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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS.
Porto Alegre, 2016. p.26-40. <www.ephispucrs.com.br>.
A LEGISLAÇÃO DA MEMÓRIA: A LEI 10.965 E A MEMÓRIA DO
HOLOCAUSTO
THE LEGISLATION OF MEMORY: THE LAW 10,965 AND THE HOLOCAUST MEMORY
Pedro Henrique Batistella
Graduando em História/UFRGS
RESUMO
A lembrança do passado como um imperativo de dever vem se caracterizando como um fenômeno amplo e
diversificado no Ocidente. Esse processo tem direcionado o tema da memória para os encargos do Legislativo.
Os sobreviventes do Holocausto e seus descendentes foram um dos primeiros grupos na Europa a obterem uma
lei que tratasse do seu passado traumático ao se prever sanções penais a quem negasse o genocídio judeu.
Partindo desse pressuposto, esse artigo versará sobre a relação entre a memória do Holocausto e a lei municipal
10.965 de Porto Alegre que o obriga o ensino do Holocausto na rede de educação básica. Para tanto, será
analisado o projeto da lei e a discussão dos vereadores na plenária de votação. Como ordem de análise foram
utilizadas duas categorias formuladas pelo historiador francês François Hartog, a saber: as noções de regime de
historicidade e regime historiográfico. A partir disso e da contextualização da lei no âmbito nacional e
internacional, procuro verificar a hipótese de que tal lei se insere na experiência de tempo presentista. Tendo em
vista a natureza da sua justificação e as expectativas a ela expressadas, - as quais explicitam um dever para com
o passado e a responsabilidade pelo futuro -, presumo ser viável considerá-la como uma lei memorial.
Palavras-chave: Memória do Holocausto. Presentismo. Usos do passado.
ABSTRACT
The memory of the past as an imperative of duty has been featuring as a broad and diversified phenomenon in
the West. This process has addressed the topic of memory for the legislative burden. The Holocaust survivors
and their descendants were one of the first groups in Europe to obtain a law that treated its traumatic past to
predict criminal penalties to those who deny the Jewish genocide. From this assumption, this article analyzed the
relationship between the memory of the Holocaust and the municipal law 10,965 of Porto Alegre that obliges the
teaching of Holocaust in basic education system. For this, it was analized the law project and the discussion of
the councilmen voting at the plenary session. As the order of analysis I used two Hartog's categories, namely: the
concepts of regime of historicity and historiographical regime. From this and the contextualization of the law
nationally and internationally, I seek to verify the hypothesis that the law is inserted in presentism-time
experience. In view of the nature of their justification and the expectations expressed, - which clearly state a duty
to the past and the responsibility for the future -, presume to be feasible to consider it as a memorial law.
Keywords: Holocaust memory. Presentism. the uses of the past.
A circulação da memória do Holocausto no Brasil
O objeto de estudo da presente pesquisa, a lei 10.965 que o obriga o ensino do
Holocausto na rede de educação básica de Porto Alegre, confirma a tese de vários estudiosos,
os quais afirmam que a memória do Holocausto pode ser considerada uma memória global,
cosmopolita, transnacional. Conforme Andreas Huyssen há pelo menos quatro fatores que
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colaboraram para que a lembrança do genocídio judeu adquirisse uma mobilidade global a
partir da década de 1970. A primeira razão apontada trata-se do fato de que o genocídio judeu
serviu como base histórica da convenção de Genebra sobre o genocídio, em 1948, a qual
“forneceu a estrutura jurídica dos futuros genocídios atuais e passados em relação ao
Holocausto” (HUYSEEN, 2014, p.184). O segundo fator corresponde ao amplo trabalho
acadêmico sobre o assunto, servindo como modelo para o estudo de outros passados
traumáticos. Em terceiro lugar, Huyssen destaca que a literatura ficcional e documental, assim
como as representações artísticas e estéticas contribuíram não só como base para a
representação de outros traumas históricos, mas também foram fatores essenciais para dar
forma à memória do Holocausto a partir da sua circulação na cultura contemporânea. Além
disso, ressaltou a pertinência da literatura crítica sobre testemunhas, depoimentos e história
oral. Por fim, o papel da mídia expandiu o alcance da imagem do Holocausto através de
representações cinematográficas, ficcionais e documentais que circularam por todo o globo.
Huyssen afirma que especialmente a partir da década de 1990, a mobilização da memória do
genocídio com fins comparativos atingiu contextos com consideráveis distinções no plano
político, étnico e nacional (HUYSSEN, 2014, p.184).
