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A Geografia Serve Para Fazer a Guerra: Julga-se que a Geografia não é mais do que uma disciplina escolar e universitária, cuja função seria fornecer elementos de uma descrição do mundo, dentro de uma concepção desinteressada da cultura dita geral. Pois qual poderia ser a utilidade daquelas estranhas frases soltas em alguns livros de Geografia, que é necessário aprender nas escolas? Os maciços dos Alpes do Norte, a altitude do Pico Everest, a densidade demográfica da Holanda, a capital do Nepal etc. E os nossos pais e avós a lembrarem que em seu tempo era necessário saber as capitais de todos os países de certo continente. Para que serve tudo isso? Uma disciplina "estupidificante" mas, apesar de tudo, simples, pois, como toda a gente sabe, "em Geografia não há nada que perceber, é preciso é ter memória, é só decorar". Antigamente, talvez esta Geografia tenha servido para qualquer coisa, mas, hoje, a televisão, as revistas, os jornais não mostram melhor todos os países através de notícias, e o cinema mostra melhor as paisagens? Mas, que diabo, dirão todos os que não são geógrafos: a Geografia não serve para nada! A toda a ciência ou saber deve ser feito o seguinte questionamento: o processo científico está ligado a uma história e deve ser analisado, por um lado, na sua relação com as ideologias; por outro lado, como prática ou como poder. Dizer antecipadamente que a Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra, não implica que sirva apenas para executar operações militares; ela serve também para organizar os territórios, não só como previsão de batalhas que se deverão travar contra tal ou tal inimigo, mas também para melhor controlar os homens sobre os quais os aparelhos de Estado exercem a sua autoridade. A Geografia é, antes de mais nada, um saber estratégico intimamente ligado a um conjunto de práticas políticas e militares e são essas práticas que exigem a acumulação articulada de informações extremamente variadas, à primeira vista desconexas, de que não é possível compreender a razão de ser, a importância, se nos mantivermos dentro dos limites do saber pelo saber. São as práticas estratégicas que fazem com que a Geografia seja necessária, em primeiro lugar, aos que comandam os aparelhos de Estado. Hoje, mais do que nunca, a Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Pôr em prática novos métodos de guerra implica uma análise extremamente precisa das combinações geográficas, das relações entre os homens e das "condições naturais" que é necessário destruir ou modificar para tornar determinada região inabitável ou para levar a cabo um genocídio. A Guerra do Vietnã fornece numerosas provas de que a Geografia serve para fazer a guerra de maneira mais global. Um dos mais célebres e mais dramáticos exemplos foi posto em prática em 1965, 1966,1967 e sobretudo, em 1972, em um plano de destruição sistemática da rede de diques que protegem as planícies extremamente populosas do Vietnã do Norte. A escolha do locais a bombardear resultou de um estudo geográfico a vários níveis de análise espacial. Adaptado de LACOSTE, Y. A Geografia - Isso Serve, em Primeiro Lugar, para Fazer a Guerra. São Paulo, Papirus Editora, 1989, pp. 21-30. Retirado de: COIMBRA, Pedro e TIBÚRCIO, José Arnaldo. Geografia - uma análise do espaço geográfico. São Paulo, Harbra, 1995.

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A Geografia Serve Para Fazer a Guerra:

