A Historia de Minas Como Historia Do Brasil

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A Historia de Minas Como Historia Do Brasil

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  • Bruno Franco Medeiros Valdei Lopes de Arajo

    Dossi 23

    Diferentemente do paradigma universalista, ento hegemnico na historio -grafia brasileira, a criao do Arquivo Pblico Mineiro veio consagrar ummodelo de tipo corogrfico como pr-requisito para a construo de umahistria geral do Brasil.

    Revista do Arquivo Pblico MineiroRevista do Arquivo Pblico Mineiro

    A histria de Minas como histria do Brasil

  • especiais em um quadro mais amplo; por isso, era

    quase sempre entendida como tarefa para o trabalho

    em equipe. Assim fora concebido o projeto de uma

    Histria Universal da Amrica Portuguesa, formulado

    pela Academia Braslica dos Renascidos. Uma das pri-

    meiras iniciativas desse projeto historiogrfico foi repen-

    sar a regionalidade do territrio americano, propondo

    novas formas de conceber sua diviso e, por conse-

    qncia, as tarefas historiogrficas a serem distribu-

    das.5

    Histria geral e histrias naturais

    Entre a segunda metade do sculo XVIII e as primeiras

    dcadas do sculo XIX a histria geral foi incorporada,

    em grande medida, s chamadas histrias naturais.

    Sem romper com a concepo de mosaico, as histrias

    naturais imprimiram um outro padro de racionalidade,

    dirigido por um projeto sistemtico de conhecimento da

    paisagem natural. No projeto dos Acadmicos

    Renascidos, a Amrica portuguesa inseria-se no grande

    livro da histria atravs de um modelo providencialista

    e homogneo de Ocidente. Na nova historiografia natu-

    ral o territrio americano era assimilado aos padres de

    racionalidade sistmica recm-descobertos e que deve-

    riam organizar o territrio de uma paisagem mundial

    hierarquicamente organizada.

    No interior das histrias naturais, as corografias tinham

    uma insero ambgua. Por um lado, eram fundamen-

    tais, na medida em que apresentavam a realidade

    local; por outro, sua nfase nas particularidades tendia

    a chocar-se com o projeto centralizado e sistmico. Os

    corgrafos, transformados em naturalistas, tinham difi-

    culdades em reduzir seu prprio programa de uma his-

    tria local s demandas por descries taxonmicas.

    Esse longo processo de tenso e aprendizado pode ser

    identificado na correspondncia entre os naturalistas

    locais e seus mestres na Europa.6 Sob o ponto de

    vista de um Estado metropolitano em processo de reor-

    ganizao de seus padres de dominao, a histria

    natural apresentava maiores vantagens.

    A centralidade assumida pela histria natural s seria

    transformada com a emergncia do programa das hist-

    rias nacionais modernas. Sabemos que no Brasil esse

    programa se constituiu ao longo do segundo quartel do

    sculo XIX, tendo como seu espao privilegiado, mas

    no nico, o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro

    (IHGB), fundado em 1838. Homens como Janurio da

    Cunha Barbosa, Raimundo Jos da Cunha Matos e

    Jos Feliciano Fernandes Pinheiro participaram ativa-

    mente das lutas pela Independncia brasileira e manti-

    veram uma preocupao constante em produzir uma

    histria do Brasil a partir do evento fundador da nova

    nacionalidade. Pontos fundamentais desse programa j

    haviam sido elaborados por pensadores como Hiplito

    Jos da Costa, Luiz Gonalves dos Santos, Jos da

    Silva Lisboa, Jos Bonifcio, entre outros, que desde

    1808 procuraram entender a transplantao da Corte

    para o Rio de Janeiro como a acelerao de um lento

    processo histrico de emancipao da Amrica portu-

    guesa.

    O programa de uma histria nacional em recorte

    moderno exigia outras solues polticas, formais e te-

    ricas. Esse novo tipo de historiografia precisava reunir e

    coordenar um forte modelo explicativo geral, um apara-

    to crtico/documental e um novo tipo de decoro na sua

    relao com o Estado. Na verso produzida pelo

    Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, acabou por

    prevalecer um modelo que priorizava a histria geral

    em detrimento das histrias particulares. A nova com-

    preenso da histria colonial enquanto um processo

    contnuo e totalizante anulava ou tornava indesejvel a

    relativa autonomia que as histrias particulares goza-

    vam at ento.

    Bruno Franco Medeiros e Valdei Lopes de Arajo | A histria de Minas como histria do Brasil | 25

    Na segunda metade do sculo XVIII, o que

    chamamos hoje de histria regional se enquadraria no

    conceito amplo de histrias particulares. Essas histrias

    eram particulares em oposio a um outro conceito

    complementar, o de histria geral. Uma histria particu-

    lar poderia ser definida por sua temtica especfica,

    como a histria militar, literria e eclesistica, ou por

    seu recorte espacial circunscrito.

    A essa compreenso da escrita da histria correspondia

    um conjunto de formas literrias prprias, muitas delas

    especialmente talhadas para oferecer um tratamento

    temtico, mais do que cronolgico, ao material recolhi-

    do. Para as histrias particulares de recorte espacial, a

    corografia foi certamente a forma mais cultivada.

    Histrias locais e particulares

    O formato corogrfico bastante antigo, alguns autores

    o identificam em textos de escritores gregos e

    romanos.1 Sua prtica esteve associada historiografia

    antiquria e erudita, que ao longo dos tempos moder-

    nos especializou-se na chamada histria local, por opo-

    sio grande tradio da histria poltica clssica. A

    historiografia produzida pelos antigos era caracterizada

    pelo intenso uso de documentao, assumindo geral-

    mente formas no narrativas para a exposio do mate-

    rial. No mundo portugus, a corografia esteve estreita-

    mente associada atividade militar e administrativa,

    sendo utilizada para o reconhecimento dos novos terri-

    trios e populaes. Essa ligao entre corografia, ativi-

    dade militar e administrao um dos traos de per-

    manncia da tradio corogrfica portuguesa.