Como destacou o historiador Bruno Leal, a profusão da imagem e da memória do
Holocausto no Brasil é significativa, corroborando com os fatores citados acima. Segundo
Leal há “um número expressivo de referências ao holocausto nos mais diversos canais
culturais, políticos e institucionais, muitos dos quais com papel de destaque na formação da
esfera pública brasileira” (LEAL, 2009. p.41). Entre elas, e talvez a de maior destaque nos
últimos anos, foi a fundação do Museu do Holocausto na cidade de Curitiba em 2011,
empreendimento ligado à comunidade judaica, mas cujo público extrapola para o âmbito da
sociedade em geral. Como destaca Leal, a comunidade judaica brasileira realiza diversos
trabalhos relacionados ao Holocausto, sendo alguns deles diretamente direcionadas à
construção da sua identidade. Nesse sentido, o programa educacional “Marchas da Vida”,
dirigido principalmente a jovens da comunidade judaica, constitui-se na realização de uma
viagem à Europa a fim de perfazer o percurso entre os campos de concentração de Auschwitz
e Birkenau como fizeram os prisioneiros judeus durante a guerra. No âmbito educacional, a
comunidade judaica brasileira através da entidade cultural B’nai B’rith, tem promovido as
chamadas “Jornadas sobre o Ensino da História do Holocausto” em seis cidades brasileiras,
que buscam “transmitir aos professores das escolas públicas, das judaicas e aos universitários,
a importância e métodos para o ensino do Holocausto, através de diversas matérias, de
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História a Matemática”. Atualmente, tal programa é realizado nas cidades do Rio de Janeiro,
São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Niterói, sendo que, com exceção de
Curitiba, todas detêm leis ou projetos de lei municipais relacionados ao ensino do Holocausto.
A difusão do tema no Brasil também pode ser visualizada na pesquisa realizada pela
UNESCO e pelo Instituto Georg Eckert em 2015, a qual buscou perceber como o Holocausto
é representado nos livros didáticos do ensino médio em âmbito mundial. Nos resultados a
respeito do nível de referência ao tema em cada pais, o estudo constatou que o Brasil está no
amplo grupo de países ocidentais que fazem menção direta ao genocídio judeu nos livros
didáticos.
Como um segundo elemento que se pode destacar no âmbito nacional, mas não
relacionado ao Holocausto, é o cenário de reconhecimento e valorização da história e cultura
africana, indígena e afro-brasileira através da sua inclusão nos currículos escolares do Brasil
por meio das leis federais 10.639 e 11.645, aprovadas em 2003 e 2008, respectivamente. Tal
situação demonstra não apenas um cenário de reinvindicação do movimento negro e dos
povos indígenas por um espaço na “memória oficial” da sociedade brasileira, mas também
revela a manifestação de uma ação legislativa do Estado brasileiro como resposta a “pressões
memoriais”. Segundo Diego Deziderio, a lei 10.639 “assume um papel de resgatar a memória
histórica da contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira.
(DEZIDERIO, 2015, p.7).
Nesse sentido, a lei 10.965 está inserida em um contexto amplo marcado pela
mobilização da memória do Holocausto tanto em âmbito nacional, ligada às atividades da
comunidade judaica, quanto no plano internacional, caracterizado por uma profusão cultural
que favorece a circulação da imagem do genocídio. Entretanto, a partir de uma perspectiva
mais ampla, considera-se esse cenário de forte circulação da memória do Holocausto não
como um caso isolado, mas sim correspondendo ao fenômeno da emergência da memória no
Ocidente. Nessa perspectiva, o objetivo da pesquisa é verificar de que maneira a lei pode ser
pensada como parte da experiência de tempo atual, não apenas no seu enquadramento
legislativo, mas também analisando como o passado em questão é mobilizado na justificativa
do projeto de lei e na discussão parlamentar que o sancionou.
As características do tempo presente
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A lei 10.9651 foi aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal de Vereadores de
Porto Alegre em setembro de 2010, tornando obrigatório, na rede municipal de educação
básica, o ensino sobre o Holocausto. Conforme o Art. 2° o ensino a respeito do genocídio
judeu deve ser responsabilidade somente da disciplina de história. A cidade de Porto Alegre
foi o primeiro município brasileiro a possuir uma lei que versa sobre o ensino do Holocausto,
sendo seguida pela cidade do Rio de Janeiro, na qual, no ano de 2011, foi sancionada uma lei
semelhante que “torna imprescindível a ênfase no ensino sobre o Holocausto”.
