invasões. A isto o autor denomina de

extraordinária capacidade de sobrevivência da burocracia czarista. Cumpre lembrar que em

toda a sua história, o Parlamento funcionou apenas pouco mais de um lustro, no período

imediatamente anterior à primeira guerra mundial.

A exemplo dos estados despóticos originários das sociedades hidráulicas, a

burocracia detinha simultaneamente o poder político e o poder econômico.

A influência ocidental manteve-se como algo exterior, mesmo no período

subseqüente à criação de indústrias e à aceitação de créditos externos para financiá-las e

técnicas alienígenas para operá-las. As relações entre a burocracia do Czar e as forças

econômicas privadas mantiveram-se inalteravelmente presas à tradição. Quando, nos começos

do século XVIII, torna-se manifesto que era vital para a defesa do país a atividade industrial,

o governo czarista não se contenta em regulamentar algumas novas indústrias, como o

fizeram os governos da Europa Ocidental. Dispõe-se a dirigir diretamente o essencial da

indústria pesada e até mesmo uma parte da indústria de transformação, empregando assim a

maior parcela da força do trabalho, que estava submetida ao regime da servidão, transplantado

da agricultura.

O regime da servidão seria extinto apenas na segunda metade do século XIX.. ao

fazê-lo, entretanto, a burocracia czarista mantém o meio rural submetido a um controle

administrativo tipicamente oriental. Nas últimas décadas do século, por meio de taxas diretas

e indiretas, estima-se que o Estado chegava a apropriar-se de cerca da metade da renda do

setor agrícola.

A burocracia czarista não se sentia obrigada a proteger a aristocracia territorial.

Assim, esta, entre 1861 e 1914, chegou a perder cerca de 40% das terras que tinha em seu

poder. A reforma de 1906 mostra o funcionalismo absolutista muito mais preocupado em criar

uma classe poderosa de camponeses proprietários (denominados de “kulaks”, com os quais a

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16

burocracia soviética acabaria desentendendo-se e liquidando fisicamente) do que preservar as

prerrogativas da nobreza rural.

Embora tivesse estimulado investimentos privados na indústria, nos começos do

século XX o Estado czarista dirigia a parcela essencial das estradas de ferro do país, impunha

um controle drástico às indústrias monopolistas importantes e ocupava uma posição chave nos

investimentos estrangeiros. Por meio das garantias que facultava, o Estado dominava um terço

da indústria de transformação não-monopolista e, em 1914, nunca menos de 90% da primeira

das indústrias pesadas, a extração mineral.

O Banco do Estado era um autêntico banco central de todo o sistema de crédito

russo. E conclui Wittfogel:

“Certamente que não é necessário avaliar a ordem social russa pelo critério único

do controle financeiro; mas é certamente necessário ter presente que um único “bureau” do

aparelho de Estado czarista controlava todo sistema financeiro do país. Se se considera, de

outra parte, qual era o papel da burocracia czarista na sociedade rural e urbana, não se pode

deixar de concluir que, nos começos do século XX, os homens do aparelho do Estado eram

mais fortes que a sociedade”. (7)

Wittfogel supõe que os líderes mais importantes da revolução bolchevista deram-

se conta da virtual impossibilidade de arrancar a Rússia de seu caminho asiático. Lembra que

Lenine, entre outras coisas, considerava que o atraso russo somente seria superado se o

socialismo se tornasse vitorioso na Europa industrializada. Bukharin e seus amigos “de

esquerda” também levantaram a voz contra o avanço da centralização burocrática. A seu ver,

contudo, disso não se pode concluir que a Rússia tenha alcançado um patamar socialista

inicial para depois regredir ao velho despotismo asiático. Ao contrário: a nova elite

burocrática logo conquistou posições de domínio sobre a sociedade ainda mais fortes que a

burocracia czarista.

“Assim – escreve Wittfogel –, na medida em que os dirigentes da Rússia soviética

perpetuam um dos traços-chave da sociedade agro-estatal, a saber, a posição monopolista de

sua burocracia dominante, faziam mais que a simples perpetuação dessa sociedade. Mesmo

antes da coletivização da agricultura, os aparatchik (8) soviéticos dispunham de um sistema

mecanizado de comunicação e de produção industrial que os colocava numa posição superior

à alcançada pela burocracia agro-hidráulica. O aparelho industrial estatizado lhes fornecia

armas novas de organização, propaganda e coerção, aptas a permitir a liquidação dos

pequenos produtores agrícolas enquanto categoria social. A coletivização transforma os

camponeses em trabalhadores agrícolas submetidos a um único padrão: o novo aparelho do

Estado, o despotismo agrário da antiga sociedade aliava o poder político total a um controle

social e intelectual limitado. O despotismo industrial da sociedade de aparelho estatal total

alia o poder político absoluto ao integral controle social e intelectual”.

Deste modo, a inovação introduzida pela burocracia soviética consiste em se

haver apropriado dos segmentos da atividade econômica (a indústria e os serviços industriais)

que lhe permitiram promover a eliminação ou a pulverização daquelas forças sociais, tanto

urbanas (burguesia industrial) como rurais (aristocracia, camponeses ricos e campesinato em

geral), que poderiam lhe opor qualquer sorte de resistência. Persistentemente o Estado

soviético conseguiu transformar a sociedade numa massa amorfa, alcançando assim uma

consistência com a qual a burocracia czarista não havia sequer sonhado, desde que, ao longo

de sua história, preservaram-se segmentos relativamente estruturados na sociedade.

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17

É provável que a derrocada do socialismo venha a promover a renovação do

interesse pela obra de Wittfogel, que se reveste de inquestionável atualidade. O comunismo,

afinal de contas, talvez não tenha passado de uma virtualidade do Estado patrimonial.

3) A APLICAÇÃO DA CATEGORIA À REALIDADE BRASILEIRA

a) As limitações do estudo pioneiro de Faoro

O debate acerca da oportunidade da aplicação da categoria de Estado Patrimonial

ao quadro nacional começa de fato com Simon Schwartzman, em 1975, embora não tenha

deixado de consignar a precedência que de direito cabia a Raimundo Faoro. (10) Contudo,

Schwartzman eximiu-se de avaliá-la criticamente, o que me disponho a fazer, convencido que

estou de que não fora o aparecimento de outras contribuições, do próprio Schwartzman e de

Lobo Torres, entre outros, o assunto teria morrido por aí, tamanha a arbitrariedade de que se

reveste a sua démarche teórica.

O grande mérito de Faoro consiste em haver chamado a atenção para a

importância da tradição cultural no adequado entendimento do processo histórico e, ao mesmo

tempo, em ter recorrido à inspiração de Max Weber, abandonando as fastidiosas análises de

cunho positivista-marxista, que se tornaram a nota dominante na abordagem da nossa

realidade político-social neste pós-guerra. Contudo, no afã de enfatizar a novidade que trouxe

a debate, adotou uma atitude extremamente radical ao deixar de reconhecer o caráter

modernizador que o patrimonialismo luso-brasileiro chegou a assumir em certos momentos de

sua história. Mais grave, parece-me, a perda do sentido histórico da evolução do liberalismo

na crítica à experiência do sistema representativo, sob o Império, desde que a efetiva do ponto

de vista que a doutrina liberal veio a assumir muito mais tarde. Finalmente, ofuscado pela

magnitude da própria descoberta, inclina-se por torná-la uma espécie de lei inexorável de

nosso desenvolvimento, ou então, uma herança a repudiar em sua inteireza.

Por tudo isto, o ponto de vista expresso em Os donos do poder (1958) (11) requer

considerações mais pormenorizadas.

O Estado português, mostra Faoro, desde os primórdios, conseguiu formar imenso

patrimônio rural, cuja propriedade se confundia com o domínio da casa real. A coroa separava

nos nobres a qualidade de funcionário das qualidades de proprietário. Os cargos eram, dentro

de tal sistema, dependentes do príncipe, de sua riqueza e de seus poderes. Extremava-se tal

estrutura da existência na Europa contemporânea, marcando um traço prematuro de

modernidade. O rei, quando precisava do serviço militar da nobreza, pagava-o como se paga a

um funcionário. Formou-se em Portugal, portanto, um Estado patrimonial e não feudal.

Portugal, como diria Alexandre Herculano, não conheceu o feudalismo.

Segundo Faoro, o desenvolvimento histórico desse patrimonialismo, estruturado e

consolidado nos primeiros séculos da história lusitana, consistiu na formação de estamento de

caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento

racional, mas de organização descomunal. Semelhante realidade, impedindo a calculabilidade

e a racionalidade, tem efeito estabilizador sobre a economia. Dela, com seu arbítrio e seu

desperdício de consumo, não flui o capitalismo industrial, nem com este se compatibiliza. O

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capitalismo possível será a empresa do príncipe. Com a independência, parece-lhe malograda,

no Brasil, a tentativa de fazer brotar uma nova tradição, através do sistema representativo.

Resumindo essa tese, escreve:

“O predomínio do soberano, legitimado no Poder Moderador, a centralização

articulada, na corte, pela vitaliciedade, o voto manipulado, não criam, como entidades feitas

de vento, o sistema político. Esse assenta sobre a tradição, teimosa na sua permanência de

quatro séculos, triturando, nos dentes da engrenagem, velhas idéias importadas, teorias

assimiladas de atropelo e tendências modernizadoras, avidamente imitadas da França e

Inglaterra. Mas a tradição não se alimenta apenas da inércia, senão de fatores ativos, em

movimento e renovação, mas incapazes de alterar os dados do enigma histórico. Sobre as

classes que se armam e se digladiam, debaixo do jogo político, vela uma camada político-

social, o conhecido e tenaz estamento burocrático nas suas expansões e nos seus longos

dedos. Nação, povo, agricultura e comércio obedecem a uma tutela, senhora e detentora da

soberania”. (12)

Faoro dispensou-se de uma análise mais acurada da passagem de Pombal pelo

governo português, notadamente de sua reforma da Universidade. Limita-se a dizer que o

empenho de reconquista da independência perdida, “perdida ao mercador inglês e alienada

pelo sistema mercantil”, no reinado de D. José I, “pela mão de seu duro ministro”, não passa,

a seu ver, de “obra tão quimérica como o plano de companhias de D. João IV”, com a

peculiaridade de que agora se busca “a modernização implantada do alto”. (13) No esquema

de análise montado em Os donos do poder não há lugar para o papel modernizador que o

estamento assumiu sob Pombal, o que o faz perder de vista a alteração fundamental, prenhe de

conseqüências para a evolução posterior, que introduziu na mentalidade desse agrupamento.

Na crítica ao sistema representativo ensaiado durante o Império, Faoro invoca o

argumento do baixo percentual da massa de votante (Capítulo X), fazendo caso omisso do

fato, muito oportunamente acentuado em livros recentes por Vicente Barretto, (14) de que o

liberalismo em sua feição originária acha-se dissociado da idéia democrática, porquanto a

classe proprietária é que se fazia representar no poder legislativo. A consideração

desapaixonada do tema irá demonstrar que a elite imperial evitaria cuidadosamente o

monopólio da representação pela aristocracia rural, democratizando os mecanismos

reguladores das eleições nas cidades. Enquanto no campo o censo alto excluía a grande massa

de população, nas cidades introduziu-se a noção de “renda presumida”, que chegou a ser

identificada taxativamente com a dispensa de prova, abrangendo a totalidade do

funcionalismo civil e militar, excetuadas as praças de pré e os serventes; os membros do

Poder Legislativo, da Magistratura e da Igreja; o corpo docente das academias; os habilitados

com diplomas científicos ou literários; juízes de paz e vereadores, etc. Graças a isto as zonas

urbanas chegaram a dar uma feição reformadora à representação liberal oriunda desses

centros, que se manteve em expansão, conforme observa João Camilo de Oliveira Torres:

“Vamos comparar Minas, Rio e Rio Grande do Sul em três eleições. Em 1881,

com vitória liberal: Minas teve 14 deputados liberais e seis conservadores; Rio Grande, todos

liberais; Rio (Corte e Província), dez conservadores e dois liberais. Em 1884 com discreta

maioria liberal: eleição quase empatada em Minas, com 12 liberais, sete conservadores e um

republicano; Rio Grande do Sul, todos liberais (eram os “maragatos” de Silveira Martins

dominando tudo). Em 1886, esmagadora vitória conservadora: Minas, 11 liberais e nove

conservadores; Rio, 12 conservadores; Rio Grande, cinco conservadores e um liberal. Estes

dados, aliás, mostram que em Minas, pelo predomínio da população urbana, o governo de

nada valia. E o Rio (província e Corte) era dominado pelos barões do vale do Paraíba”. (15)

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19

A minimização do significado da experiência do sistema representativo sob o

império, segundo entendo, serve tão-somente para acalentar a ilusão de que a organização da

convivência democrática, mediante a adoção dos mecanismos aperfeiçoados pelo sistema

representativo pode ser alcançado mediante providências simples de caráter como eleição

direta, pluralismo partidário, etc., quando a experiência brasileira sugere que se trata de

mecanismos de extrema complexidade. E nada melhor para exemplificá-la que a experiência

imperial, que há de ser devidamente valorizada quando nos dispusermos a contrapor algo de

sólido e estável à tradição patrimonialista.

O quadro a que chega Raimundo Faoro é pesado e sufocante, para manter a

imagem a que recorre.

“O estamento, por sobranceiro às classes, divorciado de uma sociedade cada vez

mais por estas compostas, desenvolve movimento pendular, que engana o observador, não

raras vezes, supondo que ele se volta contra o fazendeiro, em favor da classe média, contra ou

a favor do proletariado. Ilusões de ótica sugeridas pela projeção de realidade e ideologias

modernas num mundo antigo, historicamente consistente na fluidez de seus mecanismos. As

formações sociais são, para a estrutura patrimonial estamental, pontos de apoio móveis,

valorizados aqueles que mais a sustentam, capazes de fornecer-lhe os recursos financeiros

para a expansão – daí que, entre as classes se alie às de caráter especulativo, lucrativo e não

proprietário. (...) O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário,

resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros reduzidos do

seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este

oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a

nacionalização do poder, mais preocupados com os novos senhores, filhos do dinheiro e da

subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe,

dispensários de justiça e proteção. A lei, retórica e elegantemente, não o interessa. A eleição,

mesmo formalmente livre, lhe recusa a escolha entre opções que ele não formulou”.(16)

Vê-se que, em mãos de Faoro, a doutrina weberiana do Estado Patrimonial

transformou-se numa espécie de determinismo histórico, o que se não o leva a capitular diante

do marxismo pelo menos o tem habilitado a circular livremente no seio da autodenominada

“esquerda”, pois a libera de reconhecer o papel que de fato exerce, de caudatária do

patrimonialismo, além de alimentar a sua fogueira com a retórica do conceito vago e

impreciso de “classe dominante”.

De sorte que Os donos do poder deixou de contribuir para encaminhar o debate

acerca do Estado brasileiro na direção de negar e arquivar as fastidiosas análises marxistas. À

luz do que apontou o grosso de nossa intelectualidade (ou pelo menos a sua parte mais

ruidosa) não se sentiu instada a explicitar qual é de fato a base moral de suas convicções –

justamente o que há de inovador na análise weberiana – o que evidencia ter-lhe escapado o

espírito autêntico da proposta de Max Weber.

b) A contribuição de Lobo Torres

Na caracterização do Estado Primordial português enfatizou-se a natureza do

sistema tributário. Esse aspecto foi estudado de modo brilhante pelo prof. Ricardo Lobo

Torres no livro A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal (Rio de

Janeiro, Ed. Renovar, 1991). Na visão do autor, do ponto de vista fiscal, o Estado Moderno

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transitou da situação patrimonial para a racional, passando por uma fase intermediária. Assim

as caracteriza:

“O Estado Patrimonial vive precipuamente das rendas provenientes do

patrimônio e do príncipe, convivendo com a fiscalidade periférica do senhorio e da igreja,

existindo a sua presença até fins do século XVIII e início do século XIX; o Estado Polícia que

aumenta as receitas tributárias e centraliza a fiscalidade na pessoa do soberano e corresponde

à fase do absolutismo esclarecido, situada basicamente no século XVIII; e, finalmente, o

Estado Fiscal, que encontra o seu substrato na receita proveniente do patrimônio do cidadão

(tributo) e que coincide com a época do capitalismo e do liberalismo”.

Lobo Torres enxerga o significado de sua investigação no fato de que mina pela

base os partidários do determinismo histórico, segundo os quais o curso do Ocidente estaria

pré-figurado em ciclos perfeitamente delimitados. Lembra a exclamação de Armando Castro,

na obra A evolução econômica de Portugal (Lisboa, Portugal, 1964), vazada nesses termos:

“Negar a existência do sistema feudal no nosso país significa, implicitamente, negar a

existência de leis gerais do desenvolvimento histórico ou até quaisquer leis”. Como se sabe,

estudiosos de grande nomeada, desde Alexandre Herculano (1810/1877) filiam-se à tese da

ausência do sistema feudal em Portugal, estudada de forma definitiva por Marcelo Caetano no

seu último livro História do direito português (Lisboa, Verbo, 1985). Disso naturalmente não

se pode inferir que Portugal não poderia trilhar essa ou aquela etapa, que inexistem de forma

preestabelecida. Lembro aqui a esse propósito que Caio Prado Júnior (1907/1990) foi muito

criticado por seus companheiros de Partido Comunista ao defender a teoria de que, tendo o

Brasil passado diretamente do escravagismo para o capitalismo, tratava-se de implantar a

sociedade capitalista. É interessante registrar a argumentação de Caio Prado e,

simultaneamente, a sua bruta incoerência.

O empenho de caracterizar o processo histórico como inexoravelmente vinculado

ao esquema “comunismo primitivo – escravagismo – feudalismo – capitalismo” é por ele

rotulado de “pseudomarxista” e acrescenta ter “a impressão de estar vagando nas águas do

velho Augusto Comte com a sua famosa „lei dos três estados‟, ou de um Spencer e sua

concepção da passagem do homogêneo para o heterogêneo. Isso é, de leis gerais e eternas que

enquadrariam a evolução dos fatos históricos em leis universais. Uma tal prefixação de etapas,

através de que evoluem ou devem evoluir as sociedades humanas, faz sorrir”. (17) Ao mesmo

tempo, contudo, mantém-se aferrado à crença de que a passagem ao socialismo seria

inevitável.

No caso dos que entendem possa aplicar-se ao Brasil a doutrina weberiana do

Estado Patrimonial, Lobo Torres tem inquestionavelmente razão no que se refere, por

exemplo, a Raimundo Faoro. Desse ângulo, pode-se dizer que há plena coincidência entre os

culturalistas e os pontos de vista de Lobo Torres. Vale dizer, não se pode tomar a categoria,

isto é, o reconhecimento da existência do Estado Patrimonial, como equivalendo a uma

descoberta impeditiva que a nação correspondente venha a transitar para o Estado Liberal de

Direito. O exemplo da fiscalidade, de que se vale, é bem ilustrativo do que deseja evidenciar.

Contudo, há uma outra possibilidade de utilização do conceito de Estado

Patrimonial, no qual passa a readquirir valor heurístico. Consiste esta na consideração da sua

base moral, que é justamente o que Max Weber tem de inovador nas suas análises. Os valores

contra-reformistas não foram ultrapassados pela nova valoração posta em circulação por

Pombal, permitindo até uma certa simbiose de que se valeram os socialistas, tanto portugueses

como brasileiros, desde fins do século passado, para recusar o capitalismo e, em nome dessa

Page 21: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

21

recusa desconhecer solenemente as transformações que incorporou ao longo do século.

De modo que a aplicação da categoria de patrimonialismo à realidade brasileira

pode dar-se no âmbito estritamente cultural. Antes de explorar essa hipótese, cumpre

consignar as contribuições de Schwartzman.

c) A base social do patrimonialismo brasileiro segundo Schwartzman

Suponho que Simon Schwartzman propiciou uma importante contribuição ao

entendimento do nosso país, utilizando a categoria weberiana de Estado Patrimonial, ao

referir o que depois passou a denominar-se de patrimonialismo modernizador (18) e,

sobretudo, ao indicar que dispunha de uma base social muito sólida. Na fase inicial da

utilização da tese weberiana, os marxistas acusaram aqueles que o fizeram de postular a

existência de um Estado desencarnado, pairando no ar, sem referência ao contexto social.

Schwartzman partira justamente da evidência de que os marxistas nunca conseguiram

estabelecer correlações nítidas entre políticas públicas e seu conteúdo de classe, tendo

afirmado o seguinte:

“O fato é que, no Brasil é geralmente difícil estabelecer conexões precisas e bem

determinadas entre governantes e decisões governamentais, de um lado, e classes sociais e

grupos de interesses específicos, de outro. Não há dúvida, certamente, que nenhum governo

brasileiro se propõe a alterar de forma realmente drástica o sistema de propriedade da terra;

mas isto não significa, necessariamente, que estes governos tenham sido “controlados” pela

elite rural, cuja força política tem, na realidade, decrescido de forma constante e progressiva

nos últimos 40 ou 50 anos. Um outro exemplo: é fato que o país tem sido palco de períodos de

industrialização intensa, com Vargas depois de 1937, com Juscelino Kubitschek depois de

1955, e novamente nos últimos anos. Ninguém diria, no entanto, que estes tenham sido

governos “dominados” ou “controlados” pela “burguesia industrial”. Em um terceiro

exemplo, setores militares sempre tiveram participação na vida política brasileira, mas as

tentativas de estabelecer um vínculo entre a participação militar e as “classes médias” nunca

passaram de um esforço pouco compensador para “explicar” a falta de correspondência entre

a instituição militar e grupos de interesses sócio-econômicos claramente definidos”. (19)

Na visão de Schwartzman, o patrimonialismo brasileiro revelara possuir uma

sólida base social, de natureza nitidamente regional. Seu principal suporte encontrar-se-ia no

Rio de Janeiro, no Nordeste e em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul. No livro Bases do

autoritarismo republicano (Editora Campos, 1982, sucessivamente reeditado), dá forma

definitiva a essa análise. Trata-se de elaboração teórica muito sofisticada. Entretanto, limitar-

me-ei às referências factuais, prescindindo do embasamento doutrinário, não porque o

considere de somenos importância mas para não alongar demasiado a exposição.

A propósito do Rio de Janeiro teria oportunidade de escrever:

“Este breve exame delineia três de nossos principais tipos de regiões. Uma é a

sede do governo, inicialmente Salvador e depois Rio de Janeiro. Esta é a área mais moderna

do país, que mantém um contato mais direto com o modo de vida europeu, e onde a cultura e

o consumo são mais acentuados. É, também, uma área de população marginal e de

desemprego. De acordo com o censo do Rio de Janeiro de 1890, por exemplo, cerca de 50%

de sua força de trabalho estava empregada em “serviços domésticos” ou exercia “profissões

Page 22: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

22

não declaradas”. O fato racial, obviamente, estava relacionado a isto, uma vez que a

escravatura fora abolida há apenas dois anos. Mas as diferenças não eram assim tão grandes:

76% dos negros e 53% dos mulatos pertenciam a esse grupo, mas também 43% dos brancos, o

que representava 62,5% de toda a população “empregada”. Essa massa de população marginal

representava, certamente, um incômodo para a elite, a qual, ocasionalmente, tinha que se

haver com suas agitações. Entretanto, comumente, o Rio apresentava um cenário de política

popular e de participação da massa que pouco tinha a ver com a maneira pela qual as coisas

eram realmente decididas, e nesse sentido não difere muito de outras capitais administrativas

de sociedades não-industriais. Seus recursos econômicos provinham do comércio e do

funcionalismo público, e sua vida política caracterizava-se por certo grau de tensão entre a

pequena nobreza regional dependente, de um lado, e os burocratas e comerciantes, de outro,

com ocasionais mobilizações das massas.

O Rio de Janeiro do século XIX e do início do século XX pode, de um modo

geral, ser qualificado como uma “cidade pré-industrial”. (20)

Nessas cidades, prossegue, a residência do governante ou do corpo administrativo

é a componente mais importante de sua estrutura e funcionamento. As cidades resultantes do

desenvolvimento industrial, em contrapartida, são “núcleos econômica e politicamente

autônomos, alimentados pela atividade comercial ou industrial de seus cidadãos”, que

participam ativamente, de formas variadas, da condução de seus destinos. Aplicada ao Brasil,

essa distinção permite ver o Rio de Janeiro como uma cidade muito mais próxima,

historicamente, do modelo “oriental”, sede política e administrativa do Império, enquanto que

São Paulo, cidade desenvolvida de forma muito mais independente e isolada, se aproxima

bastante do que seria o modelo clássico de cidade “ocidental”.

Minas e o Nordeste acham-se na categoria que denomina de Regiões tradicionais,

definindo-as como segue: “No Brasil, como em outros países, as áreas “tradicionais” não

constituem regiões que ainda não se modernizaram, mas, ao contrário, regiões que

experimentaram um período de progresso no passado, sofrendo, depois, um processo de

declínio econômico e político. A antiga área de cultura da cana-de-açúcar, no Nordeste, e as

antigas áreas mineiras de Minas Gerais são provavelmente os melhores exemplos do

tradicionalismo brasileiro, e ambas as regiões tiveram um passado de riqueza e proeminência

nacional. Uma das questões mais obscuras – e ao mesmo tempo das mais interessantes – da

história econômica e política do Brasil relaciona-se com o que acontece com essas áreas

quando perdem sua capacidade exportadora. No caso de Minas Gerais, a exaustão das

atividades mineiras, ocorrida por volta da segunda metade do século XVIII, deixou a

província com a maior população do país, localizada sobretudo nas concentrações urbanas, e

desprovida de uma atividade econômica importante de alta lucratividade. Um outro

remanescente foi a estrutura burocrática da administração colonial, e esse é, muito

provavelmente, o berço da vocação política de Minas Gerais.

Finalmente, O Rio Grande parece ter desempenhado no Brasil um papel

semelhante ao que Portugal e Espanha desempenharam na Europa cristã: como um posto

militar de fronteira, desenvolveu sua própria ortodoxia, o positivismo – em uma combinação

peculiar com a tradição militar local e a cultura boiadeira – e uma forte oligarquia estadual,

que reunia forças tanto para a luta contra o inimigo espanhol e portenho quanto para a luta

pela autonomia em relação ao Império brasileiro. A região era base da ala mais importante do

Exército brasileiro, fornecendo, também, uma parte considerável dos seus quadros.

Desempenhou um papel bastante ativo na vida política nacional, desde a criação do Partido

Republicano Riograndense em 1882, na derrubada do Império, em 1889, e daí em diante. Em

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23

1930, chegou ao poder nacional com Vargas, que tinha sido anteriormente governador do Rio

Grande do Sul, de acordo com os interesses de Borges de Medeiros, o chefe político do

estado, e com eles os gaúchos literalmente atrelaram seus cavalos na capital nacional. Vargas

novamente, em 1950, Goulart, em 1961, Costa e Silva, Médici e Geisel, depois de 1964, todos

esses presidentes gaúchos atestam a marcante vocação do Rio Grande para o poder nacional,

através de seus filhos civis e militares.

Este breve esboço é por demais sucinto para registrar outros importantes aspectos

do papel do Rio Grande do Sul na história brasileira, aos quais voltaremos. Seria importante

levar em conta as divisões internas no estado e seu papel econômico especial como supridor

de bens no mercado nacional, assim como a importância da imigração européia para o

desenvolvimento agrícola de alta produtividade dentro do estado. Apesar desses pontos,

contudo, permanece o fato de que o papel político do Rio Grande, a nível nacional, tem,

historicamente, mais a ver com sua tradição militar, caudilhista, revolucionária e oligárquica

do que com os aspectos modernos e europeizados de sua economia e sociedade.”

Schwartzman pretende evidenciar, em que pese a existência de componentes

modernos nas regiões mencionadas, o fato de o Estado constituir uma presença aplastante.

Mesmo com a mudança da Capital Federal, a máquina governamental no Rio de Janeiro

continua correspondendo a um terço do mercado formal de trabalho. No Nordeste, as

chamadas “ilhas de modernidade” são de fato ilhas. E, no Rio Grande do Sul, diversos

núcleos dependem integralmente da presença de guarnições militares para sobreviver.

A par disto, a burocracia luso-brasileira dispõe de enorme sabedoria no trato e na

manipulação do populacho. E Pombal o exprime abertamente nas Observações secretíssimas

(1755) ao assinalar a forma ordeira como se comporta a multidão, quando mobilizada pelo

Estado, ao contrário do que ocorreria, segundo ele, em outras capitais européias, e este primor

de recomendação ao seu sobrinho governador: “Não consinta V. Exa. violência dos ricos

contra os pobres; seja defensor das pessoas miseráveis; porque de ordinário os poderosos são

soberbos e pretendem destruir e desestimar os humildes; esta recomendação é das leis divinas

e humanas e sendo V. Exa. o fiel executor de ambos, como bom católico e bom vassalo, fará

nisso serviço a Deus e a El-Rei”. Da nossa burocracia pode-se dizer o que costuma ser

afirmado do Diabo: é perigosa porque é velha! (21)

d) Principal resultado do debate

O debate da hipótese do Estado Brasileiro como Estado Patrimonial não se resume

aos momentos assinalados. O próprio Simon Schwartzman polemizou com os marxistas e

produziu outros textos interessantes antes de dar feição definitiva à sua proposição, nas

mencionadas Bases do autoritarismo republicano (1982). Destacaria “Corporativism and

Patrimonialism in the Seventies” (1978) e “As eleições e o problema institucional” (Dados nº

14, 1977). Espírito sistemático, Schwartzman parece ter dado por encerrada a sua contribuição

ao entendimento do Estado brasileiro e voltou suas atenções para a sociedade, onde, com o

brilhantismo que o caracteriza, tem atuado de forma relevante para a adequada compreensão

de nosso sistema educacional.

Caberia referir também a tese do pensador colombiano Fernando Uricochea (The

Patrimonial Foundation of the Brazilian Bureaucratic State, 1976), que veio a merecer

tradução brasileira (1978), e o livro de Vamireh Chacon – Estado e povo no Brasil; as

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experiências do Estado Novo e da democracia populista; 1937-1964 (1977). A obra coletiva

que tive oportunidade de organizar – Pombal e a cultura brasileira, Tempo Brasileiro, 1982 –

serviu para situar o papel daquela eminente personalidade no esforço de inserir-nos

plenamente na Época Moderna.

Embora o termo patrimonialismo haja ganho certa popularidade e até mesmo

muitos políticos tenham passado a utilizá-lo, a intelectualidade acadêmica preferiu

francamente bloquear essa discussão. Acredito que tal se deva ao fato de que encaminhamos a

discussão diretamente para o plano moral, como tem procurado fazer Meira Penna em sua

obra mais recente. Assim, pode-se dizer que o principal resultado da tentativa de aplicar à

realidade brasileira a categoria de Estado Patrimonial reside na evidência de que corresponde

a um fenômeno cultural, cabendo estudá-lo prevalentemente nessa condição. É o que

procurarei fazer nos capítulos subseqüentes.

NOTAS

(1)

Max Weber, um retrato intelectual, trad. espanhola. Buenos Aires, Amorrortu, 1970, ´.

441. (2)

Economia e sociedade. Trad. espanhola. México, Fondo de Cultura Económica, 2ª ed.,

1964, p. 784 (IX. Sociologia da dominação; IV. Dominação patriarcal e patrimonial). (3)

Obra citada, p. 821 (V. Feudalismo, estado estamental e patrimonialismo). (4)

Obra citada, p. 847. (5)

Original em inglês, editado pela Yale University Press. Tradução francesa, com base na

edição de 1959. Paris, Éditions Minuit, 1977, 655 p. (6)

Obra citada, tradução francesa, p. 261-262. (7)

Obra citada. Cap. VI. Zonas centrais marginais e submarginais das sociedades hidráulicas,

p. 219-221. (8)

Integrantes da máquina burocrática. (9)

Obra citada, p. 529-530. (10)

A primeira edição de Os donos do poder é de 1958. A segunda aparece justamente em

1975. (11)

Raimundo Faoro, Os donos do poder. 2ª ed. Porto alegre, Globo/USP, 1975, 2 v. (12)

Ed. cit., p. 387. (13)

Capítulo VI, p. 227/228. (14)

A ideologia liberal no processo da Independência (Brasília, 1973) e Ideologia e política

no pensamento de José Bonifácio (Rio, Zahar, 1977). (15)

Os construtores do Império. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1968, p. 33. (16)

Capítulo final, p. 739 e 748. (17)

A Revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1966, p. 23. (18)

Creio que a elaboração acabada dessa categoria seria da lavra de Ricardo Vélez Rodríguez

no texto “Persistência do patrimonialismo modernizador na cultura brasileira”, in Pombal e a

cultura brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro/Fundação Brasil-Portugal, 1982. (19)

São Paulo e o Estado Nacional. São Paulo, Difel, 1975, p. 16. (20)

Bases do autoritarismo brasileiro, ed. cit., p. 27. (21)

Carta de Pombal a Joaquim de Melo Povoas, governador do Maranhão. Transcrita in

Documentação e Atualidade Política, UnB, nº 3, abril/junho, 1977

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CAPÍTULO II

UMA PRIMEIRA INDICAÇÃO DA PREVALÊNCIA DE

FATORES CULTURAIS: OLIVEIRA VIANA

Francisco José de Oliveira Viana nasceu em 1883 na cidade de Saquarema, no

interior do Estado do Rio de Janeiro, viveu e educou-se na capital fluminense, concluindo o

curso de direito em 1905. Dedicou-se ao jornalismo e ao magistério, ingressando no Corpo

Docente da Faculdade de Direito de Niterói em 1916. Seu primeiro livro – Populações

Meridionais do Brasil – aparece em 1920, quando completa 37 anos. Nesse mesmo ano

publica O idealismo da Constituição. Ao longo da década de vinte viria a adquirir grande

nomeada. Depois da revolução de 30 torna-se Consultor da Justiça do Trabalho, tendo

desempenhado papel muito importante na ordenação do direito do trabalho brasileiro e na

concepção dos institutos a que deu surgimento. Em 1940 passou a integrar o Tribunal de

Contas da União. As novas funções de certa forma levam-no a interromper o sentido principal

de sua obra, que é entretanto retomado após a queda do Estado Novo. Faleceu aos 68 anos de

idade, em 1951. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.

1) TRAJETÓRIA INTELECTUAL

Os grandes tratadistas costumam classificar a sociologia como tendo

experimentado um ciclo inicial de natureza sintética, substituído posteriormente por uma

visão analítica. No primeiro caso, teria o propósito de abranger a totalidade dos fenômenos

sociais. Nessa fase, Augusto Comte (1798/1857) distingue-se de Herbert Spencer (1820/1903)

pelo fato de que o fundador do positivismo imaginava, ao empregar o termo sociologia, estar

falando de ciência capaz de dominar os fenômenos sociais em proveito do homem, criando

uma espécie de sociedade racional; enquanto o filósofo inglês, aceitando o termo comteano

modificou-lhe o sentido ao separá-la da ética, circunscrevendo os seus limites à tarefa

puramente descritiva da sociedade, mas ainda tomada como um todo. Estava dando um passo

essencial no sentido de colocar esse tipo de investigação em bases científicas, direção na qual

marchou a chamada visão analítica, complementando-a pela delimitação estrita do campo a

ser pesquisado. Interessa-se por aspectos particulares dos fenômenos sociais e evita as grandes

generalizações ou, pelo menos, deixa-as na dependência dos resultados concretos da

consideração de aspectos limitados. Emile Durkheim (1858/1917) seria o iniciador desse novo

ciclo, notadamente na obra Règles de la méthode sociologique (1895).

Essa perspectiva analítica esbarrou com a questão da presença dos valores, de

modo inarredável, na ação humana, o que parecia conduzir ao conflito inevitável das

avaliações. Max Weber (1864/1920) solucionou a controvérsia ao mostrar que a pesquisa

empírica pode ater-se a parâmetros rigorosamente científicos, desde que se admita a

possibilidade de múltiplas valorações, dando origem à diversidade de avaliações. Na fase da

pesquisa, os estudiosos podem colocar-se de acordo; ao tempo em que as avaliações

extrapolam o plano científico, razão pela qual devem ser evitadas se se deseja ater-se ao

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mencionado plano. A isto Weber denominou de neutralidade axiológica. Assim, o processo

de constituição da sociologia como ciência abrange grande parte da segunda metade do século

XIX e as duas primeiras décadas deste século.

No caso brasileiro, o desprendimento da sociologia de pressupostos apriorísticos –

entre os quais se inclui o positivismo dos seguidores de Comte – é fenômeno que abrange

mais ou menos o mesmo período mas tem outros elementos impulsionadores porquanto se

tratava de compreender o Brasil.

Os riscos a evitar eram notoriamente de dois tipos. O primeiro consistia em adotar

um programa reformador (diríamos, hoje, de modernização) deduzido integralmente de uma

doutrina acabada (como era o caso dos positivistas). E, o segundo, a tentação de encontrar um

princípio explicativo do tipo do clima – a exemplo do historiador britânico Henry Thomas

Bukle (1823/1862) – ou da raça. Embora sem se desprender inteiramente das teorias

oitocentistas dos fatores determinantes, as gerações que emergem de setenta a noventa irão

encaminhar-se na direção do que então se entendia como pesquisa empírica, podendo-se

considerar Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866/1909) como principal marco do

novo entendimento. Caberia a Sílvio Romero (1851/1914), com base na chamada Escola de

Le Play, elaborar um roteiro exaustivo da investigação a ser empreendida, notadamente no

Brasil Social (1908), roteiro que seria adotado e de certa forma cumprido por Oliveira Viana.

Este, aliás, teria oportunidade de reconhecer o seu débito em relação a Sílvio Romero, ao

escrever em Instituições políticas brasileiras: “Esta compreensão objetiva e científica de

nossas coisas e de nossos problemas eu a adquiri cedo... Não foi (Alberto) Torres, como

geralmente se pensa, quem me deu a primeira orientação, neste sentido; foi Sílvio Romero”.

A inovação fundamental introduzida por Oliveira Viana na investigação da

realidade brasileira, iniciada pelos predecessores, consiste em ter procurado identificar os

valores a partir dos quais os principais grupos da elite nacional nortearam seu modo de agir.

Assim, estudou a valoração dos grandes proprietários, da cúpula burocrática estatal e das

elites urbanas. Devido a essa circunstância, é de todo pertinente a aproximação que Ricardo

Vélez Rodríguez faz entre sua obra e a de Max Weber (Oliveira Viana e o papel

modernizador do Estado Brasileiro. Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, 1982).

Em Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Viana distingue três tipos

característicos na formação de nosso país, contrariando a tradição de considerar ao povo

brasileiro como massa homogênea. De sua presença acha que resultam três sociedades

diferentes: a dos sertões, a das matas e a dos pampas, com estes tipos característicos: o

sertanejo, o matuto e o gaúcho. Os principais centros de formação do matuto são as regiões

montanhosas do Estado do Rio, o grande maciço continental de Minas e os platôs agrícolas de

São Paulo. Exerce influência poderosa no curso histórico seguido pelo país. O objetivo de

Oliveira Viana é chamar a atenção para a realidade circundante autêntica e denunciar o vezo

de copiar instituições européias, que a seu ver começa com a independência. A esse propósito

escreveu:

“O sentimento das nossas realidades, tão sólido e seguro nos velhos capitães-

generais, desapareceu, com efeito, das nossas classes dirigentes: há um século vivemos

politicamente em pleno sonho. Os métodos objetivos e práticos de administração e legislação

desses estadistas coloniais foram inteiramente abandonados pelos que têm dirigido o país

depois da sua independência. O grande movimento democrático da revolução francesa; as

agitações parlamentares inglesas; o espírito liberal das instituições que regem a república

americana, tudo isto exerceu e exerce sobre os nossos dirigentes, políticos, estadistas,

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27

legisladores, publicistas, uma fascinação magnética, que lhes daltoniza completamente a visão

nacional dos nossos problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do

Brasil real e criam para uso deles um Brasil artificial, e peregrino, um Brasil de manifesto

aduaneiro made in Europe – sorte do cosmorama extravagante, sobre cujo fundo de florestas e

campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassam cenas e figuras tipicamente

européias”.

A linha a seguir está desde logo esboçada neste primeiro livro: tornar o Estado um

grande centro de transformação social, apto a “fundir moralmente o povo na consciência

perfeita e clara da sua unidade nacional e no sentimento político de um alto destino histórico”.

E prossegue: “Este alto sentimento e essa clara e perfeita consciência só serão realizados pela

ação lenta e contínua do Estado – um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário,

capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional”. (1)

A meditação que inicia com Populações Meridionais do Brasil e com a denúncia

do que então denominou de “idealismo da Constituição”, em 1920, continuada em Evolução

do Povo Brasileiro (1923), coroa-se, nessa primeira fase com o livro Problemas de Política

Objetiva, aparecido pouco antes da Revolução de 30. Neste comenta e avalia as propostas de

Alberto Torres e enxerga no país um novo clima, favorável à centralização. “Há vinte anos”,

escreve, “as idéias políticas, nos centros intelectuais e partidários, não só, locais como

federais, diferiam muito das idéias atuais: traíam a concepção centrífuga do regime

federativo”. Vislumbra a emergência de “sensível tendência centrípeta, um rápido movimento

das forças políticas locais na direção do poder central”.

A mensagem de Oliveira Viana é clara e precisa: “Há evidentemente em tudo isto

um grande equívoco, uma grande ilusão, que perturba a visão exata das realidades nacionais a

todos esses descentristas e autonomistas, que são, afinal, aqui, todos os espíritos que se jactam

de liberais e adiantados. Porque é preciso recordar, com Seeley, que a liberdade e a

democracia não são os únicos bens do mundo; que há muitas outras causas dignas de serem

defendidas em política, além da liberdade – como sejam a civilização e a nacionalidade, e que

muitas vezes acontece que um governo não liberal nem democrático pode ser, não obstante,

muito mais favorável ao progresso de um povo na direção daqueles dois objetivos. Um regime

de descentralização sistemática, de fuga à disciplina do centro, de localismo ou

provincialismo preponderante, em vez de ser um grande agente de força e progresso, pode

muito bem ser um fator de fraqueza e aniquilamento e, em vez de assegurar a liberdade e a

democracia, pode realmente resultar na morte da liberdade e da democracia”. (2)

Em geral, além das distorções e simplificações, na análise da obra de Oliveira

Viana tem sido dada maior atenção àquela parcela voltada para o intervencionismo estatal, o

que de certa forma obscurece sua inteira significação. Encarada no conjunto, corresponde

entretanto a uma das mais notáveis contribuições ao entendimento do país.

2) O COROAMENTO DA OBRA DE OLIVEIRA VIANA

Pelas indicações que nos legou, ao retomar a meditação interrompida nos anos

trinta Oliveira Viana pretendia estudar três grupos de questões, a fim de completar e

desenvolver o conjunto de sua obra. A primeira delas seriam as instituições políticas. A julgar

pelo fato de que o livro em que aborda o assunto tenha aparecido em 1948, conclui-se que lhe

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28

haja atribuído prioridade.

O segundo grupo dizia respeito à questão racial. Na fase em que formou seu

espírito, no começo do século, as principais personalidades de nosso mundo cultural

entendiam que era preciso promover emigração predominantemente européia, a fim de

realizar o sonho do progresso, a exemplo do que ocorria às suas vistas nos Estados Unidos.

Havia certamente o entendimento de que se deveria buscar novos padrões culturais – isto é, a

valorização do trabalho, da riqueza, etc. – mas acreditava-se que essa postura diante do

mundo tivesse algo a ver com a raça. No final de contas, a realização do progresso era obra

dos europeus e não dos asiáticos ou africanos. De sorte que em seus primeiros trabalhos,

Oliveira Viana era caudatário do meio.

Entretanto, já pela altura dos anos trinta havia alterado o seu ponto de vista, como

adverte Marcos Almir Madeira: “Ao tempo dominavam aqui, como no mundo, o biologismo

universal, clássico, e as idéias de Gobineau e Lapouge... Viana se emancipou daquela quase

tutela européia, irresistível, à época. Na sua honestidade intelectual inexcedível, escorreito na

atitude do cientista veraz, apesar de tudo, estas palavras embebidas na mais sadia ética, que

fica, de elevação e dignidade: “Devo confessar que após um estudo mais profundo dos

problemas da raça e o crescente contato, em que entrei, com as grandes fontes de elaboração

científica neste domínio, renovei profundamente minhas idéias sobre este e outros problemas

da etnologia e da antroposociologia. Sob este novo ângulo de visão, a questão da raça, do

dólico-louro e da sua superioridade, etc. reduziu-se muito da sua importância e acabou saindo

do horizonte das minhas preocupações”. (Do prefácio à 2ª edição de Evolução do povo

brasileiro. São Paulo, Editora Nacional, 1933). Realmente, as novas idéias ele as resumiu em

Raça e assimilação, de 1932, o mesmo ano em que aparece Formation ethnique du Brésil

colonial, trabalho editado pelo governo da França. (3)

Quando a retoma, nos anos quarenta, a questão para Oliveira Viana apresenta-se

de modo diverso. Parece-lhe que uma investigação dos elementos étnicos poderia dar base a

uma ciência que chamou de antroposociologia. Elaborou, portanto, o plano de um livro

intitulado Antroposociologia das elites.

Denominou a primeira parte de Psicologia das etnias. Com a data de 28 de julho

de 1943, escreveu uma nota introdutória intitulada de “advertência”: “Neste livro, escrito em

1923, há que alterar, em revisão total, o conceito de “raça”. Em vez de raça – tipo biológico

(“raças zoológicas”), o conceito será o da raça revelada através da “etnia”. Retorna, de acordo

com a doutrina francesa (Montandon e Martial) ao conceito das “raças históricas”,

abandonando o conceito biológico dos alemães, dentro do critério mais científico e limitado,

porém mais definido e concreto, de “etnia”, por Martial e Montandon. Substituí, pois, por

“etnia” o que nestes capítulos é averbado à “raça”. A esta nota, em 12 de outubro do mesmo

ano, acrescentou o seguinte: “Minha tese central sobre antroposociologia das elites e que

pretendo desenvolver nos meus livros sobre sociologia dos migradores e das elites é muito

aproximada da que se refere Linton na sua Introdução à antropologia. São Paulo, 1943, p. 73-

75. Completa identidade entre mim e ele: o que ele chama de bread é o que eu chamo de

etnia”.

