24
UNIESP 30 Carlos Ceia* O PODER DO ROMANCE: O CASO DE UMA RAINHA DE INGLATERRA QUE SE APAIXONOU PELA LITERATURA THE POWER OF NOVEL: THE CASE OF THE QUEEN OF ENGLAND WHO FELL IN LOVE WITH LITERATURE Autor e Texto Author - Text PALAVRAS-CHAVE RESUMO ABSTRACT KEY WORDS R.TEMA S.Paulo nº 56 jul/dez 2010 P. 30 - 53 O objetivo deste artigo é discutir o romance The Incommon reader, de Alan Bennet, que trata com humor a questão da leitura, e de uma leitora incomum, a Rainha da Inglaterra, que descobre o prazer de ler obras ficcionais e deixa para trás todas as suas tarefas de Estado. O artigo alerta para o jogo intertextual irônico entre os conceitos de incommon reader com o de common reader, divulgado por Virgínia Woolf, na década de 1920, que fica perdido tanto na tradução portuguesa da obra, como na brasileira, publicada pela Record. Leitor comum. Leitor incomum. Aprendizagem da leitura. Leitura crítica. Jogo intertextual. Common reader. Uncommon reader. Reading apprenticeship. Critical reading. Intertextual game. *Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde dirige os mestrados em ensino e o mestrado em didática de língua inglesa (Master of arts in Teaching English as Foreign/Second Language). The purpose of the present article is to discuss the novel The Uncommon Reader written by Alan Bennet. It not only deals humorously with the question of reading in general, but also focuses the reading of an uncommon reader, Queen of England, who discovers the pleasure of reading fictional works neglecting all the State duties. The article calls attention to the intertextual and ironic game between the concepts of the uncommon reader and of the common one, published by Virginia Woolf, in 1920 decade, which remains obscured in the Portuguese translation as well as in the Brazilian one, published by Record.

A Leitora Real

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Leitora Real

UNIESP 30

Carlos Ceia*O PODER DO ROMANCE: O CASO DE UMA RAINHA DE INGLATERRA QUE SE APAIXONOU PELA LITERATURA

THE POWER OF NOVEL: THE CASE OF THE QUEEN OF ENGLAND WHO FELL IN LOVE WITH LITERATURE

Autor e TextoAuthor - Text

PALAVRAS-CHAVE

RESUMO

ABSTRACT

KEY WORDS

R.TEMA S.Paulo nº 56 jul/dez 2010 P. 30 - 53

O objetivo deste artigo é discutir o romance The Incommon reader, de Alan Bennet, que trata com humor a questão da leitura, e de uma leitora incomum, a Rainha da Inglaterra, que descobre o prazer de ler obras ficcionais e deixa para trás todas as suas tarefas de Estado. O artigo alerta para o jogo intertextual irônico entre os conceitos de incommon reader com o de common reader, divulgado por Virgínia Woolf, na década de 1920, que fica perdido tanto na tradução portuguesa da obra, como na brasileira, publicada pela Record.

Leitor comum. Leitor incomum. Aprendizagem da leitura. Leitura crítica. Jogo intertextual.

Common reader. Uncommon reader. Reading apprenticeship. Critical reading. Intertextual game.

*Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde dirige os mestrados em ensino e o mestrado em didática de língua inglesa (Master of arts in Teaching English as Foreign/Second Language).

The purpose of the present article is to discuss the novel The Uncommon Reader written by Alan Bennet. It not only deals humorously with the question of reading in general, but also focuses the reading of an uncommon reader, Queen of England, who discovers the pleasure of reading fictional works neglecting all the State duties. The article calls attention to the intertextual and ironic game between the concepts of the uncommon reader and of the common one, published by Virginia Woolf, in 1920 decade, which remains obscured in the Portuguese translation as well as in the Brazilian one, published by Record.

Page 2: A Leitora Real

31 TEMA

Carlos Ceia

O PODER DO ROMANCE: O CASO DE UMA RAINHA DE INGLATERRA QUE SE APAIXONOU PELA LITERATURA

THE POWER OF NOVEL: THE CASE OF THE QUEEN OF ENGLAND WHO FELL IN LOVE WITH LITERATURE

O romance de Alan Bennett The Uncommon Reader (2007) parodia a soberania do leitor contemporâneo a partir da tese que Virginia

Woolf publicou, em 1925, numa colecção de ensaios (The Common Reader), onde procurou descrever o perfil do leitor que lê por prazer em oposição ao leitor que lê por obrigação profissional. Ambos os textos discutem a questão do gosto literário e o estatuto possível de quem interpreta esse gosto e com que fim. No romance de comédia de costumes de Bennett, a mais improvável das personagens é o leitor “incomum”: a Rainha de Inglaterra, que descobre o prazer da leitura ficcional, deixando para segundo plano todas as suas tarefas de Estado. Este simbólico triunfo da leitura literária na vida de uma grande estadista põe também a nu a falta de hábitos de leitura na sociedade contemporânea, o que não escapou a este inclassificável escritor britânico1. 1De acordo com o perfil traçado no The Guardian, “He has been called everything from national treasure and prose laureate to curmudgeon laureate and Oracle of Little England.”. Ver “The Guardian profile: Alan Bennett”, <http://www.guardian.co.uk/stage/2004/may/14/theatre3/print> (acedido em Janeiro de 2010).