    No sculo XVII, na parte introdutria de sua Geographia

    Generalis, publicada em 1650 em Amsterd,

    Bernardo Varenius repetia uma longa tradio ao

    dividir a geografia em dois grandes campos:

    Geografia Geral ou Universal aquela que con-

    sidera a Terra em conjunto e explicita suas pro-

    priedades sem levar em conta as particularida-

    des de cada regio. Chama-se Especial ou

    Particular aquela que estuda a constituio de

    cada uma das regies, e

    que se subdivide em: corografia e topografia.

    A corografia mostra a descrio de alguma

    regio que tenha uma extenso maior e a topo-

    grafia descreve com detalhe um lugar

    ou uma pequena extenso da Terra.2

    Essa mesma definio pode ser encontrada no

    verbete corografia do Vocabulrio Portuguez e Latino,

    publicado por Rafael Bluteau na primeira metade do

    sculo XVIII, permanecendo sem grandes modificaes

    ao longo do sculo XIX. Essa estabilidade da definio

    do lxico escondia profundas transformaes no gnero,

    que precisou se adaptar aos diferentes paradigmas de

    conhecimento.

    No Brasil, a forma corogrfica ofereceu a possibilidade

    de enfrentar a disperso real e simblica do territrio.

    Na impossibilidade de totalizar a experincia da

    Amrica portuguesa em torno de imagens gerais efeti-

    vas, utilizava-se de um formato literrio onde a frag-

    mentao e a inconclusividade eram regras.

    A corografia associou-se ao memorialismo para a pro-

    duo de conhecimento orientado pela metfora do

    mosaico.3 Assim como a experincia do passado se

    apresentava como a de um conjunto variado de hist-

    rias, tambm o espao poderia ser descrito a partir de

    certas unidades autnomas, sem que as diversas lacu-

    nas no conhecimento oferecessem um obstculo

    intransponvel para o relato. O gnero adaptou-se muito

    facilmente concepo de territrio aberto.4

    Nesse conhecimento produzido a partir da metfora do

    mosaico, os diversos relatos, escritos por diferentes

    autores, poderiam ser totalizados em um momento

    futuro. A histria geral, algumas vezes chamada univer-

    sal, era vista apenas como a correlao dessas histrias

    Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi24 |

    >

  • A hegemonia da histria geral

    Nos primeiros anos do IHGB, a prioridade da histria

    geral no era aceita de modo consensual pelos scios.

    Cunha Matos e Fernandes Pinheiro, ambos autores de

    importantes histrias particulares7, no mostravam dis-

    posio de abandonar os rumos de seus projetos

    de pesquisa para entrar em uma nova e incerta emprei-

    tada. Cunha Matos enftico ao negar a possibilidade

    de uma histria geral nas circunstncias do conheci-

    mento disponvel: [...] continuarei a sustentar que por

    ora no convm, nem possvel escrever de um s jato

    a histria geral do Imprio

    do Brasil.8

    Para Janurio da Cunha Barboza, o passo decisivo

    para a produo da histria geral, ainda como obra

    coletiva, seria a definio das pocas histricas brasilei-

    ras. O tempo tornava-se a dimenso fundamental nesse

    projeto historiogrfico. J nas concepes de Cunha

    Matos e Fernandes Pinheiro, o espao era ainda a

    dimenso a ser percorrida e esgotada. Aplicando o

    modelo que Jack P. Greene formulou para entender a

    criao de identidades corporativas coloniais em pos-

    sesses do Imprio Britnico, poderamos dizer que

    Cunha Matos e Fernandes Pinheiro oscilavam entre a

    fase um

    a da descrio dos espaos fsicos e a fase dois, o

    relato dos melhoramentos da ocupao do territrio.

    A proposta de Cunha Barboza levava a narrativa

    para sua terceira fase, mais preocupada em

    demonstrar a identidade prpria adquirida ao

    longo do processo histrico.9

    No interior do Imprio portugus, a convivncia de cr-

    culos concntricos de formas identitrias regionais no

    parecia ser capaz de produzir grandes rearranjos polti-

    cos. No segundo quartel do sculo XIX, o

    Estado nacional em constituio, em especial durante

    a experincia regencial, comeou a perceber o

    potencial poltico dessas identidades locais e regionais.

    J em 1827, em discurso na Cmara dos Deputados,

    o ainda liberal Bernardo Pereira de Vasconcelos poderia

    ensaiar uma recepo positiva da Inconfidncia

    Mineira, que poucos anos depois seria desprezada

    pela historiografia oficial:

    fama que os mineiros j pelo ano de 1790

    conceberam o majestoso projeto de sacudir o

    jugo europeu: os homens mais gentis nas letras

    e nas armas eram apontados como os autores

    desta gloriosa empresa que no chegou a reali-

    zar-se. [...] Um destes vares ilustres perdeu a

    vida no patbulo; outro, que eu chamarei o

    Cato das Minas, o sbio e intrpido Cludio

    Manuel da Costa, foi assassinado na masmorra

    pelo visconde.10

    Enquanto Cunha Barboza previa um debate mais subs-

    tantivo em torno da definio das pocas histricas, em

    Cunha Matos o problema das divises gerais foi rapida-

    mente dado como resolvido para, em seguida, afirmar-

    se a necessidade de primeiro indagar

    a histria particular das provncias, de modo que [...]

    com bons materiais escrev[ssemos] a histria geral

    do Imprio brasileiro.11

    A discusso das pocas deslocada rapidamente de

    uma preocupao com a periodizao da histria geral

    para a tarefa de se estabelecer uma cronologia exausti-

    va e crtica do Imprio do Brasil. Na diferena entre os

    dois caminhos, confrontavam-se uma compreenso

    moderna de poca enquanto perodo histrico com

    identidade e definio intrnsecas e uma compreen-

    so tradicional, ligada cronologia, que entendia as

    pocas como simples marcos temporais. Por isso, no

    se deve estranhar que a maior parte da contribuio

    histrica de Cunha Matos esteja disposta na forma de

    Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi26 |

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  • Bruno Franco Medeiros e Valdei Lopes de Arajo | A histria de Minas como histria do Brasil | 29Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi28 |

    tbuas cronolgicas e corografias.