A nova postura está definida deste modo no Prefácio:

“O problema étnico na Europa havia sido posto pelos cientistas teutônicos sobre a

base da superioridade da etnia germânica, e todo o esforço dos pensadores alemães convergia

em demonstrar a tese de que os povos germânicos, sendo superiores, não apenas pela cultura

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29

mas também antropologicamente, aos outros demais povos, cabia-lhes o direito de domínio do

mundo, com exclusão mesma das gentes celtas ou mediterrâneas. Os pensadores latinos, em

geral, especialmente franceses, reagiram, com veemência explicável, contra esta tese que os

feria diretamente na sua dignidade nacional e – o que é mais – encerrava uma ameaça

formidável aos interesses aos povos não germânicos no mundo. Como era natural, nesta

réplica, foram além do razoável: acabaram negando tudo e criaram, como observa Papillaut, a

tese igualitarista e educacionalista”.

A seu ver, nós brasileiros nada temos a ver “com esta querela entre dólico-louros e

braquicéfalsos, entre germanos e celtas ou, mais expressamente, entre franceses e alemães”.

Parecia-lhe, então, que não podíamos abandonar o tema, cabendo-nos pesquisá-lo. “Esses

pesquisas – dirá – versarão sobre o homem em nossa pátria; mas o espírito que há de presidi-

las e inspirá-las não pode ser o espírito religioso, nem o espírito metafísico; mas um espírito

estritamente naturalista”.

Para esse fim planejou uma segunda parte da obra, intitulada Mobilidade social e

formação das nossas elites. Subdividiu-a em 16 capítulos, aproveitando para compô-la o que

havia escrito em outras oportunidades. Mas ainda assim restava-lhe escrever sete capítulos,

tarefa de que se desinteressaria, deixando de executá-la. É provável que tal haja ocorrido na

medida em que avançava na elaboração da parte última do plano, adiante apresentada,

certamente mais reveladora de nossa maneira de ser.

O terceiro grupo de questões, a que pretende se dedicar, corresponde a algo de

novo em sua obra, embora o espírito que a anime seja o mesmo que nutre a sua inspiração

fundamental. Denominou-o história social da economia.

Com semelhante denominação, Oliveira Viana tinha em vista o empenho de

compreender o contexto cultural em que se deu a atividade produtiva destinada à obtenção de

bens materiais e serviços. O essencial seria o que chama de “tabelas de valor”, para cujo

entendimento requer-se atenção aos costumes, à mentalidade, aos tipos sociais, às novas

classes, às instituições representativas, etc. Dessa descrição deve resultar a identificação, para

usar suas próprias palavras, das “tendências gerais de nossas instituições econômicas e das

idéias e sentimentos que vêm presidindo e inspirando o seu desenvolvimento e expansão;

idéias e sentimentos que se cristalizaram em tradições e usos de nossa coletividade nacional”.

Revelando-se decisivo para a compreensão do Brasil, o novo tema iria absorvê-lo

integralmente. Em síntese, elaborando a história social da economia verificara que na

sociedade brasileira como um todo predominavam valores pré-capitalistas. O capitalismo

propriamente dito correspondia ao menor segmento. Diante dessa evidência, dividiu-a em

duas partes, uma correspondente ao capitalismo e outra correspondente ao pré-capitalismo.

Sem ter concluído a História Social da Economia Capitalista no Brasil lançou-se logo à outra

obra – que lhe parecia destinada a uma “investigação mais larga” – voltada para a economia

pré-capitalista. Deste segunda teve tempo de ultimar a introdução. A primeira permaneceu

inédita durante cerca de quarenta anos, sendo publicada pela Editora Itatiaia, em 1987, na

Coleção Reconquista do Brasil.

Quando retoma a sua meditação original, Oliveira Viana tinha mais de sessenta

anos, tendo falecido aos sessenta e oito, em 1951. Dispôs de muito pouco tempo para

programa tão vasto. No que respeita entretanto os valores fundamentais de nossa sociedade

levantou o essencial.

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30

3) OS VALORES BÁSICOS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Durante cerca de cinqüenta anos. Oliveira Viana estudou os valores básicos da

sociedade brasileira, buscando ter dessa questão entendimento cada vez mais aprofundado. É

possível que tenha dado conta da inexistência, em nosso país, de uma moralidade social

básica, fenômeno que corresponde a uma criação da Época Moderna. O certo é que se

orientou na direção dos valores morais dos grupos sociais que, a seu ver, eram dominantes.

No fim da vida aproximou-se do que lhe parecia ser um elemento comum aos grupos

estudados.

A moralidade social básica, surgida na Época Moderna, resultou da divergência

radical, nessa matéria, entre católicos e protestantes. Tenha-se em conta que não se tratava de

questões de somenos importância. O próprio Decálogo de Moisés, que é a fonte fundamental

de toda a moralidade ocidental, dava margens a disputas acirradas. No Decálogo diz-se

expressamente que “não farás para ti nenhum ídolo que reproduza a imagem de quem quer

que seja que está no alto do céu, ou embaixo, sobre a Terra, ou nas águas debaixo da terra.

Não te prostrarás nunca diante delas, e não as adorarás...” Retirado da prática pela Igreja

Católica, esse mandamento seria reintroduzido pelos protestantes. Também em matéria de

riqueza a divergência é absoluta.

Essa temática foi discutida com toda intensidade no século XVIII, sendo talvez a

Inglaterra o país onde o debate foi melhor sucedido. Em síntese, distinguiu-se de forma

bastante precisa moral individual de moral social. A primeira encontra seus fundamentos nas

próprias crenças mais profundas do indivíduo. A segunda é fruto de uma negociação na

sociedade. No mundo moderno, a moral social é de tipo consensual. (4)

No Brasil, recolhe-se a impressão de que inexiste moralidade social livremente

convencionada. Pelo menos o tema não foi sequer discutido. Até muito recentemente,

incumbia à Igreja Católica dizer o que era moral e o que era imoral. Parece que, atualmente,

inexiste uma instância substitutiva livremente reconhecida. Podia-se mesmo dizer que a

muitos pareceria desnecessária e inútil. Assim, em muitos círculos soa como algo retrógrado e

inadmissível estabelecer-se uma distinção entre o reconhecimento da legitimidade das

relações sexuais antes do matrimônio – para ambos os sexos, lógico, desde que nós homens

sempre a desfrutamos; mais precisamente: o abandono do preconceito da virgindade – e a

admissão da promiscuidade entre os jovens; ou exigir que a pornografia seja submetida a

certos limites. Vivemos como se a convivência social pudesse prescindir de regras morais ou

como se a opção disponível consistisse em fixá-las autoritariamente.

Oliveira Viana deve ter-se dado conta dessa situação singular, formulando uma

hipótese que seria presumivelmente a seguinte: inexistindo moral social de tipo moderno –

vale dizer, consensual –, deve predominar a moral desse ou daquele grupo, segundo as

circunstâncias. Dessa presunção partiu diretamente para a análise da moralidade inferida das

ações dos agrupamentos sociais mais importantes.

Oliveira Viana distingue três tipos de moralidade presentes no processo histórico

brasileiro, a saber: 1) a moralidade dos grandes senhores rurais; 2) a moralidade da elite

estatal; e, 3) a moralidade da elite urbana. Em relação a esta última, imaginava que estivesse

adaptado aos valores da sociedade capitalista moderna. Como veremos a seu tempo, na

evolução dessa sociedade distinguia o que chamava de supercapitalismo, etapa que podia e

deveria ser evitada no caso brasileiro. Para sua surpresa, na medida em que avança nessa

Page 31: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

31

investigação verifica que os segmentos adaptados aos valores do lucro e da competição são de

fato ínfimos. Esta conclusão está fundamentada no livro que permaneceu inédito – História

Social da Economia Capitalista – e que Coleção Reconquista do Brasil divulgou em caráter

pioneiro. Diante desse resultado, irá tentar reconstituir a evolução dos valores presentes à

sociedade pré-capitalista. Não teria oportunidade de levá-la a termo, mas nos deixou um texto

fundamental acerca da sua origem social: Introdução à História da Economia Pré-capitalista,

editado postumamente (1958). Os valores dos demais grupos sociais estão estudados nos

livros Populações meridionais e Instituições Políticas Brasileiras.

Em síntese, no entender do sociólogo fluminense, a aristocracia rural é que

viabilizou a independência. Ao longo dos três séculos, no processo de consolidação da

ocupação territorial, havia revelado as seguintes qualidades: 1ª) fidelidade à palavra

empenhada; 2ª) probidade; 3ª) respeitabilidade e, 4ª) independência. A par disto, tendo arcado

com o ônus fundamental da estruturação do país – e absorvendo em seu domínio as

atribuições dispersas em outros grupos no feudalismo europeu –, perdeu a noção do que seria

a coisa pública. Em torno dos domínios rurais formam-se autênticos clãs, que se colocam

acima de toda ordem legal, organizam a capangagem, fazem justiça pelas próprias mãos, etc.

Na visão de Oliveira Viana o país esteve a pique de soçobrar na anarquia, vitimado pelas

disputas entre os clãs.

No terceiro século, a mudança do sistema de administração, com a designação de

capitães-gerais para áreas territoriais relativamente limitadas, assegura à Coroa a possibilidade

de derrotar a caudilhagem local e o exercício de ação disciplinadora. Em sua ação, tais

elementos iriam revelar ausência da noção do que seria privado, isto é, da existência de

esferas de vida colocadas a salvo da ingerência estatal.

A tendência ao enfraquecimento do Poder e, ao mesmo tempo, uma tendência

contraposta que aspira esmagá-la de todo, aparecem no Primeiro Reinado, vitoriosa a primeira

com o ato adicional. Para Oliveira Viana, a elite que concebeu e implantou as instituições

imperiais soube compor com equilíbrio as duas forças dominantes, extinguindo as guerras

civis. A seu ver, na República Velha renasce o espírito de clã através das oligarquias

estaduais. A Revolução de 30 e o Estado Novo são uma reação a esse processo em que mais

uma vez o elemento estatal faz com que se reduza a esfera do privado.

As análises de Oliveira Viana não têm a singeleza do resumo precedente. Revelam

uma perspectiva profunda e mereceram elaboração paciente ao longo de meio século.

Cometeu certamente muitos equívocos mas tem o grande mérito de ter se rebelado contra a

convicção superficial de que o Brasil é um país novo, para denunciar a ilusão, de quem a

acalenta, quanto à possibilidade de imprimir-lhe um rumo qualquer. Nos três séculos iniciais

em que se forma o país, ocupam a cena os elementos que resultam de uma longa tradição

cultural precedente. E, provavelmente, encontram-se aí, intocados, até o presente.

Em relação à elite urbana, Oliveira Viana procurou fixar, com base em autores

como Weber e Sombart, os traços que a sociologia moderna distinguia no que

denominaríamos de empresário e o autor chama de capitão de indústria e homem de empresa.

Esse é o personagem central da sociedade capitalista, cujos valores essenciais são a

competição e o lucro. Oliveira Viana não o encontra, no Brasil, com a freqüência que

imaginava. Essa é a conclusão fundamental de História Social da Economia Capitalista no

Brasil. Na sociedade em que vive, entende, predominam valores tipicamente pré-capitalistas.

A origem de tais valores é o tema principal da investigação do livro subseqüente (Introdução

à História Social da Economia Pré-Capitalista no Brasil).

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32

A observação fundamental de Oliveira Viana diz respeito à escala de valores da

nobreza portuguesa, elemento que nutriu e deu base ao processo histórico de formação do

núcleo principal da elite dirigente brasileira.

De um modo geral, a nobreza européia, inclusive a portuguesa, não era uma classe

de agricultores, de pessoas ligadas ao trabalho da terra, como poderia parecer à primeira vista.

Era constituída de pessoas que viviam de rendas. Embora senhores rurais, cobrando

prestações in natura de agricultores arrendatários ou serviços pessoais dos servos, eram

“puros rentistas e não produtores: praticavam uma economia de consumo e não de produção.

Tinham rendas mas não tinham lucros; e isto é importante no ponto de vista social” – escreve

o sociólogo fluminense.

Sob pena de perda dos privilégios que desfrutavam, os nobres não podiam

dedicar-se ao comércio ou ao trabalho manual. Trata-se de um autêntico tabu e a

desnobilização era inevitável.

No caso de Portugal, a situação da nobreza singularizava-se por ser reduzida e

medíocre a sua base econômica. Adianta Oliveira Viana: “Dada a restrição da base territorial

desta pequena nobreza agrária, agravada ainda por estes tabus de vivência nobre, tudo isto

deixava a nobreza peninsular freqüentemente numa situação constrangedora. Bastava uma alta

de preços ou uma quebra do valor da moeda – coisa aliás freqüentíssima, quase normal

naquela época, para que o equilíbrio dos orçamentos domésticos desta nobreza se rompesse e

a maior parte dos seus membros se visse constrangida a viver uma vida parasitária, recebendo

pequenos favores dessa, habitação e mesmo vestuário dos ricos-homens e dos cavaleiros mais

ricos, e, quando mais felizes, dos príncipes ou do Rei. No enquadramento de classe em que

viviam, era o meio que se lhes abria de evadirem-se à sanção desclassificadora dos

preconceitos contra o trabalho manual ou contra a profissão mercantil, esta tida por aquela

época como vilíssima”. (1ª ed., p. 165/166).

A alternativa plausível era colocar-se ao serviço da Coroa. Oliveira Viana cita Frei

Luís de Souza – que viveu na segunda metade do século XVI e nas primeiras décadas do

seguinte, autor de obras históricas de grande importância – que escreve num de seus livros:

“A nobreza destes reinos toda se emprega em servir à Coroa e, em geral, possui poucas

rendas”.

A nobreza portuguesa não veio a ser o elemento social que, segundo Weber, levou

ao constitucionalismo, isto é, uma classe dotada de suficiente poder econômico para enfrentar

o Rei e a burocracia da Corte. Em Portugal tornou-se caudatária dessa burocracia. Como

escreve Oliveira Viana: “Esta pequenez da base territorial e agrária, sobre que se assentava o

sistema de vivência da nobreza lusitana, é que explica, antes de tudo, a não constituição de um

regime propriamente feudal em Portugal. Este foi discutido com erudição e profundeza, por

velhos historiadores, como Herculano e Gama Barros e, modernamente, por Manuel Mereia e

Fortunato de Almeida. Várias causas históricas e políticas foram apontadas para esta

indefinição do sistema feudal na Península. E a verdade, porém, é que foi justamente esta

redução da sua base territorial, de que decorria a insuficiência das suas rendas agrárias, que

obrigou a nobreza lusa a ceder no seu orgulho anterior para ser apenas uma classe dependente,

de apaniguados e comensais da Coroa, destituída de recursos pecuniários, de meios de luta, da

combatividade e do senso de independência dos landlords ingleses, que nunca se curvaram

diante do Rei; antes, pelo contrário”. (p. 169/170).

Oliveira Viana avança outra conclusão da maior relevância ao indicar que o breve

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surto mercantilista a que foi atraído Portugal, pela pilhagem das riquezas da Índia, em vista de

sua breve duração, serviu sobretudo para reforçar os tabus tradicionais contra o trabalho e o

lucro. A esse propósito afirma o seguinte: “O fim do século XVI e o começo do século XVII

puderam assistir, com efeito, à reintegração da nobreza nos seus tradicionais preconceitos

antimercantilistas expressa no seu retorno às suas velhas tradições agrárias e de feudalismo

territorial. Este movimento, que tivera início sob a influência do fracasso das Índias, dirigiu-se

inteiramente para o Novo Mundo – para a colonização do Brasil”. (p. 184).

Este outro registro do notável estudioso de nossa sociedade é da maior relevância

mesmo sob o mercantilismo a nobreza portuguesa nunca se transformou em classe comercial.

Durante o delírio das Índias continuou pré-capitalista e aristocratizada como na fase da

monarquia agrária. O seu afã de rápido enriquecimento nutria-se apenas do desejo de

fomentar o consumo conspícuo. Não se tratava de promover a acumulação, a que se dedicou

preferentemente a elite de outras nações européias.

O resultado de tal experiência é assim descrito por Oliveira Viana: “Os homens da

nobreza, retraídos cada vez mais dessas atividades mercantis, preferiram encaminhar-se, de

novo, para os cargos da administração e para os postos militares, seu velho domínio

privilegiado, sempre considerados – salvo durante o breve intercurso dos “fumos da Índia” –

como únicos compatíveis com a condição nobre. O novo continente, com as suas ilimitadas

larguezas, com a terra farta, fértil e ilimitada, iria dar a essa nobreza urbana, empobrecida

pelo luxo da Corte, e a esta nobreza campestre, também sem meios e sem recursos, a base

territorial com que poderia reverdecer as suas vergônteas e redourar os seus brasões

esmaecidos”. (p. 186).

Tal seria, pois, o núcleos fundamental a partir do qual se constitui a elite urbana

brasileira.

Para transmitir em sua inteireza o ponto de vista de Oliveira Viana cumpre

acrescentar que, em seus livros, notadamente Populações Meridionais e Instituições Políticas,

buscou demonstrar que nunca tivemos, a rigor, sociedade estruturada. O contingente que

chamou de “povo-massa” vivera sempre desprovido de direitos, virtualmente constrangido a

colocar-se sob a proteção de um potentado qualquer.

No que respeita à presença do que chamava de super-capitalismo entre nós,

entendia tratar-se de um produto de importação e nunca de floração natural, oriunda de nosso

próprio passado. Na sua visão, o super-capitalismo levava a colossais conflitos sociais, ao

aviltamento dos próprios valores do capitalismo à vista de sua exacerbação e até mesmo à

perda do sentido da existência. As organizações empresariais com tais características em

funcionamento no país – escreve em História Social da Economia Capitalista no Brasil –

exprimem “antes criações do puro capitalismo financeiro e do capitalismo internacional do

que do capitalismo propriamente industrial, que é peculiar aos nossos empreendimentos

industriais e dos povos, como o nosso, ainda mal saídos da fase colonial”.

Finalmente, Oliveira Viana alimentava a esperança de que o Estado poderia

empreender uma ação modernizadora, a partir do governo autoritário, fazendo emergir na

sociedade interesses diversificados, que constituem a base do sistema liberal.

Embora nos últimos quarenta anos o país haja superado os obstáculos que

impediam a industrialização – que comenta em História Social da Economia Capitalista no

Brasil notadamente a inexistência de mercado único, difícil de construir pela imensidade do

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território e distâncias a vencer –, é fora de dúvida que Oliveira Viana identificou o traço

comum a ponderáveis contingentes da elite. As reservas em relação ao lucro e aos outros

valores do capitalismo talvez se constituam num ingrediente fundante da moralidade social

básica de nossa sociedade.

A própria industrialização que não chegou a presenciar parece se constituir numa

prova da consistência de sua descoberta. Essa industrialização trouxe em seu bojo o

gigantismo da máquina estatal, a presença de grandes contingentes de pobreza nos centros

urbanos e a atribuição ao Estado do principal papel na solução deste último problema. Tudo

isto forma um conjunto mais parecido com os países comunistas do Leste do que com as

nações capitalistas do ocidente. Nestas, o contingente social da pobreza corresponde a uma

parcela reduzida da sociedade, sendo conhecido, mostrando-se ineficazes as políticas estatais

para erradicá-lo. Ao mesmo tempo, a burocracia estatal está longe de corresponder à

nomenklatura todo poderosa em que se transformou no Leste e em países como o Brasil.

Oliveira Viana também tinha razão quando imaginava que a intervenção do

Estado para constituir o mercado único e fazer eclodir o crescimento industrial diversificaria a

sociedade. Assim, do processo descrito também resultou a disseminação dos valores do

capitalismo pelo meio rural de todo o Centro Sul, deixando de ser um fenômeno apenas de

São Paulo e de umas quantas zonas urbanas. Resta saber se corresponde à base social

suficiente para suportar as instituições do sistema representativo, que até hoje não fomos

capazes de estruturar.

Apenas mais uma observação: não deixa de causar espécie o fato de que Oliveira

Viana não se tenha detido na análise da Contra-Reforma. Afinal há de ter sido esse

movimento da Igreja Católica que sufocou o espírito capitalista na cultura brasileira, como

soube entrever Viana Moog em Bandeiras e Pioneiros e tem enfatizado Paulo Mercadante.

4) O LUGAR DE OLIVEIRA VIANA EM NOSSA CONTEMPORÂNEA HISTÓRIA

POLÍTICA

Com a queda do Estado Novo, em 1945, a elite liberal comportou-se como se a

única ameaça ao sistema democrático-constitucional proviesse de Getúlio Vargas e seus

herdeiros políticos. Ignorou-se solenemente a prática autoritária da República Velha e a

incapacidade do sistema representativo, como o concebemos, em lograr a estabilidade

política, conforme se verificara nos anos trinta. De sorte que voltamos a repetir aquela

experiência malograda: sistema eleitoral proporcional; partidos políticos formados em torno

de personalidades, desprovidos de programas ou doutrinas; e práticas das alianças de legenda,

que permitia a formação de algumas grandes bancadas, no Parlamento, ao arrepio dos

resultados proclamadas nas urnas. Surgia de novo a evidência de que o sistema democrático

era uma flor exótica, inadaptável ao nosso clima. Essa velha tese, contudo, aparece em feição

renovada, muito provavelmente devido às idéias de Oliveira Viana ou, mais amplamente, do

que Wanderley Guilherme chamou de autoritarismo instrumental. Agora não mais se exalta o

autoritarismo contrapondo-o ao sistema representativo. Trata-se do instrumento adequado às

reformas econômico-sociais, que darão suporte ao pretendido sistema liberal. Foi o que se viu

em relação à Revolução de 64.

A Revolução de 1964 se fez, segundo a parcela mais representativa de sua

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liderança, para impedir que o Presidente da República em exercício, João Goulart, fechasse o

Congresso, postergasse as eleições e proclamasse o que então se denominava “república

sindicalista”, espécie de socialismo caboclo que misturava fraseologia esquerdista e

corrupção. A derrubada de Goulart facultaria a retomada do processo de exorcizar o fantasma

de Getúlio Vargas da política brasileira, mediante a consolidação da democracia. As eleições

em 1965 consagrariam a liderança e a vitória do então governador da Guanabara, Carlos

Lacerda, que acrescera à pregação udenista tradicional (fidelidade aos princípios liberais, mas

resumindo-os a fórmulas jurídicas, desatenta à problemática da representação) uma atuação

governamental dinâmica. A vitória eleitoral de Lacerda permitira afinal que a UDN chegasse

ao poder com possibilidades efetivas de dar cumprimento ao seu programa. No ciclo anterior,

a presença daquela agremiação no poder, além de efêmera, se fizera através de lideranças não

plenamente identificadas com seu ideário (governo Café Filho, da morte de Getúlio Vargas

em agosto de 1954 a novembro de 1955; e eleição de Jânio Quadros, que governou alguns

meses de 1961, renunciando e provocando a crise que acabaria levando à derrubada de

Goulart em março de 1964).

Consumado o afastamento de Goulart, entretanto, a Revolução de 1964 encontra

dinâmica própria. Aos poucos assume como tarefa primordial a modernização econômica do

país, adiando para período cada vez mais dilatado a prática democrática. O primeiro período

presidencial exercido em seu nome (Castelo Branco) acabou durando três anos, isto é, não se

resumindo ao término do mandato de Jânio Quadros, transitoriamente transferido a Goulart.

As eleições de 1965 foram mantidas, mas apenas para governos estaduais. À derrota

governamental em importantes unidades da Federação seguiu-se a dissolução dos partidos

políticos. Promulgou-se nova Constituição em 1967, virtualmente revogada pelo AI-5 (Ato

Institucional número cinco), decretado em dezembro de 1968. A imprensa e os meios de

comunicação foram submetidos ao controle oficial. Consagra-se o princípio da eleição

indireta dos mandatários dos Executivos federais e estaduais. E assim emergiu plenamente

nova forma de autoritarismo, insuspeitado quando da eclosão do movimento.

O novo surto autoritário não era certamente da mesma índole do castilhismo. Este,

formulou-se na fase inicial da República, implantou-se firmemente no Rio Grande do Sul e

acabaria transplantado ao plano nacional por Getúlio Vargas. Vargas acresceria ao castilhismo

a dimensão modernizadora.

De certa forma, a Revolução de 1964 incorpora essa dimensão modernizadora,

mas está longe de pretender, como o castilhismo getulista, constituir-se em alternativa para o

sistema representativo. A Revolução de 1964 manteria o Parlamento, tolerando o crescimento

da oposição. Ainda mais: assumindo o poder em 1974, o seu quarto mandatário, general

Ernesto Geisel, que ocupara postos importantes no primeiro governo (Castelo Branco),

proclama que o projeto revolucionário não consiste apenas na modernização econômica em

curso, devendo completar-se pela consolidação da democracia. Ao fim de seu governo (1978)

revoga-se o AI-5. O novo presidente (João Figueiredo) realiza a anistia e dá início à reforma

partidária de 1980. A liberdade de imprensa é restaurada em sua plenitude, seguindo-se a

aceitação das escolhas de um político civil (Tancredo Neves) para completar a denominada

abertura política.

O ciclo de reencontro do movimento de 1964 com a bandeira da plena instauração

democrática – e que, naquela época, ainda se entendia como a eliminação do getulismo e a

vitória do udenismo – qualquer que seja o seu desfecho, demonstra que o autoritarismo do

período 1964/1978 não se identifica com as formas tradicionais do autoritarismo brasileiro, as

mais importantes das quais são o conservadorismo (ou tradicionalismo) católico e o

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castilhismo. Ambos correspondem a uma recusa do sistema representativo, além de que não

acalentavam nenhum projeto de modernização econômica. Na matéria, a proposta mais

expressiva correspondia ao corporativismo, que não deixava de ser uma recusa da sociedade

industrial.

O projeto de modernização econômica gestou-se no seio do Estado Novo, foi

retomado no segundo governo Vargas (sobretudo através da Comissão Mista Brasil-Estados

Unidos, de que resultaria a criação do BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico) e apropriado pelo governo Kubitschek (1956/1960), contando com a mais

ferrenha oposição da UDN. Durante o período Jânio Quadros – João Goulart (1961/março de

1964), seria inteiramente abandonado, o que retira a possibilidade de considerar-se que a

Revolução de 1964 a ele teria aderido por uma questão de inércia, já que não o encontrara em

pleno curso. Tampouco se pode sugerir que a nova liderança militar, chegando ao poder,

tivesse “descoberto” as verdades do getulismo – e que, à época, eram muito mais do chamado

“pessedismo” que do braço trabalhista do mesmo getulismo, agora sob a liderança de Goulart

– e as limitações do udenismo, que era afinal a sua verdadeira base de sustentação política.

Os rumos seguidos pela revolução de 1964 são reveladores da presença de forças

sociais poderosas, visceralmente empenhadas na criação da sociedade industrial. O sucesso

alcançado por esse projeto serve também para evidenciar que essa nova versão d autoritarismo

tem antecedentes doutrinários no pensamento político brasileiro, representados, sobretudo,

pela obra de Oliveira Viana.

Oliveira Viana nunca formulou plataforma de industrialização do país como

instrumento adequado à formação do mercado nacional único e de classes sociais

diferenciadas, meio hábil, portanto, para a consecução do seu projeto de liquidação da

sociedade clãnica tradicional. Essa plataforma seria elaborada pela elite técnica, aglutinada

em torno do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico nos anos cinqüenta, que o

governo Jânio-Goulart não conseguiu extinguir, sendo ressuscitada pelo ministro Roberto

Campos no primeiro governo da Revolução de 64. Contudo, a obra doutrinária de Oliveira

Viana, retomada pela Escola Superior de Guerra, dava foros teóricos à convicção sugerida

pela prática do sistema representativo após 1945: não é possível realizar qualquer reforma no

país se depender do Parlamento. Este guardara ciosamente em suas gavetas, naquele período,

muitas leis consideradas essenciais. Assim, a minimização do papel do Congresso tornava-se

requisito essencial para o desencadeamento do processo modernizador.

As doutrinas de Oliveira Viana tinham a vantagem adicional de que não se

resumiam a considerar o autoritarismo como forma ideal permanente, mas apenas expediente

transitório. A experiência do Estado Novo comprovava que a manutenção por prazos

indefinidos do governo autoritário tampouco assegura a estabilidade política.

As doutrinas de Oliveira Viana tinham entretanto um defeito capital: a

subestimação dos institutos do sistema representativo, que no seu horizonte intelectual

pareciam resumir-se à fracassada experiência brasileira. Por isto, do conjunto da pregação de

Rui Barbosa retiraria apenas o reconhecimento do papel do Poder Judiciário na implantação e

consolidação das liberdades civis (Instituições políticas brasileiras. Metodologia do Direito

Público, Cap. XIII). Eximiu-se da tarefa de criticar o liberalismo do período republicano à luz

da própria doutrina liberal em sua evolução.

O que se perdeu na prática liberal brasileira foi a doutrina da representação de

interesses. Se os interesses são diferenciados, não se trata de averiguar tecnocraticamente, de

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forma centralizada, que interesses (mais explicitamente: de que segmentos sociais) vamos

erigir em interesse nacional... Isto só é possível mediante a livre disputa entre facções. Aos

partidos políticos compete circunscrever a massa de interesses a reduzido número de vetores

e, em nome destes, disputar a preferência do eleitorado. No Brasil republicano, tudo se

resume a Governo e Oposição. A força dessa dicotomia vem sendo plenamente ratificada

pelos percalços do período de abertura política subseqüente à morte de Tancredo Neves. A

Assembléia Constituinte não deu de fato nenhum passo efetivo no sentido de facilitar a

aglutinação de nossas correntes de opinião em partidos políticos, recusando frontalmente o

voto distrital, mantendo o sistema proporcional e criando toda sorte de facilidades à

organização de agremiações políticas, nutrindo assim um fracionamento que serve apenas

para sustentar a crônica instabilidade.

Para não me furtar a opinar sobre a questão, quero explicitar que, segundo

entendo, a missão da intelectualidade não é certamente sobrepor-se à classe política e

alimentar ilusões quanto às virtualidades do iluminismo. O processo histórico tem seu curso

qualquer que seja o vigor da intelectualidade respectiva. A circunstância não nos desobriga do

esforço de recuperar as tradições culturais do país, buscando tornar inteligíveis as linhas

segundo as quais se desenvolve o curso real. E, neste, a linhagem representada por Oliveira

Viana voltou certamente a ocupar lugar de primeiro plano.

Cumpre, assim, reconhecer que se trata de tradição das mais fortes e arraigadas,

remontando ao Marquês de Pombal. Corresponde, portanto, a uma das formas essenciais de

nossa maneira de ser. Parecendo insuperável, nosso voto seria no sentido de que o afã

modernizador se completasse pela incorporação plena dos ideais do sistema representativo,

desde que corresponde à maior realização da humanidade no plano da convivência social.

NOTAS

(1)

Populações Meridionais do Brasil, 6ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, vol. I, p. 259. (2)

Problemas de Política Objetiva. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1930, p. 97. (3)

Homens de marca. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986, p. 74/75 (4)

Reuni numa antologia os textos mais importantes que atestam o curso desse debate na

Inglaterra do século XVIII, onde os personagens centrais são Bernard Mandeville

(1670/1733), Anthony Ashley Cooper, 3º conde de Shafsterbury (1671/1713), Joseph Butler

(1692/1752) e David Hume (1711/1776), antologia que foi editada pelo Instituto de

Humanidades, no Curso de Humanidades (São Paulo, 1991).

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CAPÍTULO III

A MODERNIZAÇÃO PRETENDIDA POR POMBAL E SEU ALCANCE

1) OS VALORES IMPOSTOS PELA INQUISIÇÃO E O ALCANCE DAS REFORMAS

POMBALINAS

Os valores são aquilo a que damos ou devemos dar preferência. Em toda

organização social são um aspecto essencial porquanto definem e explicam o que há de mais

relevante no comportamento das pessoas. Estruturam as principais tradições culturais. Estas

ganharam corpo milenarmente. Portugal quando se lançou aos descobrimentos estava de

posse de valores muito nítidos para a elite. Precisamente por essa circunstância acabaram

impondo-se às populações indígenas e negras, na medida em que foram sendo aculturadas.

Mais importante que ter esse fato presente é dar-se conta de que o estabelecimento de uma

nova tradição, contraposta à secularmente admitida, é de muito difícil consecução.

No terceiro século (XVIII), quando o país passou a dispor de uma civilização

sedimentada com base em núcleos urbanos estáveis, atividades econômicas firmadas,

assentado o aparelho governamental e alcançada dinâmica de crescimento populacional

assemelhada à que se firmara na Europa, os valores prevalentes e sedimentados são aqueles

que costumam ser afeiçoados à Contra-Reforma. Mas aqui não houve nenhuma espécie de

embate entre católicos e protestantes. Simplesmente os valores dos primeiros nos foram

impostos. Por isso é melhor falar diretamente em Inquisição.

Em geral costuma-se supor que a ação do Tribunal do Santo Ofício estivesse

limitada às chamadas visitações, isto é, quando vinha de Lisboa algum funcionário graduado

da instituição. Na verdade, entretanto, organizou-se no país aparelho repressor permanente e

de eficácia comprovada. De sua estruturação dá-nos conta José Gonçalves Salvador (Cristãos-

novos, jesuítas e Inquisição, 1969, e Judeus e Cristãos Novos, Povoamento e conquista do

solo brasileiro, 1530-1680, 1976). A comprovação da eficácia encontra-se “a posteriori”, na

medida em que destroçou o empreendimento açucareiro, (1) e nos impingiu a escala de

valores que ora nos propomos caracterizar.

Gonçalves Salvador refere a praxe de delegar poderes inquisitoriais à determinada

autoridade eclesiástica do país. O primeiro a receber tal delegação foi D. Antonio Barreiras,

que usava o título de Bispo do Brasil e tomou posse em 1576. Escreve então: “O bispo, na

qualidade de representante do Santo Ofício, recebera autoridade para ouvir denúncias, abrir

devassas, mandar prender os faltosos, ou receber os que lhe fossem encaminhados pelos

vigários, e remeter, a seguir, para Lisboa, a quantos julgasse incursos em pena que fugisse à

sua alçada. Era ele, a bem dizer, um agente direto daquele Tribunal em nosso país”. Além

dessa delegação expressa, a presença da Inquisição no país se fazia também através de

comissários e familiares, afora naturalmente os próprios visitadores. O comissário, do mesmo

modo que o visitador, era obrigatoriamente clérigo. Ambos não se achavam submetidos aos

bispos nem a qualquer outro titular religioso, enquanto as autoridades civis estavam obrigadas

a secundar-lhe a missão no que se fizesse necessário. Os familiares eram geral leigos.

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39

Enquanto os visitadores e comissários, terminada a missão, regressavam ao Reino, os

familiares aqui residiam e reportavam-se, na ausência destes últimos, ao representante do

Tribunal.

Segundo Gonçalves Salvador, “existiam familiares nos principais portos e talvez

em algumas vilas como é possível deduzir de fatos mencionados no decorrer desta obra... Em

virtude dos privilégios inerentes ao cargo, o título de familiar era muito cobiçado, porque

explicitamente afirmava a limpeza de sangue...” (Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição, ed.

cit., p. 86), isto é, colocava-o a salvo da própria instituição.

Deste modo, afora as visitações, foi montada no Brasil uma verdadeira rede de

atuação permanente da Inquisição. Os efeitos desta, consoante acentua o autor, “vão além das

quatro dezenas de milhares de processos”. Instaurou no país um verdadeiro efeito paralisante

no que respeita à transição do ciclo mercantilista para o capitalismo, em especial na fase

posterior à restauração e à expulsão dos holandeses.

Qual a linha principal de atuação desse aparelho repressor? Louvamo-nos da

opinião de Viana Moog, que se inclui entre os poucos estudiosos que atentaram para o papel

da Inquisição nos rumos subseqüentes da história brasileira. No livro Bandeirantes e

Pioneiros, ao confrontar o progresso dos Estados Unidos com o atraso do Brasil e averiguar

suas causas, examina os diversos atos praticados por Espanha e Portugal no sentido de

dificultar a transição “da sociedade feudal pré-capitalista de economia dirigida para a

definitivamente capitalística de economia mista”. Chama-os de desatinos e atribui grande

importância à expulsão dos judeus, “os únicos capacitados nos dois impérios para a

manipulação da riqueza”.

Ao seu ver, contudo, o eixo dessa política consistia no combate à usura. Pela lei, o

usurário equiparava-se ao criminoso. Era-lhe negada a comunhão do mesmo modo que o

sepultamento cristão. Quem alugasse casa a um usurário estava sujeito à excomunhão. A

simples declaração de que a usura não era pecado devia ser punida como herética. As

Ordenações recomendavam expressamente: “Que nenhum cristão ou judeu onzene”

(onzenário, sinônimo de agiota, estando a denominação relacionada aos juros de onze por

cento, considerados exorbitantes). Quando da expulsão dos judeus, escreveu-se “malfeito não

os queimarem, porque eram onzeneiros”.

Afirma Viana Moog na obra citada: “Claro, a perseguição ao onzenário e,

conseqüentemente, à acumulação de capitais não se confinava a Portugal e Espanha. Estendia-

se às colônias. E uma das razões por que se mandou para o Brasil o Santo Ofício foi sem

dúvida para coibir a usura dos mercadores que já não queriam vender a dinheiro de contado,

mas cobrando juros. Daí as várias denúncias contra cristãos-novos apanhados na prática do

feio pecado”. (15ª edição, 1985, p. 79).

A transformação do combate à usura em ódio ao lucro fica por conta dos

publicistas e prelados. A literatura difundida – pela qual se pode aferir o teor dos sermões do

comum dos prelados – era predominantemente de cunho religioso, conforme se pode ver do

levantamento bibliográfico realizado por Rubens Borba de Moraes (Bibliografia Brasileira do

Período Colonial, São Paulo, 1969). Segundo esse registro, até os começos da segunda

metade do século XVIII, a produção de autores brasileiros equivale a cerca de duzentos

títulos. As obras literárias, de cunho histórico ou descritivas, bem como as de índole didática,

técnica ou filosófica oscilam em torno de trinta. Toda a parcela restante poderia ser agrupada

como apologética da religião e da salvação, em sua maioria na forma de sermões. Considera-

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40

se que os mais importantes dentre os livros de cunho histórico ou descritivos das províncias –

salvo talvez a História da América Portuguesa (1730) de Sebastião da Rocha Pitta – seriam

aqueles publicados séculos depois, como o Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel

Soares de Souza, os Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), a História do Brasil (1627) de

Frei Vicente do Salvador e Cultura e opulência do Brasil (1711), de Antonil, que, tendo

chegado a ser impresso, foi entretanto recolhido e destruído pelas autoridades.

Expressivo do estado de espírito da elite culta é a obra de Feliciano Souza Nunes

(1730/1808) – Discursos políticos-morais (1758) – que nasceu e viveu no Rio de Janeiro,

ocupando posição de destaque na administração colonial e na vida cultural da futura

metrópole, tendo-lhe cabido a fundação da Academia dos Seletos. A Academia reunia a

intelectualidade local e publicou o livro Júbilos da América (1754), que se considera

expressiva manifestação literária da época.

Seus Discursos políticos-morais pretendem apoiar-se em “vasta erudição das

divinas e humanas letras”, tendo por objetivo “desterrar do mundo os vícios mais inveterados,

introduzidos e dissimulados”. Dos sete discursos que o compõem, dois se dedicam ao

combate da riqueza, um aponta os perigos do estado conjugal, três ocupam-se da família e o

último da amizade. O tom geral da obra pode ser avaliado a partir da transcrição adiante:

“As maiores riquezas que pode lograr o homem é a salvação, a liberdade e a vida.

E se com a riqueza excessiva a salvação se arrisca, a liberdade se perde e a vida se estraga,

como não virá o homem a ser tanto mais necessitado quanto for mais rico? Como não será a

sua riqueza excessiva o mais certo prognóstico da sua maior necessidade e miséria?

Que se estrague a vida com os excessos da riqueza, não é necessário que o

discurso o mostre, basta que a experiência o veja. São tantos os exemplos que esta a cada

passo nos oferece que parece escusado nos diga Plínio, que penetrando os ricos o centro da

terra vão buscar as suas riquezas à mesma região dos mortos; e mais desnecessário lembrar

que Saul por querer um reino perdeu a vida; que Adão, por comer superfluamente um pomo,

ficou a tantas misérias sujeito; e que Baltazar pelas suas demasias se viu em uma noite

condenado à morte; e nem de outros muitos que acompanhando aquele rico miserável do

Evangelho ainda nesta vida chegaram a não ter uma gota d‟água, pelos excessos das suas

riquezas.

... porque ainda que ignorássemos o que a respeito nos dizem São Mateus, São

Marcos, Santo Agostinho e outros muitos Santos e Doutores da Igreja de Deus, ... deles, como

réprobos, também se lastima Cristo. ... e por isso diz São Jerônimo que todas as grandes

riquezas são filhas ou netas da iniqüidade ou injustiça, porque um não pode achar o que outro

não tem perdido; concluindo com aquela sentença de Aristóteles, que o rico ou é injusto ou do

injusto é herdeiro”. (2)

Essa aversão ao lucro e à riqueza deixou marcas profundas em nossa cultura e

trouxe algumas conseqüências de que não conseguimos até hoje nos livrar. Entre estas

sobressai a pouca valorização dos empresários (e da própria empresa privada) que responde

pela oferta fundamental do emprego, mesmo numa economia com os níveis de estatização

alcançados pela brasileira. E o emprego se situa entre os bens maiores da sociedade moderna.

Sem emprego, vale dizer, sem remuneração, a pessoa está privada de ter acesso ao que a

economia desenvolvida proporciona à maioria. Tanto isso é verdade que, naquelas economias,

o desemprego é objeto de políticas públicas específicas, sendo a sua medida um dos

indicadores do bem-estar social.

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41

Outra atitude que gravita em torno da aversão ao lucro é o entendimento do

trabalho como uma espécie de destino adverso e não como o caminho da realização pessoal,

entendimento esse de que não se libertam muitas pessoas bem-sucedidas ao imaginar que

devam “poupar” os filhos de semelhante tipo de adversidade, tornando-lhes a vida a mais fácil

possível. A aceitação do trabalho pela elite, na Época Moderna, é certamente um resultado das

religiões protestantes. Mas depois de constituída a sociedade moderna esse valor dissociou-se

de suas origens e tornou-se uma aquisição consensual, transmitida pela educação. Os Estados

Unidos tornaram-se uma nação populosa mediante a aceitação de milhões de imigrantes

procedentes das diversas partes da Europa, em cujo seio se encontravam grandes contingentes

de judeus e católicos. Nem por isto os valores adotados pelos fundadores se deixaram

suplantar.

Outro componente do mesmo sistema de valores é o que se poderia denominar de

“simpatia pela pobreza”, entendida não como prática da caridade, em comunidades limitadas,

onde se pode acompanhar os efeitos de semelhante atuação, mas como paternalismo estatal. A

esse propósito cabe ter presente a advertência do grande Benjamin Franklin (1706/1790), um

dos artífices da Independência Americana e de suas instituições republicanas, filósofo,

inventor, enfim, um autêntico sábio. Dizia ele que os americanos teriam de copiar a maioria

das instituições de seus ancestrais ingleses. Entre essas, entretanto, repudiava os

procedimentos oficiais de assistência aos pobres, por lhe parecer que estimulavam a preguiça.

Para construir uma Nação digna do nome, neste lado do Atlântico, só restava aos ingleses que

por tal optaram, lançar-se denodadamente ao trabalho, cumprindo combater com decisão tudo

que se lhe contrapusesse.

Em nossa tradição cultura, a “simpatia pela pobreza” fomenta a crença da

responsabilidade do Estado por tal fenômeno, quando os países que a eliminaram não o

fizeram graças à intervenção estatal mas pela prática de uma economia livre, baseada na

valorização do trabalho, no apreço aos bem-sucedidos, no reconhecimento da legitimidade do

lucro, enfim valores todos contrários ao que nos foi legado pela Contra-Reforma e inculcado à

força pela Inquisição.

a) Como atuava a Inquisição

Por mais repulsivo que seja, não podemos deixar de nos deter ao modo como a

Inquisição impôs à nossa cultura, pelo terror, esses valores ultrapassados em toda parte da

Europa pela Época Moderna.

No livro Inquisição e Cristãos-Novos (Lisboa, Editorial Estampa, 5ª ed., 1985),

Antonio José Saraiva descreve os procedimentos básicos da Inquisição, mobilizando farta

documentação. Aqui vamos nos limitar ao essencial.

Desde logo, Saraiva chama a atenção para o caráter faccioso do processo, que

seria secreto, sem apelação e “deixava nas mãos dos inquisidores o poder praticamente

absoluto e arbitrário de condenar ou absolver”. Não se pode legitimamente supor, apontando

os fatos justamente na direção oposta, que o Tribunal do Sacro Ofício tivesse qualquer

isenção. Não se trata apenas do que fosse parte interessada em demonstrar que o judaísmo se

multiplicava, já que vivia dos bens confiscados aos réus, nem de que, afinal, eram homens

sujeitos à paixão e ao engano. A seu ver, “as regras do processo inquisitorial eram

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incompatíveis com uma verdadeira imparcialidade de juízo e levavam automaticamente à

condenação de inocentes”.

A base do processo inquisitorial era constituída pelas denúncias e pelas

confissões. A delação era amplamente estimulada, repetindo-se anualmente os chamados

“editais de fé” em que os crentes se lembrava estarem obrigados a denunciar, sob pena de

excomunhão, “se sabem ou ouviram” que algum cristão batizado disse ou fez algumas coisas

que no edital eram declaradas. O Tribunal não se interessava em averiguar a idoneidade do

denunciante, aceitando-as mesmo por carta anônima. As testemunhas no processo eram

ignoradas do réu. Estava assente, também, que “se o acusador quiser desistir da acusação, em

crime de heresia, não deve ser facilmente ouvido”.