Page 3: A Leitora Real

UNIESP 32

Os hábitos de leitura na sociedade contemporânea estão devidamente diagnosticados na maior parte dos países desenvolvidos. O que espanta é o facto de se chegar quase sempre à mesma conclusão, qualquer que seja o contexto social e civilizacional: poucos lêem livros, poucos lêem livros de ficção e muito menos de poesia ou teatro. Já não nos surpreende que uma pesquisa recente qualquer conclua que hoje os norte-americanos lêem apenas dois livros por ano. O cenário actual ajuda a reinvenções do poder da leitura literária, como acontece com o romance de Bennett, quando faz da Rainha de Inglaterra uma leitora compulsivamente deliciada com a descoberta da literatura universal.

Tudo começa com a visita regular de uma biblioteca itinerante que entra pela porta mais pequena do Palácio de Buckingham, ao encontro do ajudante de cozinha Norman, de início uma personagem irrelevante, cujo único interesse reside no facto de ter hábitos de leitura literária e requisitar livros regularmente a essa biblioteca popular. A curiosidade reservada da Rainha leva-a à descoberta daquela biblioteca

Page 4: A Leitora Real

33 TEMA

e,gradualmente, torna-se uma leitora regular, devorando todos os grandes livros que o seu agora precioso funcionário lhe vai recomendando. Começa com um livro de Ivy Compton-Burnett, um nome que ela reconhece, porém esta primeira leitura revela-se muito “seca” (“dry”); a segunda escolha é decisiva: o romance de Nancy Mitford, The Pursuit of Love (1945), escolha perfeitamente adequada a quem decide investir em ficção literária, porque havia o perigo de esse empreendimento falhar, na convicção da Rainha (e do narrador), se a escolha tivesse recaído numa George Eliot ou em alguma obra tardia de Henry James, porque não são autores fáceis para quem se quer iniciar nesta aventura da leitura. Quando Norman vai frequentar um curso de escrita criativa na University of East Anglia, a Rainha já é uma leitora autónoma, que devora os grandes livros da literatura, uma imagem forte que ganha ainda mais força por o seu intérprete ser uma figura pública de relevo.

Depressa nos esquecemos de que o que nos devia surpreender era o facto de tal imagem ser um produto

Page 5: A Leitora Real

UNIESP 34

ficcional e não um retrato realista. É quando combina as questões de estética da recepção e o problema da leitura literária com a narrativa de ficção que imaginou que Bennett sobressai neste romance e o torna diferente de tantas outras transfigurações ficcionais da Rainha de Inglaterra. A princípio, a sua educação autodidáctica não lhe permite resolver problemas de sociologia da literatura como o ilustrado nos romances de Jane Austen: a Rainha pertence a uma classe social privilegiada, logo não tem o distanciamento necessário para compreender o jogo das classes sociais e seus conflitos éticos, culturais, políticos e de outras espécies, que caracterizam o mundo ficcional de Austen. Alguma outra aprendizagem deve poder ser obtida com a leitura de livros de ficção. Alguém como a Rainha de Inglaterra, que viajou pelo mundo inteiro e conheceu as mais influentes personalidades mundiais e os maiores artistas de várias décadas, ambiciona tirar da literatura um conhecimento diferente daquele que o leitor comum espera conquistar. O que a vai cativar na leitura literária é a dimensão do jogo ficcional, um jogo que nenhum dos seus súbditos alguma vez soube jogar, uma dimensão de desfamiliarização e desprendimento que aqueles que com ela convivem não podem sequer aspirar a sentir: “The appeal of reading, she thought, lay in its indifference: there was something undeferring about literature. Books did not care who was reading them or whether one read them or not. All readers were equal, herself included2.”. Esta é uma teoria maximalista de estética da recepção, mas não deixa de funcionar como uma lição indirecta a todos os políticos que passam ao lado do seu património literário e mesmo

2Alan Bennett The Uncommon Reader, Profile Books, Londres, 2007, p. 30.

Page 6: A Leitora Real

35 TEMA

assim se julgam acima de qualquer literatura. Não é o caso desta singular Rainha de Inglaterra, que declara, com humildade sincera: ‘Above literature?’ said the Queen. ‘Who is above literature? You might as well say one was above humanity.’” (p. 117). A paixão pela literatura é aqui uma porta segura para nos relacionarmos com os outros e para os compreendermos melhor e, no caso específico desta Rainha, uma oportunidade para se aproximar daquelas classes sociais comuns de quem sempre foi obrigada a viver à distância. O perfil do leitor incomum fica rapidamente traçado, sendo de realçar, por força da mensagem alegórica de Bennett, que a Rainha-leitora vai secundarizar todas as suas obrigações de Estado para poder concentrar-se na absorção completa do maior e melhor conhecimento das grandes literaturas do mundo, o que aproveitará para renovar o seu próprio discurso político ao qual vai poder acrescentar, triunfalmente, analogias e alusões literárias:

Still, though reading absorbed her, what the Queen had not expected was the degree to which it drained her of enthusiasm for anything else. It’s true that the at prospect of opening yet another swimming-baths her heart didn’t exactly leap up, but even so, she had not exactly resented having to do it. ... Now she surveyed the unrelenting progression of tours, travels, and undertakings stretching years into the future only with dread. (p. 60)

Esta capacidade para a viagem espiritual por novos mundos

Page 7: A Leitora Real

UNIESP 36

que a literatura oferece é o que maravilha a nova apaixonada pela leitura literária, que doravante não irá dispensar Henry James, Charles Dickens e Marcel Proust. A paixão pela literatura não é tão fácil de definir como os muitos tratados sobre estética podem indicar. Essa paixão pode ser hoje visível num comentário insignificante como este, publicado num blogue brasileiro: “Ótimo. Delicioso mesmo. Curtinho. Li numa sentada.”, onde importa menos a falta de erudição do comentário do que o facto de o livro ter sido lido e apreciado e essa experiência ter sido anunciada, mesmo que na pior expressão gramatical. O gosto literário também não existe sem comparações, por isso este outro leitor anónimo escreveu em comentário numa livraria internacional: “This is a light, charming, and amusing little book that I breezed through in about an hour. It was just the thing I needed after having to plow through Paradise Lost for an English class!”. Esta nova forma de divulgação imediata da recepção de uma obra literária, hoje muito bem explorada pelas grandes livrarias virtuais como a Amazon ou a Barnes & Noble, muda de alguma forma a percepção que temos de um novo livro. O universo de leitores dessas livrarias electrónicas, a par dos milhões de blogues pessoais que se dedicam também ao comentário literário, obriga-nos a rever as condições em que reconhecemos o perfil do leitor ideal ou do leitor comum. Comum significa hoje “não profissional”, “não académico”, “não escolar”; a evolução do conceito no quadro da leitura literária obriga-nos a acrescentar novos sentidos: público, partilhado, popular, descomprometido. Esta nova estética da recepção da obra de arte literária cria um maior fosso entre o leitor profissional e académico (“não comum”, na acepção de Johnson e Woolf) e o leitor comum (a Rainha de Inglaterra é, neste caso do romance de Bennett, uma leitora

Page 8: A Leitora Real

37 TEMA

comum, apenas sendo incomum por não ser um indivíduo anónimo). O filme de Stephen Frears The Queen (2006), escrito por Peter Morgan e com Helen Mirren no papel de Elizabeth II, é um retrato de uma época terrível para a família real, quando Lady Di morre em Paris num acidente de carro. O filme pode ser de antítese do romance de Bennett. As relações da Rainha — aqui uma personagem mais próxima da realidade conhecida da intimidade de Elizabeth II do que acontece no romance de Bennett, nunca preocupado com a questão da verosimilhança entre personagem ficcional e personagem real — com o recente eleito Primeiro-Ministro Tony Blair, com quem tem de partilhar importantes decisões para o País, mostram que, para além dos jornais diários, pouco mais interessa ler. Aliás, é o poder social da comunicação social que é posto em causa, porque aqui o acesso desenfreado à informação e à sua divulgação impedem qualquer desejo de partilhar o conhecimento das experiências humanas mais singulares. Um outro filme para televisão, escrito por Alan Bennett, A Question of Attribution (1991), dirigido por John Schlesinger, e com Prunella Scales como Queen Elizabeth II, conta a história do britânico Sir Anthony Blunt, que, para além de se revelar como espião soviético nos anos de 1950, faz trabalhos de restauração na década de 1960 no Palácio de Buckingham, permitindo-lhe a oportunidade de poder conversar longamente com a Rainha, que surge aqui como uma amante de arte. O filme de Frears mostra uma Rainha que gosta, acima de tudo, de impor o direito à reserva privada da sua vida, por mais pública que o mundo deseje que ela seja. O filme-peça de Bennett revela uma Rainha que se atreve, com simpatia igual a qualquer outro ser humano, a gostar de arte e de a discutir com um

Page 9: A Leitora Real

UNIESP 38

especialista, mesmo quando falam de arte falsificada, a propósito de uma peça na colecção real que o restaurador descobre ser falsa. O que Bennett fez em The Uncommon Reader foi criar um cenário que permite à mesma Rainha, ainda que apenas literariamente, sentir-se igual a todos os homens e mulheres que partilham vidas e sentimentos comuns através dos livros de ficção. The Queen and I (1992), de Sue Townsend, é uma outra tentativa literária de reconfigurar a Rainha de Inglaterra como uma personagem comum: depois das eleições gerais de 1992, a Casa de Windsor perde o seu estatuto real pelo reinante Partido Republicano Popular; os nobres ingleses são obrigados a viver exactamente como todos os britânicos comuns, desde a espera de cinco horas por uma consulta médica até à dificuldade em viver com um ordenado de classe média-baixa. O triunfo desta humaníssima Rainha de Inglaterra na sua vida comum é total, pois no fim do romance-drama rejeita regressar ao Palácio de Buckingham para as suas tarefas reais. A estratégia de Sue Townsend é idêntica à de Alan Bennett: precisamos de fazer descer à terra que todos pisamos os deuses que adoramos e cuja natureza julgamos ser distinta da nossa para nos compreendermos melhor. Os gregos antigos gostavam dos seus inúmeros deuses porque eram imagens de humanidade; se queremos denunciar as nossas falhas comuns, nada melhor do que as apontarmos àqueles de quem menos se espera que as cometam.Esta humanização de uma figura real ajuda a passar uma mensagem maior do livro de Bennett: nunca é tarde para ganhar hábitos de leitura. Esta Rainha-leitora aprende tarde esse ganho, mas aprende rapidamente e com consequências que se traduzem na sua maior humanização, conforme a personagem confessa. Para o leitor “incomum”, ler é ler