    O mtodo que propunha como alternativa ao da

    histria geral previa a construo e o aperfeioamento

    da cronologia e estabelecimento crtico das fontes.

    Era uma variao do tipo antiqurio, que, nas palavras

    de Momigliano, um homem que se interessa mais

    pelos fatos histricos do que pela histria.12

    Temos ento dois modelos historiogrficos: o primeiro

    mais preocupado em estabelecer o sentido geral do

    desenvolvimento histrico do Brasil, o segundo

    voltado para o trabalho virtualmente infinito de estabe-

    lecimento factual:

    Como ser possvel escrever uma histria filosfica

    do povo do Brasil antes de levar ao cadinho da

    censura mais severa o imenso fardel de escritos

    inexatos, insulsos, indigestos, absurdos e fabulo-

    sos anteriores ao ano de 1822.13

    desnecessrio dizer que o cnone da histria nacional

    brasileira segue o modelo proposto por Janurio da

    Cunha Barboza, e encontra na Histria Geral do Brasil

    de Varnhagen sua maior realizao. A histria geral foi

    capaz de produzir um equilbrio entre as demandas eru-

    ditas de crtica e acmulo documental,14 a forma narra-

    tiva e a exibio de uma interpretao geral da forma-

    o histrica da nacionalidade que preservava e proje-

    tava o Estado Imperial centralizado como grande perso-

    nagem do relato.15

    Cincia e regio

    Todos os historiadores que sucederam ao autor de

    Histria Geral do Brasil viveram sombra do livro que

    se tornou a referncia fundamental na historiografia

    brasileira oitocentista e que sobejou o sculo XIX.

    Polemizando com Capistrano de Abreu, Slvio Romero

    especulou sobre a possibilidade do aparecimento de

    uma histria do Brasil que superasse a de Varnhagen

    em fins do sculo XIX. Em nota a um trecho de sua

    Histria da Literatura Brasileira, diz o seguinte:

    Ns mesmos, durante mais de trinta anos, nos

    deixamos iludir, e chegamos a esperar, com

    ansiedade, a Histria do Brasil prometida por

    Capistrano. Sabamos que ele grande conhece-

    dor dos nossos fatos histricos e por isso, para

    o estimular, lhe fizemos rasgados elogios na

    memria que inserimos no Livro do Centenrio

    do Descobrimento do Brasil.16

    Porm, sabemos que Capistrano de Abreu nunca che-

    gou a concluir uma histria do Brasil. Escreveu basica-

    mente monografias dedicadas a assuntos particulares,

    como, por exemplo, os escritos que versam sobre o

    povoamento dos sertes. Em

    polmica com Capistrano, Slvio Romero o caracterizou

    como um historiador microlgico e de mincias, ao

    mesmo tempo, escreveu que Joo Francisco Lisboa,

    autor de Apontamentos para a Histria do Maranho,

    foi melhor historiador do que Varnhagen, alm de con-

    ferir elogios exaustivos s Memrias do Distrito

    Diamantino, obra do mineiro Joaquim Felcio dos

    Santos. Caracterstica singular a essas duas obras o

    fato de dedicarem sua narrativa ao estudo particular

    das provncias, o que indicia um desejo, por parte de

    Romero, pela regionalizao monogrfica do conheci-

    mento histrico do pas.17

    O que parece nascer dessa polmica que envolvia no

    s Romero e Capistrano, mas todos aqueles que num

    momento decisivo de transformao no regime poltico

    do pas dedicavam seus estudos histria nacional, a

    especializao do objeto de estudo, principalmente no

    recorte espacial, algo semelhante ao que acontecia com

    o nascimento das cincias sociais no fim do sculo XIX.

    A partir da dcada de 1870 as idias evolucionistas e

    cientificistas comeam a aportar no Brasil, chocando-se

    com a sensibilidade romntica que permeava os estu-

    dos literrios e histricos.

    Junto com a Repblica vinha tambm a necessidade

    de reorganizao da histria nacional e de sua relao

    com os Estados federados. A querela entre histrias

    gerais e histrias particulares alcanou um novo pata-

    mar. Os estudos monogrficos regionais e temticos

    estavam potencialmente mais adaptados ao novo

    padro de cientificidade que emergia, bem como

    com as novas demandas polticas.

    No devemos pensar que a hegemonia do modelo da

    histria geral no sculo XIX significou o abandono das

    histrias particulares. Por vrios motivos elas continua-

    ram a ser produzidas. Em primeiro lugar, sua nfase no

    acmulo dos vestgios antigos, dos monumentos e efe-

    mrides parecia responder a uma vontade de passado

    que o modelo da grande histria poltica era incapaz de

    satisfazer plenamente.18 Associado ao desejo de recu-

    perar ou tocar o passado, essa historiografia local/erudi-

    ta era necessria no enfrentamento dos perodos de

    grande acelerao do tempo histrico, nos momentos

    de transio em que os contemporneos se percebiam

    como perdendo contato com a tradio.

    Em segundo lugar, essa tradio historiogrfica transfor-

    mou-se em uma forma de resistncia ao modelo polti-

    co hegemnico representado na histria geral.

    Especialmente em Minas, a leitura liberal da formao

    do Estado como elemento aniquilador das autonomias

    locais alimentou uma tradio historiogrfica subterr-

    nea, na qual foi produzida uma leitura alternativa do

    processo de Independncia que valorizou as diversas

    iniciativas do perodo colonial. Mesmo que o depois

    conservador Vasconcelos no estivesse mais disposto a

    recuperar as revoltas coloniais como parte da histria

    da Independncia, outros autores no deixariam de

    faz-lo.19

    As corografias, memrias, efemrides, cronologias e

    anais tornaram-se gneros menores ou auxiliares quan-

    do vistos da perspectiva da grande tradio nacional,

    mas foram tambm lugares de resistncia.

    A criao do Arquivo Pblico Mineiro (APM) deve ser

    vista no interior desse novo momento qualitativo na

    relao entre esses dois grandes veios historiogrficos.

    A Repblica e um novo padro de cientificidade leva-

    riam a uma revalorizao dos gneros utilizados

    na redao das histrias locais.