Preso, a vítima da Inquisição era completamente isolada do mundo, desde que

“são equiparáveis a fautores de hereges todos aqueles que visitam e ajudam com alimentos,

dinheiro ou de outras formas os hereges processados”, indicava expressamente o Regimento.

Sem que lhe fosse comunicado o motivo da prisão, o interrogatório obedecia ao princípio de

que competia ao preso declarar espontaneamente as suas culpas. Os interrogatórios estavam

tipificados de modo a que os reincidentes, mesmo reconhecendo suas culpas, estivessem de

antemão condenados à morte. Esta era uma das razões pelas quais quem caísse nas malhas da

Inquisição via-se privado de qualquer escapatório, mesmo porque a confissão acabava sendo

obtida mediante tortura.

Os instrumentos de tortura estão descritos nos Regimentos da Inquisição.

Consistiam basicamente em amarrar o preso a uma corda, içá-lo e sacudi-lo violentamente.

Esse procedimento em geral quebrava ou deslocava membros e recomendava-se

expressamente que não fosse usado menos de quinze dias antes do “auto de fé”, para que a

vítima não aparecesse de público “mostrando sinais de tortura”. O segundo instrumentos era

um leito de ripas em que o paciente era entalado com cordas acionadas por manivelas, para

ser sucessivamente esticado. Obtida a confissão por tortura, eram registradas e apresentadas

ao réu 24 horas depois, para que ratificasse e dissesse de novo “sem medo, força ou violência

alguma”. Negada a confissão, recomeçava a tortura.

A defesa ficava a cargo de advogado ou procurador escolhido pelo próprio

Tribunal. Era entretanto grandemente dificultada pelas disposições em vigor. Primeiro, não

poderia produzir nenhuma alegação que não fosse firmada conjuntamente pelo réu e pelo

advogado. Vale dizer: este não precisava de modo algum comprometer-se com o fato alegado.

Além disto, todas as entrevistas entre as partes eram presenciadas por um funcionário

(meirinho), justamente o policial encarregado de efetuar as prisões. E, finalmente, o preso não

podia tomar conhecimento de nenhum detalhe que lhe permitisse identificar as testemunhas

de acusação. O Regimento dava exemplos concretos para que não pairassem dúvidas. Assim,

se o crime fora cometido numa quinta situada a uma légua de Lisboa, usar-se-á a expressão

“uma légua ao redor de Lisboa”, sem menção expressa ao local, no caso, a quinta. Há outros

detalhes como a mis en scène para manter os presos sob permanente terror, a prevenção contra

simuladores nos casos dos presos que endoudeceram no cárcere (todo o título de um dos

livros em que se subdivide o Regimento, o que sugere tratar-se de fato freqüente) e outros

aspectos que não vêm ao caso já que se trata de referir apenas o essencial.

O “auto de fé” era o destino inexorável de quem fosse apanhado pela Inquisição,

consistindo geralmente numa cerimônia pública, para execução da sentença, de dois tipos: os

reconciliados, isto é, os que eram readmitidos no seio da Igreja e condenados a penas que iam

desde penitências espirituais até a prisão e desterro; e os relaxados, isto é, os que eram

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entregues à Justiça secular para execução da pena de morte. Formalmente haveria um outro

julgamento pela justiça ordinária, mas como a cena toda se desenrolava em praça pública e

devia anteceder diretamente ao ápice do espetáculo, que era a queima da vítima na fogueira,

tudo se passava o mais rapidamente possível, não havendo propriamente julgamento e nem a

mais remota possibilidade de ser revogada a sentença do Santo Ofício.

Saraiva descreve no pormenor o “auto da fé”. Seus momentos culminantes são os

preparativos, para alcançar a maior mobilização possível; a procissão, que chamava a atenção

de todos; a leitura das sentenças, que causava grande excitação e, finalmente, a incineração da

vítima, espetáculo de horror, cuja simples descrição, ainda hoje, nos deixa enojados.

“Com o tempo e a experiência, diz Saraiva, acabou por ser um grande e pomposo

espetáculo, a que assistiam as autoridades supremas, freqüentemente o rei em pessoa, e que

movimentava toda a cidade, como as maiores festividades públicas”.

Os preparativos iniciavam-se com vários dias de antecedência, mas o anúncio

público fazia-se quinze dias antes, a tempo de construir o cadafalso e o anfiteatro, de

confeccionar os sambenitos (hábitos trajado pelos sentenciados, em forma de saco longo,

enfiado pela cabeça, denominação que se supõe seja uma corruptela de saco bendito).

A procissão saía na manhã de domingo da sede do Santo Ofício e percorria uma

parte da cidade antes de chegar ao local da leitura das sentenças, numa das praças principais

do país. “Uma compacta multidão saía às ruas” – acrescenta.

“As sentenças eram muito extensas e reproduziam, geralmente ipsis verbis, os

depoimentos das testemunhas como fatos averiguados. Algumas levavam horas a ler. Era

neste ponto que, provavelmente, a tensão coletiva atingia o ponto máximo, porque não havia

para a curiosidade pública pasto mais sensacional que a narração detalhada de algumas

cerimônias judaicas, de casos de bigamia, de prevaricação de frades com mulheres, de pactos

e até de coitos com o Diabo, de quem as freiras pariam filhos, que eram cachorros, gatos ou

monstros. Mas o sensacional misturava-se com o monótono, porque muitas das sentenças

eram seqüências e fórmulas estereotipadas, conhecidas à saciedade, como que o réu comia

carne à sexta-feira, não comia peixe nem escama, etc., “tendo-se encontrado com pessoa de

sua nação, ambos se confessaram por adeptos da lei de Moisés, fora da qual não há salvação”,

etc.

Concluída essa parte e entregues os relaxados à Justiça comum, a quem

formalmente cabia a responsabilidade pela execução da sentença, o rito prosseguia sem

interrupção. Mesmo os que haviam morrido na prisão nem por isso ficavam isentos.

Prossegue o autor: “Em Lisboa, cada corpo vivo ou morto era amarrado a um poste, ao pé do

qual se incendiava a lenha. Estes pelourinhos de madeira eram instalados na Ribeira, junto ao

Terreiro do Paço. Os executados ficavam assim bem visíveis perante uma enorme multidão”.

A cena seguinte era de uma barbaridade inominável e Saraiva refere as

circunstâncias: “Na Ribeira de Lisboa, que é freqüentemente ventosa, a brisa inclinava a

chama, e a vítima encontrava-se a uma altura tal que o lume não lhe subia acima da cintura. A

chama não o afogava, mas grelhava-o, durante hora e meia, duas horas, antes que ele

morresse. Os seus gritos – “Misericórdia, por amor de Deus” – provocavam o júbilo da

assistência. O capelão inglês que assistiu ao auto de fé de 1682 mostra-se impressionado com

este espetáculo e pondera, a propósito, que o povo português não é naturalmente cruel; pelo

contrário, a sua índole ternurenta revela-se pela maneira como lamentava a execução dos

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criminosos de direito comum”. Para nós, do século XX, que assistimos ao fenômeno do

totalitarismo, na Alemanha nazista e na Rússia estalinista, é fácil compreender o que se

passava: trata-se daquilo que Hanah Arendt chamou de transformação do povo em massa

amorfa e manobrável, pelo terror.

A conclusão de Saraiva é de que os autos-de-fé constituíam “uma exibição

esmagadora do poderio do Santo Ofício”. Os nomes das vítimas eram difundidos por todo o

país e com maior destaque naquelas localidades de onde provinham. Isto precisamente explica

que, até Pombal, a elite portuguesa se houvesse alheado do curso do mundo, alheamento que

lhe era imposto pelo terror justamente para guardar fidelidade à Igreja Romana e seus

dignatários.

O seguinte texto de um escritor espanhol da cidade de Toledo, do ano de 1538,

transcrito por Henry Kamen na obra antes mencionada, reflete com precisão o estado de

espírito que a Inquisição acabou impondo à elite: “Os predicadores não ousam predicar e já

que predicam não ousam imiscuir-se em coisas sutis, porque na boa dos néscios está sua vida

e honra e não há ninguém sem o seu esbirro (empregado menor do Tribunal) nesta vida...

Pouco a pouco se desnaturalizam muitas vezes e se vão a reinos estranhos, para não viver toda

a vida em temor e sobressalto quando entrará em esbirro da Inquisição por suas portas, que a

maior morte é o temor contínuo da morte próxima”.

b) O destino do ouro

Esquematicamente, o que se pode dizer é que o empreendimento açucareiro deve

ter sido inteiramente destroçado por volta das últimas décadas do século XVII, quando então

tem lugar a descoberta do ouro em Minas, iniciando-se o grande fluxo migratório naquela

direção.

A esse propósito escreveu Buescu na História do Desenvolvimento Econômico do

Brasil: “Só em 1694-95, os bandeirantes, entrados no interior de Minas Gerais à cata de

índios e de pedras preciosas, deram a notícia de haver encontrado ouro à flor da terra, nos

sertões de Taubaté. A notícia provocou considerável afluxo de gente tanto do exterior, de

Portugal (a técnica da mineração veio talvez da Metrópole) e de outros países, quanto do

próprio território brasileiro – sendo de considerar-se, como fator importante, a crise de açúcar.

Da Bahia, desceram pelo Rio São Francisco numerosos aventureiros, camponeses, etc. em

poucos anos, milhares de pessoas dirigiram-se para os territórios de mineração. De outro lado,

as necessidades de mão-de-obra apta para o trabalho dura nas minas foram resolvidas pela

intensificação do tráfico negreiro e a transferência de escravos da zona açucareira. Os altos

lucros da mineração permitiram suportar o custo elevado dos escravos importados. Houve

tentativa de limitar o número de escravos a serem enviados para as minas, mas a medida ficou

sem efeito”. E, logo adiante: “A prosperidade da região concretizou-se nas vilas fundadas

(afirma-se que Via Rica chegou a ter 100.000 habitantes), com construções de luxo e vida

bem mais intensa do que na zona agrícola. A elevação da renda dos mineiros permitiu o

florescimento de várias atividades, no setor do comércio, artesanato, profissões liberais, etc., e

as despesas de luxo atingiram a níveis muito altos”.

O ciclo do ouro, a que se somaria a partir de 1729 a extração de diamantes, não

durou muito tempo, situando-se o seu apogeu nas décadas de cinqüenta e sessenta. Desde

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então, entra em declínio. Estima-se que, ao todo, haja propiciado receita da ordem de 170

milhões de libras, cerca de 30% da exportação total dos três séculos, a metade do que se

obteve como açúcar e certamente muito menor do que foi alcançado nessa última atividade no

século XVII.

A mineração de ouro e diamantes tornou-se importante fonte de recursos para a

Coroa, ajudando muito, em todo o período, para o equilíbrio das relações comerciais de

Portugal com a Inglaterra, observa Buescu.

A riqueza acumulada sob a Inquisição não foi aproveitada para fomentar outras

atividades produtivas, a exemplo do que ocorria, na mesma época, em outros países europeus.

Surgira, na França, na Inglaterra e na Holanda, as denominadas manufaturas, isto é, fábricas

em que, embora se continuasse empregando o trabalho manual, como no artesanato que as

precedera, os trabalhadores não se ocupavam de fazer sozinhos todo um produto mas apenas

parte dele, sendo a tarefa de juntas as peças realizada autonomamente.

Esse expediente aumentou muito a produtividade. Na segunda metade do século

XVIII, na Inglaterra, introduzem-se novas rotações de cultura obtendo-se aumentos

expressivos da oferta agrícola. A manufatura e o começo da tecnificação da agricultura

antecedem diretamente a Revolução Industrial – que na Inglaterra deu-se entre 1760 e 1830 –,

caracterizada pelo emprego de máquinas no processo produtivo, acarretando novos saltos na

produtividade e na produção. Enquanto isto, Portugal continuava vivendo o clima medieval,

ocupando-se as pessoas, sobretudo, de salvar as próprias almas.

O auge dos ganhos com a mineração teve lugar sob D. João V (um dos mais

longos reinados da história de Portugal, desde que durou 43 anos, de 1707 a 1750), cujo

grande feito consistiu na construção do Convento de Mafra. José Hermano Saraiva (História

Concisa de Portugal) registra a existência de certo consenso quanto à responsabilidade

daquele Monarca na oportunidade perdida, embora oponha os reparos que indicaremos.

Depois de assinalar que o período de maior afluxo de ouro brasileiro coincide com

o longo reinado de D. João V, escreve aquele autor: “Mas o aumento da receita pública e

privada não se repercutiu em transformações duradouras no plano econômico ou em

modificações sensíveis na estrutura social portuguesa. A maré alta passou por nós como vento

e deixou o País como dantes”. E acrescenta: “Uma explicação muito popularizada desse

fenômeno consiste em responsabilizar o próprio D. João V pela dissipação dos tesouros

vindos do Brasil. É verdade que o rei consumiu quase tudo quanto ao Estado coube no

rendimento das minas brasileira na manutenção de uma corte luxuosa e em gastos enormes

relacionados com o prestígio real”. A José Herculano Saraiva parece que a explicação

contempla apenas uma parte da verdade, já que à Coroa cabia apenas um quinto da receita dali

proveniente. Há que atentar também, parece-lhe, para a ausência de mentalidade

empreendedora e muito menos liderança capaz de imprimir outra direção aos acontecimentos.

Ora, tudo isto decorre precisamente da valoração infundida à força pela Inquisição e pela

debandada a que se viram forçados os elementos empresariais. Tanto a atuação do rei como a

inexistência de grupos sociais divergentes da orientação geral constituem uma prova

inconteste da vitória plena do Tribunal do Santo Ofício.

Apesar da discordância, Hermano Saraiva não se furta a registrar: “A mais

importante realização pessoal de D. João V foi o projeto de construção de um edifício

gigantesco, de proporções que excediam de longe tudo quanto até então se edificara em

Portugal: o Palácio-Convento de Mafra. Mas também para isso o País não dispunha de técnica

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nem de gente, e foi preciso recorrer à importação maciça de artistas estrangeiros e de obras de

arte inteira produzidos fora de Portugal.

O desenho seguido foi o de um arquiteto, Ludwig (Ludovice, na forma

italianizada pela qual ficou conhecido). O plano incluía um grande palácio real, um convento

para trezentos religiosos e uma basílica; o conjunto atingia cerca de 4000 m2 e perto de mil

trezentas dependências, entre salas, quartos e celas conventuais. As obras começaram em

1717 e duraram até 1750. O rei exigiu que a sagração da basílica se fizesse em 1730, no dia

do seu aniversário. Para tentar aprontar a obra, foram apanhados à força todos os homens

válidos do País e mandados para Mafra, amarrados em cordoadas. Juntaram-se assim quarenta

e cinco mil trabalhadores, além de sete mil soldados que os obrigavam a trabalhar. Com

exceção da pedra (os mármores pretos de Pêro Pinheiro ficaram desde então célebres), tudo

veio de fora”.

Teixeira Soares, no livro O Marquês de Pombal (Rio de Janeiro, Ed. Alba, 1961)

escreve o seguinte: “Dom João V, durante 33 anos gastou milhões de cruzados na construção

do convento de Mafra, enchendo-o de sinos, carrilhões, alfaias, livros – e alguns frades.

Gastou à larga para edificar uma mole gigantesca que poderia albergar dois regimentos de

infantaria e vários serviços públicos. Que fez Pombal? Instala no convento o Colégio Plebeu,

fundado em 1772, encarregando os Regrantes de Santo Antonio de educar os alunos. Abre o

convento ao público, areja-o, vivifica-o em contato com a visitação popular. Esse pequeno

fato demonstra sem dúvida grande mudança de mentalidade”.

2) AS REFORMAS POMBALINAS

Sebastião de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal (1600/1782) fez parte do

primeiro ministério organizado por D. José I, que foi coroado rei em 1750, com a morte de D.

João V. A partir da energia demonstrada em face do terremoto que, na manhã de 1º de

novembro de 1755, destruiu Lisboa quase completamente, teve ascendência completa no

governo e carta branca para realizar grandes reformas. Antes de tornar-se ministro, fora

embaixador de Londres, impressionou-se profundamente com o progresso alcançado pela

Inglaterra e buscou compreender suas causas. Chegada a oportunidade, tratou de fazer uso

dessa experiência.

Pelo encaminhamento que deu às suas reformas, vê-se claramente que Pombal

atribuía o progresso da Inglaterra à ciência. Assim, tratou de abolir o monopólio que os

jesuítas exerciam sobre o ensino, acabando por expulsá-los do país e das colônias e pôs fim à

interdição que até então existia em relação à física de Newton. Ainda que tivesse se ocupado

de promover a indústria manufatureira e criado no país companhias estatais de comércio, de

reformar o Exército, enfim, correr contra o tempo e impor o ingresso de Portugal na época

moderna, apostou sobretudo na criação de uma elite possuidora de conhecimento científico de

seu tempo.

No século XVIII havia em Portugal muitos homens ilustrados, com plena

consciência do descompasso do país em relação à Europa. Foram chamados, conforme foi

mencionado, de estrangeirados. Pombal seria o melhor sucedido dentre eles.

Em 1761 foi organizado o Colégio dos Nobres, com capacidade para 100 alunos

internos, submetidos a uma disciplina férrea. A par do ensino clássico de humanidades, o

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47

propósito central consistia em dar-lhes rigorosa formação científica, através do ensino das

matemáticas e da física, bem como de ciências aplicadas (hidráulica, arquitetura civil e

militar, etc.). Foram importados instrumentos e professores, tanto da França como da

Inglaterra. O estabelecimento tornar-se-ia o núcleo constitutivo da futura Escola Politécnica.

Essa iniciativa não parece haver satisfeito à amplitude da reforma de mentalidade que visava

promover, porquanto dez anos mais tarde voltar-se-ia para a Universidade.

Sua reforma da Universidade antecipa de algumas décadas à que seria promovida

por Napoleão, e que tanto impressionaria a elite brasileira no século passado. Em matéria de

instrução, Pombal tomaria uma outra iniciativa pioneira na Europa, criando a primeira escola

de comércio do mundo.

Contudo, sua grande obra seria a reforma da Universidade de Coimbra. Como

diria Hernani Cidade, “foi verdadeiramente a criação de uma nova Universidade”. Daria a

essa reforma tal dedicação que mais parece, ao mesmo Hernani Cidade, “em nada mais

tivesse de pensar”.

Na Universidade pombalina o papel-chave será desempenhado por dois novos

estabelecimentos: as Faculdades de Matemática e de Filosofia. Esta se compreendia como

“filosofia natural”, mais precisamente, como ciência aplicada desde que seus cursos destinam-

se a formar pesquisadores de recursos naturais, botânicos, metalurgistas, enfim, homens

capazes de identificar as riquezas do Reino e explorá-las. Recrutam-se famosos professores

italianos e criam-se estas instituições voltadas para a observação e a experimentação: Horto

Botânico, Museu de História Natural, Gabinete de Física, Laboratório Químico, Observatório

Astronômico, Dispensário Farmacêutico e Gabinete Anatômico.

Em relação ao Brasil, a administração pombalina tratou de soerguer as atividades

econômicas, combalidas pela perseguição que o Tribunal do Santo Ofício movia às pessoas

bem-sucedidas. Acreditava sobremaneira nas possibilidades da Amazônia, atribuindo

diretamente ao irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a tarefa de comandar o

inventário de suas riquezas e promover a sua exploração. Eliminou o Estado do Maranhão,

que se vinculava diretamente à Metrópole, e extinguiu as capitanias hereditárias

remanescentes, medidas que contribuíram para cimentar a unidade nacional, que se

evidenciaria como elemento capital no processo da Independência. Promoveu a mudança da

Capital para o Rio de Janeiro (1763). Na Universidade reformada por Pombal, distinguiram-se

muitos brasileiros que passaram a liderar várias das novas esferas do conhecimento científico.

A modernização realizada por Pombal não compreendia a reforma das instituições

políticas. Estas continuaram adstritas ao absolutismo monárquico. Preservou-se a Inquisição,

já agora para enquadrar oponentes às reformas. Continua sendo admitido o emprego da

tortura.

Pombal era adepto das teorias mercantilistas então em voga, segundo as quais a

riqueza das nações provinha do comércio internacional, razão pela qual este deveria estar

diretamente subordinado ao Estado ou por este supervisionado muito de perto. As teorias

mercantilistas foram mais tarde refutadas por Adam Smith (1723/1790), para quem aquela

riqueza seria uma decorrência do trabalho e da divisão internacional do trabalho, isto é,

incumbindo a cada um produzir aquilo que estivesse em melhores condições de fazê-lo. Essa

doutrina, conhecida como liberalismo econômico, somente seria difundida no Brasil no século

XIX.

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48

A adesão de Pombal ao mercantilismo trouxe conseqüências perversas para nossa

história porquanto, admitindo a riqueza em mãos do Estado, eximiu-se de criticar a tradição

precedente que combatia a riqueza em geral e o lucro. Essa circunstância acarretou que

embora correspondesse ao início de uma nova tradição, nem de longe revogou ou abalou a

antiga. A admissão da posse de riquezas em mãos do Estado passou a coexistir com a velha

tradição, crescentemente dirigida contra o empresário privado.

Pombal também deu à burocracia estatal uma grande supremacia em relação aos

outros grupos sociais. O Estado português, que era tipicamente um Estado Patrimonial, isto é,

parte do patrimônio do Príncipe e não um órgão ao serviço da sociedade, passou a atribuir-se

a função de promover a modernização (prevalentemente econômica) como algo que deveria

beneficiá-la diretamente.

Ao mesmo tempo, a reforma da Universidade atribuía à ciência o poder de

transformar a sociedade, o que nem de longe corresponde à sua real destinação. Além disto,

tratava-se aqui de uma ciência pronta e conclusa, devendo circunscrever-se apenas à

aplicação. Começa a longa tradição do chamado cientificismo, isto é, de um discurso retórico

acerca da ciência sem maiores conseqüências.

D. José I morreu a 24 de fevereiro de 1777. Começa o reino de D. Maria I.

Pombal é demitido logo nos começos de março, seguindo-se diversas iniciativas destinadas a

eliminar sua influência. No ano seguinte, tem início o longo processo que lhe moverá a Corte,

submetendo-o a interrogatórios e humilhações. A sentença de agosto de 1781 considera-o

culpado, mas, à vista das graves moléstias de que padece, e do estado de decrepitude em que

se encontra, diz o decreto real, é perdoado das penas corporais que lhe deviam ser impostas,

sendo entretanto condenado a viver “fora da Corte na distância de vinte léguas”. Um ano

depois, em agosto de 1782, falece Pombal.

A linha mestra do governo de D. Maria I consistia no propósito radical de fazer

desaparecer da história de Portugal a figura do marquês. A rainha manda arrancar do pedestal

da estátua de D. José o medalhão ali existente com o busto de Pombal. Inimigos e perseguidos

são trazidos ao primeiro plano da cena. O sonho era fazer renascer os velhos tempos em que o

padroado dava as cartas e, quem sabe, tornar de novo freqüentes as fogueiras de Inquisição.

Daí que esse período histórico viesse a ser denominado de Viradeira de D. Maria I.

O empenho estava entretanto fadado ao fracasso.

Sebastião José de Carvalho e Melo despertara forças ponderáveis que não se

dispunham a assistir passivamente a revanche que se fazia em nome da componente

obscurantista, punitiva, do período pombalino mas que se caracterizava sobretudo como

restauração de índole medieval. A nobreza dos anos oitenta pouco tinha a ver com a dos

meados do século. Fora educada no respeito à ciência e aderira ao projeto de conquistar a

riqueza. O estamento burocrático, modernizado, tinha em suas mãos todo o poder,

dispensando-se de dividi-lo com a Igreja. Formara-se um novo agrupamento social abastado,

decorrente da expansão da manufatura.

Ao cabo de dois decênios, em 1796, o Príncipe Regente, futuro D. João VI, chama

para o governo D. Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares (1755/1812), o que

equivalia ao reconhecimento tácito de que a nobreza reformada por Pombal não se dispunha à

volta aos velhos tempos. D. Rodrigo era não apenas personalidade representativa da elite

renovada, tendo figurado entre os primeiros diplomados pela Universidade de Coimbra, na

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década de setenta. Mais que isto, achava-se muito ligado à pessoa de Pombal, de quem era

afilhado de batismo, tendo sido educado para seu sucessor. Basta ter presente que em sua

passagem pelo Ministério do Ultramar, ainda no século XVIII, elabora vasto plano de

desenvolvimento para o Brasil, prevendo inclusive a implantação de siderurgia.

D. Rodrigo de Souza Coutinho sempre mantivera relações de amizade com os

naturalistas brasileiros diplomados, como ele, em Coimbra, especialmente Câmara Bitencourt

(mais conhecido como Intendente Câmara), Conceição Veloso e José Bonifácio de Andrade e

Silva. O destino reservara-lhe um papel singular em nossa história, já que seria o chefe do

primeiro governo de D. João VI, após a transferência da Corte para o Rio de Janeiro.

Em síntese, o Marquês de Pombal cria uma segunda grande tradição na cultura

brasileira, destinada, como a precedente, a uma longa sobrevivência. Com a República, os

militares iriam apropriar-se da bandeira de que ao Estado é que incumbe promover a riqueza,

fazendo com que se perpetuasse até os nossos dias essa reminiscência do mercantilismo do

século XVIII. Data de Pombal igualmente, o entendimento cientificista da ciência, que ainda

se encontra presente à realidade brasileira.

NOTAS

(1) A significação do empreendimento açucareiro no século XVIII tem escapado à nossa

historiografia, como pretendo demonstrar no livro em preparo (Momentos decisivos da

História do Brasil). (2)

Para maiores detalhes desse tipo de pregação, consulte-se a antologia Moralistas do século

XVIII, Rio de Janeiro, Ed. Documentário, 1979.

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CAPÍTULO IV

A TENTATIVA DE ERIGIR O

SISTEMA REPRESENTATIVO E SEU FRACASSO

1) O SIGNIFICADO DA EXPERIÊNCIA (RENEGADA) DO SEGUNDO REINADO

O sistema representativo implantado no Império resultou da impossibilidade

virtual do domínio exclusivo de uma das facções em luta, impondo-se o compromisso.

Parcela da elite no poder, quando ainda vigoravam os vínculos com a monarquia

portuguesa, evoluiu no sentido de admitir a Constituição e a modernização das instituições.

Contudo, a magnitude do tema seria obscurecida pelo imperativo da Independência. Somente

em seguida a esse evento é que emergiria para primeiro plano a questão da convivência dos

diversos interesses.

Facção ponderável da opinião nacional adotaria a hipótese simplista de que o

liberalismo correspondia à aplicação dos princípios científicos à sociedade. Esta poderia

organizar-se em bases puramente racionais. Trata-se, na verdade, do corolário natural da

reforma pombalina, toda calcada na suposição de que a grandeza de Portugal encontrava-se na

dependência da assimilação e do domínio da ciência.

Talvez a expressão mais acabada desse ponto de vista corresponda à obra de Frei

Caneca (1774/1825) representante do que se convencionou denominar democratismo.

Segundo essa vertente, as divergências são concebidas de forma absoluta. O Rio de Janeiro

seria o baluarte do absolutismo e o Nordeste, em contrapartida, a cidadela da liberdade.

Semelhante caracterização não se formula para o estabelecimento das bases de uma

coexistência possível mas apenas para advogar a organização autônoma das províncias.

O Brasil só pelo fato de sua separação de Portugal e proclamação de sua

independência ficou de fato independente não só no todo como em cada uma de suas partes

ou províncias, e estas independentes umas das outras. Ficou o Brasil soberano não só no todo

como em cada uma de suas partes ou províncias. Uma província não tinha direito de obrigar

outra província, a coisa alguma, por menor que fosse; nem província alguma, por mais

pequena e mais fraca, carregava o dever de obedecer a qualquer outra, por maior e mais

potentada. Portanto, podia cada uma seguir a estrada que bem lhe parecesse; escolher a forma

de governo que julgasse mais apropriada às suas circunstâncias e constituir-se da maneira

mais conducente à sua felicidade. (1)

O democratismo é o ponto de referência básico para a polarização política que se

estabeleceu no país, estudada de forma acabada e conclusiva por Paulo Mercadante. (2)

Na medida em que o liberalismo virtualmente se confunde com o republicanismo,

enrijecem-se as posições dos partidários da monarquia constitucional, tendo presente o que

então se entendia como o fracasso da Revolução Francesa, que acabara desembocando na

restauração monárquica, com Napoleão. Essa radicalização, que acabaria levando alguns

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liberais ao mais extremado reacionarismo, pode ser ilustrada pela trajetória descrita por José

da Silva Lisboa, Visconde de Cairu (1756/1835).

Fiel à herança modernizadora de Pombal, Cairu engajar-se-ia na defesa da

liberdade de comércio e de indústria, preconizando a eliminação da escravatura. Mas o fez,

ainda como autêntico discípulo de Pombal, alheio á problemática ético-política, supondo que

os princípios da economia política revestir-se-iam de possibilidades ético-normativas. Assim,

embora Silva Lisboa tenha chegado a estabelecer distinções entre ética, política e economia,

encontra nesta última a chave para a conquista de uma vida social eminentemente moral. A

economia política é, na verdade, uma síntese dos demais planos e seu elo fundamental. (3) A

monarquia portuguesa, trasladando-se para o Brasil e regendo-se pelos princípios do laissez-

faire, iria criar um clima de bem-estar e harmonia, tal a hipótese acalentada por Silva Lisboa,

muito próxima do entendimento da vida social manifestado por Pombal nas Observações

secretíssimas, que comentaremos oportunamente (Capítulo V; 1a).

O curso dos acontecimentos iria entretanto evidenciar que as pessoas não se

comportam, em matéria política, segundo princípios límpidos e racionais. Generalizava-se a

guerra civil pelo país. A monarquia está a pique de soçobrar com a abdicação de Pedro I.

Cairu desespera da solução liberal e passa a atribuir à religião não mais o papel de elemento

formador do comportamento moral, como se dava na fase precedente, mas a tarefa de relaxar

as tensões e impedir o esfacelamento do país. Por isto mesmo assume a responsabilidade de

divulgar a Encíclica Mirari vos, de Gregório XVI (nasc. em 1756, foi Papa de 1831 a 1846),

que marca um ponto culminante de rompimento da Igreja Católica com o mundo moderno e

insere uma condenação frontal ao liberalismo. Desta forma, uma parcela do agrupamento

liberal, em face da situação do democratismo, marcha sem rebuços para o ultramontanismo.

Na conturbada primeira metade do século passado, Paulo Mercadante enxerga três

tendências, em permanente conflito. Assim caracteriza a primeira: “Inspirado na Revolução

Francesa, há o liberalismo extremado; rugitava contra a escravatura, pregando a República e o

federalismo americano com a sua descentralização administrativa. Desatento às condições

próprias de nossa realidade econômica e social, confundindo as aspirações com a realidade,

dele não se destacou quem quer que fosse para desempenhar um papel de relevo na política

nacional”.

Seguiam-se os liberais que, em diversas oportunidades, arrogavam-se de

revolucionários mas, de fato, temiam a revolução, ou passaram a temê-la, face ao rumo dos

acontecimentos. Assim, por exemplo, patrocinando o 7 de abril e levando à consumação do

afastamento de Pedro I, “tiveram que voltar a toda pressão a máquina para trás, para impedi-la

de precipitar-se com a velocidade adquirida”. Esses revolucionários, prossegue Paulo

Mercadante, “passaram, assim, de um momento para outro, a conservadores, quase a

reacionários”.

Essa polaridade, revolucionismo-reacionarismo, tendendo para os extremos,

ameaçava o esfacelamento do país. Contudo, na medida em que a Nação se avizinhava do

precipício, o centro moderador passa a congregar a maioria. Esses moderados, ainda conforme

Mercadante, “são os líderes realistas da política de transação; promovendo a Independência,

redigiram o Ato Adicional, para depois alterá-lo. Deles também seria a falange regressista da

Interpretação e do Código de Processo”. Ao que aduz:

“Meia dúzia de homens acrescentam bem amiúde uma ponta de moderação nas

crises políticas que sacodem o Império. Não se trata de pulso de ferro, imprimindo um rumo

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novo aos acontecimentos, mas da palavra firme e sensata. Tudo faz crer que o radicalismo

fosse, muitas vezes, conduzir o país a uma revolução, mas o equilíbrio dos líderes aparece de

molde a contaminar as aspirações desenfreadas e assustadoras. Repetia-se, no século passado,

em vários transes, o singular predomínio das tendências moderadoras na vertigem

revolucionária”. (4)

Mercadante indica ainda que o país como um todo apresentava essa duplicidade,

ao vincular-se externamente ao mercado mundial, em pleno ciclo da revolução industrial,

enquanto internamente preservava formas arcaicas de efetivar as atividades produtivas. A par

disto, a adesão da elite à filosofia de Victor Cousin contribuiu para congregá-la em torno da

fundamentação doutrinária das tendências conciliatórias espontâneas.

Miguel Reale afirma que o ecletismo de Cousin tinha o grande mérito de “compor

em unidade, não sem certo encanto verbal, o desejo de uma filosofia secular, própria de

homens que se consideravam emancipados de qualquer subordinação à Igreja, e a aspiração

não menos viva de atender a um sentimento religioso alimentado desde o berço”. A rigor,

portanto, vinha em socorro da postura vigente desde Pombal, que consistia em deslocar a

religião para plano secundário, sem contudo afrontá-la. A par disto, tornava coerente a

filosofia empirista introduzida no momento da reforma da Universidade. (5) De igual

relevância é o fato de que o ecletismo haja vinculado a sua sorte à do liberalismo. No período

da Restauração, que se seguiu à derrubada de Napoleão I, a Escola Normal é fechada, por se

considerar reduto do ecletismo, e os cursos de Cousin são proibidos no país.

O sucesso da componente moderadora se deve atribuir também à circunstância de

que a doutrina da monarquia constitucional haja encontrado elaboração plena e acabada, de

parte de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846), do mesmo modo que à concepção das

instituições imperiais, obra de uma geração mas que iria encontrar em Paulino José Soares,

Visconde de Uruguai (1807/1866), seu grande artífice e teórico.

Deixando o posto de Ministro de Portugal na Corte de Berlim, em 1810, Silvestre

Pinheiro Ferreira regressou ao Rio de Janeiro, onde se encontrava a sede da monarquia. Aqui

viveria cerca de doze anos, tendo acompanhado D. João VI, em 1821, como chefe de seu

último governo no Brasil. Durante a permanência no Rio de Janeiro, ministraria cursos de

filosofia, estabelecendo vínculos estreitos com a elite brasileira que ascendeu ao poder com a

Independência.

Abandonando Portugal em vista da vazante liberal e da reação conservadora na

Europa, nos anos vinte, radica-se em Paris onde elabora obra significativa de fundamentação

do liberalismo, obra essa que se coroa com o Manual do cidadão em um governo

representativo (1834, em três volumes). Comentaria exaustivamente as constituições

portuguesa e brasileira e todas as discussões e reformas verificadas no período. O Visconde de

Cairu, entre outros, teria oportunidade de debater tais pronunciamentos no Senado. Essa

parcela de sua obra ainda figura obrigatoriamente nos catálogos da Garnier editados na década

de sessenta.

A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira ao debate da idéia liberal no Brasil

consiste em ter chamado a atenção para o fato de que o núcleo da nova doutrina consistia na

representação. A par disto, definiu-a como sendo de interesse.

Vicente Barretto apontou o fato fundamental de que a idéia liberal, na fase

considerada, não tinha compromissos com o ideal democrático. (6) Deixando de levar em

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conta essa circunstância, os críticos do sistema imperial não tiveram a possibilidade de

enxergar em que consistia o essencial do sistema representativo, justamente o que lhe

permitiu, nos países que persistiram em sua prática e no devido tempo, tornar-se democrático.

Assim, tanto na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira como na Constituição adotada,

estabelecia-se quem podia fazer-se representar. Na caracterização do processo eleitoral, a que

está dedicado o tópico subseqüente deste capítulo, ver-se-á como essa característica não

impediu que as camadas da população urbana tivessem acesso à representação, que nunca foi

exclusiva da aristocracia rural e dos comerciantes.

Discutindo a natureza da representação, Silvestre Pinheiro Ferreira assinala que,

em prol da concisão, tornou-se praxe, entre publicistas e jurisconsultos, dizer que “o

procurador representa o seu constituinte” quando, em prol da clareza e da exatidão, competia

dizer que “o procurador representa os interesses do seu constituinte”. Ao que acrescenta: “Se

os jurisconsultos tivessem avaliado a importância desta observação, teriam concluído sem

hesitar que a jurisprudência da representação não pode ser outra que a do mandato. Quando se

tratasse de fixar os direitos e os deveres dos mandatários ou representantes, quaisquer que

sejam, é na natureza dos interesses que se devem procurar os motivos; mas perdendo de vista

esta idéia tão simples ou omitindo a palavra interesses, e conservando a de pessoa, caíram em

graves erros, mormente quando trataram de direito constitucional e dos direitos e deveres dos

agentes diplomáticos, como iremos mostrando.” (7)

A massa de interesses, reconhece, é extremamente variada, mas tomando-se por

base os econômicos e profissionais, a população poderia ser distribuída em doze grupos

(agricultura; minas, artes e ofícios; etc.) que, por sua vez, seriam compreendidos em apenas

três estados, a saber: comércio, indústria e serviço público.

Prossegue Silvestre Pinheiro Ferreira: “Nós dissemos que se podiam distribuir

pelos três estados de comércio, indústria e serviço público todos os moradores de um país.

Ora, em cada estado deve haver um certo número de homens capazes de compreender e

sustentar no congresso os respectivos interesses. Estes homens distintos devem ter dado

provas das suas capacidades nas ordens inferiores de onde não subiram sucessivamente senão

pelo voto de seus concidadãos. Portanto cada deputado, ainda que deva representar sobretudo

os interesses gerais da nação, representa especialmente os do estado a que pertence. Ainda

mesmo no caso de possuir conhecimentos mui extensos em outros ramos da ciência

administrativa, não é sobre esses conhecimentos que os eleitores estabeleceram a sua

confiança, por não saberem dar-lhes valor, nem poderem aí achar senão um interesse mui

remoto”. (8)

Resumindo a doutrina exposta afirmaria Vicente Barretto: “A função da

representação política consistiria, portanto, em, através do voto ou da representação virtual,

fazer com que os problemas sociais e políticos fossem debatidos por uma elite. Permanece o

pressuposto antidemocrático, que Silvestre Pinheiro Ferreira, por diversas vezes, explicita. A

atividade governamental era entendida como uma questão de conhecimento e racionalidade,

não se permitindo o predomínio da emoção e de reivindicações personalistas, destituídas de

interesse público.

O interesse nacional deveria ser determinado em função dos grupos sociais que

tivessem mais a proteger na sociedade. Os três estados sociais (comércio, indústria e serviço

público) seriam então os fundamentos da representação nacional. Os deputados seriam

recrutados em cada um desses estados, mas seriam representantes da vontade nacional, e não

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da vontade particular”. (9)

Sob a égide de uma experiência política entrecortada de choques armados,

sobressaltos, prisões, exílios e intermináveis disputas, emergiu a convicção generalizada de

que todos os interesses são legítimos e o essencial consistia em cuidar das formas de sua

conciliação. A questão se transfere do terreno da luta armada para o plano institucional. A

existência de teóricos do porte de Silvestre Pinheiro Ferreira permitiu tomar como ponto de

referência, para a configuração das instituições políticas, base doutrinária coerente.

A partir da década de quarenta, a elite política brasileira irá dedicar-se ciosamente

ao aprimoramento da representação mas também dos mecanismos moderadores, capazes de

impedir a volta da confrontação pelas armas.

2) ASPECTOS TEÓRICOS MAIS RELEVANTES

a) A doutrina da representação e a organização do corpo eleitoral

A doutrina da representação de interesses, da lavra de Silvestre Pinheiro Ferreira,

era muito superior à de Edmund Burke (1729/1797), geralmente aceita no ciclo considerado –

e também à que lhe sucedeu, de Stuart Mill (1806/1873), ambas focalizando prerrogativas do

representante e seu melhor preparo em relação à comunidade –, tendo se tornado senso

comum, a julgar por sua reafirmação da parte de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada

(1773/1845) no famoso discurso de 24 de abril de 1840, em que informa ter sido a

Constituição de 1824 calcada no anteprojeto de sua autoria, submetido à Constituinte.

Habitualmente, o discurso em questão tem sido divulgado na parte em que se refere àquele

evento. Publicando-o na íntegra, (10) Walter Costa Porto permitiu-nos constatar que, no

intróito, entende que ao Senado “não compete alterar o „budget‟ feito pela Câmara dos Srs.

Deputados. Fundo-me na índole do sistema representativo, na natureza do imposto, nos

interesses representados pelas três partes que representam os interesses gerais, e além disto na

Constituição”. Aduz que os “deputados são procuradores imediatos do povo; os Srs.

Senadores entram em mais alta categoria”.

E esclarece: “... todo mundo não ignora as divisões do interesse; há interesses

particulares, há interesses de grandes massas, há interesses entre profissões, há interesses

entre o poder que manda e os súditos que obedecem, há interesses entre a nação e as nações

estrangeiras. Para os interesses de cada profissão somos nós; para os interesses das grandes

massas territoriais são os Srs. Senadores; para os interesses entre o poder que manda e os

súditos que obedecem são os representantes. E pergunto: - O imposto diz respeito aos

interesses das grandes massas territoriais ou diz respeito aos interesses de cada uma das

profissões? Quem pois deve consentir nele? É o representante hereditário desses interesses,

somos nós os deputados da nação. Ali se vê que, segundo a índole do sistema representativo,

não pode nem deve ser ninguém que consinta o imposto senão a câmara dos deputados.”

A superioridade dessa doutrina reside no fato de que aponta diretamente para o

aprimoramento da representação, isto é, para o sistema eleitoral que deve conduzir ao

afunilamento dos interesses a fim de permitir que estejam adequadamente representados.

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55

Essa elaboração teórica tem ainda outros desdobramentos.

Silvestre Pinheiro Ferreira havia examinado os diversos elementos que poderiam

desfigurar a representação. Muitos destes, entendia, poderiam ser eliminados pela simples

efetivação das eleições. Assim, por exemplo, “as condições de probidade e aptidão ficam

seguras contra o perigo de qualquer manejo da intriga; porquanto nenhuma suspeita pode

inspirar o cidadão que não deve a sua elevação nem ao favor da corte nem à baixeza diante do

poder, mas sim ao voto universal de todos os seus concidadãos capazes de emitirem a seu

respeito uma opinião com conhecimento de causa”.

As questões centrais, de que deveria ocupar-se o legislador, consistiam nas

seguintes: 1) estabelecimento de condições objetivas a serem atendidas pelos cidadãos que

deveriam fazer-se representar; e, 2) a fixação de uma base territorial que assegurasse ao

representante a possibilidade de familiarizar-se com o interesse que lhe competia defender, e,

ao mesmo tempo, à massa de votantes, a possibilidade de reconhecer as qualidades e defeitos

do mandatário.

Escreveria Silvestre Pinheiro Ferreira: “A proporção que se há de estabelecer é

entre o número de representantes e o das pessoas representadas, porque ... não se representam

pessoas mas sim interesses. O que importa pois determinar é a extensão do território que, em

regra geral, é de presumir que os conhecimentos do deputado possam abranger na sua

especialidade. Ora, nós entendemos que todo homem é capaz de representar e conhecer,

mesmo em todos os pormenores, não a província, mas decerto o cantão onde é domiciliado.

De onde se segue que cada cantão deve mandar ao congresso um deputado por cada um dos

três estados, comércio, indústria e serviço público”. (11)

O distrito eleitoral seria introduzido em 1855, depois de prolongados debates.

Estabelecia a lei que as províncias seriam divididas em tantos distritos quantos fossem os seus

deputados, elegendo o distrito apenas um deputado. Logo depois introduzir-se-ia modificação

preservado ao longo do Império: os distritos passaram a eleger três deputados.

Em consonância com o espírito e a letra do liberalismo da época, a Constituição

de 1824 consagrou o princípio denominado de censitário, isto é, qualificou o corpo eleitoral

segundo suas posses, e ao nível destas vinculou o exercício de determinadas atribuições.

Assim, entre os requisitos para ingresso no Senado (“idade de quarenta anos para cima”;

“pessoa de saber, capacidade e virtudes, com preferência os que tivessem feito serviços à

pátria”, etc.) incluía-se rendimento atual de oitocentos mil réis. Para os deputados requeria-se

renda de quatrocentos mil réis. Os eleitores, por sua vez, subdividiam-se nos que formavam o

colégio eleitoral primário – cuja renda exigida era de cem mil réis – e os de segundo grau,

escolhidos pelos primeiros, aos quais incumbia eleger os representantes com assento na

Assembléia, devendo possuir renda anual de duzentos mil réis. Nas sucessivas alterações

introduzidas no Império, manteve-se inalterado o censo até 1881 (Lei Saraiva). No intervalo,

a fim de compensar os efeitos da desvalorização da moeda, exigia-se a partir de 1846 que a

renda indicada se avaliasse em prata. A Lei Saraiva, que introduziu a eleição direta,

instituindo, portanto, um único corpo de eleitores, fixou a renda deste em duzentos mil réis;

elevou a dos senadores para um conto de réis e a dos deputados para oitocentos mil réis.

O alargamento da representação seria efetivado mantendo-se intacto o censo em

relação ao Interior – com o que tão-somente os proprietários constituíam o corpo eleitoral –,

liberalizando-o nas cidades. Avançou-se, por exemplo, a noção de “renda presumida” que, na

Lei Saraiva, se identifica taxativamente com a dispensa de prova (“considera-se como tendo a

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56

renda legal, independentemente de prova...”). A prerrogativa chegou a abranger todo o

funcionalismo civil e militar, excetuadas “as praças de pré... e os serventes das repartições e

estabelecimentos públicos”; os membros do Poder Legislativo, da Magistratura e da Igreja; o

corpo docente das Academias; “os habilitados com diplomas científicos ou literários”, juízes

de paz e vereadores, etc.