Page 10: A Leitora Real

39 TEMA

tudo e de forma completa, não apenas algumas páginas. A Rainha associa o seu processo de crescimento como leitora ao projecto pessoal de poder usufruir de momentos em que se sente uma pessoa “normal”, mais próxima da humanidade comum dos homens. Isso não se vê na artificialidade das suas aparições públicas estudadas para parecerem “normais” (“... this is the Queen and her family at their most human and natural.”, p. 78), mas no acto íntimo da leitura privada. É a ler que a Rainha se sente mais humana e “normal”. Como todos à sua volta se parecem esquecer desse direito natural, a evolução desta leitora singular vai dar-se num sentido inesperado no seu mundo azul:

‘As some of you may know, over the years I have become an avid reader. Books have enriched my life in a way that one could never have expected. But books can only take one so far and now I think it is time that from being a reader I become, or try to become, a writer.’ (p. 112)

A Rainha vai tomando infinitas notas nos seus cadernos pessoais após as suas leituras e contactos com escritores. Enquanto os seus súbditos se preocupam com o facto por ele indiciar que a Rainha possa sofrer de Alzheimer e necessitar de tomar apontamentos para não se esquecer de nada, a verdade é que a sua preocupação está antes apontada às consequências da sua identidade nobre: por que não há-de ter direito à sua própria humanidade? O que quer dizer, em termos literários, que se julga no direito de poder ser um leitor comum, como se vê nesta reflexão:

Page 11: A Leitora Real

UNIESP 40

‘Notably well behaved himself [Anthony Powell] and even conventional, he remarked that being a writer didn’t excuse one from being a human being. Whereas (one didn’t say this) being a Queen does. I have to seem like a human being all the time, but I seldom have to be one. I have people to do that for me’ (p. 73)

A questão estética essencial de The Uncommon Reader é universal: como é que podemos começar a gostar de ler, sobretudo ler bons livros do património literário mundial? Podemos acrescentar a esta questão central uma série de constrangimentos sociais de hoje que funcionam como explicações para a dificuldade em responder positivamente a esse desafio: o predomínio de uma sociedade da informação viciada na troca rápida de mensagens verbais e audiovisuais (MySpace, Facebook, Twitter, American Idol, YouTube, etc.), o favorecimento da indiferença perante os fenómenos literários que ocorrem longe do mundo electrónico e comunicacional que hoje ocupa quase totalmente o imaginário colectivo e individual, o triunfo de obras literárias de fácil leitura e viradas para o espectáculo da narrativa, com um forte apelo a mundos fantasistas (Harry Potter) ou falsamente históricos (Código da Vinci). O que é aqui singular é a descoberta de um novo leitor apaixonado que ignora todos estes apelos da sociedade pós-industrial e controlada pela virtualidade, pelo marketing e pelos simulacros da realidade, e se vira para os mais clássicos textos da literatura de todos os tempos. Uma explicação mais simples é a que o livro de Bennett nos dá: no momento certo da vida, se um dado livro nos cair nas mãos e esse livro contiver arte suficiente para nos

Page 12: A Leitora Real

41 TEMA

impressionar, como aconteceu com a Rainha de Inglaterra e o romance Pursuit of Love, de Nancy Mitford, pode despertar em nós um gosto por ler que nunca mais perderemos. Para o próprio Bennett, esta escolha foi fácil, porque foi esse o livro que fez com que ele próprio descobrisse o prazer de ler, que nunca mais perdeu. Este ideal romântico simples funciona bem no romance de Bennett precisamente porque soube escolher o mais improvável (“incomum”) dos leitores para defender essa tese. Teria sido mais fácil comprovar esse ideal se o leitor fosse uma criança, porque hoje estão mais do que consagrados os estudos sobre a forma como as crianças podem adquirir hábitos de leitura para toda a vida. Para o caso que Bennett escolheu – um leitor sénior com uma vida pública conhecida mundialmente -, não existe bibliografia passiva sobre o assunto, o que torna o livro ainda mais singular. A condição para nos tornamos leitores de literatura não está, pois, determinada pela precocidade do indivíduo mas pelo momento, qualquer que ele seja, em que descobrimos o prazer de ler bons livros3. Haverá sempre excepções e mesmo em outros leitores incomuns com vida pública mundialmente conhecida o mesmo gosto pela leitura pode não produzir efeito externo nenhum visível: é dito na biografia Dead Certain: The Presidency of George W. Bush (2007), assinada por Robert Draper,que só num ano Bush leu 87 livros, algo que dificilmente o cidadão comum podia adivinhar. 3Da extensa lista de recensões a este romance, é importante destacar aquelas que não deixam de mencionar o facto de este livro de Bennett ser também uma elegia ao prazer da leitura literária, como acontece no comentário publicado por Bob Minzesheimer no USA Today: “The Uncommon Reader is a political and literary satire. But it’s also a lovely lesson in the redemptive and subversive power of reading and how one book can lead to another and another and another. (...) The Uncommon Reader is an appreciation of reading not out of obligation, but purely for pleasure, without being preachy and pretentious.” (10-1-2007, disponível em: < http://www.usatoday.com/life/books/reviews/2007-10-01-uncommon-reader_N.htm>, consultado em Fevereiro de 2010). A Rainha terá a sua oportunidade para interpelar autores (Priestley, Larkin, Eliot, Hughes, por exemplo) no seu próprio reino, mas o encontro nunca foi muito eficaz, porque os autores se revelaram mais interessantes em livro do que em pessoa.