    Uma nova histria

    O advento da Repblica sinalizou a preocupao com

    um novo regime de historicidade para Minas Gerais.

    A crise do Imprio tornou mais perceptiva a acelerao

    do tempo histrico, produzindo uma sensao de atraso

    e letargia que o novo tempo republicano procuraria

    exorcizar. Fazia-se necessria a reorganizao histrica

    das antigas provncias agora Estados da Federao

    que, a partir desse momento, concorriam com seus ele-

    mentos histricos singulares na disputa por posies

    no cenrio poltico nacional.

    A criao do APM, pela Lei n. 126, de 11 de julho

    de 1895, procedente de um projeto apresentado

    Cmara dos Deputados pelo Dr. Levindo Ferreira

    Lopes, repercute o novo contexto poltico e historiogrfi-

    co. A direo do Arquivo nos primeiros

    anos foi delegada a Jos Pedro Xavier da Veiga, figura

    marcante na instituio mesmo depois de sua morte,

    em 8 de agosto de 1900. Polgrafo como muitos de

    sua gerao, Xavier da Veiga dedicou-se ao jornalismo,

    poesia e histria, contribuindo para a redefinio do

    significado do histrico de Minas Gerais tanto com seus

    trabalhos no APM quanto pela confeco monumental

    das Efemrides Mineiras.

  • Bruno Franco Medeiros e Valdei Lopes de Arajo | A histria de Minas como histria do Brasil | 31Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi30 |

    Analisando a atuao de Xavier da Veiga, pretendemos

    mostrar as novas expectativas em torno da histria de

    Minas Gerais nos primeiros anos da Repblica. Vale

    lembrar que Slvio Romero, ao destacar os historiadores

    que compunham a cena brasileira em sua Histria da

    Literatura Brasileira, listou o nome de Xavier da Veiga

    entre os historiadores renomados. Dentro da cronologia

    temtica de Romero acerca de nossa historiografia,

    Xavier da Veiga citado na Fase das monografias eru-

    ditas.20

    Como vem sendo discutido at aqui, durante o Imprio,

    a escrita das histrias no-nacionais estavam sujeitas

    ao crivo hierarquizante da histria geral. Xavier da

    Veiga percebia essa hierarquizao como reflexo de um

    arranjo poltico altamente centralizador:

    Vigente o Imprio, os Estados no poderiam pro-

    gredir, ainda que bem o quisessem; porque no

    tinham autonomia, sendo sempre os presidentes

    da provncia filhos de outras, s vezes longn-

    quas. Era um meio de que se valia o poder cen-

    tral para ter tudo fechado nas mos.21

    Com o advento da Repblica, as condies estruturais

    para a escrita da histria de Minas alteravam-se profun-

    damente: Estabelecido com a Repblica o regime fede-

    rativo, isto , descentralizada a vida nacional e desper-

    tos os Estados da velha apatia letrgica, j comeam

    eles a prover sobre a necessidade, essencial prpria

    autonomia, de organizarem sria e sistematicamente os

    seus Arquivos.22

    O fundador do APM constantemente reclamava que,

    ao tempo do Imprio, todos os documentos mineiros

    estavam jogados a esmo em arquivos locais, amalga-

    mados num verdadeiro labirinto sem fio condutor.

    Xavier da Veiga traava a metanarrativa dessa nova his-

    tria regional, uma vez que estabelecia a mtua depen-

    dncia entre o crescimento dos Estados no regime fede-

    rativo e as condies para a escrita de suas histrias. O

    conhecimento do passado aceleraria o processo histri-

    co, que, por sua vez, criaria as condies de possibilida-

    de para a escrita da histria local.23

    Como percebemos, o APM proporcionou ao projeto

    poltico de reconstituio histrica de Minas Gerais um

    local de produo de conhecimento a respeito desse

    passado, bem como um lugar simblico que resguarda-

    va uma unidade territorial ainda carente de delimita-

    es precisas. A preocupao de Xavier da Veiga com a

    histria do Estado anterior a sua nomeao para o

    cargo de diretor do Arquivo. Quando tomou conheci-

    mento do incndio que ameaou a Torre do Tombo,

    escreveu:

    [...] referindo-se [Tefilo Braga] a um incndio

    que ameaou recentemente destruir a Torre do

    Tombo, conta-nos a apreenso esmagadora que

    por alguns minutos dominou-o, persuadido,

    como estava, que extinto esse riqussimo e

    incomparvel Arquivo, Portugal perdia os docu-

    mentos de sua autonomia moral, e ficava redu-

    zido a um simples territrio que mais facilmente

    se tornaria um anexo de Espanha.24

    Papel do APM

    Colocando em jogo a autonomia moral e territorial de

    Minas, Xavier da Veiga apelava para a constituio do

    APM como forma de prevenir tamanha tragdia.

    Durante 18 anos, apreensivo com a notcia de Tefilo

    Braga, Xavier da Veiga prosseguiu seu trabalho em

    busca dos documentos que poderiam orientar a forma-

    o histrica autnoma de Minas Gerais. Ao final desse

    perodo vinham a lume os projetos do Arquivo e das

    Efemrides. A organizao do trabalho historiogrfico

    de crtica e estabelecimento documental no formato

    cronolgico evidenciava a ligao

    Pgina de rosto das Ephemerides Mineiras, 1664-1897. Colligidas, coordenadas e redigidas por Jos

    Pedro Xavier da Veiga. Ouro Preto: Imprensa Oficial doEstado de Minas Gerais, 1897. Biblioteca do APM - OB 006.

    Rodolpho Jacob, primeiro secretrio-arquivista do Arquivo Pblico Mineiro. Aparece no centro da

    foto, apoiado num guarda-chuva, com seus irmos Joo Jlio, Francisco, Emlio e Benjamin (sentado).

    Fotografia de Simeo Mauro, Ouro Preto, circa 1896.Coleo Lus Augusto de Lima, Nova Lima, MG.