Julga-se que a Geografia não é mais do que uma disciplina escolar e universitária, cuja função seria fornecer elementos de uma descrição do mundo, dentro de uma concepção desinteressada da cultura dita geral. Pois qual poderia ser a utilidade daquelas estranhas frases soltas em alguns livros de Geografia, que é necessário aprender nas escolas? Os maciços dos Alpes do Norte, a altitude do Pico Everest, a densidade demográfica da Holanda, a capital do Nepal etc. E os nossos pais e avós a lembrarem que em seu tempo era necessário saber as capitais de todos os países de certo continente. Para que serve tudo isso? Uma disciplina "estupidificante" mas, apesar de tudo, simples, pois, como toda a gente sabe, "em Geografia não há nada que perceber, é preciso é ter memória, é só decorar". Antigamente, talvez esta Geografia tenha servido para qualquer coisa, mas, hoje, a televisão, as revistas, os jornais não mostram melhor todos os países através de notícias, e o cinema mostra melhor as paisagens? Mas, que diabo, dirão todos os que não são geógrafos: a Geografia não serve para nada! A toda a ciência ou saber deve ser feito o seguinte questionamento: o processo científico está ligado a uma história e deve ser analisado, por um lado, na sua relação com as ideologias; por outro lado, como prática ou como poder. Dizer antecipadamente que a Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra, não implica que sirva apenas para executar operações militares; ela serve também para organizar os territórios, não só como previsão de batalhas que se deverão travar contra tal ou tal inimigo, mas também para melhor controlar os homens sobre os quais os aparelhos de Estado exercem a sua autoridade. A Geografia é, antes de mais nada, um saber estratégico intimamente ligado a um conjunto de práticas políticas e militares e são essas práticas que exigem a acumulação articulada de informações extremamente variadas, à primeira vista desconexas, de que não é possível compreender a razão de ser, a importância, se nos mantivermos dentro dos limites do saber pelo saber. São as práticas estratégicas que fazem com que a Geografia seja necessária, em primeiro lugar, aos que comandam os aparelhos de Estado. Hoje, mais do que nunca, a Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Pôr em prática novos métodos de guerra implica uma análise extremamente precisa das combinações geográficas, das relações entre os homens e das "condições naturais" que é necessário destruir ou modificar para tornar determinada região inabitável ou para levar a cabo um genocídio. A Guerra do Vietnã fornece numerosas provas de que a Geografia serve para fazer a guerra de maneira mais global. Um dos mais célebres e mais dramáticos exemplos foi posto em prática em 1965, 1966,1967 e sobretudo, em 1972, em um plano de destruição sistemática da rede de diques que protegem as planícies extremamente populosas do Vietnã do Norte. A escolha do locais a bombardear resultou de um estudo geográfico a vários níveis de análise espacial.Adaptado de LACOSTE, Y. A Geografia - Isso Serve, em Primeiro Lugar, para Fazer a Guerra. São Paulo, Papirus Editora, 1989, pp. 21-30. Retirado de: COIMBRA, Pedro e TIBÚRCIO, José Arnaldo. Geografia - uma análise do espaço geográfico. São Paulo, Harbra, 1995.

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Page 1Fragmentação do Saber: crise do paradigma clássico da Ciência e a emergência de uma perspectiva de mudança no ensino?1Edson Oliveira de Paula2IntroduçãoDesde os tempos mais remotos o homem enfrenta desafios das mais diversas ordens.Ter o domínio sobre seu corpo, alimentar-se, associar-se a outros emgrupos, estabelecer-seem dadas porções do espaço, desenvolver técnicas de agricultura ecriação de animais, etc.,são exemplos bem comuns. No entanto, há a necessidade, ou melhor, aobrigatoriedade dapresença de algo em cada uma destas atividades: o Conhecimento.Através da empiria, da filosofia, da arte, do senso comum, da ciência, etc., oconhecimento se manifesta. Muitos foram e são os paradigmas e asreferências filosóficas ainfluenciar na obtenção e/ou na produção do saber, embora todas tenhama mesma função:representar a realidade segundo a forma de apreensão que se tem, sejade maneira holística oufenomenológica, sistemática ou dialética, idealista ou materialista,com as receitas positivistasou com o relativismo pós-moderno, enfim, ele tem sido produzido ereproduzido há séculos,segundo as mais diferentes concepções que o embasem.No entanto, no fim do séc. XX e neste início de século, inúmeras sãoas discussões decaráter epistemológico e pedagógico, acerca dos francos sinais deesgotamento do paradigmaclássico da ciência, representado pelo positivismo, quando de seulimitado arsenal na tentativade compreensão da realidade, tendo em vista a enorme fragmentação dosaber, e sua visívelincapacidade de comunicação, seja entre as disciplinas - que, apesarde sustentadas pelomesmo paradigma, possuem uma diversidade de metodologias, que ora sedistanciam, ora sechocam - no campo da pesquisa, seja no campo pedagógico,distanciando-se do contextosócio-espacial dos educandos (Luck, 1994).1Trabalho resultante do grupo de discussões no Laboratório de EstudosGeoeducacionais (LEGE-UFC), sob acoordenação do Prof. Dr. Christian Dennys Monteiro de Oliveira.2Graduando em Geografia na Universidade Federal do Ceará (UFC),Bolsista do Laboratório de PlanejamentoUrbano e Regional (LAPUR) e vinculado ao programa Pibic/CNPq.________________________________________Page 2Nesse quadro se insere a Geografia, que há muito estabelece reflexõesacerca dessasquestões, seja com Lacoste (1993) e suas tentativas de desmistificaçãodo papel desta ciência,dentro da organização sócio-espacial há época; seja no bojo das salasde aula, no contatodireto com o conjunto escolar.Cabe antes de adentrar no cerne dessa crise epistemológica e