Page 13: A Leitora Real

UNIESP 42

O título do romance de Bennett é um jogo intertextual irónico com o conceito de “leitor comum” (“common reader”)4 que Virginia Woolf divulgou na década de 1920. O termo commoner designa também todos aqueles que estão para além do círculo aristocrático restrito, o que, se aplicado a The Uncommon Reader, nos conduz à Rainha como uma leitora invulgar, também porque não é confundível com o leitor comum, que é a condição do leitor que está fora do seu círculo restrito (o commoner). Contudo, diria que não é esse - a marcação dos limites que separam a Rainha de Inglaterra dos demais súbditos - o caminho preferido do livro. Virginia Woolf recuperou a expressão “the common reader” de Dr. Johnson:

those rooms, too humble to be called libraries, yet full of books, where the pursuit of reading is carried on by private people.”5A frase de Dr. Johnson em questão é esta: “[51] In the character of his Elegy I rejoice to concur with the common reader; There is a sentence in Dr. Johnson’s Life of Gray which might well be written up in all those rooms, too humble to be called libraries, yet full of books, where the pursuit of reading is carried on by private people.”5 A frase de Dr. Johnson em questão é esta: “[51] In the character of his Elegy I rejoice to concur with the common reader; for by the common sense of readers uncorrupted with literary

4Na tradução portuguesa editada na Asa, A Leitora Real (tradução de Helena Cardoso, 2009), perde-se o jogo intertextual com o livro de Virginia Woolf. A tradução brasileira segue o mesmo caminho: Uma Real Leitora (Record, 2008).5Virginia Woolf, The Common Reader, Harvest, San Diego, Nova Iorque e Londres,1984, p. 1 (1st ed., Harcourt, Nova Iorque, 1925).

Page 14: A Leitora Real

43 TEMA

prejudices, after all the refinements of subtilty and the dogmatism of learning, must be finally decided all claim to poetical honours.”6

A tese de Woolf ajusta-se ao leitor comum que veste a personagem de Rainha de Inglaterra no romance de Bennett:

The common reader, as Dr. Johnson implies, differs from the critic and the scholar. He is worse educated, and nature has not gifted him so generously. He reads for his own pleasure rather than to impart knowledge or correct the opinions of others. Above all, he is guided by an instinct to create for himself, out of whatever odds and ends he can come by, some kind of whole—a portrait of a man, a sketch of an age, a theory of the art of writing. (p. 1)

O leitor comum que Woolf procura não pode ser encontrado nas academias ou em qualquer escola literária. Beth Carole Rosenberg já investigou os ângulos de comparação possíveis entre os dois escritores ingleses: Virginia Woolf and Samuel Johnson: Common Readers, St. Martin’s Press, Nova Iorque, 1994). O tipo de leitor comum que Woolf tentou circunscrever na sua estética é aquele que se revela na prática intensa de leitura, apenas movido por um desejo natural de aprender algo mais e ávido por encontrar na literatura uma forma de acrescentar novas experiências à sua própria vida. Não há novidade nesta visão se comparada à teoria de Johnson, pelo menos à sua época (século XVIII), 6Life of Gray, ed. por Jack Lynch, in The Lives of the Poets, ed. G. B. Hill, 3 vols. (Oxford: Clarendon, 1905), disponível em: < http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Texts/gray.html>, consultado em Janeiro de 2010.