No entendimento da função dos partidos políticos e da noção de “maioria

parlamentar”, partiu-se da consideração de que o país não dispunha da menor tradição na

matéria. A Inglaterra, que fez a Revolução de 1688 para impor o sistema representativo com a

feição que veio a ser experimentada no Brasil depois da Independência, precisou de quase

dois séculos para consolidar partidos capazes de formar maiorias sólidas e estáveis. No Brasil,

os artífices do sistema partiram da suposição de que semelhantes circunstâncias não se

poderiam improvisar com facilidade. Assim, o Imperador dispunha da prerrogativa de chamar

ao poder o partido da oposição, sempre que o governo não encontrasse apoio na opinião

nacional, que era constituída precisamente pelos proprietários rurais, comerciantes, enfim, a

classe proprietária. O partido que recebia a incumbência tinha assegurada a maioria requerida

para governar, desde que o compromisso do eleitorado do Interior, constituído de forma a

privilegiar a elite dominante, era com o sistema e não com os partidos.

Em que pese a circunstância de que o sistema não era democrático, nem por isto

impediu que outras camadas da população se fizessem representar. A apontada liberalidade do

censo nas cidades determinou que o Partido Liberal, em algumas províncias, notadamente em

Minas Gerais, predominantemente urbana, se identificasse com esses setores da população e

dispusesse de bancada estável, qualquer que fosse o partido escolhido para compor o

Gabinete. Outro indicador da representatividade do sistema consiste no fato de que o Partido

Republicano haja logrado enviar representantes à Assembléia, ainda que seu propósito

expresso consistisse na eliminação da forma de governo que lhe assegurava o direito de

contestá-lo.

A prática das eleições no Império evidenciou igualmente a importância da parte

material do processo, levando a que se constituíssem juntas eleitorais escolhidas mediante

votação; o título eleitoral; o direito à Justiça de fiscalizar e decidir questões surgidas nas

juntas, etc. A Lei Saraiva retirou destas últimas as atribuições quanto ao alistamento,

passando-as diretamente à Justiça.

b) A questão dos mecanismos moderadores

Numa sociedade em que todos os interesses são considerados legítimos, a

convivência desses interesses só se torna possível mediante a aceitação universal de regras

que os transcendam. Assim, por exemplo, em relação à harmonia entre os poderes, compete

prevenir a circunstância de que determinado grupo de interesses, cuja legitimidade todos

reconhecem, venha a apossar-se de um dos poderes da nação e, mediante esse artifício, a

pretender impor-se aos demais, ao arrepio das normas de convivência. A par disto,

correspondendo a uma regra maior o imperativo da convivência dos vários interesses, exclui-

se automaticamente a hipótese de que se viole a integridade do território nacional. Enfim, as

questões de que depende o adequado exercício do sistema não podem ser objeto de

negociação ou barganha, regendo-se a sociedade por regras a que todos se obrigam.

Silvestre Pinheiro entendia que a função de zelar pelo cumprimento dessas regras

Page 57: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

57

devia incumbir a um poder especial, a que chamou de Poder Conservador.

O Poder Conservador, no entendimento do ilustre pensador, deveria ser exercido

de modo descentralizado, diretamente pelos cidadãos, pelos outros poderes e, ainda, por um

órgão especial que denominou de Conselho Superior de Inspeção e Censura Constitucional.

Sua competência diz respeito a duas questões essenciais: 1) manutenção dos direitos civis e,

2) harmonia e independência dos poderes públicos.

Silvestre Pinheiro Ferreira previu amplamente as diversas hipóteses de conflito e

indicou os procedimentos aconselháveis. A prerrogativa de submeter a processo o membro de

qualquer dos poderes se atribuía a todos eles, indistintamente. No caso do Parlamento votar

uma lei atentando “contra os direitos de liberdade, segurança e propriedade dos cidadãos, ou

contra os poderes políticos do Estado”, o Poder Executivo poderia submeter a processo a

maioria dos seus membros, desde que convocados os substitutos a fim de não impedir seu

funcionamento.

Além da fixação em lei da vigilância entre os poderes e dos procedimentos para

prevenir violações aos direitos civis, entendia ser imprescindível a existência de um órgão

eletivo para fiscalizar o cumprimento da Constituição e das leis. A seu ver, a fiscalização

exercida pelo Executivo ou pelo Legislativo não seria suficiente, por estas razões:

“O monarca não pode receber as suas informações senão em um círculo muito

estreito, e ninguém ignora que os príncipes estão de tal modo cercados de lisonja e intriga que

a verdade apenas pode chegar ao trono. O congresso nacional não tem suficientes meios de

informação; porque, durante a sessão, o tempo apenas pode chegar para o conhecimento dos

negócios que fazem objeto dos debates; e nos intervalos de uma sessão a outra cada deputado

assaz tem que fazer com os seus próprios negócios, e não pode entrar em um exame sobre o

procedimento dos numerosos agentes do poder. A este respeito eles não estão em

circunstâncias mais favoráveis do que quaisquer outros cidadãos”. (12)

Silvestre Pinheiro Ferreira, do mesmo modo que Benjamin Constant, tinha em

vista a experiência legislativa da Inglaterra, durante mais de um século. Benjamin Constant

denomina de Poder Neutro ao conjunto de atribuições que não são específicas de qualquer dos

poderes constituídos. A Constituição de 1824 e a prática legislativa ulterior não seguiram

expressamente as indicações de Pinheiro Ferreira mas sobretudo o seu espírito. Inclusive

deram-lhe uma denominação mais próxima dos fins que tinha em vista ao chamá-lo de Poder

Moderador. Na verdade, o que o sistema representativo do Império brasileiro chegou a

conceber foram os mecanismos moderadores e que consistiam não apenas nas prerrogativas

do monarca mas igualmente na vitaliciedade do Senado e no funcionamento do Conselho de

Estado. Sobre a complexidade desse arranjo escreveria Paulino José Soares:

“Finalmente, e para nós essa consideração é a mais forte, a nossa Constituição não

admite o governo exclusivo das maiorias parlamentares e principalmente da maioria da

Câmara dos Deputados só. (...) A Constituição, com muita sabedoria, não quis que algum dos

poderes governasse exclusivamente. Deu a cada um o seu justo quinhão de influência nos

negócios do país. O que deu à Assembléia Geral é importantíssimo, é sem dúvida o maior.

Mas ela não poderia absorver em si os quinhões dos outros poderes, sem destruir pela base a

Constituição. E a Nação reservou-se, pelos artigos 65 e 101 do parágrafo 5º da Constituição, o

direito de rever e decidir, definitivamente, nos comícios eleitorais, as soluções, por assim

dizer provisórias, mais importantes dadas pelo seu Primeiro Representante e delegado

privativo, o Poder Moderador.” (13)

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58

Acerca da missão precípua do Poder Moderador, escreve o Visconde de Uruguai:

“No Exercício do Poder Moderador tem sempre havido acordo entre esse Poder e

os ministros do Executivo. Talvez em algum caso houvesse transações, concessões

voluntárias, recíprocas. O certo é que tem havido acordo e as referendas o provam. Talvez

mesmo que quase todos, senão todos os atos do Poder Moderador, tenham sido solicitados e

propostos pelos ministros, o que lhes é lícito e é muito conveniente. Prova a harmonia dos

poderes. Não tem portanto aparecido necessidade de prescindir o Poder Moderador da

referenda. Se algumas crises têm aparecido, têm elas tido um desenlace constitucional e

prudente. E por que? Porque os ministérios não têm procurado dominar a coroa e não a podem

dominar. E por que os ministérios não têm procurado dominar a Coroa? Por que não a podem

dominar? Porque a Constituição constituiu o Poder Moderador independente. Porque

constituiu-o não-satélite dos ministros mas primeiro representante da Nação, e fez dele um

ente inteligente e livre.

A questão tem porém um alcance imenso. Refundi o Poder Moderador no

Executivo. Ponde o exercício de suas atribuições na absoluta dependência dos ministros e as

coisas mudarão completamente. Tereis dado um grande passo para a aniquilação da

monarquia no Brasil. A nossa Constituição ficará transformada nas Cartas Francesas de 1814

e 1830 e terá a mesma sorte que elas tiveram. A Coroa perderá a maior parte do seu prestígio

e força. O Imperador não será mais o primeiro representante da Nação como o fez a

Constituição. Os ministros hão de procurar pôr-se acima da coroa. ...Se a Nação estiver

dividida em partidos encarniçados, se estiver no poder um partido opressor, não haverá um

poder superior, independente, sobranceiro às paixões, que valha aos oprimidos.

Durante os ministérios de 23 de março de 1841 e de 2 de fevereiro de 1844, a

Coroa procurou sempre moderar as reações e atenuar as asperezas da posição dos vencidos.

Pois bem, os vencedores queixavam-se de obstáculos postos à aniquilação de seus

adversários. Os vencidos queixavam-se por não serem embaraçados todas as medidas e pela

existência e conservação, no poder, dos seus contrários.

Quando se pretende que, conforme a Constituição, os atos do Poder Moderador

sejam exeqüíveis sem a referenda e sem a responsabilidade, quer legal quer moral, dos

ministros, não se quer excluir sempre os ministros e a sua responsabilidade moral, não se

pretende que cada Poder marche para o seu lado em direções diversas. Semelhante pretensão

seria absurda e funesta. O que se pretende é que fique bem entendido e parente que, havendo

desacordo entre os Poderes, e portanto em casos extraordinários, quando perigar a

independência dos Poderes, quando estiver perturbado o seu equilíbrio e harmonia (hipótese

da Constituição), possa o Poder Moderador, coberto pelo Conselho de Estado, obrar

eficazmente como e nos termos que a mesma Constituição determinou, e que ninguém possa

obstar a execução de seus atos, com o fundamento de que não estão revestidos da referenda

dos ministros de outros Poder”. (14)

Paulino José Soares, em sua obra clássica, expressa o papel que a geração de

políticos conservadores, responsável pelo sucesso do Segundo Reinado, atribuía às

instituições, isto é, a de implantar uma sociedade onde coexistissem os vários pontos de vista,

assegurada a sua adequada modernização. Para dizê-lo com as palavras de Wanderley

Guilherme:

“Qualquer ordem social, a partir da visão de Paulino, não ocorre naturalmente,

mas resulta da ação política coordenada. Se se deseja constituir uma ordem privada burguesa

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59

no Brasil convém preliminarmente dotar o poder político dos instrumentos que lhe permitam

instaurá-la e sustentá-la, o que queria dizer, no Brasil do século XIX, expandir a capacidade

regulatória do Estado pela criação de um aparelho administrativo nacional, subordinado a um

comando único, e pela redução do centrifuguismo local, obrigando-o a integrar-se por via do

Estado. Era aparentemente inviável, dadas as condições do escravismo quase auto-suficiente,

que os diversos localismos se integrassem por via das interações econômicas e sociais. E com

isto Paulino apenas repetia, ou sugeria que se repetisse, no essencial, a mesma estratégia de

criação política que presidira à implantação da ordem liberal burguesa na Europa, onde a

organização administrativa e militar do Estado nacional produziu a força política necessária –

que foi usada aliás, sobretudo na Inglaterra cuja história se idealiza –, para assegurar a

instrumentação e operação de práticas econômicas, políticas e sociais antifeudais”. (15)

3) APRECIAÇÃO REPUBLICANA DA EXPERIÊNCIA IMPERIAL

A nova elite que ascendeu ao poder com a República não era certamente

homogênea. Em seu seio havia inclusive políticos experimentados do regime anterior,

conscientes da complexidade dos mecanismos de funcionamento da sociedade. Contudo,

acabaria prevalecendo uma visão maniqueísta segundo a qual haveria o Partido Republicano e

o Partido Monarquista. A difusão do cientificismo e do positivismo contribuíram igualmente

para a ulterior distorção do fato político.

Assim, a República não distinguiu, no regime anterior, o que era próprio do

sistema representativo (a ser preservado) ou de sua forma monárquica (a ser eliminado). A

tendência predominante consistiu na condenação em bloco do conjunto das instituições

imperiais.

A luta que se estabeleceu entre o Executivo e o Parlamento, numa circunstância

em que haviam sido desativados os mecanismos moderadores, propiciou a ascendência

simultânea do republicanismo autoritário e do autoritarismo doutrinário, este tomando por

base as idéias de Comte, aquele atropelando a representação em prol da centralização do

poder em mãos do Presidente da República.

Assim, a problemática da organização do corpo eleitoral, integralmente

explicitada no Império, foi abandonada. E quando se pretendeu restaurar o sistema que tivesse

no voto o esteio de sua legitimidade, em especial após a queda do Estado Novo, passou a

vigorar a ilusão de que o simples direito de voto e a organização de uma eficiente Justiça

Eleitoral seriam suficientes para implantar um sistema de base representativa. Nem se cogitou

do distrito eleitoral, perdendo-se de vista a importância das dimensões do território, quando se

pensa em autenticidade da representação. Também os mecanismos moderadores foram

solenemente ignorados.

Em suma, mantinha-se o estigma em relação ao sistema imperial, privando-nos da

possibilidade de nos apropriarmos de forma criadora daquela experiência, a que nossa história

reservaria destino insólito, qual seja, o de constituir-se num evento absolutamente singular em

matéria de implantação bem-sucedida de um sistema de base representativa.

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NOTAS

(1)

Typhis Pernambucano, 10/06/1824, in Ensaios políticos, Rio de Janeiro, PUC-CFC –

Documentário, 1976, p. 100. (2)

A Consciência conservadora no Brasil, 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. (3)

Análise mais detida do tema é efetivada por Antonio Paim – Cairu e o liberalismo

econômico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1968. (4)

Obra citada, p. 99. (5)

O processo de formação da corrente eclética acha-se suficientemente estudado, em

especial na obra A liberdade no império, de Ubiratan de Macedo (São Paulo, Convívio, 1977). (6)

A ideologia liberal no processo da Independência do Brasil, Brasília, Câmara dos

Deputados, 1972. (7)

Manual do cidadão em um governo representativo, in Idéias políticas, Rio de Janeiro,

PUC-CFC-Documentário, 1976, p. 131. (8)

Obra cit., loc. cit., p. 132. (9)

Introdução às Idéias políticas de S.P. Ferreira, ed. cit., p. 17.

(10) Grandes discursos.Seleção e introdução de Walter Costa Porto. Brasília, Instituto

Tancredo Neves, 1988, p. 5-16 (11)

Obra cit., loc. cit., p. 133. (12)

Obra citada, loc. cit., p. 169. (13)

Ensaio sobre o direito Administrativo, Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1862, tomo II,

p. 150. (14)

Obra cit., tomo cit., p. 111/114. (15)

Paradigma e história – a ordem burguesa na imaginação social brasileira, Rio de Janeiro,

1975, p. 43.

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CAPÍTULO V

O EMBATE DO SÉCULO REPUBLICANO E SEU DESFECHO

1) PRINCIPAIS CICLOS DO PERÍODO CONSIDERADO

O século republicano compreende a remontagem do Estado Patrimonial até

transformá-lo numa estrutura verdadeiramente aplastante. (1) Esse processo apresenta alguns

ciclos muito nítidos.

No primeiro deles – que se convencionou denominar de República Velha,

abrangendo quatro décadas, isto é, desde a proclamação em fins de 1889 até a Revolução de

outubro de 1930 –, o objetivo parece só configurar-se claramente para o estamento militar.

Este, por uma parte de sua liderança, expressa sobretudo em Benjamin Constant, assumiu o

projeto pombalino revestindo-o da retórica positivista. Na visão de Murillo Santos, ainda

nesse período emerge o grupo que aposta na profissionalização e investe neste sentido. O

tenentismo, que se recusa a aceitar a proposta profissionalizante, é virtualmente afastado do

Exército. No mesmo ciclo esboça-se uma primeira formulação de intervencionismo estatal na

economia, logo apropriada pelo elemento militar.

Como se sabe, os militares tentaram perpetuar-se no poder durante a primeira

década republicana mas viram-se forçados e renunciar à pretensão. Foram derrotados pelo que

tem sido denominado de oligarquias estaduais. Este é um conceito válido mas muito mal

formulado, com o agravante de que a historiografia marxista buscou aproximá-lo de outro

conceito ainda mais confuso e impreciso, o de “classe dominante”. A formação da oligarquia

estadual corresponde ao processo de apropriação do poder, nos estados, pela própria

burocracia, dispondo de uma autonomia de que não desfrutava no Império. Essas burocracias

articulam os próprios interesses. O país é em geral muito pobre. A consciência dessa realidade

talvez explique que a disputa se tenha deslocado para a posse do Poder Central, sem

radicalizar a autonomia com o propósito de levá-la até o separatismo. A solução seria

encontrada por Campos Sales, com a “política dos governadores”, que já se considerou seria

mais apropriado designar de “política dos estados”. Trata-se de uma prática autoritária,

efetivada sem alterar a Constituição, distinguindo-se do autoritarismo doutrinário em

gestação, que somente conseguiria, graças sobretudo à liderança de Getúlio Vargas, alcançar a

unificação da burocracia no ciclo subseqüente.

Ainda na República Velha, observam-se dois processos no seio das oligarquias

estaduais. O primeiro é a busca e o encontro de uma doutrina autoritária capaz de aglutinar o

estamento burocrático e facultar-lhe um programa. Tal seria o castilhismo, de onde provêm os

quadros que iriam erigir o Estado Novo. O segundo é o processo de diferenciação de São

Paulo, estudado por Simon Schwartzman.

A liderança liberal sofre, na República Velha, um primeiro embate do qual sairia

derrotada para não mais se recuperar ao longo do século. Progressivamente irá afunilando a

sua plataforma, até circunscrevê-la à reivindicação da liberdade. Este livro não é certamente o

lugar para examinar-se esse aspecto com a profundidade requerida. Contudo, cumpre indicar

que seu pecado capital há de ter consistido no abandono da doutrina da representação

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elaborada no Império. (2) Ao projeto modernizador do autoritarismo não logrou contrapor

nada de consistente.

Deste modo, a sorte do século republicano acha-se decidida neste primeiro ciclo (a

República Velha). Depois de 30, o autoritarismo é a nota dominante, com o breve interregno

após a queda do Estado Novo, que só parece ter servido para alterar-lhe a base doutrinária. No

Estado Novo, corresponde ao castilhismo, isto é, busca-se uma alternativa definitiva para o

sistema representativo. Na fase pós-64 prevalece o que Wanderley Guilherme denominou de

autoritarismo instrumental, vale dizer, intervenção transitória para permitir que a sociedade se

diversifique, constituindo assim a base social para aquele sistema (representativo). (3) O

desfecho deu-se entretanto no sentido de exacerbar o predomínio do Estado Patrimonial,

justificando que lhe busquemos adjetivação precisa e insubstituível (aplastante).

Os principais aspectos dessa dinâmica serão considerados neste capítulo.

Competiria naturalmente examinar-se as estratégias de sobrevivência do empresariado

brasileiro, ou melhor, como se caracterizam as estruturas capitalistas que conseguiram

sobreviver. De alguma forma procuraremos referir esse ponto, no último capítulo, ainda que

apenas topicamente, isto é, sem respaldo em pesquisa científica.

Aqui mesmo neste tópico trataremos de examinar a questão doutrinária do

positivismo republicano, buscando comprovar sua filiação ao ideário pombalino, e também a

primeira versão do intervencionismo econômico, questões estas que constituem uma espécie

de pano de fundo do processo analisado na parcela restante deste capítulo.

a) Como se dá a conjugação entre ideário pombalino e positivismo republicano

Tivemos oportunidade de mencionar, no capítulo III, que as reformas pombalinas

haviam conseguido modificar a mentalidade da elite, a ponto de que o futuro D. João VI, na

condição de Regente, acabou entregando o governo a D. Rodrigo Souza Coutinho, justamente

a pessoa que Pombal havia escolhido (e preparado) para substituí-lo, sendo de destacar que D.

Rodrigo não escondia – e teve ocasião de expressá-lo – a sua admiração por Pombal.

Tornando-se chefe do governo, no Brasil, com a transferência da Corte, tratou de criar um

instituto que fosse uma espécie de prolongamento da Universidade reformada em 1772. Tal

seria a Real Academia Militar, criada em dezembro de 1810, e cujo início de funcionamento

ocorreria em abril de 1811.

D. Rodrigo concebeu a Academia Militar como estabelecimento destinado à

formação simultânea de oficiais do Exército e engenheiros. Inspirou-se amplamente nos

Estatutos da Universidade pombalina e colocou, em primeiro plano, o ensino de ciências. A

pretensão seria considerada excessiva, entre outros pelo autor de D. João VI no Brasil,

Oliveira Lima.

Apreciando-a, assim se manifesta Jeovah Motta:

“Para nós a questão que se coloca é, essencialmente, esta: qual a base de

conhecimentos gerais a ser dada à cultura profissional do oficial do Exército? Ou, encaradas

as coisas do ponto de vista de D. Rodrigo Coutinho, aqueles que no futuro poderiam ter os

destinos da Colônia, e quiçá de Portugal, pendentes de suas mãos, pela forma como se

conduzissem nas batalhas, que lastro de conhecimentos deveriam possuir? Seria suficiente

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63

ministrar-lhes um ensino de nível primário ou médio? Quem apenas possuísse parco saber

matemático e fosse jejuno de noções científicas, poderia dominar, satisfatoriamente,

problemas tais como os da organização de uma força militar, seu adestramento na paz, sua

direção na guerra? Ou, ao contrário, já naquela época, o conhecimento e o domínio da técnica

militar não estariam exigindo um ensino de nível superior, como condição indispensável ao

equacionamento de questões como as de recrutamento e armamento, munições e transportes,

disciplina e instrução, administração e legislação, história e costumes, isso para não falar de

balística, tática e estratégia?

Essa a problemática com que se defrontou D. Rodrigo Coutinho ao criar a

academia. A sua resposta a essas questões foi aquela que daríamos nós, examinando as coisas

com a visão de nossos dias: o oficial do Exército tem que erigir a sua cultura técnico-

profissional sobre fundamentos científicos consistentes, resultantes de um ensino de grau

superior. Daí ter sido muito certa a linha curricular que Oliveira Lima taxou de exagerada,

numa explosão bem expressiva do desfavor em que, por muito tempo, foram tidos entre nós

os estudos técnico-científicos, mormente aqueles baseados nas matemáticas e nas ciências da

natureza”. (4)

O currículo da academia Militar, e através dele o ideário pombalino, seria

preservado ao longo do Império.

A peculiaridade da mensagem pombalina consiste, em primeiro lugar, em ter

difundido a crença de que a ciência (entendida como sinônimo de ciência aplicada) é o meio

hábil para a conquista da riqueza. E, além disto, em ter nutrido a suposição de que a ciência

não corresponde apenas ao processo adequado de gerir e explorar os recursos disponíveis,

mas igualmente de inspirar a ação do governo (política) e as relações entre os homens

(moral). Dentre os documentos que nos legou, talvez o que melhor expresse esse

entendimento sejam as Observações secretíssimas . (5)

Pombal parte do pressuposto de que Portugal atravessa uma nova era de

prosperidade e busca explicá-la recorrendo ao que entende como ciência do Governo e

denomina “economia do Estado e aritmética política”.

O primeiro princípio da política pombalina consiste em promover a

disponibilidade de homens para constituir uma burocracia capacitada. O critério seletivo que

invoca é a habilidade em escrever com boa letra, raridade antes de 1750. A situação inverteu-

se a tal ponto que, “de cada vez que se quer nomear um escriturário para qualquer das

contadorias do real erário, das juntas da fazenda, da do comércio, das companhias gerais e das

outras repartições públicas, aparecem quase resmas de papel inteiras em memoriais e petições

de letras perfeitíssimas”.

O segundo princípio é o domínio das técnicas de fabricação industrial (“artes

fabris ou ofícios mecânicos”), “que são os braços e as mãos de todos os Estados”. Antes, tudo

que se requeria “entrava pela barra, vindo dos reinos estrangeiros”. Agora, “as manufaturas

nacionais florescem”.

O terceiro princípio é a formação de uma elite de profissionais liberais, aptos ao

desempenho de todas as tarefas requeridas pelo comércio e pela construção.

O quarto e o quinto princípios correspondem, respectivamente, ao estímulo das

artes e da literatura (“da filosofia ou das belas artes”) e das “ciências maiores”, representadas

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64

estas pela restauração da Universidade de Coimbra. Caracteriza esse evento nos termos

adiante: “abolindo os expurgatórios romano-jesuíticos, fecharam aos livros perniciosos as

portas que abriram aos de sã e útil erudição, e encheram estes reinos de claríssimas luzes em

que hoje abundam”.

O sexto e sétimo princípios dizem respeito aos regulamentos do comércio interno

e externo.

O oitavo princípio refere-se à harmonia entre as classes (“harmonia e consonância

com que se viram concordes a primeira nobreza com a civil e ambas com a plebe”).

O nono princípio é assegurar o estado de riqueza dos vassalos. A evidência de que

havia sido alcançado podia se ver nas recepções (exemplifica com o senado da câmara, onde

observou-se “a mesa servida com grande exatidão e delicadeza de pratos para quatrocentos

pessoas, com copiosíssima baixeta de prata nacional, sem entrar nem uma só peça de

estrangeiros”; na ornamentação dos lugares; na presença de “extraordinário número de

carruagens novas e de bom gosto”; no trajar (mesmo o sexo masculino achando-se “ricamente

vestido e ornado, desde os indivíduos de primeira nobreza até os da última plebe”); etc.

Os nove princípios pombalinos resume-se ao fazer, estribado em conhecimentos e

em ciência, e igualmente ao fruir. Nada mais distanciado do que havia sido ensinado nos

séculos anteriores. Mais importante é assinalar que tais enunciados são entendidos como

suficientes para assegurar a boa marcha da vida social em seu conjunto, isto é, inserem, por si

mesmos, a componente ético-normativa.

Entre os efeitos que provêm da aplicação de semelhantes princípios, Pombal

destaca o seguinte:

“É notório que na corte de Londres comete a plebe, a cada passo, freqüentes

desordens que todos sabemos logo que se ajunta em número de três e quatro mil indivíduos.

Em Paris vimos há pouco tempo que as festas de casamento do conde de Provença causaram

mais de trezentas mortes desastradas, entre os distúrbios da referida plebe, e todos aqueles

estrangeiros que se achavam nesse conhecimento não podiam deixar de confessar que estamos

muito mais sociáveis do que eles, tendo visto por uma parte os diferentes estados, ordens,

classes e grêmios de porte superior da capital de Lisboa na mais perfeita harmonia e recíproco

trato e na mais suave consonância nos camarotes e salões das assembléias e das mesas. E

tendo visto pela outra parte mais de cento e cinqüenta mil pessoas de ambos os sexos da

ínfima plebe e espécie de povo em confusão e aperto na praça real do comércio, por tardes e

noites inteiras, com a mesma tranqüilidade e silêncio, como que poderiam estar em uma igreja

fazendo oração”.

E mais, o conjunto descrito deve ser preservado,

“porque enquanto se governarem pelos mesmos princípios e pelas mesmas

máximas é certo que terão sempre os felicíssimos sucessos, fugindo às novidades com que

ordinariamente costumam, os que entram de novo, querer emendar o que está bem, para que

esteja melhor, quando a experiência tem mostrado que semelhantes novadores, em lugar de

conseguirem o que cuidam que é melhor, arruínam assim o que estava bem, com irreparáveis

ruínas da coroa a que servem e dos vassalos dela”.

Page 65: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

65

De todos os modos, a crença na possibilidade de moral e política científicas acha-

se apenas implícita na pregação de Pombal. O mérito de Augusto Comte consiste

precisamente em explicitá-lo. O conhecimento de Comte começa justamente na Real

Academia Militar e, como esperamos demonstrar, deu-se ali nesse estrito limite, ainda que

não deixasse de ser enorme incongruência que militares aceitassem a liderança teórica de

quem, abertamente, pregava a dissolução dos exércitos. Isto aliás vem em reforço à tese de

que o comtismo foi admitido enquanto servia para reforçar crenças anteriores (o ideário

pombalino).

O interesse inicial pela obra de Comte na Academia era de índole meramente

científica, como observa Jeovah Motta, até a ascensão de Benjamin Constant (1833/1891). A

esse propósito escreve:

“Já no período anterior (1850/1874), logo a partir de 1850, alguns lentes da Escola

haviam descoberto, com grande encantamento, as formulações matemáticas de Comte. Como

professores de Geometria Analítica, de Cálculo Diferencial e Integral e de Mecânica,

sentiram-se empolgados pelas conceituações e pela vigorosa sistematização que encontravam

na Géométrie Analytique e no primeiro volume do Cours de Philosophie Positive. Contudo, o

fato durante muito tempo se circunscreve aos aspectos meramente matemáticos: era Comte,

professor de Matemática, inspirando professores de Matemática. Foi preciso que chegássemos

a 1872, com o ingresso de Benjamin Constant no quadro de lentes da Escola, para que o

comtismo ganhasse, na Praia Vermelha, mais amplos contornos; a partir de então, além das

formulações sobre a filosofia da Matemática, foram tomando corpo, também as definições

comteanas nos campos da Filosofia da História e da Sociologia”. (6)

Benjamin Constant não lhes ensinava apenas a equação da linha reta, falava-lhe

das leis que regem a sociedade e comandam a história, da ciência que racionaliza o governo

dos povos e lhes ilumina o futuro – tal era, segundo Jeovah Motta,, a essência de seu

magistério. Fascinava porque não se detinha na matemática, nem mesmo na filosofia da

matemática, mas pelo fato de que se elevava à Filosofia da História e aos princípios da

dinâmica pessoal. Invoca, para comprová-lo, o testemunho de Rondon que, tendo sido

discípulo de Benjamin Constant, teria oportunidade de escrever que “operava o prodígio

quase sobre-humano de transfigurar a cátedra de Geometria Algébrica em altar levantando à

mais pura idealização da pátria”. Conclui Jeovah Motta: “Ao conformismo natural e

espontâneo dos moços, Benjamin Constant dava um suporte teórico e doutrinário. Nos cento e

sessenta anos da Academia, nenhum pôde disputar-lhe o título de educador emérito”. (7)

Benjamin Constant singularizava-se não apenas por haver retomado a crença na

possibilidade da sociedade racional, difundida pela geração pombalina, como sobretudo pela

virtude de explicitar plenamente todas as premissas abrigadas por aquele ideário. São

possíveis a moral e a política científicas, estando superados os tempos em que o homem tinha

uma lei para a razão e outra para o coração.

O fato consignado pode ser resumido como segue: dessa base, plantada

originariamente entre os militares e engenheiros, o positivismo iria irradiar-se pelo país,

configurando-se como a doutrina política em plena ascensão no período republicano.

Indico dois exemplos comprobatórios de que a adesão às doutrinas de Augusto

Comte, na Academia Militar, deu-se no estrito limite em que contribuiu para desenvolver as

apontada premissas do ideário pombalino, isto é, a crença na possibilidade da moral e da

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66

política científicas, o que dá enorme coerência ao modelo que atribui ao Estado a direção do

processo de modernização.

Primeiro exemplo: Augusto Comte entendia que as forças armadas deveriam ser

transformadas em simples milícias cívicas, destinadas ao policiamento das cidades e do

interior. Em vão os membros do Apostolado iriam lembrar a pretensa incompatibilidade entre

o positivismo e qualquer forma de militarismo. Na pregação de Benjamin Constant, a elite

militar tornava-se uma espécie de porta-voz da Nação. Assim, na justificativa da reforma do

ensino militar, teria oportunidade de afirmar: “O soldado deve ser, de hoje em diante, o

cidadão armado, corporificação da honra nacional e importante cooperador do progresso com

garantia da ordem e da paz públicas, apoio inteligente e bem intencionado das instituições

republicanas, jamais instrumento servil e maleável por uma obediência passiva e inconsciente

que rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral”.

Na Ordem do Dia expedida na ocasião em que deixa o Ministério da Guerra, que

figura entre os documentos divulgados por Teixeira Mendes, em 1894, ao escrever-lhe a

biografia, Benjamin Constant afirma que: “Eles (os exércitos modernos) obedecem consciente

ou inconscientemente na sua índole, organização e nos seus destinos a leis imperturbáveis

reguladoras da evolução geral do progresso humano que tende inevitável e progressivamente

para o feliz regime final – industrial e pacífico – resultante do fraternal congraçamento dos

povos. Para ele caminham mais rapidamente do que todos os outros – como é forçoso e grato

reconhecê-lo –, os povos americanos de um modo ainda mais acentuado o nobre povo

brasileiro, sempre disposto a sacrificar dignamente o seu egoísmo nacional ao largo e fecundo

amor universal. A orientação dominante nos povos e nos exércitos americanos dá-nos

lisonjeira esperança de que aquele sublime ideal do verdadeiro progresso humano se

transformará em futuro não muito remoto em grata e feliz realidade. Para ele concorrerá

poderosamente o exército brasileiro a que me orgulho de pertencer”. (8)

Como se vê, ao invés de recomendar a dissolução do Exército, como queria

Comte, Benjamin Constant atribui-lhe nada mais nada menos que a liderança na implantação

do estado positivo.

Segundo exemplo: nas reformas do ensino que se fizeram na República, a começar

da que leva o nome de Benjamin Constant, todas estruturadas com base na suposição de que a

abordagem do real se esgota na ciência, abandona-se integralmente o princípio comteano da

separação entre os poderes espiritual e temporal, cabendo ao primeiro as tarefas no âmbito da

educação. Ao invés disto, o Estado, às autoridades que mantinha na esfera do ensino superior,

assume a responsabilidade pelo ensino primário e secundário, considerada a ação particular

meramente supletiva.

Na verdade, o magistério cientificista serviu sobretudo para configurar certa

mentalidade, descrita adiante por Alfredo Severo, catedrático de matemática do Colégio

Militar, e que freqüentou os cursos da Escola em fins do século, sendo professor Roberto

Trompovsky:

“Muitos dirão hoje que jamais aplicaram na vida prática o que aprenderam

naqueles altos remígios pelas regiões elevadas do cálculo transcendente. A verdade porém é

que, sem aquele treinamento de nossas circunvoluções cerebrais nunca poderíamos ter

adquirido a capacidade aquisitória de assimilação mental, de que ficamos armados como de

um inestimável tesouro. O objetivo da matemática é menos científico ou doutrinário do que

lógico. (...) Quem não aprendeu a raciocinar em matemática ressente-se dessa falha a vida

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67

toda. Por isso Augusto Comte restabeleceu-lhe o antigo nome de Lógica, em lugar de

matemática, que significa apenas ciência. (...) É freqüente ouvir-se que aquele ensino era

muito filosófico, quando jamais houve lá uma cadeira de filosofia. Hoje é que se ensina

filosofia até no curso secundário, mas, infelizmente, filosofia matemática e confusionista. O

que lá na escola sempre se ensinou foi ciência. E mesmo dela só o cálculo e a geometria

diferencial e integral obedeciam à orientação da Síntese Subjetiva de Augusto Comte. (...) isto

era, porém, o suficiente para abrir, às inteligências, horizontes tão amplos que os cérebros

ficavam afeitos a tudo conceber convenientemente, dando em resultado uma geração de tal

modo apta a tudo assimilar, que ilustrou e ainda está a ilustrar, não só os altos escalões da

hierarquia militar, como os vários setores da vida nacional a que circunstâncias várias a

solicitaram”. (9)

Assim, o ideário pombalino ganhou nova consistência e atualidade. Também

remonta a Pombal o nacionalismo (o anti-americanismo), em que acabaria desembocando

essa pregação cientificista. O poderoso Marquês é que poria em circulação a tese segundo a

qual Portugal era pobre porque a Inglaterra era rica, estabelecendo, dogmaticamente, uma

relação entre os dois processos que a experiência histórica jamais comprovaria.

b) A primeira versão do intervencionismo estatal na economia

Prevaleceu, durante a República Velha, o entendimento (liberal) de que o Estado

não deveria intervir na economia. Igualmente nessa matéria os brasileiros não esperaram as

revisões keynesianas. Além das iniciativas (estaduais) para a proteção do preço do café,

geralmente mencionadas, perdeu-se de vista a elaboração teórica que teve lugar no seio do

próprio positivismo, a meu ver mais relevante. Muito provavelmente – como procuro apontar

no item subseqüente (2) deste Capítulo – corresponderá à fonte inspiradora dos militares que

assessoraram Vargas, ainda nos anos trinta, na formulação dos programas substitutivos da

importação de aço. Tenho em vista o combate frontal ao liberalismo econômico e a

elaboração de uma ampla doutrina centrada no intervencionismo estatal na economia, devida

a Aarão Reis (1856/1936), que começa a elaborá-la ainda em fins do século passado, na

Revista da Escola Politécnica, onde era professor. Engenheiro muito conhecido no país,

exerceria importantes comissões, entre outras a de planejar e implantar a nova capital de

Minas Gerais, Belo Horizonte.

Aarão Reis é autor de um compêndio de economia política, (10) adotado

oficialmente na Escola Politécnica, como também de manual de matemática e de tratado de

direito administrativo.

No compêndio de economia política, Aarão Reis parte da seguinte premissa geral:

“Não podem os fenômenos sociais, como todos os demais fenômenos da natureza,

estar isentos da subordinação fatal a leis determinadas. Firmar definitivamente esta noção

sobre sólidas bases científicas foi a grande e monumental obra do imortal Augusto Comte”.

(11)

No que se refere ao intervencionismo estatal, considera que este seria decorrência

do desenvolvimento da sociedade industrial.

Escreve: “No início do moderno regime econômico da grande indústria...

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68

pretendeu a metafísica econômica, na ilusão desse falaz fundamento, restringir as funções do

Estado aos seus primordiais deveres de garantir, com eficiência completa, a integridade

nacional e a tranqüilidade pública interna, de modo a permitir a livre expansão da liberdade e

firmar o direito, por meio de imparcial distribuição de justiça, de cuidadosa supressão de

abusos e de vigilante afastamento de obstáculos. Era aliás o natural prolongamento... do

laissez faire ... laissez passer”. (§ 580, p. 313). E prossegue: “Dentro em pouco porém os

próprios interesses nacionais e as próprias conveniências públicas foram reclamando que ...

como propulsor do organismo social não pode (o Estado) deixar de intervir na movimentação

normal de suas forças, como atento, discreto e patriótico regulador das funções econômicas”.

(§ 581, p. 313).

Na mesma ordem em que efetiva, eis a enumeração que apresenta das atribuições

do Estado na esfera econômica (§ 583):

1) Procurar, em interferência meramente fiscal, recursos para o custeio normal de sua própria

subsistência como órgão imprescindível;

2) proteger, animar ou favorecer certas operações industriais ou mesmo determinadas classes

da população;

3) realizar empreendimentos superiores às forças da iniciativa particular;

4) impulsionar, dirigir e guiar a produção da riqueza, regular o respectivo consumo, assegurar

a conveniente circulação e garantir justa e eqüitativa distribuição dela;

5) estimular a atividade do trabalho e oferecer ao capital a imprescindível confiança sem a

qual para logo se retrai e encolhe;

6) coibir abusos e eliminar obstáculos;

7) assegurar a salubridade indispensável à ação fecunda do trabalho, proporcionando-lhe

também as condições higiênicas, de interesse tanto coletivo como individual, favoráveis à

sua maior produtividade;

8) atenuar quanto possível os inconvenientes decorrentes de uma concorrência desregrada,

impedindo mesmo com mão forte que dela pretenda prevalecer-se o interesse sórdido da

ganância individual contra os da coletividade;

9) velar como possível pelo restabelecimento do conveniente equilíbrio entre consumo e

produção, sempre que causas quaisquer tendam a rompê-lo;

10) promover, incitar e amparar por acertadas disposições legais o espírito de associação para

que aja eficientemente quer no sentido da produção e da circulação, quer no do consumo

e ainda no da distribuição da riqueza; e,

11) promover carinhosamente a educação popular no sentido de preparar os cidadãos para o

exercício regular de todas as suas múltiplas funções, desde que as da procriação de

gerações fortes, sadias e robustas até da defesa intemerata da pátria nos campos de luta

armada.

Aarão Reis condena a oposição a esse intervencionismo estatal a pretexto de que

leva por vezes a intoleráveis exageros. Cabe, a seu ver, “coibi-los sem desfalecimentos e sem

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transigências” mas pretender eliminá-la, sob a inferência falaciosa “da eloqüente verbiagem

da metafísica econômica”, seria contrariar o progresso normal da sociedade humana (§ 584, p.

314). Não há dúvida, acrescenta, que quando esse intervencionismo se traduz, na prática,

numa substituição do Estado ao particular, são, em geral, esses serviços assim oficializados,

mais onerosos. Há porém casos em que, sem essa interferência, serviços imprescindíveis

ficariam por fazer enquanto outros, por sua natureza especialíssima, não podem ser confiados

à iniciativa particular.

Aarão Reis preconizava o advento do socialismo “não por meio de golpes de leis e

de regulamentos ou de um triunfo revolucionário” mas pela tendência da humanidade à sua

indefinida perfectibilidade. Denomina-o de socialismo determinado, “pela rigorosa aplicação

do método científico ao estudo de todas as questões sociais, pelo respeito da própria

autonomia individual, que contribuirá para o crescente melhoramento da sorte geral da

humanidade apropriando cada vez mais os agentes naturais à satisfação cada vez mais ampla

de suas múltiplas necessidades, graça à crescente aplicação dos progressos científicos ao

desenvolvimento da indústria e, finalmente, por mais eqüitativa distribuição da riqueza,

graças à melhor organização social fundada na liberdade do trabalho e do comércio.”

Semelhante objetivo, o socialismo, prossegue, constitui-se em novo ideal moral,

que tende a realizar-se juridicamente (§ 604). Ao que acrescenta no parágrafo seguinte:

“E o socialismo não é senão a meta definitiva desse movimento que, dia a dia, se

acelera e acentua suas gloriosas etapas, a despeito de tudo, e que há de afinal harmonizar a

reciprocidade com solidariedade, tornando efetiva e real a aparente liberdade atual do trabalho

e das trocas, regularizando a concorrência, depurando as relações de valor econômico e

aperfeiçoando, em suma, todo o complicado mecanismo da indústria, do comércio e da

administração da sociedade humana.”

Como se vê, Aarão Reis acredita na capacidade ético-normativa da ciência, a

exemplo do Marquês de Pombal ou do Visconde de Cairu, que lhe foi precursor no ensino da

disciplina de que se ocupava. Essa componente, aliás, mais se assemelha a uma parcela

indissociável da tradição patrimonialista, pelo menos na forma em que nos foi transmitida por

herança.

Aarão Reis distingue-se entretanto de seus precursores, como dos

contemporâneos, ao apostar igualmente na organização democrática da sociedade. A esse

propósito teria oportunidade de escrever:

“Negar que a atual organização política da sociedade – a democracia – representa

extraordinário progresso em relação às que tem constituído os anteriores estádios, importaria

negar a luz do sol. Bastaria essa admirável divisão dos poderes – constituindo o judiciário

num quase poder espiritual presidindo superiormente o temporal, exercido pelos outros dois,

de acordo com as regras previamente fixadas e iguais para todos – para indicar que, se o

regime político da atualidade é de transição entre o absolutismo e o liberalismo e como tal

carente de reformas, algumas radicais, é ele suscetível de largo desenvolvimento que, sem

destruí-lo, o irá adaptando às novas condições sociais, graças às novas instituições que irão

surgindo”. (12)

2) ABANDONO DA REPRESENTAÇÃO E ASCENDÊNCIA DO CASTILHISMO:

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70

O ESSENCIAL DO PRIMEIRO CICLO

a) O principal resultado do novo ciclo: o castilhismo

O processo anteriormente descrito, de fazer repousar o regime no sistema

representativo, seria paulatinamente abandonado durante a República. No primeiro decênio, a

luta pela hegemonia entre o Poder Legislativo e o Executivo decide-se em favor deste último.

Neste século, sob Campos Sales, a representação passa a constituir abertamente um simulacro.

Tudo isto se faz, contudo, sem qualquer doutrina e ao arrepia da Constituição.

José Maria Belo assim caracteriza o clima vigente na década de noventa:

“Ainda não libertos das tradições parlamentares do Império, os congressistas

republicanos reivindicavam uma primazia política que violava a natureza do regime. No

fundo, reproduzia-se em outro plano a luta entre o Parlamento da França e o governo de Mac-

Mahon, e que se repetiria em várias fases da história da Terceira República francesa. O poder

do Congresso e o Poder do Presidente da República harmonizavam-se apenas nos artigos

constitucionais; na realidade, não se entenderiam nunca”. (13)

No terceiro governo republicano, o primeiro civil do novo regime, exercido por

Prudente de Moraes, surgiria a oportunidade para anular a autonomia do Parlamento. A 5 de

novembro de 1897, sofre o Presidente da República um atentado no qual perde a vida o

Ministro da Guerra. Sob o estado de sítio, que se segue, o Presidente elimina pela força a

oposição no Parlamento, na imprensa e nas ruas, conseguindo, no dizer de José Maria Belo,

“enfim, firmar a suprema autoridade do chefe do Poder Executivo. (...) O atentado de 5 de

novembro dava-lhe elementos de reação que, inutilmente, procura; dentro da própria órbita

constitucional, o presidencialismo do regime adotado em 15 de novembro de 1889 revelava a

tremenda soma de poderes que poderia enfeixar nas mãos o presidente da República e dos

quais os seus sucessores saberão colher o máximo proveito...”

O golpe de morte na representação seria entretanto desferido por Campos Sales,

mandatário do quarto governo republicano, através da chamada política dos governadores. A

peça-chave dessa política consistia em delegar à Mesa da Câmara, composta pela Chefia do

Executivo, a atribuição de reconhecer os diplomas dos parlamentares. Às eleições concretas

se substituía a ata da apuração, confeccionada na Capital da República a partir do único

critério de assegurar maioria sólida ao governo, sem maiores compromissos com o evento

real. Viu-se então representantes eleitos que perdiam seus votos na confecção da ata e toda

sorte de chicana. Tudo isto mediante simples arranjo no Regimento da Câmara dos

Deputados, intocada a Constituição.