    Pgina de rosto do livro Minas Gerais no XX sculo - volu-me 1: sumrio geogrfico; indstria agrcola e pastoril;

    Minas e industria mineral; indstrias diversas; forahidrulica, Comrcio, vias de comunicao, de Rodolpho

    Jacob. Rio de Janeiro: Gomes Irmos & C., 1911.

    ltimo retrato do Comendador Jos Pedro Xavier da Veiga (Campanha, 1846 -

    Ouro Preto, 1900) publicado na Revista do ArquivoPblico Mineiro, ano XIX, Belo Horizonte,1921.

  • Bruno Franco Medeiros e Valdei Lopes de Arajo | A histria de Minas como histria do Brasil | 33Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi32 |

    desse empreendimento com a tradio da histria

    local e erudita.

    Apesar de reconhecer que reunir documentos sobre a

    histria de Minas j duas vezes secular seria uma

    tarefa rdua e no muito facilitada, Xavier da Veiga

    enfrentava o desafio com uma compreenso fechada e

    objetificante da tarefa. Aquilo que realizasse poderia,

    sem dificuldade, ser continuado por outras geraes.

    Entender Minas Gerais como um grande labirinto docu-

    mental significava pressupor uma unidade histrica

    preexistente, apenas aguardando quem, com o mtodo

    e a disposio suficiente, revelasse todos os seus corre-

    dores e limites.25

    Thomas Richards, em seu livro The Imperial Archive,

    analisa fenmeno similar ao estudar o controle e a sen-

    sao de controle que instituies como o British

    Museum, a Real Geographical Society e o India

    Survey produziam sobre as possesses territoriais brit-

    nicas no final do sculo XIX. Essas instituies lana-

    vam mo da metfora do arquivo como chave para o

    tipo de produo de conhecimento que se exigia para o

    controle do Imprio.26 Era muito mais fcil unificar um

    arquivo feito de papis do que um imprio feito de ter-

    ritrio.27 Fenmeno semelhante parece ter orientado a

    constituio do APM. Tendo em vista a impossibilidade

    real imediata de unificao do Estado de Minas a partir

    do seu territrio proteiforme, o Arquivo cumpria o papel

    de unificao a partir de documentos e textos que

    pudessem conferir uma imagem ao novo sujeito histri-

    co Minas Gerais

    que surgia com a Repblica.

    A grande vantagem do arquivo enquanto metfora cen-

    tral dessa episteme sua capacidade em lidar

    com grandes vazios e reunir uma massa imensa de

    informao que, em suas partes isoladas, no possuem

    significado geral, mas que reunidas no Arquivo produ-

    zem a imagem e a sensao de unidade. Carlo

    Ginzburg situa no fim do sculo XIX o aparecimento de

    um modelo epistemolgico nas cincias humanas

    baseado no detalhe, no particular como forma de arti-

    culao de um conhecimento maior sobre o objeto ana-

    lisado, que, ao final da juno das particularidades,

    demonstraria uma imagem total do objeto

    fragmentado.28

    O Arquivo seria a representao ideal de uma unidade

    territorial e histrica, as Efemrides Mineiras, o fio con-

    dutor que deveria guiar o viajante pelo territrio simb-

    lico das Minas Gerais. As Efemrides procuravam esta-

    belecer o incio e o fim, o mythos, para a escrita de

    uma histria regional. Atravs da nfase na vasta docu-

    mentao coletada, surgia um dos pilares que naquele

    momento permitiria escrever a histria de Minas.

    Frizando a importncia dos documentos para a escrita

    da histria, Xavier da Veiga dizia o seguinte:

    Sem eles obscurecida ou deturpada a verdade

    dos fatos feio dos interesses e das paixes,

    eliminadas as fontes de que emanam para a

    Histria a prpria origem e a austeridade fecun-

    da de seus conceitos no raro carecia o inves-

    tigador sincero ser iluminado, o que s alcan-

    am gnios privilegiados, dessa intuio quase

    proftica do passado, intuio s vezes mais

    dificultosa que a do futuro, na frase profunda

    do ilustre Alexandre Herculano.29

    Identificando nos documentos a fora mxima da possi-

    bilidade de escrita de uma histria autnoma de Minas

    Gerais, Xavier da Veiga cuidava para que, por meio da

    manuteno de um Arquivo e da redao de uma obra

    como as Efemrides, se pudesse iniciar o projeto de

    constituio de uma histria de Minas Gerais enquanto

    um sujeito histrico e no mais como uma parte

    constitutiva e sempre ligada ao plano de uma histria

    geral do Brasil.

    consenso entre os analistas da Histria Geral do Brasil

    de Varnhagen que um dos mritos principais do historia-

    dor foi a constatao da impossibilidade de escrita da his-

    tria do Brasil sem documentos. O Herdoto brasileiro

    buscava documentos em colees particulares, arquivos,

    bibliotecas. Trabalho de um erudito, a Histria Geral foi

    escrita com base em documentos originais. Xavier da

    Veiga j considerava os documentos indispen sveis na

    constituio da histria de Minas Gerais. Essa preocupa-

    o demonstra uma afinidade do historigrafo mineiro

    com a chamada Escola Metdica francesa, encabeada

    por Langlois e Seignobos. Este ltimo fora citado por

    Xavier da Veiga no prefcio das Efemrides. Os expoentes

    da escola francesa afirmavam enfaticamente:

    A histria se faz com documentos. Documentos

    so os traos que deixaram os pensamentos

    e os atos dos homens do passado. Entre os pen-

    samentos e os atos dos homens, poucos

    h que deixam traos visveis e estes,

    quando se produzem, raramente perduram:

    basta um acidente para os apagar. Porque

    nada supre os documentos: onde no h docu-

    mentos no h histria.30

    A mesma sensao da fragilidade do vnculo entre pas-

    sado e presente o documento perpassa as observa-

    es de Tefilo Braga, a crise sofrida por

    Xavier da Veiga e as prescries metodolgicas dos

    autores franceses.

    O APM surge no momento em que o romantismo

    enquanto movimento geral das idias reflua, mas as

    inmeras citaes dos autores portugueses contempor-

    neos demonstra que a relao com o passado devia

    muito ainda concepo orgnica do romantismo, alia-

    da agora a uma obsesso

    progressiva, alimentada por um positivismo difuso,

    pelo fato histrico enquanto dado, partcula mnima

    de informao que algum dia poderia ser reunida

    em uma imagem total da realidade.