Page 15: A Leitora Real

UNIESP 44

e que se resume à ideia do leitor ideal (ou comum) como alguém “incorrupto” e sem “preconceitos”7 , que não foi influenciado ou instruído por nenhuma crítica literária, o que lhe permitirá mostrar desagrado por algo que o possa ter interessado a uma primeira leitura (“to dislike that which pleased him in his natural state.”)8 . Havia, nesse século XVIII inglês, claramente duas visões da literatura em oposição: o mundo descomprometido do leitor e dos autores livres de influências e de escolas (numa só palavra, o público), apenas preocupados com a satisfação do leitor comum, que é o mundo de Samuel Johnson; e o mundo oposto da aprendizagem da literatura e do literário por via escolar, crítica, intelectual e disciplinar, que é a perspectiva onde se situa John Dryden, a mais importante figura da vida literária na Inglaterra durante a segunda metade do século XVII. Uma das mais citadas frases de Dryden, presente nos dicionários de citações de todo o mundo e nunca referenciada bibliograficamente - “We first make our habits, and then our habits make us.” – pode ser entendida como uma explicação positiva da sua perspectiva escolar sobre a aprendizagem da leitura e da crítica literária ou como uma explicação não menos positiva do romance de Bennett.A citação atribuída a Dryden não passa de uma variante de um ensinamento mais antigo de Aristóteles na sua Ética a Nicómaco: “As excelências, então, não se geram em nós nem por natureza,nem contra a natureza, mas por sermos constituídos de tal modo 7“In the character of his Elegy I rejoice to concur with the common reader; for by the common sense of readers uncorrupted with literary prejudices, after all the refinements of subtilty and the dogmatism of learning, must be finally decided all claim to poetical honours.” Edited by Jack Lynch from The Lives of the Poets, ed. G. B. Hill, 3 vols. (Oxford: Clarendon, 1905), §[51], versão integral disponível em: <http://ethnicity.rutgers.edu/~jlynch/Texts/gray.html>, consultado em Fevereiro de 2010.8Idler 3, The Idler and The Adventurer, ed. W. J. Bate, John M. Bullitt, L. F. Powell, Vol. ii of The Yale Edition of the Works of Samuel Johnson (New Haven: Yale Univ. Press, 1963), p. 12.

Page 16: A Leitora Real

45 TEMA

que podemos, através de um processo de habituação, acolhê-las e aperfeiçoá-las.”9 Em qualquer dos casos, a ideia central adapta-se na perfeição ao modo de construção de um leitor: constituímo-nos como leitores, lendo repetidamente e é nessa habituação que iremos descobrir não só a excelência do que lemos como a excelência do que somos. Mas nunca lemos sozinhos, tal como um escritor nunca atinge o êxito se escrever para si só; na teoria da crítica literária de Johnson, compete ao público (o leitor ideal) a palavra final sobre o mérito de uma obra de arte literária, logo a opinião sobre aquilo que lemos, enquanto formos parte desse público, é tão importante quanto a genialidade daquilo que está escrito. Porque ler é um acto público quando se transforma em reconhecimento do mérito literário, uma leitora como a Rainha de Inglaterra terá sempre uma responsabilidade acrescida quando atribuir juízos de valor aos livros que lê. É certo, pelo menos para a maior parte dos leitores de Woolf, que a posição crítica de The Common Reader não difere muito da tendência impressionista e carregada de subjectividade que já vem do final do século XIX e que só foi ultrapassada com uma postura mais científica e objectiva com T. S. Eliot.10 A revisão do conceito de leitor que Alan Bennett ensaia em The Uncommon Reader não obriga à fixação de uma teoria

z9Ética a Nicómaco, trad. de António C. Caeiro, Quetzal Editores, Lisboa, 2004, p. 43.

10Cf. o comentário de Mark Goldman: “…the specter of impressionism, the subjective taint of the Pater-Wilde inheritance, still haunts the modern critic’s imagination. It is also this fear of impressionism or subjectivity that lies behind the modern critical ideal of scientific objectivity. Yet by this time, of course, both the fear of the disease and the fantasy of the cure should have been dispelled. As a matter of fact, if we look again at that landmark of modern criticism, T. S. Eliot’s The Sacred Wood (1920), we can now see that Eliot is not merely reacting against the “aesthetic” or impressionistic criticism of the recent past, but Woolf and the Critic as Reader”, PMLA, Vol. 80, nº. 3 (Jun., 1965), p. 276; disponível em: <http://www.jstor.org/stable/461275>, consultado em Fevereiro de 2010.

Page 17: A Leitora Real

UNIESP 46

literária ou de uma nova postura crítica, apesar dos muitos comentários metaliterários que se distribuem por todo o romance, mas esse conceito aproxima-se muito da teoria impressionista de Woolf sobre o leitor que deve procurar reagir de forma sensível àquilo que lê, em desfavor de uma leitura mais distanciada, crítica ou especulativa. A existir, a teoria de The Uncommon Reader está estampada no ensaio “Hours in a Library”, de 1916, onde Woolf disserta sobre o prazer de ler descomprometidamente, isto é, sem obediência a uma qualquer escolarização da forma de ler:

Let us begin by clearing up the old confusion between the man who loves learning and the man who loves reading, and the point that there is no connection whatever between the two. A learned man is a sedentary enthusiast, who searches through books to discover some particular grain of truth upon which he has set his heart. If the passion for reading conquers him, his gains dwindle and vanish beneath his fingers. A reader, on the other hand, must check his desire for learning at the outset; if knowledge sticks to him well and good, but to go in pursuit of it, to read on a system, to become a specialist or an authority, is very apt to kill what it suits us to consider the more human passion for pure and disinterested reading.11

No romance de Bennett, todas as experiências de leitura são “pure and disinterested reading”. A Rainha-11“Hours in a Library,” in Granite and Rainbow, Harvest Books, Londres, 1975, p. 24. Ensaio publicado originalmente em Times Literary Supplement, 30 November 1916.