Compreendo tais leis que enfatizam a necessidade de estudar o genocídio judeu
cometido pelos nazistas imerso em um cenário de forte presença de memórias traumáticas nas
sociedades ocidentais. O historiador Pierre Nora se refere a esse fenômeno como um
movimento generalizado de emergência da memória que desde a década de 1970 tem se
manifestado de diversas formas na sociedade (NORA, 2009, p.6). Tal fenômeno estaria
relacionada a valorização do testemunho de sobreviventes de eventos traumáticos no espaço
público, como o dos sobreviventes do Holocausto. Nessa perspectiva, desde então a relação
que grupos minoritários foram desenvolvendo com seu passado foi progressivamente
adquirindo uma natureza reivindicativa e moral. Nesse sentido, há desde a década de 1980 um
movimento peculiar de aproximação entre memória e legislação, uma vez que grupos sociais,
outrora vítimas de genocídios, apelam ao Estado por medidas de reconhecimento e
valorização de sua memória traumática ou por ações reparatórias às vítimas. À vista disso,
acredito ser fundamental pensar a memória do Holocausto dentro de um fenômeno amplo
caracterizado pela modificação da relação que as sociedades ocidentais mantêm com a
estrutura temporal.
Segundo François Hartog, estamos vivendo em um regime de historicidade presentista.
A noção de regime de historicidade corresponde a uma ferramenta heurística a fim de auxiliar
o historiador a questionar “as nossas relações com o tempo” (HARTOG, 2013, p.37). Nesse
sentido, a noção busca apreender as formas de articulação entre as categorias de passado,
presente e futuro (HARTOG, 2013, p.13). Conforme a ordem de tempo que se estabelece a
partir de determinada articulação, “certos comportamentos, certas ações, certas formas de
historiografia são mais possíveis do que outras” (HARTOG, 2013, p.13). Hartog destaca que
a pretensão heurística corresponderia principalmente em tempos de crise do tempo, uma vez
que a articulação temporal perde sua evidência. Assim, a hipótese do historiador francês, o
presentismo, emerge ao se constatar a crise do regime moderno de historicidade. Para Hartog,
1 Criada pelo vereador Valter Nagelstein e sancionada no dia 18 de outubro de 2010.
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não vivemos mais, desde as últimas décadas do século XX, uma experiência do tempo
marcada pela relação entre o horizonte de um futuro próspero e o distanciamento do passado,
configuração que implicava ao presente a função mediadora entre os dois tempos (HARTOG,
2013, p.136-140). A sugestão é que estamos vivendo uma nova experiência de tempo,
definida pelo predomínio da categoria do presente na articulação do tempo, uma vez que a
concepção do futuro foi fortemente alterada após os eventos traumáticos que o Ocidente
assistiu no século XX. De próspero à ameaçador, a ideia de futuro foi paulatinamente se
transformado em detrimento da habituação do presente como horizonte temporal (HARTOG,
2013, p.244-245). Segundo Hartog, na atual experiência de tempo “tudo se passa como se não
houvesse nada mais do que o presente” (HARTOG, 2013, p.39), ou seja, ele é onipresente.
Tal característica cria um cenário de múltiplas possibilidades de se agir no presente, uma vez
que não há garantia quanto ao futuro. Nesse sentido, “parte se do presente e não se sai dele”,
da mesma forma que se impõem cada vez mais as marcas do imediatismo e o do instante
através dos meios de comunicação. Dessa forma, o presente “ é ao mesmo tempo tudo (só há
presente) e quase nada (a tirania do imediato) ” (HARTOG, 2013, 259).
De maneira paradoxal, é o próprio presente que precisa elaborar, para si mesmo, o
seu tempo histórico (HARTOG, 2013, p.39). À vista disso, Hartog identifica certas “fendas do
presente”, uma vez que se expressa a necessidade de conservação e de reconstituição do
passado através da rememoração. Segundo ele: “O presentismo mostra-se incapaz de
preencher a lacuna, no limite da ruptura, que ele próprio não cessou de aprofundar, entre o
campo da experiência e o horizonte da expectativa” (HARTOG, 2013, p.156). Assim, como
uma reação à incapacidade do presente se auto sustentar, uma memória “provocada e
reconstituída” torna-se imperativo na sociedade contemporânea, já que a busca por identidade,
raízes, genealogia são demandas desse presente absoluto (HARTOG, 2013. p.151). A
demanda pela memória e pela conservação representariam, dessa forma, uma resposta ao
presentismo e um dos seus sintomas, impondo-se, desde a década de 1970, cada vez mais no
cenário cotidiano com um caráter de dever e de reivindicação. Portanto, nas palavras de
Hartog, “parecemos patinar no campo do presente e ruminar um passado que não passa”
(HARTOG, 2013, p.245).