    A sensao de que a gerao de 1870 vivia de acelera-

    o do tempo histrico, motivadora da escrita de mui-

    tas memrias e recordaes de sabor etnogrfico, ali-

    mentava tambm no projeto do APM uma relao de

    resgate no trato com o passado. O passado se fazia

    urgente, bem como sua lembrana:

    [...] a ingratido cedo tornou a muitos esqueci-

    dos; injustia ainda maior, explicvel alis pela

    ignorncia dos que a praticam, faz de inmeros

    outros desconhecidos; [...] o autor deste livro

    [Efemrides], escrito com a verdade e o cora-

    o, penetra [...] respeitoso no cemitrio do

    nosso passado mineiro.31

    Preocupado com o esquecimento de homens e fatos que

    fazem parte do passado mineiro, o historigrafo resiste

    ao projeto de mudana da capital. A cidade de Ouro

    Preto representaria as melhores tradies da histria de

    Minas, deix-la para trs significava tambm abandonar

    o passado num af obsessivo pelo progresso. Em artigo

    escrito para A Ordem (peridico editado por Xavier da

    Veiga) em 30 de abril de 1891, podemos notar o senti-

    mento evocado com relao mudana da capital:

    No comentarei semelhante indiferena ou tci-

    to contentamento ante a perspectiva de uma

    runa colossal, pelos avultadssimos valores de

    sbito destrudos e pelas preciosas tradies

    relativamente aniquiladas, tradies venerveis,

    sempre respeitadas no Imprio e que, na

    Repblica, de culto ainda mais fervoroso so

    dignas. Parece que na lamentvel aberrao, at

    a pgina gloriosa da Inconfidncia ficou apaga-

    da e com ela a lembrana imorredoura dos pri-

    meiros mrtires da liberdade nacional.32

    Para quem pensava que a atitude do povo mineiro

    durante a colonizao fora uma Inconfidncia perma-

    nente, protestante e conspiradora, que teve em 1789 o

  • Bruno Franco Medeiros e Valdei Lopes de Arajo | A histria de Minas como histria do Brasil | 35Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi34 |

    seu lampejo pico de sua mais alta indignao,33 tro-

    car o passado pelas ordens estticas do dia era um

    desafio e um risco para a escrita de uma histria de

    Minas Gerais enquanto sujeito autnomo. A sensao

    de que o passado estava sendo deixado para trs torna-

    va urgente o projeto de resgatar o verdadeiro sentido

    da nacionalidade, sentido este que somente a histria

    dos mineiros poderia apontar.

    Longe de ser um republicano radical, Xavier da Veiga

    herdara do Imprio a concepo da civilizao enquan-

    to continuidade histrica.34 A Repblica no poderia

    ser vista apenas como uma revoluo ditada pela

    ordem do dia, deveria ser compreendida como evoluo

    natural da prpria histria do Brasil. Outros de sua

    gerao empreenderiam tarefa semelhante. Ao explicar

    os objetivos que levaram seu pai, Francisco de P. F. de

    Rezende, a escrever sobre a histria do Brasil aps a

    Repblica, Cssio Barbosa de Rezende dizia: [...] esti-

    mular os sentimentos cvicos dos brasileiros, mostran-

    do-lhes o que j havia de grande e herico na sua his-

    tria, e, ao mesmo tempo, concitando-os a que se

    mantivessem sempre unidos para que, sob o novo regi-

    me, pudesse o Brasil realizar os seus gloriosos desti-

    nos.35

    A corografia na nova histria

    O projeto da corografia mineira ganha flego com a

    criao da Revista do Arquivo Pblico Mineiro (RAPM)

    em 1896. A revista tinha algumas sees permanentes

    sobre biografias, letras e artes, publicao de documen-

    tos inditos e vulgarizados, corografias, dentre outras.

    Ao criticar a transferncia da capital do Estado, Xavier

    da Veiga esboou algumas opinies que poderiam

    esclarecer o projeto de constituio de uma corografia

    mineira: Uma vasta e rica capital, ventosa permanente

    sobre o corpo j quase exangue do povo mineiro, isto ,

    a pletora no crebro e a paralisia nos membros quan-

    do o princpio federativo pressupe a vivificao do

    elemento local, nica base possvel da autonomia

    popular e do progresso do Estado.36

    O princpio federativo pressupunha a vivificao do ele-

    mento local, nada mais natural, portanto, do que dele-

    gar uma seo da Revista descrio de lugares do

    Estado. Em 1891, Xavier da Veiga enviara um questio-

    nrio, a ser respondido, para os distritos de paz de

    Minas Gerais. Esse questionrio continha perguntas

    relacionadas aos aspectos fsico, climtico, histrico,

    social, enfim, procurava descrever o municpio com as

    caractersticas que lhe eram peculiares.

    Entre caminhos e fronteiras teve incio em Minas Gerais

    o que podemos entender como uma tentativa de consti-

    tuio identitria promovida atravs do levantamento

    de materiais coletados das descries dos municpios

    do interior do Estado. Mapeando o local ou seja, o

    municpio , esse processo originava redes imaginrias

    (e no somente imaginrias) que acabavam identifican-

    do a prpria configurao cartogrfica do regional

    Minas Gerais em vista de uma formao histrico-

    geogrfica maior o Brasil.

    Na narrativa corogrfica da RAPM percebemos que o

    ornamento e a ressonncia esttica compem os recur-

    sos narrativos, enquanto na historiografia

    oficial no se permitia esse tipo de desenvolvimento.

    A descrio afetiva do territrio fazia confluir na corogra-

    fia mineira aspectos vetados pelo decoro da grande tradi-

    o historiogrfica nacional: o derramamento da subjeti-

    vidade em descries de paisagens ou na dramatizao

    de personagens e eventos histricos.

    No s a funo esttica regulava esse tipo de escrita

    corogrfica, tambm uma funo cientfica que insistia

    em medir e classificar racionalmente a natureza obser-

    vada. Porm, percebemos que essa racionalizao da

    natureza local no esgotava a narrativa corogrfica,

    sendo preciso recorrer a efeitos estticos para comple-

    tar as lacunas da descrio do quadro observado.