Page 18: A Leitora Real

47 TEMA

leitora, que não segue nenhum modelo de leitura, que não usa nenhuma terminologia de crítica literária e não está preocupada em construir nenhum modelo conceptual de crítica dos livros que lê, adquire gradualmente hábitos de leitura que se tornam não tanto uma obsessão mas antes uma característica da sua personalidade, algo que ela (personagem) quer que seja percebido como uma qualidade essencial que sempre existiu, embora recentemente tenha sido desenvolvida com mais empenho. Assim acontece quando um aristocrata, Sir Claude, é enviado numa missão impossível: convencer a Rainha de que deve parar de ler tanto porque os deveres da Nação estão a ser prejudicados com as suas distracções literárias. Não haverá nunca uma forma fácil de interpelar uma rainha no sentido de confrontá-la como as suas rotinas privadas, por isso Sir Claude vê a sua missão ser frustrada pela leitora fiel que em nenhum momento pretende abdicar da sua nova condição:

‘What was it you wanted to see me about?’(…) ‘Reading, ma’am.’

‘I beg your pardon.’‘Your Majesty has started reading.’‘No, Sir Claude. One has always read. Only these days one is reading more.’

(...)‘I see no harm in reading in itself, ma’am.’‘One is relieved to hear it.’ (pp. 93-94)

Ler tarde, aprender tarde, adquirir novos conhecimentos tarde não são coisas criticáveis. Esta Rainha-leitora pode ser um opsimathes, palavra grega (em Inglês opsimath) que traduzia os estudantes tardios, aqueles que iniciavam a sua

Page 19: A Leitora Real

UNIESP 48

escolarização tarde na vida:

It was a few weeks later that she looked up from her book and said to Norman: ‘Do you know that I said you were amanuensis? Well, I’ve discovered what I am. I am an opsimath.’With the dictionary always to hand, Norman read out: ‘Opsimath: one who learns only late in life.’It was this sense of making up for lost time that made her read with such rapidity and in process now adding more frequent (and more confident) comments of her own, bringing to what was in effect literary criticism the same forthrightness with which she tackled other departments of her life. She was not a gentle reader and often wished authors were around so that she could take them to task. (p. 49)

O que mais impressiona não é essa condição mas antes o efeito que o prazer de ler vai tendo na Rainha ao ponto de se apropriar do que lê como seu verdadeiro património intelectual (“One reads for pleasure (…) It is not a public duty.”, p. 45 – disse com firmeza ao Secretário Pessoal Sir Kevin). Os livros não se importam com quem os lê, apenas querem ser lidos e todos iremos de alguma forma partilhar o mesmo poder sobre eles que os seus autores reais tiveram quando os escreveram. Pode-se argumentar que este romance de Bennett não passa de um exercício simples de ficção sobre uma quimera: como imaginar a Rainha de Inglaterra sem a sua coroa. Sam Leith argumentou neste sentido, na sua recensão publicada

Page 20: A Leitora Real

49 TEMA

no The Spectator:

This is not a book that is particularly interested in telling us what the Queen is like. Fair enough; it’s fiction. It is not a book, either, that is particularly interested in imagining plausibly what the Queen might be like. Rather, it vamps round the stock ideas, available to any television sketch show or student revue, of what she is like. (...) What’s different, then, between The Uncommon Reader and any television sketch show or student revue? The difference is in the sentences. What distinguishes this, and most of Bennett’s work, is not its perceptiveness about the world, or its imaginative achievement, but its droll and exact stylistic command. The effect, in this and in much of his work, is to make him the literary equivalent of a brilliant cartoonist.12

O facto de podermos ler The Uncommon Reader como um livro cómico próximo de um longo cartoon não desmerece a narrativa de Bennett. A linguagem controlada ao modo narrativo característico de Bennett, que não varia muito dos dramas The Madness of George III (1991) e The History Boys (2004), da ficção televisiva An Englishman Abroad (1983), ou da comédia Single Spies (1989), para citar apenas algumas das suas obras mais populares. Julgo que Bennett não desprezaria a ideia de que os seus livros também servem para gostarmos de os ler e não apenas para existirem como obras literárias amorfas. É tão fundamental gostar de ler

12“Waking up late at the Palace” [recensão a The Uncommon Reader],The Spectator, 29-8-2007.