Andreas Huyssen define esse passado que não passa com a expressão “presente
passado”. Segundo o crítico alemão, a hipertrofia da memória no Ocidente está relacionada a
uma mudança profunda na própria estrutura da memória, assim como no modo de
relacionamento com a temporalidade e com o espaço (HUYSSEN, 2003, p.4). Nesse sentido,
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a memória do Holocausto é essencial na sua análise devido a mobilidade global que o
genocídio judeu assumiu, fenômeno que estaria vinculado ao processo de globalização. A
cultura da globalização teria inaugurado uma nova forma de pensar o passado doravante
marcada pela redução dos fatores de fronteira geográfica e política (HUYSSEN, 2003, p.4).
Na esteira das análises sobre o presente, o alemão Hans Ulrich Gumbrecht, aposta que
estamos vivendo um “presente de simultaneidades” em detrimento do “presente de transição”,
característica do historicismo. No mesmo sentido que Hartog, Gumbrecht vê a instauração
desse “presente amplo” devido às transformações relacionadas às concepções de futuro e de
passado. Ao futuro cabe a incerteza e a ameaça das catástrofes nucleares e ambientais. Já o
passado está cada vez mais presente, visto os “novos métodos de reproduzir mundos
passados” (GUMBRECHT, 1999, p.469). Tais transformações “produziram um presente no
qual as imagens do futuro e as reminiscências do passado se superpõem em graus crescentes
de complexidade – em geral desestruturada” (GUMBRECHT, 1999, p.469).
A partir dessa breve tentativa de contextualização das transformações observadas a
respeito das temporalidades, da estrutura da memória e das características que definem, de
modo geral, o atual tempo presente, parte-se para uma exploração de maneira mais
aprofundada da noção de dever de memória. Tal noção pode ser compreendida como um dos
elementos fundamentais no processo que conduziu as pressões memoriais à esfera legislativa
do Estado.
O dever de memória e as leis memoriais na França
Conforme Enzo Traverso, para além das “modalidades fundamentais” da memória, ela
se transformou nas últimas décadas do século XX em uma questão política, adquirindo um
status de “injunção ética” representada pelo dever de memória (TRAVERSO, 2012, p.18).
Segundo a historiadora Luciana Heymann, vários analistas encontram a origem da noção de
dever de memória entre os sobreviventes franceses a partir do “processo de ressignificação do
discurso memorial ligado ao Holocausto de milhares de judeus que viviam na França”
(HEYMANN, 2006, p.4). Na esteira desse movimento da comunidade judaica francesa, em
13 de julho de 1990 foi aprovada, na França, a lei 90.615, a qual combatia qualquer
discriminação baseada no pertencimento a uma etnia, nação, raça ou religião. No artigo 9°, a
lei Gayssot, como ficou conhecida, caracteriza a negação do genocídio judeu como crime
contra a humanidade, prevendo sanções penais. A partir desse quadro, observa-se a
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construção de um discurso apoiado na memória de um acontecimento passado que pretende
ser reivindicativo em prol de conquistas no presente. Tal cenário de exigências pelo
reconhecimento da sua memória estendeu-se para o âmbito legislativo, estabelecendo,
segundo Luciana Heymann, um contexto que:
“ por esses dispositivos, em nome do dever de memória, os legisladores,
pressionados por grupos que militam em nome de causas memoriais, teriam não
apenas definido o posicionamento do Estado com relação a determinados eventos de
natureza histórica, mas estabelecido conteúdo a serem contemplados pelos manuais
escolares” (HEYMANN, 2012, p.7).”