O desfecho desse processo, isto é, o de abandono da representação, corresponde à

ascensão do castilhismo ao plano federal, ocorrida após a Revolução de 1930.

Embora se reconheça a presença da influência positivista no Rio Grande do Sul, a

importância da filosofia política, daí resultante, isto é, o castilhismo, ainda não foi

compreendida, com a amplitude que seria de desejar pelos estudiosos do pensamento político-

social brasileiro. Entretanto sem a referência da teoria e da prática castilhista nossa história

republicana torna-se campo propício a simplificações de toda ordem, como por exemplo a

tentativa de reduzir o Estado Novo a uma projeção do nazi-fascismo. Ainda mais: não se trata

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71

tão-somente das ascendência do autoritarismo, para que todos hoje chamam a atenção. O

castilhismo não é uma simples defesa do autoritarismo. É uma doutrina de muito maior

significação, coerentemente elaborada, que foi defendida e aperfeiçoada no Rio Grande do

Sul ao longo dos quatro primeiros decênios da República e, a seguir, transplantada para o

plano nacional por Getúlio Vargas (1883/1954).

Tendo adquirido sua formação sob o castilhismo, Vargas iria aperfeiçoar essa

doutrina e dar-lhe uma feição que está no cerne do comportamento de facções ponderáveis da

contemporânea elite brasileira.

Incumbe, pois, proceder à caracterização do castilhismo.

Júlio de Castilhos (1860/1903) assumiu a liderança dos diversos grupos

republicanos, no Rio Grande do Sul, após a proclamação da República. Autor da Constituição

estadual, exerceu a presidência do Estado até 1898. Foi substituído no governo por Borges de

Medeiros (1864/1961) que permaneceu no cargo, com exceção de um único mandato, até

1928. Borges de Medeiros seria substituído por Getúlio Vargas que cumpriu o mandato até

outubro de 1930, quando assumiu a Presidência da República, como Chefe do Governo

Provisório, saído da Revolução.

A caracterização oficial do regime imperante no Rio Grande do Sul é apresentada

do seguinte modo no folheto justificativo do monumento a Júlio de Castilhos:

“A Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul, código político

promulgado a 14 de julho de 1891, em nome da Família, da Pátria e da Humanidade,

estabelece a separação dos dois poderes, temporal e espiritual, de acordo com o princípio

capital da política moderna, isto é, da política fundada na ciência. Como conseqüência disso, a

liberdade religiosa, a liberdade de profissão e a liberdade de indústria, acham-se nele

plenamente asseguradas.

Não há parlamento: o governo reúne à função administrativa a chamada

legislativa, decretando as leis, porém após exposição pública dos respectivos projetos, nos

quais podem assim colaborar todos os cidadãos.

A Assembléia é simplesmente orçamentária, para a votação dos créditos

financeiros e exame da aplicação das rendas públicas.

O governo acha-se, em virtude de tais disposições, investido de uma grande soma

de poderes, de acordo com o regime republicano, de plena confiança e inteira

responsabilidade, o que permite-lhe realizar a conciliação da força com a liberdade e a ordem,

conforme as aspirações e os exemplos dos Danton, dos Hobbes e dos Fredericos.”

Ao longo da República Velha, o castilhismo foi combatido com veemência e deu

mesmo lugar a uma guerra civil, em 1923, forçando a intervenção federal, de que aliás

resultou a interrupção da praxe das reeleições sucessivas de Borges de Medeiros. A paixão

dessa crítica impede que se visualizavam as questões efetivamente relevantes, do ponto de

vista doutrinário, razão pela qual a melhor fonte para apreendê-las ainda é a defesa veiculado

pelo próprio castilhismo. Todo esse material, resultante das mensagens dos governantes rio-

grandenses e outros textos oficiais, discursos parlamentares e artigos de jornal, foi reunido no

livro Constituição Política do Rio Grande do Sul. Comentário (Porto Alegre, 1991), da

autoria de Joaquim Luís Osório. Outros aspectos suscitados pela prática castilhista seriam

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72

posteriormente considerados por Monte Arraes em O Rio Grande do Sul e suas instituições

governamentais (Rio de Janeiro, 1925).

A questão central que então se discutia resume-se em saber se o regime rio-

grandense poderia ser enquadrado dentro do sistema representativo. Os castilhistas, com

grande sucesso, iriam evitar qualquer discussão da idéia mesma de representação buscando

travá-la em torno do que seria a essência do regime, se a eleição dos mandatários ou a

elaboração das leis pelo Parlamento. Joaquim Luís Osório transcreve este pronunciamento de

parlamentar castilhista na Assembléia Estadual que é bem expressivo do modo de encarar o

assunto:

“Afirmou-se que a lei fundamental em discussão não adotara o governo

representativo. Não parece que a objeção deva ser levada em consideração. Se nós

consideramos governo representativo aquele em que os diferentes órgãos da autoridade

pública se acham investidos do poder, em virtude dos sufrágios populares, devemos dizer que

o projeto, tal qual foi concebido, consagra o governo representativo. Com efeito, o chefe do

Estado é investido das funções que lhe dá a Constituição, em virtude dos votos que lhe dá o

povo; a Câmara dos Representantes, que tem intervenção direta na governação pública, pela

confecção da lei das leis, da lei orçamentária, também é organizada por meio da eleição e os

intendentes, bem como os conselhos municipais, se acham colocados na posição de gestores

dos negócios dos municípios em virtude dos sufrágios que receberam dos eleitores dos

municípios outorgantes do mandato. Se, entretanto, consideramos o governo representativo,

não como aquele em que somente pelo sufrágio popular é a autoridade investida do exercício

das funções governativas, mas como o governo parlamentar, governo que se funda no

princípio da divisão dos poderes, em que se dá o poder legislativo a uma Assembléia de

Representantes, que faz a lei, com a sanção do poder executivo, dirá que o Projeto da

Constituição não estabeleceu esse sistema de governo, e nem também nós o queremos.”

Semelhante entendimento da questão chegou a receber o apoio de Campos Sales,

em discurso no Senado, em 1895, a propósito da tentativa de regulamentação do artigo 6º da

Constituição de 1891, que estabelecia os casos em que a União poderia intervir nos Estados.

Campos Sales entende que o dispositivo é suficientemente explícito e dispensa interpretação.

Nesse discurso, transcrito por Luís Osório, manifestar-se-ia acerca da discussão das

circunstâncias rio-grandenses, não apenas aceitando as premissas castilhistas como

igualmente se solidarizando com a argumentação. Eis o trecho:

“O Sr. Campos Sales: Senhores, estou enunciando uma doutrina que é exposta por

espíritos superiores, e por ela se demonstra que a maior ou menor amplitude dada às funções

de cada um dos três poderes políticos não afeta a questão da forma de governo. Na

Constituição do Rio Grande do Sul (este é o nosso modo de ver) eu vejo perfeitamente

representado o pensamento, o princípio fundamental da forma republicana federativa. Quanto

às funções legislativas, estão elas caracterizadas pela votação dos impostos e das leis de meios

em geral, o que constitui e caracteriza o regime representativo.

Não discuto se a Constituição do Rio Grande do Sul possui ou não defeitos,

mesmo porque todas as constituições estaduais os têm mais ou menos graves. O meu ponto de

vista é mais geral: é demonstrar que isso que se alega nãos e constitui de modo algum ofensa

à forma republicana federativa, não autoriza, portanto, a intervenção da autoridade federal,

que em tal caso seria criminosa.”

Os grandes teóricos do liberalismo que inspirou as instituições imperiais,

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73

notadamente Silvestre Pinheiro Ferreira (1769/1846), tinham presente que a representação era

de interesses. A diversidade dos mandatos, diria Silvestre Pinheiro Ferreira, não pode provir

senão da diversidade dos interesses que o mandatário é chamado a representar. As instituições

que a prática consolidou tinham o propósito expresso de conciliar tais interesses através da

negociação, ao invés da luta armada, a exemplo do que ocorrera no ciclo anterior.

Augusto Comte, em contrapartida, ensinara que o governo havia-se tornado uma

questão de competência. Escrevera no Sistema de Política Positiva (1851/1854) que

“é perfeitamente inútil discutir sobre o direito divino num mundo em que Deus

não desempenha nenhum papel; nem muito menos sobre a soberania do povo numa época em

que a política é uma ciência e torna-se, por conseguinte, como a astronomia ou a química,

questão de competência”. (14)

Na doutrina clássica, aceita universalmente na Idade Média, a origem do poder

provinha de Deus. Mais tarde, graças sobretudo a John Locke, passa-se a entender que o

poder origina-se da representação. Comte avança uma nova doutrina: o poder vem do saber.

O saber de que se trata é o do estado positivo, último estágio a ser atingido pela

humanidade. Aceitando semelhantes pressupostos, e considerando-se não só competente mas

possuído de intenções absolutamente puras, Castilhos supõe que o governo está agora a

serviço do aprimoramento moral da sociedade. Como bem o assinalou Ricardo Vélez

Rodríguez, para os castilhistas a República correspondia ao regime da virtude, ou, para dizê-

lo com as palavras do historiador Arthur Ferreira Filho:

“(Para Júlio de Castilhos) a República era o reino da virtude. Somente os puros, os

desambiciosos, os impregnados de espírito público deveriam exercer funções de governo. No

seu conceito, a política jamais poderia constituir uma profissão ou um meio de vida, mas um

meio de prestar serviços à coletividade, mesmo com prejuízo dos interesses individuais.

Aquele que se servisse da política para seu bem-estar pessoal, ou para aumentar sua fortuna,

seria desde logo indigno de exercê-la. Em igual culpa, no conceito castilhista incorreria o

político que usasse das posições como se usasse de um bem de família (...) Como governante,

Júlio de Castilhos imprimiu na administração rio-grandense um traço tão fundo de austeridade

que, apesar de tudo, ainda não desapareceu”. (15)

Essa suposição de que a eliminação do interesse material era não apenas desejável

mas sobretudo possível informa em seus mínimo detalhes a atuação política de Júlio de

Castilhos, como se pode ver pela argumentação em favor da abolição do voto secreto, adiante

transcrita por Luís Osório:

“É assim que o escrutínio secreto fica suprimido, como antagônico e incompatível

com a nova ordem fundada a 15 de novembro, da qual surge, como dever que a todos

incumbe, a necessidade de assumir a cada um a plena responsabilidade das próprias ações,

tanto o representante da autoridade como qualquer cidadão.

Seria visivelmente iníquo exigir do governo a inteira publicidade dos seus atos,

permitindo aos particulares (no exercício de uma função política) eximirem-se dela, quando

aquele arrisca ficar sujeito a severas penas, e estes incorrem somente na pública censura. O

voto a descoberto é o único remédio legislativo capaz de reabilitar o processo eleitoral,

dignificando-o, fazendo compreender ao cidadão a responsabilidade que assume ao intervir

una composição do poder público e no estabelecimento das leis. O segredo em tais casos

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presta-se a menos decentes maquinações e degrada sobremodo ao eleitor. Quantas vezes,

contando com o sigilo da urna, deixa-se ela corromper e concede o seu voto a um candidato,

quando tem compromissos públicos e solenes com outro – debilidade moral que tanto coopera

para o extremo relaxamento dos costumes políticos (Exposição de motivos encaminhando a

Lei Eleitoral).”

O interesse material, por si mesmo, nada tem de imoral. Muito ao contrário, os

interesses em geral, entre os quais avultam os pecuniários, como é o caso do ciclo histórico,

em que vivemos, desde o advento do protestantismo, em que a riqueza passa a ser enaltecida,

esses interesses, tenha-se presente, é que movem os homens. No apogeu do idealismo alemão

adquiriu-se plena consciência da circunstância. A problemática do desejo, em Hegel, ou da

necessidade em Feuerbach, contribuíram para elucidar plenamente esse momento da ação.

Feuerbach diria que uma existência sem necessidades tampouco tem necessidade de existir. E

as necessidades humanas, não se deve perder de vista, são subjetivas, estão referidas ao tempo

histórico, refletem interesses e hierarquização de valores.

De modo que tentar eliminar os interesses equivale à tentativa de eliminação do

próprio homem, o que aliás corresponde à principal característica do positivismo, já que sua

ambição é constituir uma física social, isto é, uma ciência que condicione integralmente os

homens e os reduza a uma única bitola mediante sucessivas alterações nas condições sociais.

A peculiaridade do castilhismo consiste na admissão de que a posse do poder

político constitui a condição essencial e suficiente para educar a sociedade na busca do bem

comum. O bem comum deixa de ser uma barganha entre interesses, sustentados por grupos

sociais diversificados, e passa a ser considerado como objeto de saber, de ciência. Em Comte,

o tema não deixa de assumir maior complexidade porquanto o estado positivo, no final de

contas, repousava na proeminência do poder espiritual, a exemplo da Idade Média; na

exaltação dos sentimentos altruísticos mediante o culto da mulher; na colocação da ciência

numa situação subalterna, em relação à arte e outras atividades desinteressadas; na prática da

religião da humanidade, etc.

Ascendendo ao poder, Castilhos iria simplificar esse esquema. Conforme Velez

Rodríguez:

“O bem público confundia-se, para ele, com a imposição, por parte do governante

esclarecido, dum governo moralizante, que fortalecesse o Estado em detrimento dos egoístas

interesses individuais e que velasse pela educação cívica dos cidadãos, origem de toda moral

social. O texto que citaremos à continuação expressa admiravelmente todos os aspectos que

implica o conceito castilhista de „bem público‟. (...) A completa reorganização política e

administrativa do Estado, moldada de harmonia com o bem público, e subordinada à fecunda

divisa de: CONSERVAR MELHORANDO; a sua prosperidade material atestada pelas

inúmeras obras postas em execução e por outros tantos fatos auspiciosos; o crescente

desenvolvimento das indústrias (...); a estabilidade do seu crédito (...); a considerável

amortização de sua dívida (...); o numerário acumulado no seu Tesouro; a sua progressiva

educação cívica, em que se fortalece o ininterrupto aperfeiçoamento moral deste povo

glorioso; tudo isso resume a brilhante atualidade do Rio Grande do Sul (maiúsculas de

Castilhos; o grifo é nosso). (16)

Deve-se reconhecer que os castilhistas lograram amplo sucesso no propósito de

escamotear a discussão do essencial. O que caracteriza o sistema representativo é a

eletividade do mandatário e não as funções do Poder Legislativo – tal a hipótese em torno da

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75

qual girou o debate. Não se avançou a tese – a rigor, intuitiva, porquanto tautológica – de que

o sistema é representativo porque se apóia na representação, o que teria levado à identificação

da natureza da representação, ao reconhecimento da diversidade dos interesses em toda

sociedade, etc. Para evidenciar que a problemática da representação desapareceu de todo da

perspectiva da nova elite em formação, basta dizer – e para não mencionar a chamada política

dos governadores introduzida sob Campos Sales, antes caracterizada – que Assis Brasil,

contrapondo-se a Castilhos, diria que a eleição tem lugar para averiguar a média das opiniões.

O interesse perdeu os direitos de cidadania e foi expulso para o limbo da imoralidade.

A partir dessa plataforma que é o essencial do castilhismo, seus seguidores iriam

detratar o sistema parlamentar (batizado de para lamentar); a tripartição e a independência

dos poderes, aceitos apenas pelos que “permanecem embalados ao ritmo da Marselheza” e

pretendem entregar os governos “aos azares da opinião flutuante”; e sobretudo o voto. O

próprio Castilhos teria oportunidade de escrever: “Nós pensamos e temos sempre ponderado

que é vão e inepto o empenho daqueles que através da expressão numérica das urnas

pretendem conhecer as correntes que sulcam profundamente o espírito nacional... O voto não

é nem pode ser o verdadeiro instrumento capaz de determinar precisamente o profundo

trabalho de formação das opiniões, operado fora da preocupação eleitoral, que se desliza nas

correntes superficiais”.

Tal é, em síntese, o castilhismo.

Não deixa de revestir-se de certo interesse saber-se quando se deu a aproximação

entre os militares e o castilhismo. Sob o governo Hermes da Fonseca (1910/1914) tal

efetivamente ainda não havia ocorrido porquanto, na onda das salvações (intervenção federal

nos estados), cogitou-se de substituir Borges de Medeiros, no Rio Grande do Sul, por um

general, o que não se consumou devido à influência de Pinheiro Machado. Contudo, o general

Goes Monteiro, que foi o principal líder militar dos anos trinta e quarenta, confessa numa

carta endereçada a Sobral Pinto e publicada em abril de 1945 (17) sua grande admiração por

Castilhos e por sua doutrina, só se dispondo a abandoná-la quando compreendeu, 1º “... o

caráter miniatural do estatismo positivista, propenso a construir republiquetas de governança

patriarcal, impróprio a conformar, nos seus liliputianos quadros, o problema de dimensões

continentais como é, de fato, o conjunto brasileiro. Esse caráter fracionário, localista,

federativo no puro sentido, repugnou ao meu modo de ser militar. Quem diz militar diz

brasileiro. O soldado não é gaúcho, nem alagoano, nem amazonense. É brasileiro.”

E, 2º) por se achar aquém dos autoritarismos formulados nos anos trinta, aos quais

aderira de corpo e alma, ou para dizê-lo com suas próprias palavras:

“Sem acreditar, de modo rígido e inflexível, no ensinamento básico marxista, de

que as idéias de um homem promanam dos interesses e influências de sua classe, reconheço,

em consciência, nunca me ter abandonado o pensamento de fortificar a defesa nacional e

contribuir para atualizar o progresso militar do país, ajustando-o à evolução do mundo

contemporâneo e, especificamente, do seu meio contornante.

Para esse objetivo, que me parece fundamental, porque antes de filosofar sobre

doutrinas importava sobreviver às crises profundas de ordem interna e externa que se

anunciavam, trabalhei sob vocação muito mais ampla do que o borgismo... Os filósofos, como

diz Nitti, só prevêem os acontecimentos do passado e eu tinha, como tenho ainda hoje, os

olhos voltados para o futuro do Brasil.

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76

Senti, ao contrário, nas matrizes do “positivismo castilhista”, um fruído de

humanitarismo água-de-flor, uma excessiva confiança na dulcificação dos processos da

política internacional – uma política internacional, enfim, incondizente com o espetáculo

darwiniano do “Struggle for life” mundial”.

Vê-se pois que a aproximação entre a elite militar e o castilhismo é fenômeno

anterior à ditadura Vargas. Não pairam dúvidas, entretanto, que tenha cabido a este último

cimentá-la e torná-la duradoura.

b) A República positivista do Rio Grande do Sul

Getúlio Vargas adquiriu sua formação de homem público convivendo

estreitamente com a elite castilhista de sua terra. Desde muito jovem (18) aderiu de modo

fervoroso a essa doutrina. Em 1903, quando morreu Júlio de Castilhos, Vargas contava apenas

20 anos. Como orador da sessão fúnebre realizada no Teatro São Pedro, de Porto Alegre, a 31

de outubro, uma semana após o falecimento de Castilhos, teria oportunidade de dizer:

“Enquanto essas nações que se dizem grandes e civilizadas, que possuem

exércitos colossais e esquadras gigantescas, transformam o gládio da Justiça em espada de

Damocles pendente sobre a cabeça dos fracos; o Brasil, colosso generoso, ajoelha soluçando

junto da tumba do condor altaneiro que pairava nos píncaros da glória.

Júlio de Castilhos para o Rio Grande é um santo. É um santo porque é puro, é

puro porque é grande, é grande porque é sábio, é sábio porque, quando o Brasil inteiro se

debate na noite trevosa da dúvida e da incerteza, quando outros Estados cobertos de andrajos,

com as finanças desmanteladas, batem às portas da bancarrota, o Rio Grande é o timoneiro da

Pátria, é o santelmo brilhante espargindo luz para o futuro.

Tudo isso devemos ao cérebro genial desse homem.

Os seus correligionários devem-lhe a orientação política. Os seus coetâneos o

exemplo de perseverança na luta por um ideal; a mocidade deve-lhe o exemplo de pureza e

honradez de caráter.

Identificando-se com uma doutrina sã, soube melhor do que ninguém moldá-la

aos costumes e às necessidades de seu povo”. (19)

Com o passar do tempo, desaparecerá o tom laudatório, o que entretanto somente

expressa maior integração à doutrina. Vargas ingressaria na equipe de Borges de Medeiros

aos vinte e seis anos, elegendo-se deputado estadual, em 1909. Reeleito, renunciou em 1913

em vista de desentendimento com o oficialismo que, entretanto, não se prolongaria

demasiado. Em 1917 volta a integrar a chapa situacionista de passa a atuar na Assembléia

Estadual, como líder da maioria. Exerceria importantes comissões estaduais, podendo

considerar-se como figura destacada do castilhismo local.

Seu aparecimento no plano federal ocorreria em 1922. “A morte de um castilhista

gaúcho, Rafael Cabeda, propiciou a eleição de um substituto pouco conhecido fora dos pagos:

Getúlio Dorneles Vargas”. (20) Elevado mais tarde à liderança da bancada, teria já uma

participação destacada na discussão das reformas constitucionais de 1926.

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77

Em sua atuação na Câmara dos Deputados, Vargas revela não só extremo zelo na

defesa do patrimônio castilhista como expressa, através do jargão empregado, o quanto o

marcara a atmosfera reinante na cúpula administrativa rio-grandense. Para que se tenha idéia

desse clima, é suficiente indicar que o intendente municipal de São Francisco de Assis, que,

segundo João Neves da Fontoura, enviava mensagens à Câmara recheadas de citações de

Comte e de Clotilde de Vaux, divergindo de Borges de Medeiros, acusou-o de estar

“lafittizando” a obra de Castilhos. (21) Quer dizer: Castilhos se equiparava a Comte e Borges

de Medeiros a Lafitte, porquanto vivia-se em plena atmosfera da república positivista.

Borges de Medeiros, de sua parte, não fazia por menos. A chamada liberdade

profissional – que assegurava a qualquer pessoa o exercício da medicina, bastando para tanto

registrar-se na Diretoria de Higiene, e assim em relação a outras profissões porque a

Constituição estadual não admitia “privilégios escolásticos e acadêmicos” – defendeu-a por

tratar-se de dogma positivista. A propósito do dispositivo constitucional que reduzia as

atribuições da assembléia à elaboração orçamentária afirmaria: “A lei financeira é tudo

porque sem ela o governo terá de oscilar fatalmente entre a revolução e o despotismo.

Augusto Comte não trepidou em afirmar que a composição do orçamento e a votação do

imposto envolvem uma questão capital para a sociedade e mais importante que a própria

controvérsia sobre as formas de governo”. A preocupação com o abastecimento e a situação

do funcionalismo é justificada nestes termos: “À luz dos ensinamentos de Augusto Comte,

cumpre afinal promover definitivamente a incorporação do proletariado na sociedade

moderna e considerar o salário como a equivalência da subsistência e não como recompensa

do trabalho humano, que não comporta nem exige nenhum pagamento propriamente dito, mas

o reconhecimento devido”.

Enfermo, Borges de Medeiros, afastou-se do governo no transcurso do seu

terceiro mandato, de julho de 1915 a maio de 1916, ocasião que aproveitaria, segundo Ivan

Lins, para reler e repensar Augusto Comte. Em sua volta, em resposta à manifestação popular

que lhe prestaram, assim resumiria o essencial de sua meditação:

“O Brasil atravessa uma crise profunda que abrange a complexidade dos

fenômenos de ordem moral, intelectual e material. É em vão que tenta a sua debelação pelo

emprego exclusivo de remédios políticos. (...) Não existe uma doutrina universal, não existe

uma doutrina positiva, generalizada; e a moral teológica, exausta e decrépita, luta debalde

pela reconquista de sua influência perdida. Inspiram as classes dirigentes doutrinas

metafísicas, incongruentes e eivadas de preconceitos revolucionários. (...) Urge, pois,

substituir a metafísica pela ciência social positiva, pela sociologia fundada por Augusto

Comte – única que pode iluminar e guiar a verdadeira política. As sociedades não podem

subsistir indefinidamente sob o jugo de vontades arbitrárias ou sob o império de paixões e

sentimentos desordenados.”

A missão fundamental do positivismo, prossegue, é generalizar a ciência e assim

aprimorar a convivência social. Ao que acrescenta:

“Esse supremo ideal será o fruto da educação positiva que, sistematizando todos

os conhecimentos humanos, tem por princípio fundamental a supremacia da moral sobre a

ciência, do sentimento sobre a razão, da sociabilidade sobre a inteligência. Relevai-me esta

rápida digressão filosófica, de que não podia prescindir, porque só nos ensinamentos do

incomparável filósofo de Montpellier, vamos encontrar soluções definitivas e adequadas aos

tormentosos problemas que agitam a civilização moderna. Só a educação positiva poderá

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78

curar o ceticismo, que domina as classes superiores, e o indiferentismo ou a revolta que

caracterizam as classes inferiores”.

O incidente adiante, relatado por Mem de Sá, que hoje nos soa absurdo, retrata

muito bem a mentalidade vigente:

“E quando um engenheiro porto-alegrense, Rodolfo Ahrens, reunindo capitais

estrangeiros, projetou a construção da usina hidrelétrica de Salto Grande do Jacuí, a ser

inaugurada em 1922 como celebração maior do centenário da Independência do Brasil, os

engenheiros positivistas da Secretaria de Obras Públicas vetaram a iniciativa porque os

proponentes se prontificaram a entregar a usina sem indenização após 50 anos de exploração.

Os dogmas de Comte proibiam tal prazo.” (22)

Getúlio Vargas viveu nesse ambiente e nele amadureceu politicamente. Sua

aparição de público, no plano nacional, de forma mais evidente, ocorreria por ocasião do

debate das reformas constitucionais aprovadas em 1926, uma das quais dizia respeito

precisamente à eliminação do dispositivo da Carta gaúcha que permitia a reeleição do

primeiro mandatário, estabelecendo a obrigatoriedade da adoção do princípio oposto,

consagrado na Constituição Federal. Naquela oportunidade, revelar-se-ia o castilhista

acabado, no raciocínio e na adjetivação. Respondendo, na sessão de 8 de dezembro de 1925, a

um parlamentar que dissera ser atéia a Constituição do Rio Grande, começa por lembrar-lhe

que “também levara oblatas ao altar de Clotilde de Vaux”, para acrescentar: “Deus é uma pura

abstração mental com diferentes nomes, mas revestida da mesma significação... tenhamos

mais em conta a realidade, a solução dos grandes problemas da vida nacional e não nos

aferremos demasiado ao sonoro verbalismo das expressões – Deus, liberdade, democracia,

povo. Nos períodos de exaltação e de luta não é raro vermos a democracia matando em nome

da liberdade e a fé religiosa trucidando em nome de Deus”.

Não seria parlamentar o destino do jovem líder em ascensão e certamente não o

desejaria, tão convicto devia estar de sua irrelevância. Logo em 1926 assume a pasta da

Fazenda no governo Washington Luís. E, em 1928, o governo do Rio Grande, em substituição

a Borges de Medeiros.

c) A contribuição de Vargas ao castilhismo

Qual a contribuição de Vargas ao castilhismo? Indicaria, de um modo geral, que

consistiu no empenho em transformar as questões políticas em problemas técnicos. Buscaria

universalizar essa diretriz, na medida em que o governo devia realizar-se em meio à vigência

de amplas franquias democráticas, a que não estava habituada a elite rio-grandense, com a

agravante de que as pressões se faziam de forma difusa e anárquica, já que não havia nenhum

agrupamento apto a lutar pela organização efetiva do sistema representativo.

Na década de trinta ninguém parecia preocupado com a adequada configuração da

sociedade civil, a serviço da representatividade do sistema e da busca de sua legitimação. As

reivindicações de classes e grupos eram identificadas e levantadas apenas para promover a

radicalização, já que o embate maior se travava entre dois agrupamentos totalitários – o

comunista e o integralista – buscando ambos apoiar-se na tradição nacional mas sobretudo

voltados para inspirações externas. Em meio a esse contexto, os liberais, desprovidos de

doutrina agarravam-se à defesa da liberdade em seus aspectos meramente formais.

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Se Getúlio Vargas – ou a elite que chegou ao poder com a Revolução de 1930 –

tivesse se formado num ambiente onde vigorasse o entendimento do sistema representativo –

em especial de sua complexidade – a alternativa considerada seria a busca da organização do

corpo eleitoral, a fim de levá-lo à expressão de seus interesses em determinadas agremiações

políticas. A par disto, teriam sido acionados os instrumentos moderadores, cuja necessidade a

experiência anterior igualmente sugeria.

Formado no castilhismo, Vargas não poderia ascender a semelhante problemática.

Mas teria suficiente acuidade para compreender que a situação requeria não declarações

retóricas com vistas à estruturação da sociedade ideal, no estilo puramente castilhista, mas

uma ação governamental concreta, apta a tornar-se referencial aglutinador. Ao clima vigente,

de radicalização e disputa, Vargas oporia uma linha de tratamento eminentemente técnico dos

problemas.

Todo o esforço de Vargas vai consistir em criar organismos onde as questões de

alguma relevância passem a ser consideradas do ângulo técnico. Amadurecido o ponto de

vista dos técnicos, a instituição deve assegurar a audiência dos interessados. O governo não se

identificará com qualquer das tendências em choque porquanto exercerá as funções de árbitro.

O esquema, para quem se proponha discuti-lo e contestá-lo, parecerá de

fragilidade gritante. Basta perguntar de onde provêm as inspirações da arbitragem. Se as

hipóteses possíveis são a técnica e o interesse a que se reduzirá o empenho moderador? À

tentativa de descobrir e aventar hipóteses de conciliação ou de ir impondo as soluções dos

técnicos? E como fazer para que os grupos e as classes prestem-se a semelhante jogo?

O certo é que Vargas, com a adoção desse esquema, conseguiu fazer de seu

governo um centro aglutinador. Enquanto as reivindicações eram levantadas apenas para criar

a possibilidade de acesso ao poder do agrupamento que delas se apropriava, o governo

adotava uma atitude construtiva, cuidando de encaminhá-las e solucioná-las. Ao longo da

década de trinta criam-se portanto dois processos de exercício do poder. O primeiro, que dava

seguimento ao clima que propiciou a Revolução, nutria-se de assembléias, manifestações,

plataformas e, depois, de debates na Assembléia Constituinte, logo substituída pelo

Legislativo restaurado. A rigor, tratava-se de um novo simulacro de representação porquanto

até mesmo a discussão desse tema assumiria uma conotação técnica e não havia preocupação

efetiva com a organização do corpo eleitoral, para assegurar o sucessivo aprimoramento do

sistema.

O segundo processo correspondia à ascendência crescente dos técnicos no

aparelho governamental. Organizam-se novos ministérios e sucessivas comissões e conselhos.

E assim emergia, para grupos e setores ponderáveis, uma opção mais atrativa, correspondendo

talvez ao que Schwartzman denominou de sistema cooptativo. A instauração do Estado Novo

equivaleu ao seu predomínio e à eliminação do concorrente.

É lícito supor que Vargas não chegou ao poder com semelhante esquema

plenamente amadurecido. Contudo, ainda no primeiro semestre de seu governo, expressa com

clareza a idéia do Estado aglutinador, mediante o concurso de conselhos técnicos, em discurso

pronunciado a 4 de maio de 1931.

Diz textualmente:

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“O que parece urgente, sem dúvida, é a necessidade de uma revisão no quadro de

valores sociais, a fim de que, modificada a sua estrutura íntima, se torne possível o equilíbrio

econômico. Cuja ruptura constitui perigo iminente para a civilização. Para levar a efeito essa

revisão, faz-se mister congregar todas as classes, em uma colaboração efetiva e inteligente.

Ao direito cumpre dar expressão e forma a essa aliança capaz de evitar a derrocada final. Tão

alevantado propósito será atingido quando encontrarmos, reunidos numa mesma assembléia,

plutocratas e proletários, patrões e sindicalistas, todos os representantes das corporações de

classes, integrados, assim, no organismo político do Estado... A época é das assembléias

especializadas, dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente

político, no sentido antigo do termo, podemos considerá-lo atualmente entidade amorfa, que,

aos poucos, vai perdendo o valor e a significação. Creio azado o ensejo para o cancelamento

de antigos códigos e elaboração de novos. A velha fórmula política, patrocinadora dos direitos

do homem, parece estar decadente. Em vez do individualismo, sinônimo de excesso de

liberdade, e do comunismo, nova modalidade de escravidão, deve prevalecer a coordenação

perfeita de todas as iniciativas, circunscritas à órbita do Estado, e o reconhecimento das

organizações de classe, como colaboradores da administração pública.”

No magnífico estudo que dedicou à questão da representação classista, introduzida

na Assembléia Constituinte e adotada pela Constituição de 1934, Evaristo de Moraes Filho

mostra que na discussão daquele tema, na famosa Comissão do Itamarati, incumbida da

elaboração do anteprojeto constitucional, a defesa dessa inovação se faz sobretudo em nome

do primado da técnica. Assim, escreve:

“Themistocles Brandão Cavalcanti, que me parece hoje, à distância, o espírito da

subcomissão mais afeito ao programa tenentista, nada reacionário, e sim revolucionário, levou

por escrito as suas sugestões nestes termos:

“Se eu tivesse de dar meu voto, sem atender a outras considerações que não as de

caráter puramente ideológico, opinaria por uma pequena Assembléia, técnica, profissional,

organizada por meio de representação de classe. Mas, bem compreendo que estamos em um

período de transição entre o sistema individualista-democrático e um regime novo absorvido

por preocupações sociais e cuja estrutura política tem caráter eminentemente prático, que não

permite ilusões a respeito da eficácia dos grandes parlamentos constituídos pelo sufrágio

universal. De sorte que temos de aceitar um regime misto, de transição, que acompanhe a

revolução sem desprezar interesses gerais ainda preponderantes. Por isso transigindo diante de

tais imperativos, voto por uma Assembléia só, com dupla representação, uma política e outra

de classe, com funções conjugadas e número reduzido e limitado de membros”.

Deu esse seu voto ainda na sessão de 28 de novembro de 1932, no primeiro mês

dos trabalhos”. (23)

O princípio do encaminhamento técnico dos problema seria decididamente

universalizado, num primeiro momento com pleno sucesso no âmbito da polícia educacional e

da questão salarial.

Em matéria educacional, Vargas buscou deliberadamente o consenso dos técnicos,

através da Associação Brasileira de Educação. Essa entidade havia sido criada em fins de

1924 e desenvolvera, nos anos seguintes, uma grande atividade no sentido de unificar o ponto

de vista dos educadores acerca dos diversos temas relacionados à questão. Realizaram-se

sucessivos inquéritos e debates, além de conferências nacionais em 1927, 1928 e 1919. (24)

Com o advento da Revolução de 1930, os educadores acham-se divididos a propósito da

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faculdade de ministrar o ensino religioso nas escolas públicas. Com o objetivo expresso de

tentar uma conciliação, o governo patrocina um encontro no Rio de Janeiro (IV Conferência

Nacional de Educação, dezembro de 1931), que não chega a alcançar resultados positivos.

Ainda assim, o governo solicita à Associação um anteprojeto de Plano Nacional de Educação,

com vistas ao que se convoca a V Conferência, em fins de 1932.

No conclave de 1936, discute-se a organização dos Conselhos e Departamentos de

Educação, a partir de documento elaborado por Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Fernando de

Azevedo e Celso Kelly. A discussão é presidida diretamente pelo ministro da educação, à

época Gustavo Capanema. Assinale-se que a sessão inaugural desse encontro contaria com a

presença do próprio Getúlio Vargas.

Ainda no mesmo ano esse Ministério promoveria um inquérito entre educadores

acerca do Plano Nacional de Educação, em que se perguntava: Como pode ser definido o

plano nacional de educação? Qual deve ser a sua compreensão?

Enquanto isto, a radicalização política, entre os educadores, prossegue intensa.

Todos os temas são apropriados pelas facções radicais em luta e assumem logo conotação

política extremada. Num dos congressos da ABE, em Fortaleza, chegou inclusive a haver um

tiroteio, tamanha a exacerbação dos ânimos.

A partir de determinado momento vê-se claramente que o Ministério da Educação

abdica do consenso dos educadores sem renunciar ao suporte técnico que deseja dar a suas

iniciativas. São recrutados, para constituir suas equipes, diversos técnicos, a frente Lourenço

Filho. Em 1938 é organizado o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e, em 1944,

a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.

O recrutamento dos técnicos de mais alta qualificação existentes no país, se

permitiu o adequado equacionamento de vários problemas da educação brasileira, e as

soluções de muitos deles, a exemplo da organização da universidade, traduziu-se igualmente

no acentuado revigoramento do patrimonialismo-modernizador. Contribuiu igualmente para

facultar-lhe significativa elaboração teórica.

Lourenço Filho, balanceando as realizações daquele primeiro período

governamental de Vargas, teria oportunidade de indicar:

“Por quase um século, pareceu sempre aos nossos estadistas que a intervenção do

governo central, em matéria de educação pública, significaria coerção às tendências liberais e

democráticas, dirigidas mais num sentido formal de autonomia e representação, que num

sentido funcional de habilitação do povo ao exercício dessa mesma autonomia e dessa mesma

representação. E é curioso que, admitindo-se aquela intervenção, ao menos em parte, nos

objetivos e formas do ensino secundário e superior, tivesse havido sempre oposição e

resistência à disciplina que imprimisse ao ensino primário caráter nacional. Como deveria

ocorrer em relação a muitos outros aspectos da vida do país, a mudança de regime, em 1930,

sucedendo a um movimento de opinião nacional, deveria colocar o problema em outros

termos. A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, logo após o estabelecimento do

governo provisório, assinala, com efeito, a afirmação de uma nova consciência do problema

educacional do país.” (25)

Com o respaldo de eminentes técnicos, o Estado agora se atribui múltiplas

responsabilidades em matéria educacional.

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82

Estabelece-se expressamente que a fixação das diretrizes da educação nacional é

da competência privativa da União. A educação é conceituada como instrumento ao serviço

da unidade moral e política da nação, como de sua unidade econômica. A escola é obrigada a

realizar o ensino cívico, fixando-se como primeiro dever do Estado o ensino primário, o

ensino pré-vocacional e profissional. Todo o sistema educacional tem por finalidade preparar

para o trabalho, que se define como dever social. O ensino primário torna-se obrigatório e

gratuito.

Fixam-se metas. Balanceiam-se resultados.

Conclui Lourenço Filho: “No atual momento, a expressão educação nacional

possui um sentido e uma forma que, ainda há poucos anos, não lograva despertar ou

transmitir”.

A questão salarial – que é a ponta de lança da conflituosa questão trabalhista, cuja

magnitude iria dar ao capitalismo um rumo totalmente diverso do preconizado pelas teorias

socialistas do século XIX – seria submetida gradativamente a mecanismos técnicos, primeiro

concebendo uma legislação abrangente e, depois, organizando a Justiça do trabalho. Os

sindicatos passariam a se constituir em peças dessa engrenagem.

Esse mecanismo foi analisado com perspicácia e profundidade por Evaristo de

Moraes Filho. Observa desde logo:

“Quando eclodiu a 3 de outubro, encontrou a revolução em vigor cerca de uma

dúzia de leis trabalhistas; numerosos projetos de leis no Congresso Nacional, inclusive um

Código de Trabalho; a reforma constitucional de 1926, dando competência privativa e

expressa à União para legislar sobre o trabalho; o Brasil já filiado à OIT desde sua fundação; a

Comissão de Legislação Social, na Câmara, desde 1918. Grande era o número de entidades

sindicais, com as mais variadas e às vezes pitorescas denominações. O movimento social,

mormente a partir de 1917, era intenso e atuante, com greves, violências, reivindicações,

expulsão de líderes estrangeiros e prisões de toda ordem. Funcionavam ou haviam funcionado

os Partidos Comunista e Socialista, com publicações próprias e representantes no Congresso.

Da agitação participavam intelectuais, jornalistas, escritores, professores, com decididas

tomadas de posição, revolucionárias ou reacionárias, mas tudo significando vida e presença.

Não foi um país morto e parado que o movimento de 30 surpreendeu, muito pelo

contrário”. (26)

Vargas criaria o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e iria promover, no

que respeita ao trabalho, a exemplo do que se fizera na educação, o entendimento

eminentemente técnico do tema. Chegou-se até a promover um estudo denominado

“organização científica do trabalho”, tendo se desincumbido da tarefa, por encargo do

ministro, uma comissão integrada por Joaquim Pimenta, Raul Azedo e F. Luderitz, que

recomenda um sistema integrado de formação profissional. (27) Pode-se dizer que, numa

certa medida, a intenção era análoga no que respeita à organização sindical, tanto que a

legislação pertinente seria encomendada a dois conhecidos lutadores em prol do

reconhecimento da magnitude da questão social: Evaristo de Moraes e Joaquim Pimenta.

Numa certa medida porquanto aqui o comtismo deixaria indicações expressas, a famosa

“incorporação do proletariado à sociedade moderna” que iria cunhar o encaminhamento desse

problema num sentido eminentemente paternalista. Evaristo de Moraes Filho observa que, na

exposição de motivos do decreto que disciplina a organização sindical, da autoria de Lindolfo

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83

Collor, como Vargas educado sob o castilhismo, não falta sequer uma citação de Comte, de

cuja doutrina diz o seguinte: “Guiados por essa doutrina, nós saímos fatalmente do empirismo

individualista, desordenado e estéril, que começou a bater em retirada há quase meio século,

para ingressarmos no mundo da cooperação social, em que as classes interdependem uma das

outras e em que a idéia de progresso está subordinada à noção fundamental da ordem”.

Evaristo de Moraes e Joaquim Pimenta nutriam-se de outras inspirações, como

assinala Evaristo de Moraes Filho:

“Socialistas ambos, democratas, por uma sociedade aberta e pluralista, levaram

para a norma jurídica a experiência acumulada ao longo dos anos. Pensavam que havia

chegado o momento da vitória final, fazendo do Estado o aval e a garantia das reivindicações

dos trabalhadores. De um sindicalismo de oposição, procuraram instituir um sindicalismo de

controle, integrando o sindicato no Estado, não vendo neles rivais de soberania, mas, antes,

aliados no encaminhamento da longa e ampla reforma social que se iniciava.” (28)

Com o ambiente político instaurado na década de trinta, notadamente a

radicalização e o virtual domínio da cena pelos agrupamentos totalitários, dá-se a

convergência da inspiração técnica e dos propósitos paternalistas. Avançar-se-á doutrina de

que os sindicatos constituem pessoas jurídicas de direito público e, portanto, revestem-se da

condição de “delegado do Estado, incumbido de funções especiais do Estado e, em

conseqüência, condicionado, controlado, fiscalizado e mesmo orientado pelo Estado”.

De posse do controle dos sindicatos, o Estado acabaria reduzindo a questão

salarial a uma fórmula, para ser discutida e negociada em termos eminentemente técnicos. Os

demais reclamos da questão social seriam paulatinamente enquadrados no mesmo espírito,

sob o manto protetor da Justiça do trabalho.

A solução ensejada por Getúlio Vargas reforçou extremamente a tradição

patrimonialista porque a emergência de um sindicalismo ativo teria talvez contribuído para o

estabelecimento e a consolidação do sistema representativo e democrático. Daí essa

apreciação conclusiva de Evaristo de Moraes Filho:

“As tendências atuais manifestam-se no mesmo sentido. O sindicato mantém-se

associado do Estado, delegado de algumas de suas funções, seu órgão técnico e consultivo,

jurando e cumprindo fidelidade ao regime. Participando, não como órgão de luta e de

oposição, nos organismos técnicos, administrativos e judiciários do Estado, vive da

contribuição compulsória cobrada pelo Estado a todos os integrantes da categoria, exercentes

de qualquer atividade privada remunerada. O índice de sindicalização é diminuto, decidindo-

se matérias da maior relevância, tais como convenção ou dissídio coletivo, com o número

mínimo exigido por lei, e, ainda assim, em segunda ou posteriores convocações. Nunca

tivemos, nem temos a tão apregoada sindicalização em massa. O peleguismo continua, mas

não raro com antigas e tradicionais figuras dos quadros sindicais brasileiros”. (29)

É na década de trinta, portanto, que a administração assume esse papel de

promotor da técnica nas diversas esferas da atividade governamental. O propósito de dar esse

cunho à ingerência estatal em matéria educacional e trabalhista seria igualmente transposto

para a tarefa legislativa. Depois de fechado o Congresso, em 1937, leva-se a cabo no país uma

ampla experiência de legislação sob o primado de critérios técnicos, criando-se comissões

especiais para elaborar leis e decretos no âmbito do Ministério da Justiça e nos estados.

Page 84: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

84

Nesse afã de substituição da política pela técnica, Vargas há de ter-se dado conta

da relevância das questões econômicas, o que acabaria levando-o a atribuir ao Estado, como

missão precípua, a promoção da racionalidade nessa esfera. Vejamos as dimensões que essa

temática chegou a assumir.