Page 21: A Leitora Real

UNIESP 50

The Uncommon Reader como simpatizar com a paródia

amenizada da Rainha de Inglaterra como uma leitora fervorosa de ficção. As duas realidades funcionam em entreajuda no romance e não se resumem a “stock ideas, available to any television sketch show or student revue”. Se a linguagem de um romance satírico-cómico funciona como roupagem adequada à trama central, não é por estar em jogo a figura respeitada da Rainha de Inglaterra e a sua fulanização literária que o romance se vai perder. The Uncommon Reader não é apenas a história de uma figura pública mundial colocada num palco para podermos assistir à sua transfiguração em ser humano comum. Os proveitosos oitenta anos da Rainha são aqui indispensáveis para completar a figura do grande leitor. Como observou George Steiner em outra instância, a propósito da distinção entre autor e crítico, “The great reader, and he is rare, is precisely the one who remains fully vulnerable, fully hospitable to the light and menace of annunciation, in mature age.”13 Da mesma forma que nunca é tarde para começar a ler e a apaixonarmo-nos pela literatura – a personagem de Bennett já afirmou que sempre leu, mas agora o que faz é ler mais -, as muitas hesitações e deambulações desta leitora real são parte da sua educação nesse mesmo estatuto. Ler muito, como defende Steiner, é ler de forma vulnerável, o que significa que nunca estaremos seguros de que não há mais nada para ler depois de nos sentirmos satisfeitos com um livro. Há um passo de The Uncommon Reader que ilustra bem esse objectivo: a maior parte das pessoas que habitam o Palácio de Buckingham

13“Critic”/”Reader”, New Literary History, Vol. 10, Nº 3, Anniversary Issue: I (Spring, 1979), p. 449.

Page 22: A Leitora Real

51 TEMA

e queprivam com a Rainha não entendem a sua nova paixão pelos livros e pelos autores de ficção. O que sempre fez sentido para eles é a leitura económica alheia (em síntese, refere-se à prática do briefing) com que uma Rainha deve ser servida, para não ocupar muito tempo com leituras. A Rainha-leitora não deixa de corrigir quem assim pensa, como o seu Secretário Pessoal. A Rainha tinha-se lamentado sobre o facto de ter conhecido muitos autores ao longo da vida, mas nunca teve oportunidade de ler as suas obras e conversar com eles sobre os seus livros. “But ma’am must have been briefed, surely?” (p. 22), argumenta o Secretário, “Of course,” corrige a Rainha, “but briefing is not reading. In fact it is the antithesis of reading. Briefing is terse, factual and to the point. Reading is untidy, discursive and perpetually inviting. Briefing closes down a subject, reading opens it up.” (p. 22). É deste tipo a vulnerabilidade da Rainha-leitora. O que faz um leitor ficar vulnerável é a sua vontade de ler sempre mais e não a completude da nossa experiência de leitura. Pobre do leitor que julgar já ter lido o suficiente na sua vida, pois nada mais terá para nos dizer. No processo histórico, todos temos que nos assemelhar à forma como esta leitura especial se constrói: lemos para nos aproximarmos dos outros tanto como nos descobrimos melhor a nós próprios. Janusz Sławiński e Nina Taylor resumem assim este processo, que se adequa ao romance de Bennett tão bem quanto à clarificação da finalidade da leitura literária, com ou sem escolarização:

He [the reader] must have at his disposal a suitable potential of desire, good will, knowledge, and skill that will enable him to “cultivate reading,” and thusform his own constructs and configurations

Page 23: A Leitora Real

UNIESP 52

of the texts he has read. At each occurrence the fact of reading binds him simultaneously to a specific text, and to the other people in his environment who undertake similar activities, not necessarily in relation to the same text, but at any rate in relation to texts that are in some way analogous. The act of reading is a personal communion with the text, but also a kind of performance put on for others: it has to confirm the individual’s belonging to the collectivity of reading people.14

Grandes intelectuais ingleses como Dryden ou Locke, Milton ou Coleridge, ou mais tarde T. S. Eliot, acreditaram no elitismo do leitor: o leitor ideal seria alguém que não se confudia com a humanidade mas que a podia representar, se tal pode fazer sentido, isto é, esse leitor seria o melhor dos cidadãos (mulheres excluídas, certamente). Tais indivíduos são raros, por isso Dryden, Locke, Milton, Coleridge ou Eliot contavam pelos dedos das mãos aqueles com quem aceitavam discutir os seus problemas filosóficos e literários. Um grande leitor era sempre um leitor como Dryden, Milton, Locke, Coleridge ou Eliot. A Rainha de Inglaterra de Alan Bennett não entraria nesse círculo restrito enquanto personagem de The Uncommon Reader. Trata-se de uma leitora competente, cuja erudição é construída por iniciativa pessoal e não acadêmica, cujo grau de informação sobre as obras lidas decorre apenas da experiência isolada de leitura. Esta leitora “informada”, ajusta-se ao perfil desenhado por Stanley Fish para o leitor ideal: alguém que não é uma abstracção deduzida de um texto literário, mas um leitor real14“Reading and Reader in the Literary Historical Process”, New Literary History, Vol. 19, nº 3, “History, Critics, and Criticism: Some Inquiries” (Spring, 1988), p. 533.

Page 24: A Leitora Real

53 TEMA

que se esforça o melhor possível por se entregar àquilo que lê.15

15Stanley Fish estabelece assim o perfil do leitor informado: “neither an abstraction, nor an actual living reader, but a hybrid - a real reader (me) who does everything within his power to make himself informed. That is, I can with some justification project my responses into those of ‘the’ reader because they have been modified by the constraints placed on me by the assumptions and operations of the method ...” (“Literature in the Reader: Affective Stylistics”, New Literary History, Vol. 2, Nº 1, A Symposium on Literary History (Autumn, 1970), p. 145.