Tais leis, desde então, vêm causando um grande debate entre historiadores, filósofos,
cientistas sociais e a comunidade civil, a respeito da autoridade dos legisladores em legislar
sobre a matéria histórica e também sobre o papel do historiador no espaço público. Nesse
sentido, o debate em torno das chamadas leis memoriais francesas representaram o ponto
máximo de discussão a respeito dos “efeitos sociais de discursos e práticas associados ao
dever de memória” (HEYMANN, 2012, p.4). Segundo Heymann, tal debate se constituiu ao
redor de quatro leis que versam sobre questões históricas e representam a luta pelo
reconhecimento da memória de determinados grupos sociais. A mais antiga delas é a já
mencionada Lei Gayssot de 1990, sucedida por outras duas leis aprovadas em 2001. Na
primeira, de 21 de janeiro, o Estado francês reconhece publicamente o genocídio armênio de
1915 e a segunda, por sua vez, conhecida como Lei Taubira, caracteriza o tráfico de escravos
e a escravidão perpetrados a partir do século XV como crimes contra a humanidade. Além
disso, o seu artigo 2° estabelece que os programas escolares devam atribuir ao tráfico negreiro
e à escravidão “o lugar consequente que merecem”. A mais polêmica entre elas, entretanto,
foi a lei de 23 de fevereiro de 2005, a qual deliberou sobre o reconhecimento, por parte da
nação, dos franceses repatriados após as guerras de independência das colônias francesas,
sendo que em seu artigo 4°, sancionava-se que os programas escolares deviam reconhecer o
“papel positivo” da presença francesa nas suas colônias, especialmente na África do Norte”
(HEYMANN, 2012, p.7). Convém assinalar que em virtude da insatisfação expressada por
grupos relacionados a esse passado colonial e também pela resistência dos historiadores, tal
artigo foi retirado da lei.
A lei 10.965 como uma lei memorial
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Com base no cenário francês, considera-se a lei 10.965 igualmente como uma lei
memorial, visto que ela reflete a aproximação entre o âmbito legislativo e o plano de
reivindicações memoriais. Nesse sentido, tal articulação se configuraria como uma marca da
experiência do tempo atual, justamente por exprimir a dinâmica em que imperativo de dever
de memória imprime uma reação por parte do Estado. É importante destacar que tal
proximidade entre os dois âmbitos fazem parte de uma discussão maior sobre as relações
entre direito e história, entre o juiz e o historiador. Nessa perspectiva, destaca-se uma
peculiaridade que se manifestou na nota oficial da Prefeitura de Porto Alegre que sancionou a
aprovação da lei 10.965, uma vez que reflete essa dinâmica entre demandas memoriais
especificas ao Estado. No projeto de lei, a palavra Holocausto vinha desacompanhada de
especificação, isto é, a obrigatoriedade do ensino seria sobre o Holocausto, sugerindo que os
outros grupos atingidos pelo regime nazista poderiam ser abordados. Entretanto, de modo
distinto ao projeto de lei, na sanção oficial, expressou-se que a legislação “obriga, na Rede
Municipal de Ensino, o ensino sobre o holocausto do povo judeu (grifo meu).
Assim, há uma clara modificação a fim de se esclarecer que a intenção principal da lei
se dirige ao grupo judeu, principal foco da política de extermínio nazista. Considerando que
tal modificação enfatiza um grupo social dentro de um contexto histórico maior, verifica-se
que a ênfase no “holocausto do povo judeu” em um dispositivo legislativo adquire duas
implicações: por um lado há a ação de garantir que um dos eventos mais traumáticos do
século XX seja ensinado de forma obrigatória, isto é, uma política de memória que nas suas
intenções mais básicas luta contra o esquecimento. Entretanto, por outro lado, há a produção
do esquecimento, uma vez que não apenas os judeus foram vítimas da política nazista, mas
sim, conforme foi especificado na justificativa do projeto de lei, “a política antissemita do
nazismo visou especialmente aos judeus, mas não poupou também ciganos, negros,
homossexuais, comunistas e doentes mentais”. Segundo Stiina Laytamaki, o dever de
memória manifestado por um grupo social mobiliza um modo de articulação e entendimento
do passado em um determinado contexto histórico, o qual é reafirmado através de leis
memoriais e intervenções estatais. Tal afirmação através de dispositivos legislativos implica
na manutenção da “causa memorial” na agenda pública e estabelece um caráter oficial e
legítimo por meio do “selo estatal” (LOYTAMAKI, 2014 p.5).