Até a revolução de 1930, a interferência do Poder Público nas transações com o

exterior limitava-se à manipulação das tarifas aduaneiras. A partir de então, estabelece-se a

ingerência na negociação da moeda estrangeira. De início instaura-se o monopólio oficial do

câmbio. Em seguida, no período 1934/1937, os exportadores são obrigados a vender ao Banco

do Brasil apenas 35% das cambiais em seu poder. O Estado Novo restaurou o monopólio e, a

partir de 1939, instituiu os mercados oficial (alimentado por 30% das cambiais obtidas pelos

principais produtos de exportação), livre especial e livre. A centralização das emissões pelo

Banco do Brasil, no decênio anterior, é agora consolidada. Em 1931,negocia-se um “funding-

loan”. A política de restrição às importações é sistematizada. Esse conjunto de tarefas e

atribuições iria dar ensejo à criação, através de decreto de fevereiro de 1945, da

Superintendência da Moeda e do Crédito, precursora do Banco Central. É muito sintomático

que os serviços dessa superintendência somente tinham sido estruturados em 1953, no

segundo governo Vargas. (30)

Datam do mesmo período as primeiras operações de intervenção direta do Estado

na economia, das quais a mais importante corresponde à decisão de implantar uma usina

siderúrgica, afinal efetivada em Volta Redonda, tendo sido inaugurada em 1946. O processo

de implantação dessa indústria de base no país é bem conhecido. Mas convém lembrar que

não se cogitou desde logo da hipótese de fazê-la diretamente pelas mãos do Estado nem muito

menos de um programa de industrialização. Quando Vargas criou, em julho de 1934, o

Conselho Federal de Comércio Exterior, seu objetivo explícito era tratar diretamente com

especialistas e representantes classistas a fim de conciliar interesses em jogo mediante o

equacionamento de soluções técnicas. Nesse Conselho é que foi amadurecendo a idéia de

tornar seletivas as importações e de promover a sua substituição. Constituiu-se, em seu

interior, uma Comissão Especial para estudar o problema do aço que, a partir de 1939, lutou

por vincular exportações de minério, que se pretendia fossem tornadas monopólio estatal, à

construção de uma usina cuja posse também ficaria em mãos do Estado. Segundo essa

hipótese, as exportações de minério se efetivariam numa primeira etapa, para pagar a

importação de equipamento e, na etapa subseqüente, de operação da usina, as compras

externas de carvão. (31)

Foi portanto o empenho de equacionar os problemas políticos em termos técnicos

que levaria Vargas a dar ao Estado a atribuição de promover a racionalidade econômica. A

intervenção direta na economia seria uma decorrência de tal diretriz.

O castilhismo cogitara da intervenção direta do Estado na economia mas de forma

bastante restrita, conforme se pode ver da manifestação adiante, de Borges de Medeiros:

“A administração direta de alguns serviços industriais, quando de utilidade

pública, obteve entre nós a consagração vitoriosa dos fatos e o assentimento geral. É a

municipalização, quando se trata de serviços urbanos, como os de água, esgotos, luz, energia

elétrica, etc.; é a socialização quando os serviços são de interesse estadual. Presidindo o livre

jogo das forças econômicas, compete ao Estado exercer uma ação reguladora, na medida das

necessidades indicadas pelo bem público. Deriva-se dessa concepção o princípio que

aconselha a subtrair da exploração particular, privilegiada, tudo quanto se relaciona com o

interesse da coletividade: é a socialização dos serviços públicos, servindo essa designação

Page 85: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

85

genérica para exprimir que a administração de tais serviços deve estar a cargo exclusivamente

do poder público”. (32)

E possível que os engenheiros militares que assessoravam Vargas e o levaram à

solução intervencionista do problema do aço, tivessem conhecimento das idéias difundidas na

Escola Politécnica por Aarão Reis (1853/1936). Este, em seu magistério e no manual de

economia política que elaborara e fora adotado na Escola (Economia política, finanças e

contabilidade. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918) tinha uma visão bastante ampla da

intervenção do Estado na economia, conforme tivemos oportunidade de indicar. Contudo,

Vargas terá fundido numa só as duas vertentes de inspiração positivista, a castilhista e a

intervencionista do domínio econômico.

Podemos portanto concluir que o castilhismo corresponde à filosofia política que

inspirou o Estado Novo. Fiel a essa inspiração, Vargas menosprezava o sistema representativo

e a instituição parlamentar, que o simbolizava. Plenamente identificado com os ensinamentos

castilhistas, acreditava que o governo, contemporaneamente, tornara-se uma questão de

competência. Seu exercício, contudo, não mais se faria em vista do aprimoramento moral da

sociedade mas objetivando a conquista do bem-estar material. Tal é a contribuição de Vargas

ao castilhismo.

Ao fazê-lo, pode-se dizer que logrou incorporar, em definitivo, a componente

modernizadora no patrimonialismo tradicional. Depois de marchas e contramarchas, ao longo

de todo um século, o empenho modernizador torna-se componente inelutável do Estado

brasileiro. Esse projeto seria enormemente aperfeiçoado, ainda por inspiração do próprio

Vargas, em seu segundo governo, como veremos adiante. Contudo, parece atualmente mais

importante compreender como o estamento tradicional valeu-se de circunstância para

fomentar corrupção e empreguismo.

3) REPRESENTAÇÃO E CONTRAFAÇÃO: A EXPERIÊNCIA

DOS ANOS TRINTA E DO PÓS-GUERRA

a) Os grandes mitos dos anos trinta

É de toda evidência que nos começos dos anos trinta tenha vigorado no país um

clima de ampla liberdade. Essa circunstância, entretanto, não propiciou nenhum debate maior

se por isso entendermos o empenho esclarecedor. O radicalismo vigente tudo reduzia a

slogans. No plano da análise política é neste decênio que se estratifica o paradigma

dicotômico, para que aponta Wanderley Guilherme dos Santos.

Duas crenças adquirem no período grande vitalidade, incorporando-se, a bem dizer, ao

conjunto de plataformas políticas de todos os ciclos subseqüentes. A primeira delas consiste

em afirmar que o liberalismo não resolve o problema social. Essa idéia não resultou de uma

avaliação amadurecida do sistema liberal. Saiu pronta e acabada de nossa tradição

republicana, no momento em que, pareceria, devêssemos encontrar as causas de sua

incapacidade para assegurar estabilidade política equivalente à alcançada no Segundo

Império.

A outra crença não tem uma formulação afirmativa. Resume-se ao menosprezo

pelos partidos políticos. Estes, como se sabe, incluem-se entre os principais desdobramentos

Page 86: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

86

da doutrina liberal clássica. Na medida em que, com a República, nos distanciamos da

evolução do liberalismo europeu, sem dispormos, no Império brasileiro, de experiência real na

matéria, a doutrina do Partido Político reduziu-se à consagração do papel que acabou

representando entre nós. Simples instrumento para preservar o poder em mão de determinadas

facções das elites estaduais, já que se abdicara de qualquer veleidade em matéria de partido

nacional.

Os dois mitos devem ser contemplados mais de perto.

Ganha corpo a idéia de que o liberalismo clássico teria sido incapaz de defrontar-

se com a questão social. Não se trata propriamente de uma resultante da propaganda de cunho

totalitário, que se corporifica de modo acabado no mesmo período. A propaganda extremada

tende sempre a galvanizar apenas os agrupamentos minoritários. Enquanto o convencimento

de que o sistema liberal seria elitista e infenso à elevação social das grandes massas tornar-se-

ia, desde então, lugar-comum no país a ponto de que os próprios liberais acabassem adotando-

o como premissa. (33) Não deixa de causar espanto o silêncio que paira naquele período sobre

as idéias de Keynes como o fato de se haver consolidado aquela certeza, em que pese ter sido

precisamente os sistemas liberais que erigiram, com exclusividade na história da humanidade,

uma sociedade onde o bem-estar material se difundiu entre a quase totalidade de seus

membros e não apenas entre os grupos dominantes, a exemplo das civilizações anteriores.

Nem se diga que se tratava de uma apreciação valorativa. Esse aspecto nem foi trazido a

debate, pelo menos numa situação de maior destaque. Não se adotou como premissa maior a

hipótese de que o sistema liberal seria alienante, conduziria a privilegiar a dimensão material

dos homens, etc. mas que a maioria estava condenada a viver com salários de fome, privada

de escolas e de assistência médica, etc.

Na década de trinta, os liberais brasileiros entregaram aos agrupamentos

totalitários – e sobretudo aos castilhistas no poder – a bandeira da questão social. A ênfase

nesse aspecto parecia-lhes, e com razão, apenas uma faceta da arenga totalitária.

Empenharam-se a fundo na adoção dos mecanismos capazes de assegurar a lisura dos pleitos

certos de que, de sua consolidação, resultaria o adequado equacionamento dos grandes temas

que efetivamente estivessem preocupando a nação. Tudo mais foi considerado simples

diversionismo. Aceitaram portanto o desafio em termos dicotômicos. Mais precisamente:

agarraram-se ao aspecto formal, a vista de que a invocação do conteúdo se fazia para eliminar

a liberdade.

A crítica dos defeitos do liberalismo clássico não se constituía entretanto em

monopólio dos grupos totalitários. Na década de trinta, precisamente, o liberalismo clássico

experimenta uma grande transformação, que se pode resumir como segue.

No período subseqüente à sua formulação originária, por Locke, o liberalismo, no

aspecto político, incorporaria duas dimensões significativas: a idéia democrática, isto é, a

representação assumindo forma democrática de que não dispunha, e a estruturação dos

partidos políticos como instrumentos para a configuração de “zonas de interesses”. Dessa

componente política tratar-se-á logo adiante.

No ciclo de sua formulação original incorporaram-se ao sistema liberal as

doutrinas econômicas clássicas, cuja essência cifrava-se no laissez-faire. No período

contemporâneo formula-se um novo tipo de liberalismo econômico, que preconiza a

intervenção do Estado na economia, preservador os institutos tradicionais (representação e

liberdade política), bem como as regras fundamentais da chamada economia de mercado. De

Page 87: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

87

sorte que os liberais brasileiros, se não tivessem sido levados a circunscrever suas

reivindicações a uma plataforma exclusivamente libertária consagrando a perda dos vínculos

que se mantinha, no século XIX, com o pensamento europeu, poderiam fazer causa comum

com os críticos da economia liberal, evitando que, dessa premissa, se inferissem conclusões

totalitárias.

Seria extemporânea, nesta oportunidade, a pretensão de resumir a teoria

keynesiana. Contudo, torna-se imprescindível chamar a atenção para alguns de seus aspectos,

a fim de que se possa aquilatar do grande isolamento, no que se refere à evolução dessa

doutrina, a que chegou o liberalismo brasileiro na década de trinta.

Segundo Keynes, o Estado Liberal é responsável pela manutenção de determinada

taxa de ocupação da mão-de-obra, reformulando nesse particular a doutrina clássica acerca do

desemprego. Para que tal se dê, incumbe-lhe estimular os investimentos. Neste sentido, deve

cuidar sucessivamente da redução da taxa de juros, a fim de que as economias (poupanças)

assumam de preferência a forma de inversões. Uma adequada taxa de juros seria sempre

inferior à menor remuneração no mercado de capitais. Tendo a experiência evidenciado que a

simples manipulação desse mecanismo (taxa de juros) revelou-se insuficiente para manter o

nível das inversões, conceberam-se as formas de transferir recursos ociosos para as mãos do

Estado, a exemplo da taxação progressiva das rendas. Em síntese, o liberalismo abandona o

laissez-faire e concebe modalidades de intervenção econômica estatal, preferentemente

segundo mecanismos indiretos.

O último capítulo da Teoria Geral contém um enunciado sintético das

proposições keynesianas, batizadas por Prebisch (34) de filosofia social, de que cumpre

destacar o seguinte:

1) os defeitos fundamentais da economia capitalista consistem em não haver alcançado a

plena ocupação e em coexistir com uma arbitrária distribuição da renda e das riquezas. O

último aspecto é em parte justificado por motivos humanos e psicológicos. Pode-se

inclusive admitir que o incentivo do lucro há de desviar energias que de outra forma seriam

canalizadas para a crueldade, a ambição de poder e outros defeitos da criatura humana.

Contudo, semelhante incentivo provavelmente não precisaria ser tão forte, mesmo que não

se cogite do projeto utópico de modificar a natureza humana;

2) o adequado equacionamento da questão dos juros deve contribuir para a minimização de

pelo menos um dos defeitos antes apontados e, eventualmente, criar condições para que a

sociedade possa, a longo prazo, enfrentar o segundo tema. Trata-se de que, ao contrário do

que supunha a economia clássica, não são requeridas altas taxas de juros a fim de provocar

a necessária poupança. A ação sobre a taxa deveria desenvolver-se até que o custo do

capital chegasse a ser idêntico ao dos bens de consumo, eliminando-se a figura do

investidor sem funções e, por essa via, o poder do capitalista para valer-se da escassez de

capital;

3) a consecução de semelhante objetivo requer que o Estado assuma certas atribuições que

tradicionalmente pertenciam à iniciativa privada, tratando de influir sobre o

comportamento do sistema através da tributação, da taxa de juros e de outras medidas. Isto

não significa entretanto que se deve chegar à socialização dos meios de produção;

4) trata-se de conseguir a manutenção de todas as vantagens do individualismo (eficiência,

proveniente da descentralização das decisões, e liberdade pessoal), eliminando seus

Page 88: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

88

defeitos. O Estado totalitário resolveu o problema do desemprego às custas da eficiência e

da liberdade. O Estado liberal deve livrar-se do mal sem perdê-las e,

5) se bem as guerras provenham de diversas causas, não se deve subestimar o papel que nelas

desempenha a luta pelos mercados, impulsionada pelo desemprego. Sua eliminação,

eventualmente, poderia contribuir para a manutenção da paz.

A nova doutrina do liberalismo econômico, se encontrou resistências nos anos

vinte, na década de trinta começa a ganhar a adesão de grupos políticos dominantes nos países

capitalistas. É nesse sentido que se formula, sob sua inspiração, o New Deal americano. Tal

circunstância em nada iria influir na conjuntura brasileira.

Em vista do clima vigente, os liberais concentrariam suas energias no sentido de

assegurar que os pleitos eleitorais fossem cercados de garantias quanto ao seu desfecho

legítimo, eliminando-se a praxe da chamada “eleição a bico de pena” nos bastidores da Mesa

da Câmara dos Deputados. De sua luta resultaria uma conquista notável, apontada nestes

termos por Edgar Costa:

“A revolução política de 1930, invocando com sua principal justificativa a fraude

e corrupção eleitorais, que minavam a própria substância do regime democrático, deixou,

inegavelmente, como a sua melhor conquista, a reforma do sistema eleitoral, iniciada com o

Código de 1932.

O ponto culminante dessa reforma foi a instituição da Justiça Eleitoral que, acima

dos interesses partidários, se erigiu como a mais lídima garantia da verdade e da legitimidade

do voto, isto é, da realidade do sufrágio popular e, conseqüentemente, da consolidação

daquele regime. A essa Justiça especial, com a atribuição de proceder à apuração dos pleitos,

foi conferida a de proclamar os eleitos, abolindo-se assim a fase de reconhecimento de

poderes até então exercido pelos próprios órgãos legislativos, prática que vinha deturpando a

seriedade e a verdade das eleições. (35)

Inexistia entretanto a nítida compreensão de que a Justiça Eleitoral, embora peça

essencial, não pode substituir toda a cadeia, de que faz parte. Do ponto de vista da doutrina

clássica faltava a organização do corpo eleitoral em áreas geográficas limitadas. Do ponto de

vista da experiência ulterior, não se tinha entendimento apropriado do que fossem os partidos

políticos.

Nos primórdios da doutrina liberal, tinha-se presente que a representação era de

interesses. Silvestre Pinheiro Ferreira, como vimos, supunha mesmo que os vários interesses

poderiam ser agrupados em três segmentos, a que chamou de estados, inspirando-se

certamente na tradição de dividir a sociedade em nobreza, clero e terceiro estado. A prática do

sistema representativo indicou que a identificação e plena configuração dos interesses não se

resume a esquema tão simples. Seu extremo fracionamento facilitou, por exemplo, o

predomínio de um líder graças ao recurso à corrupção. O primeiro dos grandes “premiers”

ingleses, Robert Walpole (1676/1745) manteve-se no poder por mais de vinte anos (1721 a

1742) graças a esse expediente.

Na prática do sistema representativo – que não se dissocia, tenha-se presente, da

base territorial limitada, posteriormente denominada de distrito eleitoral – eleitores e

representantes foram sendo constrangidos a circunscrever zonas ou constelações de interesses.

Hierarquizaram-se aspirações. Neste sentido atuaram dois mecanismos: a eleição majoritária e

o partido político.

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89

O Código Eleitoral de 24 de fevereiro de 1932 constitui legítima expressão do

pensamento liberal e corresponde sem dúvida a uma conquista dessa corrente, embora

contivesse disposição relativa à representação classista. (36) Corroborando o abandono da

experiência européia, o novo instrumento legal consagra estrutura partidária extremamente

frágil. Não são muitas as exigências requeridas para obtenção de registro nem essa é uma

condição inelutável porquanto se admitia a estruturação, em bases provisórias mas podendo

concorrer aos pleitos, mediante a congregação de 500 eleitores. As associações de classe

legitimamente constituídas podiam igualmente desfrutar das prerrogativas atribuídas aos

partidos.

Assegura-se a representação proporcional. cada Estado – ou circunscrição

eleitoral mais restrita para as eleições dos níveis correspondentes – apuraria o respectivo

quociente eleitoral, resultado da divisão entre o número de votantes e o número de lugares a

preencher. Estariam eleitos, desde logo, todos os candidatos que tivessem alcançado o

quociente eleitoral. As sobras seriam rateadas proporcionalmente entre as legendas inscritas.

As legendas podiam se constituir de um único partido, de uma aliança de partidos ou ainda

por um grupo de cem eleitores. não se podia exigir mais em matéria de preocupações

fracionistas.

O resultado do novo código seria o abandono do modelo uniforme dos Partidos

Republicanos Estaduais, vigente na República Velha. Em quatro Estados – Maranhão, Ceará,

Rio de Janeiro e Minas Gerais – dois partidos elegem representantes à Constituinte,

originando-se de partido único a representação dos demais. em São Paulo e no Rio Grande do

Sul havia igualmente dois partidos que entretanto formaram uma legenda única.

Embora fadada ao fracasso, essa experiência não chegou a mostrar sua inteira

fragilidade. O processo político em curso escapava inteiramente aos limites que a corrente

liberal pretendera estabelecer. Tinha lugar na radicalização crescente dos grupos totalitários

em choque e no empenho oficial em dar tratamento técnico às reivindicações e aspirações dos

diversos setores. E acabaria desembocando no fechamento do Congresso, em novembro de

1937.

b) O sucessivo desvirtuamento da representação

A queda do Estado Novo coincidiu com a derrota do fascismo na Europa. Parecia

que a humanidade havia ingressado numa fase áurea da democracia. Tendo se aliado ao

Ocidente, a Rússia adquiriu imerecidamente uma auréola democrática. Acreditou-se inclusive

que havia alcançado um acréscimo real ao que se dizia ser meramente formal no Ocidente. E

não a simples supressão da democracia em nome do pretenso conteúdo social.

A circunstância iria atrair para a esfera do Partido Comunista parcelas

significativas da intelectualidade brasileira impedindo que florescesse o socialismo de

inspiração democrática e ocidental.

Os liberais, por seu turno, queriam a todo custo o poder da Lei e do Parlamento.

Mas foram inspirar-se na Constituição de 1934, isto é, na admissão do fracionamento

partidário, na eleição proporcional e na ausência de limites geográficos factíveis para as

circunscrições eleitorais. E como esse sistema logo fracassaria no que consideravam o seu

objetivo maior – impedir a volta do ditador ao poder – evoluíram para o franco abandono dos

ideais liberais ou a simples resistência passiva, buscando paralisar o Executivo mediante a

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90

lentidão do processo legislativo. Inventou-se mesmo um expediente sem a mínima base ética:

as alianças de legenda. Quase vinte anos de experiência representativa iriam desaguar no mais

retumbante fracasso.

Reconheça-se desde logo que o pensamento liberal logrou consolidar a grande

conquista do Código de 1932 que era a Justiça Eleitoral. A Constituição de 1946 a consagraria

como parte do Poder Judiciário. Desde essa época a instituição deu passos significativos para

a lisura dos pleitos, graças sobretudo à introdução da cédula oficial. Balanceando essa

experiência, no livro A legislação eleitoral brasileira, com a autoridade de quem a viveu

diretamente, Edgar Costa conclui que se chegou à integral decência no alistamento, na

realização das eleições e na apuração de seus resultados.

A manutenção do princípio da eleição proporcional iria entretanto levar ao

extremo fracionamento partidário. A par disto, privado do direito à existência legal, o Partido

Comunista popularizaria a consigna de que as eleições se dão para “conscientizar”. Assim,

uma parte da Nação iria sendo acostumada à idéia de que o processo democrático deve ser

usado para outros fins que não aqueles a que está destinado. Como nessa parcela se incluíam

grupos representativos da elite universitária, a intelectualidade ia sendo sucessivamente

abastecida de segmentos desinteressados na efetivação de uma crítica construtiva à

experiência brasileira do sistema representativo.

Enquanto isso florescia o fenômeno das alianças de legenda, que parece ter sido

inteiramente perdido de vista nas análises posteriores. Contudo, esse mecanismo contribuiu

para agravar os defeitos e incoerências do sistema.

Mesmo admitindo que, a longo prazo, o sistema proporcional seria capaz de

conduzir a maiorias estáveis e não ao sucessivo fracionamento, como de fato ocorria, a praxe

das alianças de legenda levou à acentuação extrema do desfiguramento da representação

como bem observou Pompeu de Souza a propósito das eleições de 1962:

“Parece-nos, pois, tão faccioso afirmar um incremento de tendência esquerdista no

eleitorado, por força da maciça ascensão da bancada do PTB, quanto pretender conclusão

oposta, à base do considerável aumento de representação da UDN. Não se pode esquecer que

mais de três quartas partes da bancada do PTB e quase três quartos da UDN resultam, não das

legendas partidárias de cada um, mas das legendas de alianças, nas quais, muitas vezes, votos

petebistas elegeram udenistas e vice-versa. No particular, a única tendência que parece

suscetível de afirmação é a da polarização ideológica que vem substituindo a fisionomia

tradicional das bancadas pela das frentes parlamentares.” (37)

Nas eleições de 1962, as alianças de legenda tiveram quase cinco milhões de

votos, contra cinco milhões e setecentos mil dados diretamente aos quatro maiores partidos. A

ascendência constante de tais alianças pode ser comprovada pelos dados adiante transcritos,

coligidos por Pompeu de Souza:

PARTIDOS

Ano Alianças PSD UDN PTB PSP

1950 1.552.636 2.068.405 1.301.489 1.262.000 558.792

1954 2.496.501 2.136.220 1.318.101 1.447.784 863.401

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91

1958 4.140.655 2.296.640 1.644.314 1.830.621 291.761

1962 4.769.213 2.225.693 1.604.743 1.722.546 124.337

No pleito de 1962, quase a metade da Câmara dos Deputados se constituiu através

das alianças. A gravidade do evento é que estas não se instituíam para congregar organizações

afins mas para dar curso a simples acordos eleitorais sem maiores conseqüências. É ainda Pompeu de Souza quem observa:

“Essa gravidade maior do fenômeno: antes que se houvesse dado oportunidade,

aos partidos nacionais improvisados, de conquistarem consistência e tradição, introduziu-se,

na sistemática eleitoral do regime, o instrumento da desintegração do que já nascera tão pouco

integrado. Introduziu-se uma entidade mortal à unidade e ao próprio organismo dos partidos

nacionais, cada vez menos nacionais e até cada vez menos partidos, por força mesmo dessa

intromissão: a aliança eleitoral de legendas. Porque o grave de tais alianças é que elas são

estritamente eleitorais, ou melhor eleitoreiras: possuem apenas causa, sem produzirem, nunca

efeito ou conseqüência. Existem apenas para efeito de registro e apuração eleitorais. Nascem à

boca das urnas e morrem à porta das Casas legislativas. Escamoteiam, do mandante, o

mandado. Perante o eleitorado, o que existe, para a escolha do mandatário, é a aliança; para as

Câmaras, onde o mandato será exercido, só existe o partido. Daí anomalias como estas: na

última eleição, o PSD elegeu apenas 79 deputados federais, mas conseguiu uma bancadas de

122; o PTB, elegendo 63, alcançou 109; a UDN, com 55, chegou aos 94; e assim por diante.

O fenômeno em causa aparece com clareza no processo final de composição das

bancadas na Câmara eleita em 1962:

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92

número de

deputados

Partidos Eleitos (1) Acrescidos (2) Bancada Final

PSD 79 43 122

PTB 63 46 109

UDN 55 39 94

PSP 6 16 22

PDC 1 19 20

PTN 0 11 11

PST 2 6 8

PR 6 - 13 5

PRP 1 3 4

PL 2 1 3

PSB 0 4 4

MTR 1 3 4

PRT 0 3 3

Totais 216 193 409

(1) Diretamente pela legenda partidária

(2) Graças às alianças de legendas

(3) Subtraído

Caminhou-se pois no sentido inverso ao das intenções declaradas. O

aprimoramento sucessivo da Justiça Eleitoral, o número crescente de novos eleitores alistados,

enfim, o processo eleitoral em seu conjunto não estava a serviço da representação mas de seu

desvirtuamento. A polarização totalitária em todos os períodos de nossa história, atuava em

campo livre porquanto não se lhe contrapunha um sistema autenticamente representativo. E

mesmo as resultantes do processo eleitoral, isto é, as bancadas parlamentares, acabariam

sendo atraídas àquela polaridade. Observa a propósito Afonso Arinos de Melo Franco:

“No Brasil, com a liquidação virtual dos partidos, deputados radicais se uniam, em

1963, a toda sorte de organismos espúrios, espontaneamente surgidos à esquerda e à direita:

“Frentes”, “Pactos de Unidade”, “Confederações”, “Ligas”, “Associações” (de inferiores

militares) e outras siglas de incoerente agitação e inócuas exigências à esquerda; “Ações

Democráticas”, “Ibades”, também outras “Ligas”, “Campanhas” (da mulher) e outras siglas à

direita.” (38)

Falta dizer que os liberais não souberam avaliar criticamente a própria

experiência. Desconhece-se que haja saído de seu seio condenação mais veemente do sistema

proporcional. As iniciativas em prol do voto distrital foram ensaiadas com o máximo de

timidez e o mínimo de audácia. No fundo parece ter havido uma adesão ampla e geral à tese

de que as eleições se justificam por razões as mais diversas e não pelo propósito exclusivo de

alcançar maiorias estáveis, aptas a governar. A liderança liberal brasileira perdeu de vista o

desenvolvimento da doutrina e acabaria virtualmente capitulando diante da crítica totalitária,

Page 93: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

93

de que é exemplo eloqüente o testemunho que adiante se invoca.

Milton Campos (1900/1972), que militou sempre nas hostes liberais e se considera

tenha chegado a ser um de seus líderes expressivos, ainda em 1966 supunha que o liberalismo

estivesse visceralmente ligado ao laissez-faire, fazendo caso omisso da obra de Keynes. A seu

ver, essa doutrina teria sido incapaz de promover a ascensão social das classes menos

favorecidas, parecendo esquecer-se de que essa possibilidade seria comprovada precisamente

nas grandes democracias do Ocidente. Milton Campos chega mesmo a proclamar que o

liberalismo esgotou-se no plano político, devendo preservar-se tão-somente como ingrediente

formador da consciência moral.

Afirmaria Milton Campos na aula inaugural de 1966, na Universidade de Minas

Gerais, alocução que mais tarde se divulgou com a denominação de Em louvor da tolerância:

“Em certos países, o liberalismo ficou sendo o suporte das classes dirigentes, insensíveis ou

egoisticamente hostis à ascensão humana, inspirada pela filosofia cristã da justiça social e

imposta pela civilização industrial”. Além disto, o liberalismo não buscou dissociar-se do

laissez-faire quando “a ordem natural das coisas não pode ser largada às distorções que

fatalmente lhe provocam a cobiça e as competições dos interesses egoísticos”. A esse respeito

afirma de modo taxativo: “Precisamente pela fatal inadvertência de não ver que a ordem

natural, num mundo em mudança, exigia novas providências de ordem regulamentar, foi que

o liberalismo perdeu seu lugar”. A conclusão decorre dessa tônica: “Todavia, se os partidos

liberais e a organização liberal dos Estados decaíram da missão que originariamente lhes

competiu, o princípio liberal, pelo menos como estado de espírito, pode durar e sobreviver”.

Tratar-se-ia, em suma, de preservar a tolerância, em cujo louvor é concebido o discurso. (39)

4) A INDUSTRIALIZAÇÃO PÓS-64 E SUA SINGULARIDADE

a) A formulação do projeto de modernização econômica

Na fase inicial do pós-guerra, no período do governo Dutra, a idéia de impulsionar

a modernização econômica não chega propriamente a ganhar corpo. É certo que se promove a

vinda ao Brasil das missões Cooke, Abbink e Kleine-Saks e formula-se, em 1948, o Plano

SALTE. Essa fase, contudo, caracteriza-se por uma autêntica desorientação, expressa

sobretudo na política cambial.

O novo governo estabeleceu, logo no começo de 1946, a plena liberdade na

compra e venda de cambiais. O mesmo decreto extinguiu o denominado mercado livre

especial, que disciplinava a aquisição de moeda estrangeira para viagens e remessa a título de

donativo. Mantinha-se, entretanto, o mercado oficial, alimentado por uma parcela das divisas

obtidas pela exportação, que o governo retinha. Essa restrição seria eliminada logo mais parte,

abolindo-se igualmente as taxações que ainda incidiam sobre as importações e outras

exigências (prova de venda de câmbio no licenciamento das exportações, etc.). Alegava-se, de

modo expresso, que o disciplinamento até então vigente “só se aplicava de carência de

divisas”, o que era o caso do país que havia acumulado, durante a guerra, reservas

ponderáveis no exterior.

Não decorreu muito tempo e os saldos existentes foram consumidos, seguindo-se

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94

período em que as exportações se revelavam insuficientes para sustentar o fluxo de

importações. Quando o fenômeno ocorreu, observa Knaack de Souza, “o país não dispunha de

maior experiência no disciplinamento do comércio exterior”.

Ao que acrescenta:

“Do segundo semestre de 1947 a fins de 1953 tenta-se, sucessivamente, diversas

providências no pressuposto de manter as transações sob a égide de taxas cambiais livremente

convencionadas mas que não registrassem bruscas alterações. Esse empenho – que consistia

na verdade na manutenção de taxas fictícias – fazia aparecer o fenômeno da gravosidade, isto

é, produtos brasileiros cujos custos internos ultrapassavam os preços do mercado

internacional. A circunstância sugere um artifício: importações vinculadas a exportações. A

inoperância do sistema levaria entretanto à restauração aberta dos controles de câmbio, com

ênfase no disciplinamento das importações. Inicia-se o ciclo da famosa Instrução 70. (40)

Com essa Instrução, optava-se pelo regime do subsídio direto e do

estabelecimento de categorias de importação, segundo o critério da essencialidade. Com a

efetiva organização da Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC – em 1953, é que

teria início a formulação de uma política sistemática de disciplinamento das compras no

exterior, a partir de 1958 vinculado à tarifa aduaneira “ad-valorem”, introduzida pela Lei

3.244 (conhecida como Lei de Tarifas).

O controle de câmbio tinha, a rigor, um caráter defensivo porquanto tardou muito

a que se completasse por uma política agressiva no terreno das exportações. De sorte que a

ação estatal de cunho modernizador e positivo, atuante, acabaria deslocando-se para a esfera

do que mais tarde se denominou de “planejamento”, entendido não como instância

administrativa mas como um conjunto de técnicas destinadas a assegurar a consecução de

determinadas metas.

A configuração da nova esfera é obra da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos

para o Desenvolvimento Econômico.

A Comissão Mista Brasil-Estados Unidos iniciou seus trabalhos em 19 de julho de

1951, em decorrência de acordo firmado com os Estados Unidos em dezembro de 1950.

Funcionou ininterruptamente até dezembro de 1953. Após essa data, todo o seu acervo passou

ao Conselho Técnico de Economia e Finanças que o divulgou durante o ano de 1954. (41)

Contou com a colaboração de cerca de cinqüenta técnicos “senior” brasileiros, recrutados

entre a elite acadêmica e na Administração, bem como de variado grupo de especialistas

estrangeiros.

A Comissão Mista procedeu a amplo diagnóstico da economia brasileira.

Identificou desde logo uma série de fatores favoráveis ao desenvolvimento econômico, entre

outros o aparecimento de um grupo de homens de empresa, criativos, empreendedores e

abertos a projetos de longo prazo, embora reconhecesse o predomínio das unidades familiares

fechadas; a modernização de métodos agrícolas; melhoramento em tecnologia, educação e

saúde; sensibilidade e adaptabilidade da economia a variações de preços e mercados; e

mobilidade do capital e da mão-de-obra. Mais tarde, o empenho modernizador cifrar-se-ia na

mobilização de tais ingredientes.

Em relação aos fatores desfavoráveis, a Comissão chamou a atenção para aspectos

igualmente essenciais, embora não se possa dizer que, no ciclo subseqüente se haja atentado

Page 95: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

95

para a sua significação, a exemplo do que ocorreria com as componentes favoráveis.

Os técnicos da Comissão Mista consideravam que os obstáculos ao

desenvolvimento decorriam tanto de condições naturais como de circunstâncias sociais e

culturais. Não pretenderam estabelecer qualquer hierarquia mas chamar a atenção para a

solidariedade desse conjunto.

Dentre as condições naturais, destacou-se a vigência de clima tropical exaustivo

em muitas das áreas litorâneas; o insucesso em descobrir reservas de petróleo em larga escala

ou de carvão de primeira qualidade; a formidável barreira representada pela Serra do Mar; o

fato de que os maiores rios da área central tenham seu curso na direção “errada” e, finalmente

o fato de que grande parte dos solos disponíveis achem-se sujeitos a rápida erosão.

A presença de tais fatores, por si só, não explica, contudo, a vigência do

subdesenvolvimento. As dificuldades naturais não foram superadas em decorrência de

atitudes e instituições culturais e sociais. A esse propósito afirma-se no Relatório Geral:

“Entre tais atitudes e instituições destacam-se a tradição herdada de uma

agricultura devastante e feudal, os hábitos especulativos do comércio e um sistema de

governo paternalístico. O fenecimento da classe alta, rural e feudal, da era monárquica – que

produziu, sem dúvida, notáveis estadistas e servidores públicos – e a emergência de novos

grupos de poder político e econômico não foram acompanhados por um rápido

desenvolvimento de novas atitudes em relação à educação, tecnologia e governo. A educação

continuou a orientar-se no sentido de assegurar posição social, ao invés de dar ênfase ao

treinamento técnico para tarefas agrícolas e industriais. O governo permaneceu pessoal e

paternalístico em alto grau, revelando-se todos os grupos ansiosos por auxílio e proteção

governamental.” (42)

Para fazer face a circunstâncias tão complexas a Comissão Mista recomendou a

atuação em setores muito limitados. Essa estratégia se justifica, no entendimento dos técnicos

que a integraram, pelo fato de que, se bem esse programa represente apenas uma pequena

parcela dos investimentos totais do país, “provavelmente contribuirá para a criação de uma

nova concepção de prioridades, a qual, é lícito esperar, influenciará, de futuro, os critérios de

investimentos e planejamento de todo o setor público da economia”. Assim, não se pretendeu

nada de espetacular mas o estabelecimento de um novo estilo.

O princípio essencial da atuação recomendada acha-se formulado nos seguintes

termos:

“Em qualquer programa de desenvolvimento econômico, é absolutamente vital

que se canalizem recursos, em tempo útil, em certos setores-chave cuidadosamente

selecionados. Esse princípio era de aplicação particularmente pertinente no caso da Comissão

Mista, que não tinha expectativa razoável de dispor senão de recursos limitados, quer em

moeda nacional, quer estrangeira, para o financiamento de seu programa. A manutenção de

uma disciplina de prioridades, com o fito de evitar a dispersão de recursos, implicava numa

escolha de regiões de aplicação, setor econômico e projetos individuais de maneira que se

rompessem os pontos de estrangulamento que ameaçam retardar o crescimento da indústria e

da agricultura no Brasil, e desse lugar a uma “reação em cadeia” propícia ao

desenvolvimento”. (43)

Ao longo de sua atividade a Comissão Mista atuou através destas subcomissões:

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96

1) energia elétrica; 2) transporte ferroviário; 3) transporte sobre água; 4) portos; 5) agricultura

e, 6) assistência técnica. Além do exame da situação geral de cada um dos grupos de

atividades considerados, selecionou-se o tipo de atuação mais recomendável. Para cada uma

de tais iniciativas elaborou-se o correspondente projeto. Mais tarde semelhante procedimento

seria generalizado. Na época correspondia a fato inusitado.

O projeto descrevia a situação do mercado e avaliava as condições vigentes no

atendimento da demanda. Na eventualidade de que se justificassem investimentos corretivos,

a iniciativa era concebida, do ponto de vista técnico, em seus mínimos detalhes. Seguia-se o

dimensionamento das inversões requeridas e a identificação das fontes de financiamento.

A Comissão Mista elaborou 18 projetos de reaparelhamento ferroviário; projetos

de dragagem e reaparelhamento de 16 portos; projeto de reaparelhamento da frota mercante,

construção de estaleiros e de recuperação da navegação do Prata. A preferência pela

modernização de tais setores dos transportes deveu-se à existência de estoque substancial de

capital investido, ameaçado de deterioração pela ausência de recursos para manutenção e

aperfeiçoamento, além do fato de que sua presença encontrava justificativa econômica em

diversas regiões do país.

O segundo campo de atuação prioritária era o de energia elétrica, tendo se optado

basicamente pelos projetos de geração de energia hidráulica, dimensionados e concebidos em

função das estimativas de mercado.

A Comissão recomendou reduzido número de projetos; no âmbito da agricultura

(maquinaria agrícola e armazenamento de grãos) e só dois projetos industriais. O primeiro

destinava-se a implantar a indústria de álcalis, com vistas à poupança cambial e ao

estabelecimento de um núcleos da indústria química pesada. O segundo à produção de tubos

de ferro centrifugados, produto que se considerou indispensável para a consecução de

saneamento de cidades do interior.

Em termos globais, a Comissão Mista elaborou 41 projetos prioritários, com a

seguinte distribuição dos recursos: transportes, 60,6%; energia, 33,1%; indústria, maquinaria

agrícola e armazenamento de grãos, 6,3%.

Ainda no período de seu funcionamento, a Comissão Mista promoveu a

organização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, com o propósito de

financiar o que então se denominou de “plano nacional de reaparelhamento”. Ao BNDE cabia

a mobilização da parcela de moeda nacional comprometida nos projetos antes mencionados,

tendo passado a atuar preferentemente na execução do reaparelhamento ferroviário. A própria

Comissão Mista incumbiu-se de promover a negociação de empréstimos estrangeiros, em

especial junto ao Banco Mundial (BIRD). Posteriormente essa tarefa foi transferida ao próprio

BNDE. A Comissão deu curso ainda a um programa de treinamento de técnicos brasileiros no

exterior, com vistas sobretudo à formação de uma elite familiarizada com a elaboração de

projetos e a efetivação e controle de financiamentos de longo prazo.

As idéias popularizadas pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos seriam

posteriormente incorporadas aos propósitos modernizadores do Estado. Em primeiro lugar o

entendimento de que, na ação planejada, deve-se ter presente que, sendo limitados os recursos

disponíveis, o essencial é estabelecer a necessária escala de prioridades. Outro elemento

igualmente valorizado correspondia à clara definição das fontes de financiamento e na

adequada mobilização de agências estrangeiras. Contudo, tais procedimentos seriam

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97

compreendidos e valorizados quase que exclusivamente pelo limitado número de técnicos

brasileiros que viveu essa experiência. Faltava um elemento catalisador apto a erigi-lo em

patrimônio de comunidade mais ampla. Esse elemento viria a ser o Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico, fruto, como se disse, de recomendações da Comissão Mista.

Criado em 1952, o BNDE logo conquistou posição de liderança, dando início ao

estabelecimento de normas de atuação inteiramente novas no conjunto da administração

tradicional. O essencial corresponde ao empenho de submeter certos órgãos públicos a regime

de projeto, isto é, ao imperativo de consubstanciar seus propósitos e planos num documento

que leve em conta as exigências do mercado, componha adequadamente as fontes de recursos

a mobilizar e assegure o retorno do investimento. A aplicação conseqüente desse conjunto de

princípios iria levar a que se desse preferência à gestão empresarial. Criam-se então diversas

empresas. O importante a destacar é que no seio destas algumas tiveram a possibilidade de

alcançar sucesso, em termos de economia de mercado, o que permitiu evidenciar a vitalidade

do novo segmento em emergência, mesmo quando a componente modernizadora da tradição

patrimonialista virtualmente desapareceu sob Goulart.

Finalmente o novo estilo ganharia uma outra componente através do Programa de

Metas do Governo Kubitscheck. Embora se tratasse de metas isoladas, foram considerados

temas de grande relevância, como a questão da energia, dos transportes e da indústria de base.

O BNDE que era, na prática, o gestor do programa, teria oportunidade de testar e aprimorar as

novas técnicas nos setores essenciais da economia brasileira. Tratava-se de uma etapa prévia e

inelutável, requerida por uma ação modernizadora global e interativa.

b) Principais resultados em termos de infra-estrutura

Caberia basicamente aos governos militares do período 1964/1984 implantar uma

infra-estrutura econômica e urbana que colocou o país entre as maiores economias do mundo.

Nos decênios de sessenta e setenta ocorreu modificação substancial na

distribuição da população do território nacional. Assim, em 1960, a população urbana

representava cerca de 45% do total, enquanto em 1980 moravam nas cidades

aproximadamente 70% (80,4 milhões de pessoas), tendência essa que prosseguiu no decênio

seguinte. Em que pese correspondesse ao período relativamente curto, logrou-se, em grande

medida, erigir uma infra-estrutura urbana moderna. Dos 17,8 milhões de domicílios urbanos

existente em 1980, 76% estavam ligados à rede geral de abastecimento de água e o

esgotamento sanitário adequadamente constituído beneficiava aproximadamente 7 milhões de

domicílios urbanos (40% do total).

Em 1980, o nosso país dispunha de cerca de quatro mil cidades, classificadas do

seguinte modo:

Número de habitantes nº de cidades %

Até 20 mil 3.495 87,60

20.001 a 100 mil 401 10,00

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98

100.001 a 500 mil 81 2,00

500.001 a 1 milhão 7 0,20

Mais de 1 milhão 7 0,20

Totais 3.991 100,00

Segundo o Censo de 1991, as maiores cidades, naquela data, eram as seguintes:

Mil

Discriminação Habitantes

São Paulo 9.480

Rio de Janeiro 5.336

Salvador 2.056

Belo Horizonte 2.049

Fortaleza 1.758

Curitiba 1.290

Nova Iguaçu 1.286

Campinas 846

Guarulhos 781

São Gonçalo 748

Duque de Caxias 665

Embora em algumas dessas grandes cidades se hajam formado periferias pobres e

sem condições de habitação e existam, em diversos estados, unidades pequenas sem qualquer

dinamismo e de onde as pessoas se sentem estimuladas a emigrar, o núcleo básico das cidades

brasileiras registra nível de civilização material equiparável à parcela desenvolvida do mundo.

Abrangendo o interior de São Paulo, o Norte do Paraná, o Oeste de Santa Catarina, diversas

regiões do Rio Grande do Sul, o estado de Mato Grosso do Sul, Sul de Goiás, Triângulo e Sul

de Minas, formou-se um imenso bolsão de moderna agricultura, pujantes agroindústrias e

núcleos urbanos bem-sucedidos, onde não há pedintes nas ruas e nem miséria gritante. Esse

bolsão compreende cerca de 30 milhões de pessoas (20% da população recenseada em 1991,

equivalente a 146,2 milhões). Afora esse núcleos, há pólos de progresso espalhados por todo o

país aptos a servir de base para a eliminação das grandes disparidades regionais.

Interligando esses núcleos populacionais, erigiu-se invejável infra-estrutura de

transportes, que compreende uma rede rodoviária primária – constituída de estradas vicinais e

municipais – acoplada à rede principal, esta com cerca de 200 mil km, dos quais 100 mil

pavimentados. O desenvolvimento de nosso sistema de transportes é subdividido, na obra

Brasil – uma visão geográfica dos anos 80, nas seis fases seguintes:

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99

“Fase 1 – pequenos portos dispersos pela costa brasileira, com hinterlândias

limitadas e quase nenhuma conexão entre si.

Fase 2 – início das primeiras linhas de penetração para o interior das hinterlândias

de alguns portos mais próximos das áreas de produção. Com esse processo, inicia-se a

concentração portuária.

Fase 3 – início da convergência de vias secundárias para os centros intermediários

do interior e, daí, para o porto. Há um aumento da hinterlândia e o surgimento de numerosos

centros intermediários.

Fase 4 – início da interconexão do sistema, ligação de algumas vias secundárias,

fechando circuitos de transporte entre centros no interior e os portos. Com isso gerando um

processo hierárquico de centros e criando redes convergentes para os maiores centros do

interior e para os portos mais importantes.

Fase 5 – completa-se o processo de interconexão lateral do sistema, com a

complementação das ligações entre centros de diferentes hierarquias no interior com os portos

do litoral. Nessa fase, a rede está completamente interligada.

Fase 6 – aparecimento de vias expressas e especializadas entre grandes centros,

principalmente entre os do interior e os portos ou interpostos.

Utilizando-se esse modelo evolutivo, nota-se que no período do Governo

Kubitscheck o sistema rodoviário brasileiro ingressou na fase 4, pois iniciou-se o processo de

interconexão entre as Regiões Nordeste, Sudeste e Sul, que até então possuíam entre si uma

tênue ligação rodoviária, apesar de, internamente, cada uma delas já possuir uma rede

estruturada. Essa interconexão pautou-se fundamentalmente em dois tipos de fluxos: o

primeiro, vinculado à mobilidade da população nordestina em direção ao Sudeste e o segundo,

ligado aos produtos industrializados no Sudeste que passaram a ser cada vez mais consumidos

nas Regiões Nordeste e Norte.

A fase 5 vincula-se aos três primeiros governos militares que estenderam-se de

1964 a 1974. O mecanismo de interconexão lateral toma impulso em todas as cinco regiões do

País e completa-se em 1974. Neste mesmo período, a fase 6 já havia sido iniciada,

principalmente entre algumas áreas mais produtivas do interior de São Paulo para o porto de

Santos e, também, no Paraná, da área de Londrina ao porto de Paranaguá, além de

intensificarem-se os fluxos entre os três maiores centros do Sudeste, São Paulo, Rio de

Janeiro e Belo Horizonte.