    O desejo de mapear o lugar com classificaes, demar-

    cao de pontos de fundao, colorao na descrio

    da paisagem so marcas fortemente impressas nos

    relatos de lugares. Por meio de descrio abundante,

    procurava-se produzir no leitor um efeito de real, ao

    invs da simples seriao daquilo que era apreendido

    pelas lentes do corgrafo. Como nos mostrou Roland

    Barthes, caracterstica marcante de nossa civilizao

    ter esse gosto pelo real, pelo prestgio do que acon-

    teceu, atestado por diversos gneros literrios.37 O

    corgrafo deveria ter olhos de agrimensor para medir a

    terra, olhos de etnlogo para tentar desvendar o estra-

    nho e fixar culturas aliengenas no mundo dos bran-

    cos. Atravs da enargeia, ou vivacidade, produzia-se a

    autpsia, ou seja, a viso direta pela ao de estilo.38

    A acumulao exaustiva de documentos, na esperana

    de que algum dia pudesse ser escrita a histria geral

    de Minas, marcou os primeiros anos do APM. Porm,

    Xavier da Veiga j tinha lanado as bases para a escrita

    da histria atravs das Efemrides, constituda basica-

    mente sobre uma cronologia. J a corografia parece ter

    nutrido a sua configurao nas fontes dos relatos de

    viajantes-naturalistas que estiveram no

    Brasil durante o sculo XIX, e o tipo de historiografia

    influenciada pelos relatos de viajantes acabou desem-

    bocando no novo estilo adotado em muitas de suas

    Antiga sede do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro, dcada de 1930. Fotografia reproduzida da revista Illustrao Brasileira, n. 50, ano XVII, junho 1939.

  • Revista do Arquivo Pblico Mineiro | Dossi36 |

    Horizonte, v. 22, n. 36, p. 314-328, jul./dez. 2006.

    19. Cf. ARAJO, Valdei Lopes de. O tribuno do povo e a esttua do Heri:breve estudo sobre as tradies polticas atuantes na Corte no SegundoReinado. Dia-Logos, Rio de Janeiro, ano II, n. 2, p. 133-157, 1998.

    20. ROMERO. Quadro sinttico da evoluo dos gneros na literaturabrasileira, p. 1550.

    21. VEIGA, Jos Pedro Xavier da; apud GAMA, Jos Joaquim do Carmo.Comendador Jos Pedro Xavier da Veiga. Revista do Arquivo PblicoMineiro, Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais,ano XVI, v. I, p. 61, 1911.

    22. VEIGA, Jos Pedro Xavier da. Palavras Preliminares. Revista doArquivo Pblico Mineiro, Ouro Preto, Imprensa Oficial do Estado deMinas Gerais, ano I, fascculo I, p. II, 1896.

    23. Para esta definio de metanarrativa, ver POCOCK. Barbarism andReligion II, p. 290.

    24. VEIGA. Palavras Preliminares. Revista do Arquivo Pblico Mineiro,p. I, grifo nosso.

    25. Ibidem, p. V.

    26. RICHARDS, Thomas. The Imperial Archive. Knowledge and the fan-tasy of Empire. New York: Verso, 1993. p. 1-2.

    27. Ibidem, p. 4.

    28. Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: razes de um paradigma indicirio. In:______. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e histria. So Paulo:Companhia das Letras, 1989. p. 143-179.

    29. VEIGA. Palavras Preliminares. Revista do Arquivo Pblico Mineiro...,p. III. Sobre essa intuio proftica, cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: razesde um paradigma indicirio, p. 169, na passagem seguinte: ThomasHuxley, em um ciclo de conferncias proferidas para a difuso das des-cobertas de Darwin, definiu como mtodo de Zadig o procedimento quereunia a histria, a arqueologia, a geologia, a astronomia fsica e apaleontologia: isto , a capacidade de fazer profecias retrospectivas.

    30. LANGLOIS, Ch.-V; SEIGNOBOS, Charles. Introduo aos estudoshistricos. So Paulo: Renascena, 1944. p. 15.

    31. VEIGA, Jos Pedro Xavier da. Prefcio. In: ______. EfemridesMineiras: 1664-1897. Introduo de Edilane Maria de AlmeidaCarneiro, Marta Elosa Melgao Neves; pesquisa histrica BrunoFagundes; leitura paleogrfica e atualizao ortogrfica Cludia AlvesMelo. Belo Horizonte: Centro de Estudos histricos e Culturais/FundaoJoo Pinheiro, 1998. p. 50. Grifos do autor.

    32. GAMA, Jos Joaquim do Carmo. Comendador Jos Pedro Xavier daVeiga. Revista do Arquivo Pblico Mineiro..., p. 61.

    33. VEIGA. Palavras Preliminares. Revista do Arquivo Pblico Mineiro...,p. IV.34. AZEVEDO, Andr Nunes de. A reforma Pereira Passos: uma tentati-va de integrao urbana. Revista Rio de Janeiro, UERJ, v. 1, n. 1, p. 35-63, 2004.

    35. REZENDE, Cssio Barbosa de. Prefcio. In: REZENDE, Francisco dePaula Ferreira de. O Brasil e o acaso, ou um bosquejo da nossa histria.Quase todo extrado da Histria Geral do Brasil, de Varnhagen. 2. ed.Rio de Janeiro: Editora A Noite, [s.d.]. p. 7.

    36. Pronunciado em A Ordem em 30 de abril de 1891. Citado emGAMA, Jos Joaquim do Carmo. Comendador Jos Pedro Xavier daVeiga. Revista do Arquivo Pblico Mineiro..., p. 64.

    37. Cf. BARTHES, Roland. O efeito do real. In: ______. O rumor da ln-gua. Traduo de Mrio Laranjeira. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p.184.

    38. Cf. GINZBURG, Carlo. Ekphrasis e citao. In: ______. A micro-his-tria e outros ensaios. Traduo de Antnio Narino. Lisboa: DIFEL; Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

    39. Sobre isso ver SSSEKIND, Flora. O Brasil no longe daqui. O nar-rador, a viagem. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.