O projeto de lei e a discussão parlamentar
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Na justificativa do projeto de lei o passado do genocídio é considerado um “passado
que não passa”, uma vez que “nós ainda vivemos na sombra do Holocausto, uma sombra que
não se dissipa e que nunca se dissipará”. Assim, é preciso rememorar para se viver o presente
e o futuro. Nesse sentido, é expresso que “essa história e às lições que advieram dessa época
lamentável muitos jovens desconhecem e o ensino público tem o dever de proporcionar um
melhor entendimento do assunto”. Portanto, o dever de memória é transferido à escola,
instituição responsável por garantir que os jovens adquiram conhecimento sobre esse passado,
pois ele detém exemplos que devem ser apreendidos para garantir um futuro mais seguro. É
interessante observar, conforme salientou Mario Rufer, que a evocação do Holocausto carrega
uma “ necessidade social e política de projetar a memória como garantia histórica (de
exempla, de não-repetição) ” (RUFER, 2010, p. 111-112) uma vez que ela é marcada pelos
elementos da experiência vivida do testemunho. Dessa forma, ao se referir “as lições que
advieram dessa época”, os agentes proponentes do projeto de lei reivindicam a obrigação do
ensino do Holocausto justamente por ele ser um passado exemplar. Tal concepção de passado
esclarece igualmente os desejos de futuro, como ficou evidente no debate dos vereadores.
A discussão parlamentar para a aprovação da lei entre os vereadores de Porto Alegre
corresponde com o desígnio da justificativa, endossando o dever de memória e o caráter
exemplar que o acontecimento detém para se evitar a sua repetição no futuro. Destaca-se, de
maneira geral, na fala dos parlamentares a preocupação em não esquecer o Holocausto, sendo
assim necessário “resgatar”, “recuperar”, “ guardar” a memória do acontecimento. Entretanto,
a obrigação de manutenção da memória carrega uma forte preocupação com o presente e com
o futuro da humanidade. Nesse sentido, consistiu-se o fenômeno que Hartog chamou de dupla
dívida subsumido no discurso dos vereadores: não só há uma dívida com o passado, a qual
leva a constante rememoração no presente, mas também há a dívida com o futuro,
representada pela preocupação em evitar a repetição do evento (HARTOG, 2013, p.256.257).
O Holocausto como um evento histórico é pouco comentado, apenas sendo descrito e
caracterizado a fim de se visualizar ações semelhantes no presente. Pela continuidade das
práticas de intolerância e discriminação na sociedade, os vereadores convergem no ponto de
que esse evento deve ser discutido para se aprender com ele e captar a sua mensagem. Nessa
perspectiva, a lei 10.965 é compreendida como um instrumento que garante a discussão e o
aprendizado dos jovens com o Holocausto. Dessa forma, o estabelecimento da
obrigatoriedade de se estudar esse assunto na rede municipal é visto como uma ação positiva
no presente para se assegurar que no futuro não se repita tal atrocidade. Nesse sentido,
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considera-se que esse aprendizado pode ser canalizado em ações no presente contra práticas
de discriminação. À vista disso, a função exemplar reivindicada nas falas dos vereadores
carrega um nítido valor moral, evidenciando o fenômeno de descontextualização histórica do
acontecimento ao adquirir um caráter normativo secular. Aleida Assmann afirma que essa
norma é baseada em uma lição moral que conscientizaria os indivíduos a manterem-se
vigilantes contra manifestações antissemitas, na proteção da dignidade humana e na prática
dos direitos humanos a favor de grupos minoritários. Ademais, Assmann afirma que a
vinculação entre a defesa dos direitos humanos e o Holocausto, permitiu o fenômeno de
expansão global da memória traumática do genocídio judeu. Entretanto, ressalta que o intuito
primordial dessa “metafórica expansão” do tema do Holocausto não pode ser centralizado na
afirmação dos direitos humanos, mas sim deve ser visto como uma maneira de garantir “a
legitimidade de ações próprias e o apoio às reinvindicações por autoridade moral,
reconhecimento e restituição” (ASSMANN, 2010. tradução nossa).
A análise da discussão parlamentar também permitiu perceber questões relacionadas
aos usos políticos do passado e à disputa em torno da memória correspondente a outros
eventos históricos. Nesse sentido, a discussão sobre a memória do Holocausto incorporou
reivindicações à memória dos militantes mortos durante a ditadura civil-militar no Brasil e a
necessidade de lembrar “os males que a escravidão causou à população negra do nosso país”.