No início dos anos 80, consolida-se a sexta fase do modelo, iniciada ao final da

década de 70, pelo Governo Geisel e tenuemente mantida pelo Governo Figueiredo, apesar

dos problemas climáticos e da forte crise econômica por que passou o País, até 1985. Essa

fase corresponde à estruturação dos corredores de exportação, ao asfaltamento de eixos

troncais importantes e à interiorização, cada vez maior, das novas áreas de produção

vinculadas à agricultura de produtos de exportação”.

As fases descritas são mostradas no Mapa a seguir.

Completa-se a infra-estrutura econômica pela presença de uma rede interligada de

centrais hidrelétricas, destacando-se os sistemas de Furnas, que abrange os estados da região

Sudeste e mais o Distrito Federal e Goiás, tendo em seu interior as áreas da Cemig (Minas

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Gerais), da Light (Rio de Janeiro) e da Eletropaulo (São Paulo; a Eletro Sul, abrangendo

Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; o sistema Nordeste, capitaneada pela CHESF

(Centrais Elétricas do São Francisco) e o da Região Norte. A Usina Hidrelétrica de Itaipu,

com capacidade para gerar 12,6 milhões de kw, inclui-se entre as maiores do mundo.

Finalmente, a infra-estrutura econômica compreende ainda o serviço de

telecomunicações, que hoje mantém praticamente todo o país ligado pelo sistema DDD.

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c) A distorção básica: a estatização da economia

O fenômeno da industrialização e da modernização econômica se fez acompanhar

de uma brutal estatização da economia.

Em pesquisa realizada no ano de 1973, Gilberto Paim evidencia o fenômeno

porquanto o Estado detinha 45,8% do patrimônio líquido do mundo empresarial brasileiro

(5.275 maiores empresas não-agrícolas). Eis os resultados registrados por essa pesquisa:

Estoque Brasileiro de Capital

Segundo a Origem

Patrimônio

Setores líquido (1973) % do Nº de % do CR$ Milhões Total Empresas Total

__________________________________________________________________________

Privado Nacional 126.362,10 39,30 4.280,00 81,40

Público 147.275,60 45,80 316,00 6,00

Estrangeiro 46.421,40 14,40 618,00 11,80

Capital nacional

Gerido por empresas

Estrangeiras 1.742,10 0,50 43,00 0,80

Total 321.801,20 100,00 5.257,00 100,00

No período subseqüente a estatização seguiu seu curso. No setor de aço, por

exemplo, o patrimônio líquido das empresas governamentais somava US$ 7,6 bilhões contra

US$ 3,3 bilhões dos grupos privados. Nos anos posteriores criaram-se duas novas usinas

siderúrgicas sob hegemonia estatal (Cia. Siderúrgica de Tubarão e Açominas).

Nos começos da década de oitenta o Governo criou a Secretaria de Controle das

Empresas Estatais – SEST, que produziu alguns balanços adiante resumidos.

De acordo com o Cadastro das Empresas Estatais, elaborado pela SEST esse

universo achava-se distribuído do seguinte modo, em setembro de 1984:

Discriminação Nº de Empresas

Setor produtivo estatal 234

Entidades típicas de Governo 142

Previdência Social 6

Bancos oficiais federais 14

Concessionárias de serviços públicos 26 ______________

Total 422

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As denominadas entidades típicas de governo correspondem a simples

eufemismo, nada justificando o seu estatuto empresarial, pois não geram recursos próprios.

Seus dispêndios, em 1984, foram fixados em Cr$ 5,4 trilhões (esse valor poderia exprimir

uma ordem de valor de US$ 3 bilhões).

As empresas do setor produtivo estatal tinham, em 1983, um imobilizado

equivalente a Cr$ 71,5 trilhões (em US$ uma ordem de grande de 40 bilhões) assim

distribuídos: setor hidrelétrico 38,1%; setor siderúrgico-metalúrgico 23,2%; transportes

14,8%; extração e beneficiamento de minerais 10,7%; comunicações 8,4%; demais setores

4,7%.

De acordo com a SEST, as empresas estatais registraram, em conjunto, prejuízo

operacional de CR$ 410 bilhões (cerca de 2,4 bilhões de dólares), em 1982; no ano seguinte, o

prejuízo passou a Cr$ 1,5 trilhão (mais ou menos 2,5 bilhões de dólares). Esse prejuízo

correspondeu, em 1982, a 5,6% das receitas operacionais e, em 1983, a 8,3% das mesmas. De

um ano para outro, o déficit ficou muito acima do anterior em termos reais. Em 1982, as

receitas operacionais alcançaram a cifra de Cr$ 7,25 trilhões (com o emprego de uma taxa

cambial de Cr$ 173 por dólar, esse valor corresponderia a cerca de 42 bilhões de dólares). Em

1983, as receitas cresceram para Cr$ 18,1 trilhões (ou 34,7 bilhões, à taxa de Cr$ 521, que

produz valor inferior ao de 1982). O valor em moeda nacional foi também menor. Não

acompanhou a taxa inflacionária de 211,0%.

Em 1983, as empresas estatais empregavam 1.349.840 pessoas, número que

configura uma enormidade, em termos de desperdício de recursos financeiros e de

subemprego da força de trabalho. Considere-se, a propósito, que, em sua maioria, essas

empresas são modernas ou modernizadas, o que significa que o seu coeficiente de capital

implica o emprego de pouca mão-de-obra. Tomando-se o setor elétrico como exemplo, é fácil

identificar a forma pela qual as estatais fomentam o empreguismo. As usinas geradoras de

eletricidade implantadas no País são unidades modernas de grande porte. Para serem operadas

com eficiência requerem apenas pequenos contingentes de mão-de-obra especializada. Não

eram necessárias, por conseguinte, as trinta e oito empresas estatais organizadas para

administrar esse conjunto. Desse modo, verifica-se que a natureza e as características de tais

empreendimentos foram dissociadas das estruturas administrativas que lhes correspondem. A

função de tais estruturas consiste em multiplicar os cargos de diretores e em aumentar os

contingentes de funcionários subordinados para justificar uma safra tão prodigiosa de

diretorias.

Não se dispõe de nenhuma avaliação conclusiva acerca dos níveis alcançados pela

estatização da economia brasileira. Contudo, o prof. Mário Henrique Simonsen calculou a

participação do Estado no conjunto dos investimentos, ao longo dos anos setenta e em parte

da década seguinte, em 64%. Tenha-se presente que este resultado superpunha-se à

estatização de quase 50% da economia, observada por Gilberto Paim nos começos do decênio

de setenta. De sorte que não se deve considerar nenhum exagero a suposição de que os níveis

de estatização da economia brasileira tenham chegado a 70%.

Muitos analistas têm insistido em que o fenômeno observado no Brasil teve lugar

também na Europa, tratando-se na verdade de um resultado do keynesianismo, ainda que

presumivelmente indesejado. Vale a pena determo-nos nesse tipo de ressalva.

Creio que não há nenhuma evidência, na obra de Keynes, de que admitiria a

intervenção direta na economia, isto é, a produção pelo Estado de bens e serviços como parte

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104

de sua política anticíclica. O fato de que, na Europa do pós-guerra, se hajam disseminado as

chamadas nacionalizações obedece a outras causas.

Maurice Duverger, no livro Les oranges du lac Balaton (Paris, Seuil, 1980)

aponta algumas determinantes.

A nacionalização (estatização) da indústria automobilística na França

correspondeu a uma represália ao comportamento de seus proprietários durante a ocupação

alemã. Na expressão de Duverger: “Em Paris, a Renault foi confiscada a um

colaboracionista”.

Na Áustria, temendo que os russos desmontassem as fábricas que trabalharam

para Hitler e as levassem embora, procedeu-se à sua encampação.

Na Itália, muitas empresas foram absorvidas pelo Estado devido à pressão dos

sindicatos e dos comunistas para salvar estabelecimentos mal geridos e à beira da falência.

A Inglaterra é certamente um caso à parte, desde que a chegada dos trabalhistas ao

poder, logo no início do pós-guerra, criou uma situação nova. Cumpre observar que vinham

procurando mostrar que o keynesianismo representava uma espécie de capitulação diante do

socialismo. Na obra antes mencionada, Duverger refere este pronunciamento do líder

trabalhista Bowe, nos anos trinta: “A Teoria Geral acha-se perfeitamente em harmonia com a

política do trabalhismo e, o que é mais importante, exprime na forma de teoria econômica o

que sempre esteve implícito na atitude do movimento trabalhista”.

O certo é que o Partido Trabalhista promoveu ampla estatização da economia, a

começar pelo Banco da Inglaterra.

Ainda assim, os níveis alcançados pela presença do Estado na economia nada têm

a ver com o que ocorreu no Brasil. Estima-se que os mais elevados se tenham verificado na

Áustria, oscilando entre 30 a 35%. Na Inglaterra, como em outros países, a estatização nunca

superou 30%.

d) Atitudes patrimonialistas típicas

Creio que uma das expressões mais acabadas de patrimonialismo brasileiro

corresponde à acumulação, pelos Fundos de Pensões das estatais, de patrimônio superior a

US$ 20 bilhões. (44) Talvez fosse plausível que as empresas estatais contribuíssem para

restaurar a situação atuarial da Previdência Social Brasileira. Seria uma forma de beneficiar os

trabalhadores de um modo geral.

Contudo, empreender semelhante caminho visando beneficiar um segmento da

população corresponde nitidamente a uma imoralidade. Trata-se de comportamento típico da

nomenklatura formada nos países comunistas, de triste memória.

É sintomático que entre as empresas estatais que souberam constituir ricos

patrimônios para os Fundos de Pensões de seus empregados encontra-se a Rede Ferroviária

Federal, cujos prejuízos anuais ultrapassaram US$ 100 milhões.

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105

Considero que outro exemplo típico de patrimonialismo corresponde às

denominadas políticas sociais do Estado. Tais políticas consistem basicamente no seguinte: o

Estado se propõe, de alguma forma, apoiar populações carentes. A partir daí criam-se as

estruturas burocráticas correspondentes, os orçamentos atribuem-lhes verbas e a ninguém

ocorre fazer uma avaliação. O objeto claro é constituir novas burocracias. É bem expressivo

dessa situação o fato de que, desde 1930, o país haja empreendido nitidamente o caminho da

preferência pelos pobres e tudo fazer “pelo social”, enquanto a pobreza alcança níveis

assustadores. O Presidente Médici exprimiu esse quadro na famosa frase: “País rico; povo

pobre”. Na verdade, o que quis dizer foi o seguinte: “Estado rico; povo pobre”.

De sorte que a utilização da categoria de corporativismo para designar atitudes

como as descritas – utilização do Estado em benefício próprio, ou privatização poder, como

prefere denominar Ricardo Vélez Rodríguez – não parece muito apropriado. O correto seria

denominá-las de patrimonialismo.

5) O SUBSTRATO MORAL QUE TEM ASSEGURADO A

SOBREVIVÊNCIA DO PATRIMONIALISMO

O patrimonialismo brasileiro é uma herança cultural profundamente arraigada,

sustentada numa base moral de índole contra-reformista. Para comprová-lo tomo dois

exemplos, sendo o primeiro fato de que tenhamos tido aqui socialismo sem que tivéssemos

capitalismo a combater. E, o segundo, o depoimento de um expoente da estatização pós-64, o

General Alencastro e Silva.

Tivemos aqui o socialismo, nos fins do século passado, antes mesmo de

vislumbrarmos qualquer coisa parecida com o capitalismo. Sílvio Romero chamou a atenção

para esse circunstância num ensaio que redigiu, em 1895, intitulado “Os novos partidos

políticos no Brasil e o grupo positivista entre eles”, publicado como introdução ao livro

Doutrina contra doutrina. Na visão de Sílvio Romero, em sua época, com exceção de alguns

fazendeiros, senhores de engenho ou negociantes urbanos, a grande massa de nossa população

era constituída de gente pobre, achando-se nessa situação mesmo os pequenos proprietários

urbanos e rurais. A pequena indústria local era insignificante. O país nitidamente não

dispunha de poupança para empreender o caminho da industrialização.

Ora, sejamos francos, continua Sílvio Romero, “onde está aí, em todas essas

classes, o trabalhador famélico que veja suas forças exploradas criminosamente pelo

capitalismo? Não está em parte alguma, é a resposta irrefragável”. Avança esta conclusão: “É

por isso que o caráter de macaqueação da democracia social brasileira é visível a olhos

desarmados. Na Europa, a grande massa estruge famélica; aqui espera talvez fazer alguma

greve pilhérica sonhada por algum deputado ambicioso. Na Europa, quando não está na luta

pertinaz, comemora suas datas com manifestações assombrosas; aqui faz alguma passeata

acadêmica ou vai ao São Pedro ou ao Lucinda assistir algum espetáculo burguês”.

Sílvio Romero limita-se entretanto a fazer a constatação e não a aprofunda. Tudo

indica que essa espécie de socialismo deita suas raízes nas tradições contra-reformistas da

cultura brasileira. Talvez por isto não tenha sido capaz de acompanhar a evolução do

capitalismo e o papel que em sua transformação desempenharam tanto o socialismo

Page 106: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

106

desvinculado de utopias socialistas como o liberalismo social, preferindo o socialismo de

Estado.

Creio que o embate decisivo entre as correntes liberais, que preconizavam a

aproximação de nosso país ao Ocidente capitalista, e as forças autoritárias, que acabaram

agrupadas em torno de ideais socialistas, deu-se nos anos trinta. Sabe-se que a ascensão das

correntes autoritárias começa com a proclamação da República. Contudo, o liberalismo

conseguiu impor a Constituição de 91 – derrotando os partidários da ditadura republicana – e

em torno dela manter uma certa articulação durante a República Velha. No que se refere

mesmo ao chamado “liberalismo social” esteve atento ao sentido novo da legislação, a

começar do próprio Rui Barbosa, como bem o demonstrou Evaristo de Moraes Filho. Na

década de vinte, embora só se costume chamar a atenção para os eventos de índole antiliberal,

como o tenentismo, as correntes liberais lograram diversas vitórias, entre estas a campanha

em prol da Universidade. O próprio fato de que o movimento político vitorioso em 30 se

tenha denominado Aliança Liberal – embora abrigasse em seu seio tendências autoritárias

capazes de lhe conquistar a hegemonia, como se viu depois – é um sintoma do prestígio da

idéia liberal. Nos anos trinta, entretanto, consuma-se a derrota. O Estado Novo e o exílio

prolongado dos principais líderes isolam completamente os liberais. Estes perdem os vínculos

com as fontes no exterior. E, quando cai o Estado Novo, não há lideranças capazes de

confrontar o autoritarismo.

De sorte que nos começos da década de cinqüenta, quando Oliveira Viana avalia

as chances do capitalismo no Brasil o quadro não era favorável, do ponto de vista da

mentalidade predominante e das tradições morais mais arraigadas.

No ciclo subseqüente, isto é, no último meio século, o que se dá é o agrupamento

de todas as forças retrógradas em torno do ideário socialista, o que evidencia a sua índole

patrimonialista. A Igreja Católica, que até os começos dos anos sessenta era dominada pelos

tradicionalistas, adere francamente à postulação socialista, a ponto de desfigurar-se

inteiramente como instituição religiosa, praticamente transformando-se num partido político.

A elite militar, formada sob a égide do positivismo de Comte e, portanto, com uma

componente conservadora predominante, em sua longa convivência com o poder, no pós-64,

perde francamente o medo do “bicho-papão” do comunismo e sela com os socialistas algumas

alianças muito sólidas, como é o caso da estatização da economia, da transformação da

Universidade em centro de formação socialista, na política de informática, etc. O curioso é

que esse ajuntamento de forças ainda se pretende “progressista”, quando, na verdade

corresponde ao que há de mais retrógrado nas tradições culturais luso-brasileiras.

Passo à consideração do depoimento do general Alencastro e Silva (nascido em

1918) e que está contido no livro Telecomunicações – histórias para a história (DIFEL,

1990). O general foi presidente da TELEBRÁS, sendo um dos principais responsáveis pela

estatização do setor, tendo fracassado apenas no que se refere à edição de listas telefônicas.

O livro do general Alencastro e Silva é muito elucidativo no que se refere à forma

como a mentalidade estatizante tornou-se dominante no setor de telecomunicações e como se

deu o afastamento das pessoas que permaneceram fiéis aos compromissos da revolução com a

economia privada e a economia de mercado. O curioso é que, para a mentalidade estatizante,

a preferência pela iniciativa privada era sinônimo de desnacionalização. Veja-se a ressalva

que estabelece em relação ao Almirante José Cláudio Beltrão Frederico, presidente do

CONTEL, período em que o órgão, segundo o general, “não tomou qualquer posição visando

a aquisição do controle da CTB”. Ao que aduz: “É que, conforme afirmei tratando da criação

Page 107: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

107

da EMBRATEL, o Almirante era filosoficamente favorável à iniciativa privada e, por isso,

não concordava com a posição do CONTEL, isto é, que a União assumisse tal controle.

Fazendo justiça ao Almirante Beltrão, desejo afirmar que sua posição privatista não poderia

ser confundida com desnacionalização ...” (p. 65).

O general Alencastro e Silva confessa que a mentalidade estatizante é sinônimo de

socialismo. Refere uma afirmativa “de um ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal” quanto

ao conflito vivido pelos dirigentes militares da revolução de 64: “No campo político são

visceralmente anti-socialistas; enquanto no campo econômico, paradoxalmente, são contra o

lucro, isto é, uma posição socialista”. Teria repetido a frase para um interlocutor cujo nome

nem sequer se recorda, e lhe atribui a frase adiante: não existe uma grande fortuna que não

tenha surgido no esterco. Traduz deste modo: “em outras palavras: o lucro muitas vezes

cheira mal. A vida me ensinou a aceitar, embora com repugnância, este determinismo do

regime capitalista” (p. 133).

O estofo doutrinário da mentalidade estatizante é também algo de “fazer corar um

monge de pedra”, como se diz habitualmente para enfatizar o primarismo de certas

postulações. Toda a doutrina do general está contida nestas frases: “A defesa de minha

posição favorável à exploração de serviços públicos pelo Estado se inicia com a afirmação de

que cedo me incorporei à corrente de opinião que se identifica com um dos princípios da

teoria econômica de Gunnar Myrdal, assim sintetizando: desde os tempos bíblicos existe um

processo circular cumulativo de riqueza ou pobreza, pelo qual os países ricos se tornam mais

ricos e os pobres mais pobres... somente o Estado pode, como afirma Gunnar, quebrar o

referido processo nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento”. (p. 30).

A obra de Gunnar Myrdal é conhecida, havendo inclusive muitos de seus livros

publicados em português (O Estado do Futuro, Zahar, 1962; O valor em teoria social,

Pioneira, 1965; Desafio à riqueza, Brasiliense, 1966; Perspectivas de uma economia

internacional, Saga, 1967; Negro: o dilema americano, 1968; e, o mais recente: Contra a

corrente, Campus, 1977). Não pode lhe ser atribuída a tese de que “desde os tempos bíblicos

existe um processo circular cumulativo de riqueza ou pobreza”. O economista sueco, em

nenhuma circunstância, cuidou de tempos imemoriais. Sua preocupação, atendendo à

solicitação de órgãos criados neste pós-guerra, como o Banco Mundial, refere-se a países que

não fizeram a Revolução Industrial, ou, às nações que passaram a ser denominadas de

subdesenvolvidas. Suas contribuições são sobretudo de caráter teórico (como Produto

Nacional Bruto, por exemplo), notadamente em relação àquelas economias. Embora considere

que o Estado deva intervir no processo, não há em sua obra nenhuma recomendação quanto à

absorção direta pelo Estado de qualquer setor econômico, como ocorreria no Brasil e era a

bandeira do general Alencastro e Silva. A intervenção que preconiza é no sentido de criar

estímulos e promover reformas. É mesmo contrário a todo empenho de industrialização à

outrance, insistindo em que a agricultura precisa ter prioridade. Myrdal é um crítico mordaz

da propensão à corrupção manifestada pelas novas lideranças surgidas nos países em

desenvolvimento. Não foi feliz o autor de Telecomunicações – histórias para a história ao

atribuir a Gunnar Myrdal suas convicções socialistas. Pela razão muito simples de que é

extremamente fácil verificar que sequer o leu. Sua fonte doutrinária, se existe, há de ter sido

outra.

O general Alencastro e Silva declara haver mudado quanto ao intervencionismo

estatal. Parece-lhe que, cumprida a missão de quebrar “o processo circular cumulativo da

pobreza, nada mais justificava que a sua intervenção continuasse”. Aos que alegam a

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108

ineficiência demonstrada pelo Estado responde com uma série de exemplos casuísticos,

retirados de sua experiência pessoal, que são um primor de falta de lógica e de coerência.

Os principais argumentos referem-se ao fato de não haver conseguido tudo

estatizar. Os governos são o apoiaram “na batalha que travou com o objetivo de solucionar o

complexo problema das listas telefônicas”. E tampouco na estatização da companhia privada

que atua em parte de Minas Gerais (CTBC).

Seu raciocínio seria mais ou menos o seguinte: em matéria de estatização é tudo

ou nada.

Ao mesmo tempo, atribui ao governo defeitos que são diretamente das empresas

estatais. Queixa-se, por exemplo, de que o governo não é capaz de fixar objetivos claros para

as suas empresas; empreender a necessária provisão de recursos; escolher adequadamente os

dirigentes; fiscalizar e controlar os resultados. Ora, nisto precisamente reside a força do

capitalismo que o general tanto detesta. Só uma companhia obrigada a pagar dividendos aos

seus acionistas – gerar lucros, portanto, palavra ante a qual o general se contorce de náuseas,

como vimos – pode seguir estritamente aquelas regras. E quanto a contar com provisão de

recursos para atender à reposição de capital ou promover novos investimentos, não é uma

instância aleatória que deve fazê-lo mas a própria companhia. Depois de passar tantos anos à

frente de uma empresa (estatal) o general não aprendeu que lhe competia prover os recursos e

não pedi-los ao governo. No essencial, portanto, não estabeleceu maiores distinções entre as

fases da sua vida em que militava no quartel ou na empresa estatal.

Contudo, habituado a raciocinar em termos pessoais e sem condições de fazer

generalizações, o general percebeu ter ocorrido “a transformação das empresas (estatais) em

entidades corporativas, voltadas fundamentalmente para o interesse dos empregados”.

Reconhece pesaroso que “as atuais empresas estatais perderam condições de satisfazer, com

produtividade, as necessidades do país de aço, eletricidade e telecomunicações”. (p. 36).

Em que pese essa declaração tão enfática, o forte do general Alencastro e Silva

não é certamente a capacidade de retirar conseqüências lógicas dos eventos. Em matéria de

intervenção estatal mantém grande obtusidade.

Assim, depois de ter deblaterado contra as “atuais” empresas estatais, diz ser

contra a desregulamentação dos serviços de telecomunicações, isto é, como ele mesmo

explica, a favor da conservação do monopólio, objetivando subsidiar tarifas em nome do que

entender por universalização dos serviços.

A proposta é tão confusa e conflitante com as premissas estabelecidas que ele

mesmo se faz esta inquirição: “Poderia ser perguntado: como conciliar a privatização que eu

defendo, com a desregulamentação que eu, no momento, condeno? A resposta é manter o

monopólio, única alternativa para não nos afastarmos ainda mais – hoje já estamos

retrocedendo – do serviço universal. Esta revolucionária mudança na situação atual exige

medidas preventivas que dêem garantias ao Estado brasileiro quanto aos aspectos ligados à

segurança nacional e à obrigatoriedade de a empresa a ser criada ou resultante da

transformação da TELEBRÁS manter, em seus estatutos, o compromisso de cumprir o grande

objetivo: a universalização dos serviços”. (p. 35).

De fato o general Alencastro e Silva não tem a menor idéia do que seja mercado,

competição, etc. A universalização de qualquer serviço só pode se dar mediante a redução de

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109

seus custos (e não há nenhum outro meio de consegui-lo senão através da concorrência). Ao

mesmo tempo, a sociedade capitalista desenvolvida é que foi capaz de reduzir a percentuais

insignificantes os contingentes de pobreza e baixa renda, criando assim amplos mercados para

aqueles mesmos serviços. O Estado não é melhor regulador que o mercado.

Finalmente, seria interessante verificar onde se deu a vivência do general

Alencastro e Silva com o capitalismo a ponto de incompatibilizá-lo de maneira tão decidida

contra essa forma de organização do processo produtivo. Será que foi nos quartéis, em sua

carreira militar? Ou foi na própria TELEBRÁS, supondo-se que seria esta a sua primeira

experiência empresarial?

Será que não se pode dizer que o General Alencastro e Silva, antes mesmo de

vivenciar o capitalismo, já sabia que este não prestava? Talvez seja esta uma singularidade da

história cultural brasileira. Não se trata apenas da presença de mentalidade pré-capitalista,

como achava Oliveira Viana, mas de mentalidade anticapitalista.

NOTAS

(1) A filologia brasileira incorporou o verbo espanhol aplastar mas no sentido que parece ter

sido popularizado pelos torcedores de corridas de cavalos (Cf. Aurélio: cansar-se, esfalfar-se)

e não o adjetivo com sua força insubstituível, já que em português não se diz esmagante. (2)

O leitor interessado na consideração específica do tema consultará com proveito a obra

coletiva Evolução do pensamento político brasileiro (Itatiaia, 1989), que organizei em

parceria com Vicente Barretto. (3)

A questão do autoritarismo instrumental também está examinada no livro mencionado na

nota precedente. (4)

Formação do oficial do Exército, Rio de Janeiro, 1976, p. 23/24. (5)

O documento intitula-se “Observações secretíssimas do marquês de Pombal na

inauguração da estátua eqüestre em 6 de junho de 1775, entregues por ele mesmo, 8 dias

depois, a el-Rei D. José I” in Cartas e outras obras seletas do marquês de Pombal, 5ª ed.

Lisboa, 1861, vol. I, p. 12-13. (6)

Formação do oficial do Exército, ed. cit., p. 188. (7)

Idem, p. 191. (8)

Ordem do Dia ao deixar Benjamin Constant a pasta da Guerra. Apud Teixeira Mendes,

Benjamin Constant, Rio de Janeiro, 1894, 2º volume, p. 283. (9)

Crônica de Saudades (Praia Vermelha). Jornal do Comércio, 22/01/1939. Apud Ivan Lins.

História do Positivismo no Brasil. 2ª ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1967, p. 311. (10)

Economia política, finanças e contabilidade. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918, 2

v. (11)

Obra citada, p. 5. (12)

Obra citada, p. 350. (13)

História da República, 6ª ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1969, p. 151. (14)

Apud Henri Gouhier. Oeuvres choisies de A. Comte. Paris, Aubier, 1943, p. 21. (15)

História Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, 1958, p. 149. (16)

A filosofia política de inspiração positivista no Brasil. Ciências Humanas (3), out.-dez.,

1977, p. 17. (17)

Transcrita integralmente por Oliveiros Ferreira. As Forças Armadas e o desafio da

Revolução. São Paulo, GRD, 1964. (18)

Ivan Lins informa o seguinte sobre a família Vargas: “O General Manuel Vargas, grande

amigo de Júlio de Castilhos, e seus filhos Protásio e Viriato, sempre se disseram positivistas e,

durante muito tempo, foram subscritores do subsídio da Igreja e Apostolado Positivista do

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110

Brasil” (História do Positivismo no Brasil, 2ª ed., São Paulo, cia. Editora Nacional, 1967, p.

208. (19)

Apud Ivan Lins, obra citada, p. 192. O discurso foi publicado na íntegra no Correio do

Povo, Porto Alegre, 26/06/1960, número comemorativo do primeiro centenário do

nascimento de Júlio de Castilhos. (20)

Afonso Arinos de Melo Franco. A Câmara dos Deputados. Síntese histórica, Brasília,

1976, p. 88. (21)

Pierre Lafitte (1823/1903), herdeiro de Comte, fundou a Revue occidentale (1878) e

aceitou, em 1883 uma cátedra, na frança, o que levou Miguel Lemos a declará-lo cismático e

a promover um auto-de-fé, tendo sido queimado, na ausência do autor, o livro Calcul

Arithmétique. (23)

A experiência brasileira da representação classista na Constituição de 1934. Carta Mensal

(22), setembro, 1976, p. 14/15. Observa que essa temática – a dicotomia do político e do

técnico – mantém-se viva, donde a atualidade do tema estudado. (24)

Do ano de sua fundação até 1942, a ABE realizou oito congressos nacionais, dos quais só

se publicaram os anais do terceiro (1919). A documentação respectiva foi entretanto

preservada pela entidade. (25)

Os grandes problemas nacionais. Rio de Janeiro, DIP, 1942, p. 51/52. (26)

Sindicato e sindicalismo no Brasil desde 1930. In As tendências atuais do direito público.

Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 191/192. (27)

Texto integral publicado na Revista da Universidade do Rio de Janeiro, nº 2, 1932, p.

245/259. (28)

Texto citado, obra citada, p. 195. (29)

Loc. cit., p. 215. (30)

Análise circunstanciada da experiência brasileira de disciplinamento do comércio exterior

foi efetivada por J.O. Knaack de Souza. Estruturas do comércio exterior brasileiro e suas

implicações econômico-financeiras. São Paulo, ANPES, 1970. (31)

O funcionamento do Conselho Federal de Comércio Exterior foi descrito por John D.

Wirth. A política do desenvolvimento na era de Vargas. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio

Vargas, 1973. (32)

Apud Ivan Lins, obra cit., p. 200. (33)

José Maria Belo enxerga na “tendência socializante da Constituição de 1934” expressão

acabada desse processo. (Op. cit., ed. cit., p. 311). (34)

Raul Prebisch. Introducción a Keynes, 5ª ed., México, Fondo de Cultura Económica, 1965. (35)

A legislação eleitoral brasileira. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1964, p. 133. (36)

Na Comissão do Itamarati a maioria liberal votou contra a admissão da representação

classista, que o governo entretanto enxertaria no Código. Salvo essa circunstância, predomina

na nova lei a inspiração da liderança liberal da época. (37)

Eleições de 62: decomposição partidária e caminhos da reforma. Revista Brasileira de

Estudos Políticos, vol. 16, janeiro de 1964, p. 19. (38)

Obra citada, p. 113. (39)

Testemunhos e ensinamentos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1912, p. 214/222. (40)

Estruturas do comércio exterior brasileiro e suas implicações econômico-financeiras. São

Paulo, ANPES, 1970, p. 43. (41)

Essa documentação abrange 17 volumes, compreendendo o Relatório Geral (2 vols.);

Projetos de Transportes (9 vols.); Projetos de Energia (4 vols.); Projetos Diversos (1 vol.) e

Estudos Diversos (1 vol.). (42)

Relatório Geral – Tomo I. Rio de Janeiro, 1954, p. 40. (43)

Relatório Geral, tomo cit., p. 135.

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111

(44) Em novembro de 1992, o patrimônio dos principais desses fundos era o seguinte: Previ

(Banco do Brasil), US$ 4,5 bilhões; Funcef (Caixa Econômica), US$ 1,7 bilhão; Petros

(Petrobrás), US$ 1,5 bilhão; Centrus (Banco Central), US$ 1,1 bilhão; Sistel (Telebrás),

US$ 1 bilhão e os demais abaixo de um bilhão (CESP, Vale do Rio Doce, RFF, BNDES,

etc.)

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112

CAPÍTULO VI

DIFERENÇAS NOTÁVEIS ENTRE O BRASIL E

OS PAÍSES CAPITALISTAS

A longa vigência do socialismo no Leste Europeu e a crença nutrida por seus

dirigentes de que venceriam o capitalismo, além da nítida divisão do mundo em dois blocos

políticos antagônicos originou uma espécie de maniqueísmo no que refere à natureza dos

sistemas econômicos. Basicamente não havia alternativa: a economia ou era capitalista ou era

socialista. Mesmo a idéia de terceira via, suscitada pelos sociais democratas, tinha como

pressuposto a mencionada dicotomia.

Para minorar os efeitos de tal simplificação, surgiu a divisão, dos que se

arrolavam como países capitalistas, em desenvolvidos e subdesenvolvidos. Ao longo de todo

o pós-guerra, o Banco Mundial fomentou políticas destinadas a promover o fim do

subdesenvolvimento, sem resultado.

Sem querer naturalmente substituir uma simplificação por outra, agora que acabou

o pesadelo comunista talvez se possa reconhecer que a expressão país capitalista

desenvolvido seja redundante. Os países capitalistas são todos desenvolvidos. Na África

muçulmana e negra não há capitalismo e muito dificilmente tal ocorrerá. O fenômeno dos

chamados tigres asiáticos somente agora vem sendo estudado. A equipe de Peter Berger

inclina-se pela hipótese de que o confucionismo facilitaria a emergência do empreendedor,

que é uma das características essenciais do capitalismo, embora não se trate do empreendedor

isolado mas da família. (1) De todos os modos, a economia de mercado é uma invenção

ocidental, (2) sendo naturalmente necessário distinguir o tema das condições que favorecem

(ou favoreceram) sua emergência e sucesso, do tema que aqui consideramos: como classificar

aquelas economias que nitidamente não são capitalistas. De sorte que, para continuar

trilhando o caminho da investigação parece essencial fixar as características mais marcantes

do capitalismo.

1) CARACTERÍSTICAS DA ECONOMIA CAPITALISTA

No que se refere ao ciclo de emergência e consolidação, suponho que

permaneçam válidas as observações de Max Weber, contidas na sua obra História econômica

geral (1ª ed., póstuma, 1923). Inicialmente destaca que o empreendimento capitalista controla

sua rentabilidade por meio da contabilidade moderna, exigência que teria sido formulada pela

primeira vez em 1698 pelo teórico holandês Simon Stevin. Na enumeração, destaca o

seguinte:

1º) Apropriação de todos os bens materiais de produção como propriedade de

livre disposição por parte das empresas lucrativas autônomas;

2º) A liberdade mercantil, isto é, a liberdade de mercado em relação a toda

irracional limitação;

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113

3º) Técnica racional, isto é, contabilizável ao máximo e, por conseguinte,

mecanizada, tanto na produção como na troca, não só quanto à confecção senão também com

respeito aos custos de transportes;

4º) Direito racional, isto é, direito calculável. Para que a exploração capitalista

proceda racionalmente, precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão

determinadas pautas;

5º) Trabalho livre, isto é, que existam pessoas, não somente do ponto de vista

jurídico mas econômico, obrigadas a vender livremente sua atividade em um mercado;

6º) Comercialização da economia, sob cuja denominação compreendemos o uso

geral de títulos de valor para os direitos de participação nas empresas e igualmente para os

direitos patrimoniais.

Resumindo, Weber dirá que a empresa capitalista deve dispor da “possibilidade de

exercitar uma orientação exclusiva, na satisfação de suas necessidades, num sentido mercantil

e de rentabilidade”. (3)

Todos os estudiosos concordam em que o capitalismo teve diversas fases, embora

inexista consenso quanto à forma de defini-las. Refiro aqui o posicionamento de dois

estudiosos, sem que essa preferência signifique menosprezo pelas demais opções.

A sociedade afluente do mundo desenvolvido, nossa contemporânea, repousa na

formação de gigantescas empresas industriais - que ultrapassaram as fronteiras de um só país

passando a ser denominadas de multinacionais. Em alguns ramos, a concorrência entre os

próprios países industrializados tornou-se a causa fundamental de seu crescimento. Assim, a

indústria siderúrgica japonesa inovou significativamente no que respeita às dimensões dos

altos-fornos, conseguindo alcançar produção equivalente à americana (superior a 100 milhões

de toneladas/ano) dispondo de altos-fornos gigantes, com capacidade equivalente a apenas um

terço daquela disponível nas unidades de menor porte em operação nos Estados Unidos. Aço

produzido a preços mais competitivos propicia enorme “handicap” na oferta de automóveis,

navios e outros bens resultantes da elaboração de produtos siderúrgicos.

A indústria química tornou-se de igual modo outro suporte do gigantismo desde

que logrou substituir por sintéticos grande número de itens cuja oferta dependia da produção

agropecuária ou florestal (madeira, couro, fibras, etc.).

A indústria eletrônica também facultou a formação de conglomerados

gigantescos.

Tais são os setores da chamada indústria tradicional. Deram lugar ao terciário

clássico (bancos e financeiras ligadas ao mercado de capitais; empresas de seguros; serviços

administrativos; de transportes, etc.), que se tornou, com o correr dos tempos, o principal

empregador de mão-de-obra na sociedade desenvolvida do Ocidente.

Essas atividades revelam a tendência à estabilização, devendo circunscrever-se a

obtenção de níveis de crescimento meramente vegetativos.

Nos últimos lustros, surgiram entretanto novos ramos industriais que se

desenvolvem segundo ritmos acelerados. São as indústrias nascidas no interior da eletrônica,

vinculadas ao processamento da informação e à comunicação. A partir de tais indústrias vêm

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114

se estruturando novos serviços, que nas economias desenvolvidas já são computados à parte,

desde que revelam incontestavelmente dinâmica própria. Essas atividades podem ser

classificadas genericamente como sendo de serviços às empresas; comunicação; educação;

saúde; cultura e lazer.

Para que se tenha uma dimensão do que se espera venha a ocorrer nos próximos

anos, basta indicar que a posição do operariado industrial, no conjunto da população ativa nos

Estados Unidos, reduziu-se de 38%, em 1960, para 23% em fins da década passada. A

expectativa é no sentido de que esse contingente venha a corresponder a apenas 3% nos

próximos trinta anos.

Crozier observa que o capitalismo industrial desenvolveu-se com base no

denominado “sistema Taylor”, que consistia em simplificar ao máximo as tarefas, a fim de

incorporar ao processo número crescente de produtores. Os serviços que ora começam a

dinamizar-se, ao contrário, exigem sobretudo capacidade inventiva, criatividade. Sua

dependência será cada vez menor do capital. Assim, nos novos setores de atividade, não se

deve esperar o predomínio de multinacionais.

Acerca das grandes empresas multinacionais, Crozier escreve o seguinte:

“Sua expansão encontrou seus limites e os termos de intercâmbio político e social

lhes serão cada vez mais desfavoráveis. São vulneráveis porque expostas e submetidas à

mudança de todos os governos. Serão incapazes de preservar durante longo tempo, sua

vitalidade porque não têm como manter o espírito de empresa em seu seio. Especulações,

sonhos? Não esqueçamos que no momento mais favorável do grande milagre alemão, a

reconstrução paciente e politicamente genial do “Konzern Krupp” redundou no maior fracasso

econômico do pós-guerra -, o que correspondeu, diga-se de passagem, uma situação

proveitosa para a siderurgia alemã. De todos os modos, os grandes grupos industriais de

amanhã somente poderão sobreviver em duas condições: 1ª) ser capazes de desinvestir a

tempo: a sociedade futura conhecerá rupturas tão fortes como as atuais e aqueles que se

deixarem enclausurar na concepção galbratiana simples do condicionamento da demanda

acham-se condenados à falência; e, 2ª) resignar-se a dar nascimento em seu seio a empresas

novas, aceitar a condição de rampa de lançamento dos inovadores, escolher o aprendizado e

não a planificação.” (4)

Mais recentemente, Peter Drucker acrescentou outros elementos à análise de

Crozier, com sua ênfase na organização do trabalho. Em seu livro (New Realities. New York,

1989) escreve: “A maior transformação - ultrapassando de longe as mudanças na política, nos

governos ou na economia - é no direcionamento à sociedade do conhecimento em todos os

países desenvolvidos não-comunistas”. Apresenta os seguintes indicadores:

1º) O centro de gravidade deslocou-se para o trabalho relacionado ao

conhecimento. “Todos os países desenvolvidos tornam-se sociedades pós-industriais,

sociedades do conhecimento. O acesso a bons empregos e o progresso na carreira requer, de

modo crescente, um diploma universitário”. Aqui é necessário um esclarecimento para não se

supor que a referência ao diploma universitário tem o mesmo sentido que em nosso país. O

sistema de formação para o trabalho, mantido pelas próprias empresas, nos Estados Unidos,

tem maiores dimensões que o sistema universitário brasileiro. Não disponho de dados

atualizados. Mas, na década passada, anualmente, 3,5 milhões de empregados participaram de

cursos em horas de trabalho e 700 mil fora de tais horários. Destes últimos, muitos eram de

nível superior, ministrados por 45 mil professores de nível universitário em tempo integral.

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115

De um modo geral, achavam-se voltados para o processo produtivo, compreendendo gerência,

supervisão, padronização de métodos (artigo do prof. William Brazziel, da Universidade de

Connecticut, transcrito na revista Diálogo, nº 2, 1982). A Universidade americana, do mesmo

modo que a maioria das congêneres em outros países desenvolvidos, não habilita

profissionais. Os títulos outorgados são genéricos: “bacharel em artes” ou “bacharel em

ciências”. No desenvolvimento do raciocínio de Drucker ver-se-á com clareza a distinção que

ora procuro estabelecer.

2º) A prevalência do conhecimento é vista hoje como o desenvolvimento natural

da sociedade industrial. Esse tipo de raciocínio , na visão de Drucker, obscurece a natureza

profunda da mudança. Escreve: “Ainda muito recentemente havia poucas empresas

requerendo conhecimento (no sentido de cultura geral). Essa espécie de cultura era mais

ornamental que necessária”. Lembra que apenas um dos grandes capitalistas do passado, J. P.

Morgan, havia cursado uma universidade estrangeira.

3º) Na sociedade do conhecimento (ou na sociedade culta) o “business” deixa de

ser a única via para o sucesso profissional, reduzindo-se a uma das vias possíveis.

4º) Mesmo nos começos do segundo pós-guerra, quando a educação passou a ser

considerada investimento, o caminho de acesso aos bons empregos não era através da

educação. Os trabalhadores da indústria manufatureira experimentaram grandes avanços em

matéria de status e bem-estar material. Hoje se transformaram na “contracultura” ao invés de

apontar, como se supunha, o curso da história. A própria sobrevivência dos sindicatos é uma

questão problemática.

Creio que as análises precedentes permitem a fixação de alguns parâmetros a

partir dos quais seja possível fixar as principais diferenças existentes entre o Brasil e os países

capitalistas. Uma questão essencial, à qual não voltarei, consiste na presença aplastante do

Estado na economia, que viola uma das características apontadas por Weber, relativa à

liberdade de mercado. Aliás, quanto a esse aspecto, não só o Estado prescinde do mercado no

Brasil (no sentido de instância reguladora de preços e serviços). Mesmo uma indústria

estrangeira, como a automobilística, foi capaz de inventar um mecanismo (os consórcios) que

a desobriga de levar em conta a lei da oferta e da procura. Nesse particular, nunca se deve

esquecer que o Brasil há de ter sido o único país do mundo onde um parlamentar imaginou a

possibilidade (legal) de revogar a lei da oferta e da procura. E, o mais incrível, é que parece

tê-lo conseguido! Mas há outros aspectos mais marcantes, como espero demonstrar.

Enquanto no patrimonialismo a chamada sociedade afluente limita-se à

nomenklatura, que coexiste com gigantescos contingentes de pobreza, nos países capitalistas

prevalece distribuição de renda relativamente satisfatória, sendo reduzidas as camadas que

poderiam ser arroladas como pobres. Esclareça-se que o capitalismo não perseguiu o que se

denomina de igualdade de resultados, nem se pode alcançar tal desfecho. O que a sociedade

capitalista se propôs realizar foi a igualdade de oportunidades. Vejamos como se apresentam,

nos aspectos considerados, as disparidades entre os países capitalistas e o Brasil.

2) A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES

Em sua evolução histórica, o liberalismo formulou a doutrina da igualdade de

oportunidades, propiciada basicamente pela escola. Essa política tem alguns antecedentes que

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116

conviria fixar, isto é, o fato de que se tenha iniciado nos países protestantes, pela chamada

educação popular, no começo de caráter confessional mas que, ao longo do século XIX,

tornou-se um serviço público. Logo o Japão aderiu a esse sistema, que se expandiu na Europa,

na América do Norte e em outras ex-colônias inglesas, como a Nova Zelândia e a Austrália.

Vejamos inicialmente como se firmou a educação popular.

A educação na Idade Média era muito restrita. Entendia-se que o saber devia ser

cultuado, no sentido próprio do termo. Seu “culto” estava a cargo do clerigus, denominação

que só tardiamente estendeu-se à classe sacerdotal como um todo. Laicus aplicava-se a quem

não sabia ler. Seria errôneo dizer-se que o saber era monopólio da elite, porquanto o núcleo

básico desta última - os guerreiros - era constituído de pessoas iletradas. Tratava-se de uma

concepção diversa da que se estruturou na Época Moderna. O aparecimento da Universidade,

desde o século XII, não alterou esse quadro, porquanto a única novidade era a disciplina e o

controle da formação de algumas profissões - os cirurgiões e a burocracia civil e eclesiástica.

A Renascença e o aparecimento da imprensa criaram a premissa para o

surgimento e a difusão de novos tipos de saber o que, naturalmente, muito tem a ver com a

educação. Mas não partiu daqui o impulso para alteração de natureza radical que se

consumaria na Época Moderna.

A nova concepção educacional, frontalmente contraposta à medieval, começa a

formular-se com o apelo que Martim Lutero (1483/1546) dirigiu “Aos senhores Conselheiros

de todas as cidades e terras alemãs”, em 1524, no sentido de que criassem e mantivessem

escolas, por toda parte.

Nesse documento, Lutero enxerga um grande risco que poderia resultar do

crescente desprestígio das instituições de ensino ligadas à Igreja Romana. Entendeu-se que

não haveria nenhuma razão para deixar que os filhos estudassem tanto tempo “já que não vão

ser monges ou freiras”. A vigorar semelhante reação, “ninguém mais aprenderia coisa alguma,

a juventude se perderia e era isso o que o Diabo realmente pretendia conseguir!” - exclama.