    Bruno Franco Medeiros e Valdei Lopes de Arajo | A histria de Minas como histria do Brasil | 37

    descries corogrficas.39

    Continuidades e rupturas

    Em resumo, podemos perceber que o projeto historio-

    grfico movimentado pelo APM em

    seus primeiros anos enfrentava vigorosamente a

    herana cultural do Imprio. Entre continuidades

    e rupturas, Xavier da Veiga soube perceber as oportuni-

    dades do momento, abrindo espao para o desenvolvi-

    mento de um desejo pelo passado local

    que havia sido sufocado pela grande historiografia pol-

    tica, sem, contudo, se esquecer das funes de funda-

    mentao da nacionalidade que esse passado deveria

    simultaneamente assumir.

    Certamente que no chegou a ser produzida uma outra

    histria geral que rivalizasse com aquela deixada pelo

    IHGB e por Varnhagen, mas foi redimensionada a rela-

    o parte e todo no interior desse grande quadro.

    O Brasil s poderia assumir seu destino histrico se

    Minas Gerais o revelasse atravs da reviso de sua his-

    tria local. Esse reordenamento das partes na histria

    geral provocou tambm a revitalizao de gneros con-

    siderados menores, como a corografia e as efemrides,

    talhadas de longa data para satisfazer o desejo de tocar

    o passado que a experincia histrica do final do sculo

    colocava novamente na ordem do dia. E para onde,

    seno ao Arquivo, devemos ir se quisermos tocar o pas-

    sado?

    Notas |

    1. Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. O surgimento da pesquisa antiquria. In____. Razes clssicas da historiografia moderna. So Paulo: Edusc,2004. p. 85-117.

    2. VARENIO [1650]. Geografia General (en la que se explican laspropriedades generales de la Tierra). Edicion y estudio preliminar deHoracio Capel. Traduo de Mrcia Siqueira de Carvalho. Ediciones de laUniversidad de Barcelona, 1980. Grifo nosso. Fonte: http://www.geoci-ties.com/pensamentobr/varenius.html

    3. Cf. JANCS, Istvn; PIMENTA, Joo Paulo G. Peas de um mosaico(ou apontamentos para o estudo da emergncia da identidade nacionalbrasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. Aexperincia brasileira (1500-2000). Formao: histrias. So Paulo:Editora SENAC, 2000. p. 127-176.

    4. Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dosinteresses na construo da unidade poltica. In: JANCS, Istvn (Org.).Independncia: histria e historiografia. So Paulo: Hucitec, 2005. p. 271-300.

    5. Cf. KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadmicaluso-brasileira (1724-1759). So Paulo: Hucitec, 2004. p. 156-165.

    6. Diversos exemplos dessas relaes tensas em torno da homo -geneizao que o esforo classificatrio impe podem ser encontrados nacoletnea organizada por Oswaldo Munteal Filho e Mariana Ferreira deMelo, Minas Gerais e a histria natural das colnias: poltica colonial ecultura cientfica no sculo XVIII, Belo Horizonte, Fundao JooPinheiro/Fapemig/Governo do Estado de Minas Gerais, 2005.

    7. MATOS, Raimundo Jos da Cunha. Corografia histrica da provnciade Minas Gerais, 1837; e PINHEIRO, Jos Feliciano Fernandes. Anaisda Capitania de So Pedro, 1819, depois chamada, em nova edio de1839, Anais da Provncia de So Pedro.

    8. MATTOS, Raymundo Jos da Cunha. Dissertao acerca do sistemade escrever a histria antiga e moderna do Imprio do Brasil. Revista doIHGB, tomo XXVI, 1863, p. 122. O texto foi provavelmente escrito entre1838 e 1839.

    9. Cf. GREENE, Jack P. Reformulando a identidade inglesa na Amricabritnica colonial: adaptao cultural e experincia provincial naconstruo de identidades corporativas. Almanack Braziliense, n. 4, p. 12-13, nov. 2006.

    10. Anais da Cmara, 1827, tomo II, p. 86, apud SOUZA, OctavioTarqunio de. Histria dos fundadores do Imprio do Brasil. Rio deJaneiro: Jos Olympio, 1960. v. 5, p. 107.

    11. MATTOS. Dissertao acerca do sistema..., p. 122.

    12. MOMIGLIANO. O surgimento da pesquisa antiquria, p. 85.

    13. MATTOS. Dissertao acerca do sistema..., p. 123, grifo nosso.

    14. Um sintoma das diferenas introduzidas na concepo da Histriageral como histria nacional pode ser materialmente percebida na drs-tica reduo do volume de informao descritiva entre o trabalho deSouthey e a obra maior de Varnhagen.

    15. Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. Contributo all Storia Classici e delMondo ntico. Rome: Edizione di Storia e Letteratura, 1955, apudPOCOCK, John G. A. Barbarism and Religion II: narratives of civil govern-ment. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 14-15.16. ROMERO, Slvio. Quadro sinttico da evoluo dos gneros na lite-ratura brasileira. In: ______. Histria da literatura brasileira. 7. ed. Riode Janeiro: Jos Olympio; Braslia: INL, 1980. v. 5, p. 1812.

    17. Ibidem, p. 1586.

    18. Cf. ARAJO, Valdei Lopes de. Para alm da autoconscincia moder-na: a historiografia de Hans-Ulrich Gumbrecht. Varia Histria, Belo

    Bruno Franco Medeiros graduando em histria pelaUniversidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e foi bolsistaIC do projeto Histria, Memria, Regio e Identidade noArquivo Pblico Mineiro: 1896-1913, financiado pelaFapemig, 2005-2006.

    Valdei Lopes de Arajo professor de Teoria da Histria na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Co-organizouo livro Nenhum Brasil existe: pequena enciclopdia, edefendeu em 2003, na PUC-Rio, a tese intitulada Aexperi ncia do tempo. Modernidade e historicizao no Imprio do Brasil (1813-1845). Coordenou o projetoHistria, Memria, Regio e Identidade no Arquivo PblicoMineiro: 1896-1913, financiado pela Fapemig, 2005-2006.