À vista disso, é interessante perceber como o Holocausto assume uma posição de referência
para a incitação de outros passados. Andreas Huyssen analisa essa característica assumida
como consequência do processo de “globalização ou cosmopolitização da memória do
Holocausto” (HUYSSEN, 2014, p.185), o qual acarretou na formação de uma “hierarquia de
discursos da vitimação” a partir do caso do genocídio judeu (HUYSSEN, 2014, p.181). Tal
universalização do modelo do Holocausto teria como origem, entre outros fatores, à sua
interpretação como evento histórico singular, conduzindo outros discursos memoriais a
comparação com o genocídio judeu a fim de “elevar seu próprio sofrimento traumático”
(HUYSEEN, 2014, p.185). Dessa forma, além do Holocausto assumir uma posição especial,
cria-se uma hierarquia de valores em que o evento assume o topo, desenhando-se, assim, uma
situação paradoxal: por ser um acontecimento histórico que assumiu um caráter universal pela
sua singularidade, ele se torna um parâmetro de comparação para outros eventos traumáticos.
Nas palavras de Huyssen: “O Holocausto como tropo universal é o pré-requisito de sua
descentralização e de seu uso como um poderoso prisma através do qual podemos examinar
outros exemplos de genocídio” (HUYSSEN, 2014, p.187).
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Assim, ao se observar a mobilização do Holocausto nos discursos dos vereadores
percebe-se que o genocídio judeu se tornou uma referência descaracterizada de contexto
histórico, visto que a sua recordação tem como finalidade levantar questões relacionadas à
intolerância, à discriminação e à violência do presente ou suscitar outros passados violentos.
Conforme Huyssen, o discurso sobre o Holocausto, ao atingir um caráter universal e
totalizante para se falar do século XX, perde as características específicas do acontecimento
histórico, permitindo que ele seja incorporado como uma metáfora a situações locais
(HUYSSEN, 2014, p.187).
Nesse sentido, a lembrança do Holocausto é construída a partir da descontinuidade,
não exigindo a continuidade histórica, sendo, portanto, extremamente presentista e
preocupada com o presente. Conforme Mario Rufer, a predominância do “ponto de vista do
presente”, o que caracteriza o presentismo, regula a dinâmica dos usos do passado (RUFER,
2010, p.114). Do mesmo modo, Hartog afirma que a memória se tornou um instrumento
presentista, uma vez que “ela é o que faz com que o presente seja presente para si mesmo”
(NORA, apud HARTOG, 2013). A alusão à ditadura civil-militar brasileira e à escravidão
negra no Brasil reflete tal constatação de Rufer e Hartog, visto o contexto de emergência de
políticas públicas direcionadas à população negra, o que possibilita o afloramento da memória
da escravidão, por exemplo. No mesmo sentido se insere a citação à ditadura civil-militar
brasileira, já que está vinculada ao contexto nacional de luta pela abertura dos arquivos do
período e da realização da Comissão da Verdade. Logo, percebemos a menção ás memórias
com o objetivo de auto valorizarem-nas. Todorov, denunciando os abusos de memória, aponta
que: “o culto da memória pela memória, sacralizando-a, é uma maneira de deixa-la estéril”
(TODOROV, 2000. p.33). Essa esterilidade indicada por Todorov, advinda do abuso e do
excesso de memória no presente pode ser visualizada ao se verificar a formação de um
cenário de disputa político-ideológica em torno do passado. Tal conflito ocorre no âmbito da
reivindicação pela lembrança de eventos violentos entre uma vereadora e um vereador de
campos político-partidários opostos. A vereadora reivindicou a discussão e a memória do
“sumiço, do desaparecimento, do assassinato de milhares de militantes de esquerda” no
contexto da ditadura civil-militar brasileira. O vereador manifestou-se da seguinte forma:
“entendo que o Holocausto é uma parte triste da história da humanidade assim como as coisas
que fizeram Stalin, Fidel Castro, ele matou quarenta mil cubanos, conterrâneos seus, não é
diferente”. Essa disputa, portanto, nascida da discussão inicialmente sobre a memória do
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Holocausto, deixa claro o vazio semântico da memória, ou seja, ela está presente menos em
conteúdo do que em forma.