Insiste em que “Deus ordenou aos pais que ensinassem aos filhos o que é bom para eles, e Ele

pedirá a nós a devida prestação de contas por isso”. E esclarece as razões pelas quais o

assunto não pode ser entregue aos pais como se a responsabilidade fosse só deles. O não

cumprimento de tarefa de tal magnitude afeta a todos, motivo pelo qual deve ser assumida

pelas comunidades.

Lutero refuta a opinião de que seria suficiente que todos aprendessem apenas o

alemão porquanto a Bíblia e a palavra de Deus podem ser ensinadas nessa língua, de nada

valendo o aprendizado do latim, grego ou hebraico. Semelhante opinião eqüivale a pretender

que “nós alemães teremos de permanecer bestas e animais grosseiros por toda a vida, pois é

assim que nos chamam nossos vizinhos e parece-me que bem mereceremos estes nomes”.

A educação não propõe ensinar apenas o caminho da salvação. É preciso também

contribuir para que ao mundo possa “preservar melhor, exteriormente, seu estado profano”. A

boa educação dos rapazes e moças pretende conseguir “homens capazes de governar país e

povo” bem como de mulheres aptas a assumir a responsabilidade de casa.

As crianças precisam ser reunidas para aprender não apenas as línguas e as

histórias, mas também a música e o canto, além da matemática. Rejeita a tese de que isso seria

transformá-los em aristocratas. Esclarece que não pretende que as pessoas vão à escola para

tornar-se eruditas mas para enfrentar o fato de que “surgiu um mundo diferente, e tudo, hoje

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117

está mudado”. “Minha opinião, diz Lutero, é que se deve deixar os rapazes irem diariamente,

durante uma ou duas horas, à escola, fazendo-os trabalhar o resto do dia em casa, ou aprender

um ofício ou profissão que os pais queiram, de modo que as duas coisas se combinem. Pois

não desperdiçam eles, de outra foram, dez vezes mais tempo com tiro ao alvo, jogo de bola,

corridas e brigas? Do mesmo modo pode uma moça ter tanto tempo, que dê para ir à escola,

por uma hora, sem que isto crie impedimento aos seus afazeres de casa, já que, normalmente,

passa o tempo dormindo, dançando e brincando, desperdiçando horas preciosas... Aqueles

porém que formam um grupo de escol, oferecendo esperanças de poderem servir, com

habilidade, como professores e mestres, como pregadores ou em outras funções eclesiásticas,

devem freqüentar por mais tempo as escolas, ou continuar a estudar sempre”.

No texto que estamos comentando, Lutero fala ainda da organização de

bibliotecas, da edição de livros, etc.

Transcorreria muito tempo até que, dessas diretrizes dispersas, surgisse uma nova

doutrina educacional. Na verdade, esta esteve muito mais na dependência de uma longa

prática que foi muitas vezes interrompida em decorrência das guerras religiosas e da

intolerância que os protestantes só fizeram fomentar. De todos os modos, com diferentes

níveis de qualidade e outras singularidades que assinalaremos, as chamadas “escolas

confessionais” proliferam na Prússia, na Alemanha do Norte, na Holanda, na Suíça,

Inglaterra, Estados Unidos e em grande parte do território francês.

Ali onde a doutrina protestante encontrou logo uma igreja dominante (Luterana na

grande maioria dos principados alemães e na Prússia; Presbiteriana, na Escócia, etc.) o

processo de conversão dessas escolas num serviço público não apresentou maior

complexidade. Entretanto, nos países em que havia multiplicidade de seitas protestantes, a

transição foi muito conturbada. Ainda assim, com maior ou menor intensidade, esses países

chegam às últimas décadas do século XIX com o denominado sistema de educação popular

plenamente concebido.

A conversão das escolas confessionais em escolas públicas estava virtualmente

consumada, na Inglaterra, em 1870, quando o grande líder e reformador liberal William

Gladstone (1809/1898) promulga o Elementary Educacion Act, que estabelecia as Juntas

Educacionais (School Boards), em todos os distritos. Incumbia-lhe assegurar que o número de

vagas nas escolas correspondesse à população em idade escolar e inspecionar todas as escolas.

Mantiveram-se os subsídios às “escolas confessionais” mas estas, agora, recebiam alunos de

diferentes confissões. Em 1880, o ensino elementar foi tornado compulsório.

Ao longo dos oitenta anos seguintes, estruturou-se e consolidou-se na Inglaterra

um sistema de escola elementar para todos. Nessa fase, a escola secundária era acessível a

número limitado. A partir de 1960, o esforço passa a ser direcionado no sentido de

democratizar o acesso à escola secundária. A elevação geral dos padrões de renda criava

condições para o surgimento de uma sociedade mais igualitária. A sofisticação da indústria

exigia número crescente de trabalhadores com melhor qualificação profissional ao mesmo

tempo em que surgiram sempre novos serviços, requerendo pessoas dotadas de cultura geral.

Antes do fim do século também os Estados Unidos haviam lançado as bases da

constituição de um sistema de ensino elementar aberto a todos, financiado com recursos

públicos, o mesmo ocorrendo na França e na Alemanha. No Japão, esse sistema educacional

começou a ser montado na mesma época das grandes reformas introduzidas na chamada Era

Meiji que dura de 1868 a 1912 e põe fim ao sistema feudal e abre o país ao Ocidente. O

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118

código fundamental da educação é de 1872 e embora reflita influências pedagógicas inglesas,

alemães e francesas, estas dizem respeito sobretudo à forma organizacional e ao ensino da

ciência, sem interferir na preservação dos valores da cultura japonesa. Em 1880, o Japão já

dispunha de número de escolas suficiente para atender à população e na virada do século 98%

das crianças em idade escolar encontravam-se na escola, percentagem que se mantém em

nossos dias. Os analfabetos são menos de 0,7% e embora a obrigatoriedade do ensino seja

equiparável à brasileira (nove anos no caso japonês), praticamente todos os alunos, isto é,

cerca de 96% passam ao curso colegial (constituído de três séries, como o nosso segundo

grau), sendo que 34% o concluem integralmente.

O sistema mantém uma grande estabilidade. A mudança introduzida neste pós-

guerra consistiu sobretudo em atribuir à escola papel primordial na restauração do país,

devastado pela conflagração.

Em matéria de recursos e resultados no período mais recente, queria aqui invocar

o exemplo dos Estados Unidos. O ensino fundamental americano absorveu US$ 132,9 bilhões

em 1983, aproximadamente o triplo de 1970 (US$ 45,5 bilhões em moeda constante),

equivalentes a 4% do PIB. As principais fontes dos recursos são as administrações estaduais

(cerca de 45%) e locais (aproximadamente 40%). A colaboração da União é relativamente

pequena (6,8% em 1983; 8,7% em 1980). O setor privado corresponde a mais ou menos dez

por cento do total. Em termos de freqüência à escola os resultados são sempre alentadores.

Praticamente toda a população tem doze anos (high-school) ou mais de escolaridade,

explicando-se as defasagens pelo afluxo de emigrantes de países onde não se faculta idêntica

oportunidade. Assim, em 1960, 60,7% da população havia completado o high-school,

percentual que se eleva a 70,3% em 1970; 83,1% em 1975; 84,5% em 1980 e 90% em 1990.

Em síntese, a missão do ensino fundamental desdobra-se do modo adiante

resumido, o que assegura o adequado instrumento para alcançar a pretendida igualdade de

oportunidades.

Na medida em que o sistema representativo ganhou dimensão universal e os

processos produtivos adotados no Ocidente revelaram-se capazes de elevar os padrões de

renda e eliminar a pobreza, estabeleceu-se um certo consenso quanto às funções do ensino

obrigatório, contemporaneamente denominado de fundamental ou básico. Na conquista desse

consenso tiveram destacado papel muitos educadores liberais, razão pela qual os princípios a

seguir enunciados formam hoje parte do ideário liberal.

Nos principais países europeus, nos Estados Unidos e Canadá do mesmo modo

que no Japão, há uma consciência profunda de que o adequado aproveitamento dos recursos

naturais e de outras potencialidades nacionais encontra-se na estrita dependência da educação.

Quando se faz semelhante enunciado, nesses países, tem-se presente, antes de mais nada, a

educação geral, facultada a todos, e não apenas aos investimentos em pesquisa e

desenvolvimento e formação de técnicos de nível superior.

A experiência sugeriu que cabe ao ensino fundamental a responsabilidade de

assegurar a homogeneidade cultural de cada um dos países considerados. Esse problema foi

mais agudo nos Estados Unidos, nas últimas décadas do século passado, pelo grande afluxo

de emigrantes. Mas, com maior ou menor intensidade, afeta a todas as nações. De sorte que se

pode tomar como um princípio de ordem geral, válido para a maioria das circunstâncias.

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119

O sistema democrático exige, simultaneamente, que a grande massa de cidadãos

tenha noção plena e integral do papel que compete a cada um desempenhar. Em toda parte, é

certo, as funções do governo são exercidas por elites preparadas para esse mister. Contudo,

devem ser avaliadas periodicamente, tarefa que incumbe à massa dos votantes. Os meios de

comunicação contribuem, por seu turno, para destacar as questões efetivamente polarizadoras.

Para compreendê-las, requer-se um mínimo de cultura geral, que o ensino fundamental deve

ser capaz de universalizar.

A produtividade do trabalho inclui-se entre os fatores decisivos do

desenvolvimento econômico. A par disto, os níveis de produtividade a serem atingidos

precisam ser considerados numa escala de massa, porquanto não basta serem alcançados pelas

indústrias mais sofisticadas, devendo abranger toda atividade industrial, a produção de bens

primários e a diversificada gama dos serviços.

Eis por que, em todos os países desenvolvidos, o ensino fundamental se considera

como merecedor da máxima prioridade.

No caso brasileiro, essa prioridade é meramente declaratória, isto é, preceito

constitucional estabelece a sua obrigatoriedade, mas, na verdade, todo o sistema de ensino

está direcionado para a formação profissional de nível superior, consoante é demonstrado a

seguir.

As conclusões do 1º Grau, isto é, os que alcançam a 8ª série, na década de oitenta,

situam-se abaixo de um milhão de crianças (890 mil em 1982 e 865 em 1984). Nos melhores

anos, a matrícula na 1ª série alcançou 7,5 milhões e, nos piores, 6,6 milhões. Observa-se deste

modo que, na melhor hipótese, o dispositivo constitucional que torna obrigatória a freqüência

às oito séries do Primeiro Grau estará sendo cumprido na proporção de 13% e, na pior, de

10%, se não considerarmos os que sequer se matricularam na 1ª série e ficaram de fora do

sistema, contingente que alguns avaliam ser de muitos milhões. Este é o fato capital. O nosso

Primeiro Grau não se encontra aos serviço da tarefa que lhe é atribuída, isto é, a de facultar

ensino fundamental para todos. A serviço de que se encontra, então?

Dos que concluem o Primeiro Grau, praticamente todos inscrevem-se no Segundo.

A matrícula na 1ª série do 2º Grau, nos anos oitenta, oscilou em torno de 900 mil. Destes,

aproximadamente dois terços (cerca de 600 mil) concluem a 3ª série e inscrevem-se

diretamente no vestibular.

Mesmo utilizando procedimentos de análise mais sofisticados para minimizar os

efeitos da repetência, sem os quais os índices de conclusão do Primeiro Grau chegam a

18/20%, os resultados apurados pelo Ministério da Educação são melancólicos e

desalentadores. Assim, segundo essa fonte, dos alunos matriculados na primeira série do

ensino fundamental, 73,6% chegam à segunda série; 68,%% à terceira; 60,2% à quarta; 57,7%

à quinta série; 45,4% à sexta série; 37,9% à sétima e 27,3% à oitava. Deste modo, de cada 100

alunos que ingressam nesse nível de ensino, que é como vimos, um dos elementos definidores

das modernas sociedades capitalistas, apenas 27 chegam a concluí-lo. Deste modo, na

ausência de formação para a cidadania reside uma das diferenças fundamentais entre o Brasil

e os países capitalistas.

3) A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA

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120

Conforme enfatizamos, o capitalismo não buscou a igualdade de resultados -

cifrando-se no empenho em prol da igualdade de oportunidades -, mas obteve uma

distribuição de renda bastante eqüitativa. Tomo aqui, mais uma vez, o exemplo dos Estados

Unidos, no exercício fiscal 1989/1900:

Faixas de Renda Familiar % Sobre o

(em US$) Total

Abaixo de 15.000 25,40

15.000 a 25.000 17,90

25.000 a 35.000 15,90

35.000 a 50.000 17,30

50.000 a 100.000 19,60

Acima de 100.000 3,90

Total 100,00

OBS.: Número de famílias em 1989: 93,3 milhões.

População segundo o Censo de 1990: 249,6 milhões.

FONTE: Bureau of Censes

Considera-se que a faixa de pobreza situava-se, naquele ano, abaixo de US$

12.000 anuais (em torno de 15% das famílias). As faixas de renda compreendidas na classe

média encontram-se entre $ 20 mil e 100 mil anuais, alcançando 59% das famílias.

Acrescente-se que a questão do perfil de renda marca uma presença permanente

na discussão política, porquanto o imposto de renda o divulga todos os anos, seguindo-se uma

grande celeuma, sobretudo pela incapacidade dos investimentos públicos em reduzir a

pobreza a partir de determinados níveis.

Na Alemanha, a população carente é de 4,5%, constituindo a elevação do salário

real um objetivo apoiado por toda a comunidade. A renda mensal disponível de um

trabalhador assalariado germânico elevou-se de 904 marcos, em 1964 a 2.753 marcos, em

1976, triplicando em pouco mais de dez anos. Ali, em 1964, as despesas com alimentação,

vestuário e habitação consumiam 64% do orçamento familiar, proporção que se reduziu a

54% em 1976, com o que ficou alargada a faixa de recursos destinados à poupança, ao lazer, à

cultura e ao turismo, entre outros itens que simbolizam um estado de bem-estar que acelera o

processo de integração social. No ciclo subseqüente foram alcançados resultados

equiparáveis. A situação é muito parecida à descrita nos demais países capitalistas.

Que dizer do Brasil nessa matéria? Não temos sequer critérios para determinar os

níveis de pobreza. A faixa de contribuintes do imposto de renda é ridícula, não sendo esta

uma fonte capaz de refletir a situação em sua inteireza. Mas é de fácil percepção que a imensa

maioria é pobre - havendo até estudiosos que distinguem a simples pobreza do que chamam

de pobreza absoluta - e a classe média vem sendo destroçada impiedosamente.

Se nos valermos das estimativas da renda familiar efetivadas pelo IBGE, teremos

o seguinte: a população recenseada em 1991 era constituída de 36 milhões de famílias, das

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121

quais 11 milhões (32%) integram as classes média e alta (renda superior a 5 salários

mínimos); 12 milhões (32%) a classe pobre (renda entre 2 e 5 salários mínimos) e 13 milhões

(36%) a classe muito pobre (renda inferior a 2 salários mínimos). Se é que essa estimativa

reflete com propriedade a situação real, a nossa pirâmide de distribuição de renda é

exatamente inversa à dos países capitalistas: 68% situam-se na faixa da pobreza.

Pode-se concluir, portanto, que do ponto de vista do perfil de renda, o Brasil está

muito próximo dos antigos países comunistas e não dos países capitalistas. Nesse plano temos

mais afinidades com o Leste Europeu que com o Ocidente capitalista.

4) A QUESTÃO DA DEMOCRACIA

A questão democrática é certamente mais complexa mas é possível correlacioná-

la com o capitalismo. Permito-me, para conceituá-la de modo adequado, resumir aqui as

principais teses relacionadas ao assunto da lavra de Samuel Huntington em seu mais recente

livro The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century (University of

Oklahoma Press, 1991).

Huntington começa por estabelecer que a democracia, como forma de governo, foi

definida em termos de fontes de autoridade para o exercício do poder; pelos objetivos

perseguidos pelo governo e, finalmente, pelo processo de constituição dos governos. As duas

hipótese iniciais conduzem a muitas ambigüidades. A concepção de que o procedimento

central da democracia reside na seleção de seus líderes através de eleições competitivas

alcançou maior fortuna. Segundo Huntington, a mais importante desse entendimento de

democracia é devida a Joseph Schumpeter (Capitalism, Socilism and Democracy, 1942).

Subseqüentemente tornou-se uma tradição de analistas políticos aderentes a essa postulação

(Robert Dahl, Giovanni Sartori, Alfred Stepan, Juan J. Linz, etc.).

A idéia de Terceira Onda resulta da democratização subseqüente a 1974. A

primeira onda abrange de 1828 a 1926 (de 64 nações independentes, 24 eram democráticas,

equivalentes a 45,3%), seguindo-se a brutal reversão ocorrida entre 1922 e 1942 (nesse último

ano, as nações independentes haviam se reduzido a 61, e apenas 12 - 19,7% - preservavam

sistema democrático). A segunda onda de democratização transcorreu entre 1943 e 1962.

Devido à debacle dos sistemas coloniais, em 1962 o número de estados ascendia a 111,

elevando-se as nações democráticas a 36, isto é, 32,4%. A segunda reversão teve lugar entre

1958 e 1975. Em 1973, para 122 estados nacionais havia apenas 30 (24,6%) democracias. Em

1990, as nações democráticas eqüivalem a 58 (45% do total). Esta seria a terceira onda.

Huntington procederá à elaboração de alguns modelos. O primeiro parâmetro

consiste no posicionamento nas diversas ondas, de que emergiria um primeiro segmento

integrado por países que participaram dos dois ciclos, isto é, de democratização e de reversão

(Argentina, Brasil, Peru, Bolívia e Equador, na América Latina; Turquia e Nigéria em outros

continentes). A seu ver não há propriamente uma alternância de sistemas políticos. O sistema

político desses países é que consistiria precisamente nessa incapacidade de consolidar a

democracia.

O segundo grupo é integrado por aqueles países que se inseriram no processo de

democratização dos sistemas políticos compreendidos na primeira onda e não lograram

sustentá-lo. Porém, na segunda onda, chegaram a ser bem-sucedidos (Alemanha, Itália.

Áustria, Japão, Venezuela e Colômbia) ou estão em vias de alcançá-lo na terceira (Espanha,

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122

Portugal, Grécia, Coréia, Checoslováquia e Polônia). A esse modelo denomina de segunda

experiência.

O terceiro grupo denomina-se de interrupção da democracia, depois de tê-la

conseguido estabilizar por grandes períodos (Índia, Filipinas, Uruguai e Chile). O quarto

modelo é o da transição direta (de sistema autoritário estável para a democracia), sendo este o

caso de România, Bulgária, Taiwan, México, Guatemala, El Salvador, Honduras e

Nicarágua). Finalmente, o modelo resultante da descolonização.

As principais causas da terceira onda são as seguintes segundo Huntington: 1) os

problemas de legitimação do autoritarismo num mundo em que os valores da democracia

tornaram-se largamente aceitos; 2) o crescimento econômico sem precedente posterior a 1960;

3) a mudança de posição da Igreja Católica, resultante do Concílio Vaticano Segundo, que

deixou de ser suporte de sistemas autoritários em vários países; 4) a influência externa da

Comunidade Européia e dos Estados Unidos na promoção dos direitos humanos e o

acolhimento dessa influência pela nova liderança soviética; e 5) o “efeito demonstração” que

a adesão à causa democrática por esse ou aquele país veio a alcançar num mundo onde a

comunicação difundiu-se amplamente e tornou-se instantânea.

Além da distinção anterior, referida às próprias ondas de democratização,

Huntington atribuiu grande importância às formas como se deu o abandono do sistema

autoritário, se por iniciativa própria, cujo paradigma é a Espanha, ou pela via insurrecional

(Portugal). A maneira como tenha ocorrido o fenômeno também traz implicações para análise

subseqüente, que é do maior interesse. Trata-se da enumeração dos problemas de que depende

a consolidação do processo bem como a resposta à pergunta quanto às chances de fracasso e

reversão.

Esquematicamente, os problemas que mais influem na consolidação democrática

seriam os seguintes: 1º) atitude diante da tortura (punição ou esquecimento) desde que poder

deixar a nação estancada no passado ou com o sentimento de impotência diante do problema

seguinte; 2º) a questão pretoriana, isto é, capacidade dos militares de opor-se às reformas ou

possibilidade de que trilhem o caminho da profissionalização. Huntington é justamente o

autor do estudo clássico The Soldier and the State (1957) onde comprova que a ingerência

militar na política traduz baixos níveis de profissionalização; 3º) intensidade dos problemas

conjunturais que podem conduzir rapidamente ao saudosismo do ciclo autoritário. Entre os

vários exemplos que suscita sobressaem os da Alemanha e Espanha. Nos anos cinqüenta, a

liderança da reconstrução (Adenauer, sobretudo) não tinha qualquer espécie de sustentação

interna, situação que se prolongou por um largo período. Huntington louva-se na opinião de

estudiosos que concluíram ter as sustentação da República Federal resultado basicamente do

ingresso na vida política das novas gerações. O interregno foi portanto muito dilatado. Na

Espanha, em contrapartida, apesar do agravamento dos problemas (notadamente inflação e

desemprego), a opinião encaminhou-se no sentido de apostar em mudanças segundo o próprio

modelo democrático e não numa volta ao franquismo; 4º) a possibilidade de florescer uma

cultura favorável à democracia. Huntington não o diz expressamente mas, pode-se inferir do

modelo em que situa o Brasil e a Argentina, que esta é uma circunstância desfavorável de

grande peso nos dois países, onde as tradições culturais mais arraigadas não ajudam a

democracia; e, 5º) a institucionalização do comportamento político democrático. Tal resultado

depende de reformas que a própria beneficiária (a elite política) reluta em empreender, como

se dá no Brasil em relação ao voto distrital, para citar um exemplo afeiçoado ao que o autor

tem em vista.

Page 123: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

123

O livro conclui numa das possibilidades de reversão, a exemplo das que surgiram

nas ondas anteriores. Desse ângulo atribui certa importância à duração do ciclo democrático

subseqüente à segunda guerra bem como o relacionamento externo com o mundo

democrático. No que se refere ao último aspecto, considera extremamente favorável a

situação dos países que vieram a integrar um bloco democrático, a exemplo do Mercado

Comum Europeu. Situa o Brasil entre aquelas nações em que tais circunstâncias são

indiferentes ou desfavoráveis, isto é, não há uma influência externa poderosa capaz de criar

uma situação irreversível (como seria, por exemplo, o caso da criação do mercado americano,

resultante do que se está formando entre Estados Unidos, México e Canadá, ao qual

aderíssemos). Contém ainda uma apreciação das chances (remotas) dos países africanos e

islâmicos virem a engrossar a onda democrática.

Em síntese, o que se pode inferir da análise de Huntington é que a democracia não

é dada a todos. Nesses países em que a democracia firmou-se, pode-se atribuir a circunstância

ao capitalismo?

Talvez o que se possa afirmar sem risco de dogmatismo seria o seguinte: as

condições que favoreceram o aparecimento do capitalismo são as mesmas que contribuíram

para a emergência e a consolidação da democracia. Com efeito, o sistema representativo é

uma criação inglesa e difunde-se preliminarmente nas nações protestantes. Esse sistema,

como se sabe, não tinha qualquer compromisso com o ideal democrático. A democratização

da idéia liberal é um processo longo e complexo, abrangendo das últimas décadas do século

passado aos anos vinte. Poucas nações, como registra Huntington, saíram incólumes dessa

prova. A democratização do sufrágio levou ao poder facções totalitários como é o caso da

Itália e da Alemanha. Ambas, certamente, eram nações capitalista mas em presença de

tradições culturais muito desfavoráveis aos dois desfechos (capitalismo e democracia). A

Alemanha obedecendo à hegemonia de um Estado Patrimonial (Prússia) e a Itália, pela longa

tradição de pequenas unidades políticas, resistindo bravamente (como aliás o faz até hoje) à

formação do Estado unitário.

Neste pós-guerra talvez se possa estabelecer uma vinculação mais estreita entre os

dois processos. Certamente a presença do Mercado Comum Europeu é uma circunstância

altamente favorável à consolidação da democracia na Península Ibérica. Esta não é

naturalmente uma relação abstrata. Como reconhece o próprio Huntington, o bem-estar social

facilita a consolidação de práticas democráticas.

NOTAS

(1)

The culture of entrepreneurship, ed. Brigitte Berger, San Francisco, Califórnia, ICS Press,

1991. (2)

A questão do capitalismo japonês, como observa Roberto Campos, “é animal um pouco

misterioso”. Ao que acrescenta: „duvidava-se mesmo que o capitalismo pudesse viajar

naquelas plagas”. Entre as condições que o favoreceram, aponta para a base ética fornecida

pelos samurais. Aproximação entre a ética desse grupo social e a do feudalismo europeu havia

sido efetivada por Marc Bloch (A sociedade feudal; tradução portuguesa, 2ª ed. revista.

Lisboa, Edições 70, 1987). (3)

História econômica geral, trad. espanhola. México, Fondo de Cultura Económica, 6ª

reimpressão, 1987, p. 237-238. (4)

On ne change pas la société par décret. Paris, Grasset, 1979, p. 253-254.

Page 124: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

124

CAPÍTULO VII

ESTRATÉGIA PARA ENFRAQUECER O PATRIMONIALISMO

E FAVORECER O CAPITALISMO

Agora que não mais existem as economias auto-proclamadas de socialistas, talvez

se possa desenvolver a tese de que o fenômeno verificado na Rússia e no Leste Europeu

provavelmente não tenha passado de uma das virtualidades do patrimonialismo. Certamente

aquela derrocada em muito fortaleceu a doutrina do Estado Patrimonial, naturalmente

entendida de forma não dogmática, para atender aos reclamos de estudiosos do porte de Lobo

Torres.

As tentativas de implantação da economia de mercado naqueles países também

deve propiciar muitos ensinamentos. Guy Sormam é bastante cético quanto ao sucesso dessa

empreitada, segundo se pode ver do seu livro Sair do Socialismo.

Tampouco se pode pretender que seriam apenas dois os modelos prevalentes de

economia em nosso tempo: o patrimonialista e o capitalista. Creio que este será um tema

aberto à investigação no futuro imediato. A julgar pela edições que tem patrocinado, o

Institute for the Study of Economic Culture, da Universidade de Boston, dirigido por Peter

Berger, ocupará lugar de destaque em semelhante investigação.

Acredito que a caracterização da economia brasileira como sendo

predominantemente patrimonialista pode atrair para o estudo do tema mentes criativas, de que

depende, em última instância, o sucesso de qualquer linha de pesquisa na Universidade.

Do ponto de vista da estratégia do elemento liberal, a hipótese também poderá

revelar-se muito fecunda. Assim, seria necessário atribuir uma grande prioridade ao estudo da

Contra-Reforma. Este é reconhecidamente um movimento complexo e trouxe significativa

renovação à Igreja Romana, sem o que é provável não teria suportado o ataque que sofreu de

parte do democratismo, sobretudo no século XIX. Contudo, a sua pauta temática

extremamente rica e mobilizadora (livre exame da Bíblia; predestinação e graça; a presença

Cristo na hóstia, que deixara divididos aos próprios protestantes; o segundo mandamento do

Decálogo, relativo às imagens; o posicionamento diante da riqueza, etc.) parece ter sido

enormemente empobrecida no universo cultural da Península Ibérica, desde que, tudo indica,

ter-se-ia concentrado no combate à usura. A questão moral é central. Os liberais não

reverterão o quadro, sobretudo no seio da juventude acadêmica e da intelectualidade, sem

deixar patente a ampla base ética do capitalismo. Num dos estudos recentes, editados sob o

patrimônio do mencionado Instituto dirigido por Peter Beger, o aspecto destacado está

resumido desta forma: “Não há desenvolvimento capitalista sem classe empresarial; não há

classe empresarial sem código moral; não há código moral sem premissas religiosas”.

Em suma, é preciso obter algum arejamento na Universidade e conseguir quebrar

o monólito da dominação marxista-positivista que tem feito fenecer a sua criatividade. Não

deixa ser melancólico continuar assistindo, como se nada tivesse havido, a pregação

Page 125: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

125

comunista nas cátedras universitárias, anacronismo que corresponde, na verdade, ao desfecho

da aliança selada pela denominada esquerda com os governos militares.

É óbvio que essa conquista não assegurará, por si só, o enfraquecimento do Estado

Patrimonial, já que seria irrealista pretender afastá-lo de uma vez de nossa realidade, tratando-

se de uma instituição secular que tem revelado inusitada capacidade de sobrevivência.

A questão crucial seria a seguinte: deve ser incumbência do próprio Estado liderar

o processo? A experiência sugere que o elemento modernizador tem-se originado fora do

Estado Patrimonial. Aceita-o na proporção da força que revele possuir. Mas, na primeira

oportunidade, o expulsará, como ocorreu com Pombal, ou então colocará abertamente a seu

serviço o projeto modernizar, como se verificou com a Revolução de 64, transformando-o

numa plataforma de empreguismo e corrupção.

Na visão de Roberto Campos, mesmo depois de consumado o afastamento do

Estado de funções diretamente produtivas, restar-lhe-á papel essencial no estímulo ao

desenvolvimento econômico sob a égide da iniciativa privada. Segundo seu entendimento,

precisamente este tem sido o papel exercido pelo Estado nos denominados Tigres Asiáticos.

Na conferência de encerramento das atividades do Conselho Técnico da

Confederação Nacional do Comércio, no exercício de 1992, dedicada ao tema da

representação empresarial, na qual considerou a questão do patrimonialismo, Amaury

Temporal constata que o empresariado não foi o agente formulador ou condutor das várias

etapas modernizantes de nossa história. Ao que acrescenta: “Contudo, a ação desenvolvida

por parte de suas lideranças, nomeadamente aquelas que se perfilaram com firmeza em torno

da doutrina do pluralismo democrático da economia de mercado, mesmo quando a postura

resultava em prejuízos transitórios, tem sido importante e indispensável. Lembremo-nos: a

resultante política é vetorial”.

O conhecido líder empresarial entende que mais uma vez em nossa história a

agenda modernizadora corre o risco de interrupção, se não houver pressão da sociedade

organizada. A função do empresariado parece-lhe ser a seguinte: “... agregar forças em torno

de um projeto mínimo, a partir do claro entendimento do que está em jogo. Aqui reside parte

importante de nossa baixa eficiência como agentes de transformação no passado. Por não

entendermos o que poderia ser empreendido, deixamos de tentar, perdidos em uma infinidade

de ações reativas, conjunturais, transitórias, de baixo significado.”

Trata-se, portanto, de encontrar uma pauta mínima, na qual incluiria estes pontos:

1º) Eliminar todas as burocracias estatais devotadas aos programas oficiais de

combate à pobreza. É preciso ter presente que, consoante estudo do Banco Mundial (Brazil -

public spending on social programs: issues and options, 1988) o Brasil aplica em políticas

sociais proporção do PIB (18%) equivalente à que tem lugar nos países desenvolvidos, com os

resultados desastrosos que se conhece porquanto desde 1930, quando o Estado assumiu o

lema de “tudo pelo social”, “opção preferencial pelos pobres”, gerando em seu seio, desde

Vargas, sucessivos “pais dos pobres”, o que se tem visto é que os indicadores da pauperização

das camadas de baixa renda - e da própria classe média - têm-se tornado sempre mais

aterradores. Essas políticas, como tudo mais, transformaram-se em mero pretexto para

justificar a voracidade fiscal e permitir ao patrimonialismo apropriar-se de verbas sem o

menor controle da opinião pública. As dotações públicas para combate à pobreza e

atendimento a contingentes de baixa renda passariam para entidades sem fins lucrativos,

Page 126: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

126

criadas nos próprios locais em que devessem ser aplicadas, condicionada a sua liberação à

apresentação de projeto específico ao Banco do Brasil, que cobraria uma taxa apta a permitir

não só a fiscalização como também a avaliação de seus efeitos, merecendo ambas as

providências a máxima publicidade.

2º) Levar a bom termo o programa de privatização, empenhando-se no sentido de

transformá-lo num novo projeto de desenvolvimento. Com efeito, o maior desastre

representado pela Revolução de 64 consiste justamente em ter-se retirado da cena sem deixar

ao país um projeto de desenvolvimento que pudesse ser liderado pela iniciativa privada e

merecer o apoio do capital estrangeiro. Manietada pelo corporativismo, sua liderança exauriu-

se sem esse gesto de grandeza. Na circunstância, reveste-se da maior relevância o esforço

realizado por João Paulo dos Reis Velloso, no Forum Nacional, no sentido de gerar um novo

consenso em torno da matéria. Nesse particular seria necessário afrontar o anti-americanismo

infantil do Itamarati e colocar na ordem do dia a adesão à ALCA, proposta pelos Estados

Unidos, como parte do processo de constituição do mercado comum que resultará da

ampliação que vem sendo constituído pelos Estados Unidos, Canadá e México.

3º) Não teremos sucesso no combate à voracidade fiscal do Estado enquanto não

se proceder ao reexame específico da estrutura administrativa dos vários órgãos integrantes da

União. A praxe das reduções percentuais no Orçamento atende precisamente ao jogo do

patrimonialismo. Tomo um exemplo singelo. O Ministério da Agricultura mantém até hoje

um órgão denominado Departamento Nacional de Cooperativas (Denacoop), a pretexto de dar

assistência àquelas organizações. Como de fato o Estado nada tem a ver com isto, sua

existência corresponde a mero expediente para justificar empreguismo. Grande parte das

atribuições desse Ministério no que se refere à fiscalização sanitária ou à pesquisa poderia ser

privatizada. Se nos debruçarmos sobre os outros Ministérios, situações análogas serão

encontradas. As organizações empresariais brasileiras dariam uma grande contribuição em

prol da redução dos gastos da União se patrocinassem esse tipo de estudo. Tanto no que se

refere aos dispêndios da União como aos custos das tarifas públicas, o pressuposto básico

consiste na admissão de que as duas instâncias teriam dimensões ótimas, o que não passa de

grave equívoco. Consumada essa proposição, insistir na simplificação tributária que tem sido

sugerida pela Confederação Nacional do Comércio; e,

4º) Concebida uma nova estrutura administrativa para a União, examinar

concretamente as ações de que poderia resultar a dignificação do servidor. Novos objetivos

precisariam ser apontados igualmente às Forças Armadas, de modo a levar a bom termo o

empenho de profissionalizá-las e reduzir suas dimensões.

Essa enumeração poderia prosseguir se se tratasse de uma pauta exaustiva e não

de fixar prioridades, a fim de evitar a dispersão do passado, tão agudamente percebido por

Amaury Temporal.

Nesse esboço estou naturalmente suponho que a liderança empresarial brasileira

estaria convencida de que só tem a ganhar se conseguir obstar a atuação do patrimonialismo e

lograr que o capitalismo alcance um novo patamar. Estaria voltada para pactuar com aquelas

forças que, no interior do Estado, se dispusessem a abdicar das tradições patrimonialistas -

isto é, de estabelecer a tutela do Estado sobre a sociedade -, aceitando o penoso caminho de

buscar a constituição do Estado Liberal de Direito. Não creio que possa sustentar-se a idéia do

patrimonialismo modernizador, depois do desfecho de 64 e da dolorosa experiência dos

governos civis subseqüentes (Sarney, Collor e Itamar), em ambas as circunstâncias,

demonstração cabal da força e do caráter retrógrado do Estado Patrimonial.

Page 127: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

127

Ao enfrentar a questão do patrimonialismo brasileiro cumpre-nos reconhecer

francamente que as tradições culturais prevalecentes em nosso país são francamente

desfavoráveis ao capitalismo. A experiência dos países que conseguiram estabelecê-lo sugere

que guarda estreita dependência em relação ao que se convencionou denominar de moral

social de tipo consensual. Mas esta repousa na pluralidade religiosa. Parece fora de dúvida

que tem crescido o número de adeptos das religiões afro-brasileiras e evangélicas. Conforme

indicamos, estudiosos ligados ao grupo liderado por Peter Berger manifestam grande

esperança em relação aos últimos agrupamentos, no que se refere à criação de circunstâncias

favoráveis ao capitalismo. Ainda assim, essa é uma via de muito longo prazo, ainda que

acabemos, de uma forma ou de outra, por termos de empreendê-la se é que de fato não nos

conformamos com o destino de termos que suportar, indefinidamente, o jugo do Estado

Patrimonial. Talvez fosse mais factível estimular a tradição liberal que, de todos os modos,

corresponde a uma presença em nossa história de nação independente.

A tradição liberal é débil e descontínua e sofreu tão fortes constrangimentos, sob a

República, que a afetariam mesmo se se tratasse de algo melhor estruturado. Tomemos a questão dos partidos políticos.

Os Partidos Liberal e Conservador, no Império, eram certamente simples blocos

parlamentares. Mas foi a partir dessa situação que se formaram os grandes partidos das

democracias do Ocidente. A República extinguiu-os e impôs o sistema do partido único.

Dinâmica diversa somente se inicia em 1926 com a criação do Partido Democrático em São

Paulo. Este agrupamento seria o artífice da União Democrática Brasileira, constituída em

junho de 1937, para sustentar a candidatura de Armando de Salles Oliveira (1887/1945),

dissolvida pelo Estado Novo mas que serviu de embrião da União Democrática Nacional

(UDN), organizada em 1945 com o fim da ditadura de Vargas. O breve interregno

democrático entre 1945 e 1964 permitiu que se definissem pelo menos três grandes partidos

(UDN, PSD e PTB), ainda que a legislação eleitoral, como indicamos, fosse grandemente

desfiguradora da representação. Mas os governos militares não permitiram que a experiência

tivesse curso.

Com a abertura democrática em 1985, tudo começa de novo, insistindo-se nos

mesmos equívocos da década de trinta e do pós-45. O único fato novo digno de assinalar-se

consiste na circunstância de que uma parte da classe política tradicional perdeu o medo de

denominar-se liberal. Mas aqui comete, segundo entendo, um erro craso.

A doutrina liberal vem sendo sedimentada desde Locke e Kant. Está contida em

alguns textos básicos e, para que todos tivessem presente essa evidência, com alguns amigos

organizei o livro a eles dedicado, que intitulamos de Evolução histórica do liberalismo (Belo

Horizonte, Itatiaia, 1987). Entretanto, os partidos liberais não a levam em conta e poucos

dentre os seus líderes dispuseram-se a estudar essas obras. De sorte que, com muita

freqüência, não sabem fixar uma linha diferenciadora. O grande trunfo com que contamos na

concepção e organização das instituições do sistema representativo, sob o Império, consistiu

precisamente na qualidade da liderança liberal. Esta teve na pessoa de Silvestre Pinheiro

Ferreira um mestre inexcedível, podendo desde logo dispor dessa conquista notável que foi a

sua doutrina da representação. Os liberais republicanos não tiveram competência para derrotar

os castilhistas, entre outras coisas, porque perderam de vista aqueles ensinamentos relativos à

natureza da representação. O fato repete-se em nossos dias na discussão de um tema básico

como o voto distrital. Nossos políticos liberais deixam-se enredar pelo sofisma de que a

eleição se faz para assegurar a representação das minorias quando, na verdade, a sua missão

cifra-se em assegurar maiorias sólidas, capazes de alcançar a estabilidade política, valor maior

Page 128: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

128

na vida democrática. A experiência de todos os dias demonstra à saciedade que as minorias

são hoje muito ruidosas e conseguem, nos meios de comunicação, martelar-nos com as suas

teses. Nos assuntos específicos de que têm se ocupado, alcançam sucesso invejável, de que é

exemplo expressivo a questão ambiental. Em nenhuma parte do mundo tiveram audiência

através da representação parlamentar.

O partido político moderno não é naturalmente nenhuma instância ideológica.

Essa feição é um ranço patrimonialista, do qual a sociedade ocidental acabará por livrar-se

quando tiver sedimentado o atual quadro mundial subsequente ao fim do comunismo,

refluindo tais organizações para o mundo (patrimonialista) que lhe é próprio. Contudo, as

organizações partidárias precisam dispor de um núcleo programático, a partir do qual propõe

e concretiza alianças (não desfiguradoras). Gary Hart selou sua sorte como postulante à

indicação presidencial pelo Partido Democrático, em 1984, ao proclamar que os democratas

deviam voltar as costas ao New Deal, de nada adiantando esclarecer que, ao afirmá-lo, tinha

em vista não “a mudança de princípios, metas, aspirações ou ideais, mas de métodos”. (1)

Precisamente o New Deal, marco inicial proeminente do Welfare, corresponde a uma parte

integrante do núcleo programático daquele partido, do qual não pode prescindir. Deste modo,

as eleições devem proporcionar o afunilamento dos interesses, que devem consubstanciar-se

em algumas siglas.

É preciso ter presente que não pode haver democracia sem partidos políticos.

Estes certamente não resultam de nenhuma “aritmética política” – para usar a expressão

cunhada por Pombal –, equívoco em que incidiu mesmo um homem tão lúcido como o

Marechal Castelo Branco e que muito provavelmente tinha clareza quanto aos objetivos de

64, a julgar pelo teor de suas reformas, que incidiram sobre as próprias Forças Armadas, para

dificultar novas intervenções (o que parece ter conseguido ainda que talvez com custos

excessivos para o país, submetido à paralisia institucional por vinte anos). De modo que o

processo de sua constituição deve seguir o curso natural, assim entendido o que resultar do

consenso da classe política.

No que se refere entretanto aos liberais organizados em partido político, não

podem fugir do imperativo de familiarizar-se com a doutrina, reconstituindo os laços que

perdemos com os grande centros em que se dá o debate e o amadurecimento das questões

emergentes. A par disto, teriam que buscar identificar-se com a tradição do liberalismo

político brasileiro, hoje plenamente reconstituída. Não há tradição cultural em abstrato,

desencarnada, sem personagens e histórias. Nesse mister, certamente temos de que nos

orgulhar.

À primeira vista parece difícil recuperar uma tradição cultural espezinhada e

combatida ao longo de todo um século. Mas são muitos os indícios de que já estivemos mais

longe de alcançá-lo. O mais importante, sem dúvida, corresponde ao renascimento da

liderança política liberal. Dar-lhe forma e levá-la a empreender um caminho de sucessos – eis

desafio a enfrentar no futuro imediato.

NOTA

(1)

O oponente de Reagan, naquela eleição, foi Walter Mondale, que havia sido vice-

presidente de Jimmy Carter.

Page 129: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

129

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Page 134: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

134

ÍNDICE ONOMÁSTICO

BARBOSA, Rui 37

BARRETTO, Vicente 7, 8, 10, 19, 54, 54, 62

BENDIX, Reinhard 12

BERGER, Peter 111, 123, 126

BRANCO, Mal. Castelo 9, 35, 127

BUESCU 44, 45

CAETANO, Marcelo 20

CAIRU, Visconde de 51, 53, 70

CAMPOS, Milton 94

CAMPOS, Roberto 7, 36, 111, 124

CANECA, Frei 50

CASTILHOS, Júlio de 71, 73, 74, 75, 76, 77

CIDADE, Hernani 47

COELHO, Edmundo Campos 8

COMTE, Augusto 21, 25, 26, 60, 65, 66, 67, 68, 73, 75, 77, 78, 79. 84, 107

COSTA, Edgar 89, 91

CONSTANT, Benjamin 57, 58, 61, 65, 66, 67

COUTINHO, D. Rodrigo de Souza 49, 62, 63

CROZIER, M. 113

CUNHA, Euclides da 10, 26

DRUCKER, Peter 113, 114

DURKHEIM, Emile 25

DUVERGER, Maurice 105

FAORO, Raimundo 6, 7, 17, 18, 19, 20, 21

FERREIRA, Silvestre Pinheiro 52, 53, 54, 55, 57, 58, 73, 90

HUNTINGTON, Samuel 8, 120, 121, 122

HERCULANO, Alexandre 18, 20, 33, 45

JOIA, Italo 7

KEYNES, J.M. 87, 88, 94, 104

KNAACK DE SOUZA, J.D. 85, 95

LOURENÇO FILHO, Manoel 82, 83

MADEIRA, Marcos Almir 28

Page 135: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

135

MEDEIROS, Borges de 23, 71, 72, 76, 77, 78, 79, 86

MELO FRANCO, Afonso Arinos 93

MERCADANTE, Paulo 34, 50, 51

MOOG, Viana 34, 39

MORAES, Rubens Borba de 39

MORAES FILHO, Evaristo 81,83, 84, 107

MOTTA, Jeovah 63, 65

MYRDAL, Gunnar 108

NUNES, Feliciano Souza 40

PAIM, Gilberto 103, 104

PENNA, Meira 24

POMBAL, Marquês de 6, 37, 46 49, 63, 70

PRADO JR., Caio 20, 21

REALE, Miguel 52

REIS, Aarão 68, 69, 70, 86

RODRIGUEZ, Ricardo Vélez 6, 26, 73, 106

ROMERO, Sílvio 26, 106

SÁ, Mem de 78

SALES, Campos 61, 70, 71, 73, 75

SALVADOR, José Gonçalves 38, 39

SANTOS, Murillo 8, 9, 61

SANTOS, Wanderley Guilherme dos 6, 10, 87

SARAIVA, Antonio José 41, 43, 44

SARAIVA, José Hermano 45

SCHWARTZMAN, Simon 6, 17, 21, 24, 61

SILVA, Gen. Alencastro e 106, 107, 108, 109, 110

SIMONSEN, Mário Henrique 104

SMITH, Adam 47

SOUZA, Pompeu de 91, 92

TEMPORAL, Amaury 124, 125

TORRES, Alberto 26, 27

TORRES, João Camilo de Oliveira 19

TORRES, Ricardo Lobo 7, 17, 20, 21, 123

TUBINO, Manoel Gomes 7

URICOCHEA, Fernando 24

Page 136: A QUERELA DO ESTATISMO - Instituto de Humanidades

136

URUGUAI, Visconde de 52, 58

VARGAS, Getúlio 34, 35, 61, 71, 76, 76, 79, 82, 84

VELLOSO, João Paulo dos Reis 125

VIANA, F.S. Oliveira 7, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 107, 110

WEBER, Max 6, 7, 8, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 10, 21, 25, 26, 32, 111, 112, 114

WITTFOGEL, Karl A. 7, 14, 15, 16, 17

ZAMBROTI, Renato C. 7

ZERKOWSKI, Ralf 7