Além disso, percebe-se nessa situação um caso de comparabilidade entre o genocídio
judeu e as mortes decorridas da Revolução Cubana. Tal comparação se constitui pelo
estabelecimento de um elo entre os acontecimentos a partir da analogia da morte, reduzindo as
singularidades dos dois contextos históricos e restringindo-os ao âmbito da violência e,
portanto, a um mesmo plano2. Assim como a utilização da comparação entre diferentes
genocídios pode representar ganhos na compreensão das suas semelhanças e especificidades,
por outro lado, a comparação entre eventos transnacionais pode ser perigosa. Nessa
perspectiva, Huyssen alerta que o uso indiscriminado do Holocausto a outros contextos pode
não só levar à banalização dos discursos das vítimas, mas também a “comparações arbitrárias
e especiosas, que desprezam as respectivas diferenças históricas e factuais das histórias reais
de sofrimento”. Verificando a disseminação de tais práticas comparativas desde a década de
1990, Huyssen ressalta o poder destrutivo que essas analogias podem representar para a
memória (HUYSSEN, 2014, p.186)
Por outro lado, há aqui uma manifestação do uso político do passado que reflete a
disputa contemporânea pela e em torno da memória do Golpe 1964 e da ditadura civil -
militar. Como já foi ressaltado, o ano da discussão parlamentar analisada era 2010, véspera da
criação da Comissão da Verdade em 2011. Conforme Mateus Pereira, as memórias desses
dois acontecimentos que se mesclam, “entraram em latência e emergiram de diversos modos
nos últimos anos, em particular entre 2012 e 2014” (MATEUS PEREIRA, 2015, p.864).
Nesse sentido, a discussão está imersa em um cenário de batalhas de memória que se na época
ainda não tinha atingido as dimensões públicas como veio a ocorrer após o início dos
trabalhos da Comissão, desde 1964 já eram travadas nos meandros políticos. Se não houve um
debate direto entre a vereadora e o vereador tentando legitimar suas posições sobre o Golpe de
1964 e o cenário bipolar estabelecido na época, há a incitação a um passado relacionado ao
período, à Revolução Cubana, de maneira que contraponha a menção aos militantes de
esquerda mortos durante a ditadura brasileira. O que se observa, assim, é uma disputa política
pela legitimação de um passado que ainda tem efeitos e consequências sobre o presente.
Considerações Finais
2 Agradeço o comentário feito por Pedro Telles da Silveira a respeito da comparação.
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Portanto, da discussão sobre o Holocausto aos conflitos pela memória do Golpe de
1964 e da ditadura civil-militar, pode-se perceber a dinâmica da nossa cultura histórica
específica, o presentismo, a qual se constitui por um cenário carregado de memorias.
Considerando que a partir de uma determinada experiência de tempo fundam-se diversas
modalidades de representação do passado, entre elas a historiografia, pretendeu-se demonstrar
no presente trabalho como o passado é mobilizado em um contexto específico “em função das
demandas colocadas pelo presente e em função das perspectivas de futuro elaboradas”
(BAUER; NICOLAZZI, 2016, p.814). Nessa perspectiva, a sanção da lei 10.965 reflete a
dinâmica entre a memória do Holocausto (mobilizada pela comunidade judaica) e o saber
histórico sobre o acontecimento em um ambiente legislativo, permitindo-nos perceber como
se constituem a representação e o uso do passado do Holocausto nesse espaço público. Com o
intuito de pensar os usos do passado na esfera pública, o historiador Mario Rufer propõe
analisar as relações entre poder e diferença que se constituem nas “formas em que os mundos
de passado são produzidos, narrados e incorporados em um presente” (RUFER, 2010, p.120).
Assim, Rufer propõe uma investigação etnográfica do cenário das representações públicas do
passado, enfatizando os conflitos, as ambiguidades, a produção da diferença, assim como o
“consumo” do passado, suas discussões e debates (RUFER, 2010, p. 121). Ao focar nas
relações de poder, o historiador considera o papel atuante do Estado na dinâmica de produção
de passado no espaço público, ressaltando que ao exibir, nesse caso através da lei, ele concebe
também a alteridade (RUFER, 2010, p.124.)
À vista disso, a legislação da memória como um uso do passado para interesses no
presente, como o propósito da lei 10.965 de combater o esquecimento do genocídio judeu,
acaba por implicar em delimitações que se inserem na lógica do poder, a qual, conforme,
Rufer, “prefiguram mapas sociais do mesmo e do outro” (RUFER, 2010, p.128). Nesse
sentido, a lei ao obrigar o ensino do Holocausto do povo judeu, delimitando um grupo
específico dentro de um contexto histórico maior, interfere “ nas representações do passado na
memória pública” (RUFER, 2010, p.132). Tal interferência representa o cerne da preocupação
de Rufer ao concentrar-se nas relações entre poder e diferença nos usos do passado na esfera
pública, destacando que “ o recurso à memória se faz radicalmente político, indispensável,
mas também instável ” (RUFER, 2010, p.128), uma vez que todo vinculo que se estabelece
entre passado e presente é uma conexão política (RUFER, 2010, p.133).
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