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pedagógica, encaradapelo sistema escolar de educação, traçar um breve histórico, acerca dapreocupação que ahumanidade reservou ao longo do tempo ao conhecimento, sem querer aquiestabelecer deforma mecânica um pretenso evolucionismo à revelia da complexidade do real a semanifestar.Um breve retrospecto...Mesmo nos longínquos períodos em que a humanidade engatinhava em busca de umaorganização social mais sólida a necessidade de conhecer se faziapresente. Ela semanifestava por meio de mitos. O Mito seria umaexpressão simbólica, por imagens, de valores. Esta expressão écarregada de conotações afetivas (...)abrangendo uma totalidade dificilmente apreensível de modo direto eimediato pela consciênciadiscursiva, o mito sintetiza, recorrendo ao símbolo, conteúdos que sereferem às mais profundasaspirações do ser humano: sua sede de absoluto e de transcendência,sua deslumbrada busca deplenitude. (CÉSAR, 1988, p. 37-38)Dessa forma o conhecimento emerge ai de maneira integral, vista em suatotalidade,tanto do ponto de vista de sua obtenção direta in loco, quanto de suarepresentação que chegaao receptor de modo completo. Moura (1988) corrobora com essa idéia,pois indica quePara o homem mítico não há cortes a serem feitos na realidade pelopensamento. Ele vive dentro de ummundo harmônico e fechado. Não necessita de esclarecimentos, nem deligar os fatos através de idéiascoerentes. (...) [O mito] é um pensamento que o primitivo confunde comsua própria vida. Numcontexto vivido, ele se afirma como a maneira mais espontânea de seestar no mundo (p. 51 - grifosmeus)O que deve ser ressaltado nesse caso, além da integralidade do saber,é a profundaligação com a dinâmica cotidiana, do vivido, da práxis diária do homemprimitivo, que semostra como o elemento que se opõe a lógica ocidental, das sociedades modernas.________________________________________Page 3Moura (1988) nos conduz ainda a um segundo momento vivido na Grécia durante aAntiguidade Clássica, que dá sucessão a mitologia, onde a percepçãopura e simples não maissatisfaz as necessidades de uma sociedade em evolução. Introduz-seentão, com a descobertado logos, o centralismo do homem, enquanto objeto e possuidor de todoconhecimento(DOMINGUES, 1991,p. 19), descosmologizando o conhecimento, construindodessa formauma visão antropológica.O maior expoente de tal concepção é Sócrates, que através de sua buscaincessantepelo conhecimento, iluminado pelo preceito délfico do conhece-te a timesmo nos fazdepreender que "todo conhecimento já está no interior do homem, porémele está adormecido,esquecido. (...) Assim, 'saber é recordar-se'." (MARTIN CLARET, 2005, p. 25).

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Vemos que a partir de tal predisposição o conhecimento, tido como oreal, a verdade, ouniversal, não se encontra no mundo exterior, sensível (uma vez que,os sentidos são asmaiores fontes de erro), mas no inteligível, no mundo moral (ou dasidéias, como Platão,posteriormente, tão bem retrata em seus escritos), através do usoapenas da razão comoinstrumento.Segue-se a esse período uma quebra no pensamento secular, com o período da IdadeMédia, onde a fonte de todo conhecimento deixa de ser o homem e passara residir em Deus.A razão, portanto, atende nesse momento aos preceitos da Teologia,impregnada por aquiloque Domingues (1991) denomina de Teoria do Homem pecaminoso, aocontrário da Teoriado Homem Interior, característica da Antiguidade Clássica.Encabeçada por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, acaba o homem, natentativa de se conhecer, percebendo que não possui autonomia, que seencerre em si, mascomo um ser que depende das graças de Deus, o que dificultousignificativamente um maiordesenvolvimento do conhecimento, que passa a ser mistificado pelopoder hegemônico daIgreja e considerado uma heresia, toda vez que se vislumbrasse apossibilidade de contestaçãodaquilo que não fosse oriundo do Todo-poderoso.Com o fim da repressão católica, vemos na Modernidade, primeiramente com oRenascimento e, posteriormente, com o Iluminismo e o Positivismo, umaretomada de fôlego________________________________________Page 4do pensamento secular. Descartes deixa como contribuição um compendio de açõesnorteadoras para a análise científica, aliando os princípios da lógicaformal à simplificação efragmentação da realidade, organizando o conhecimento numa perspectivalinear, descritiva egeneralizadora, capaz de produzir esquemas que auxiliam no sentido dacompreensão, de umponto de vista fragmentário, de fato, mas ainda, em certa medida, demaneira articulada, o quenão acontece com os positivistas, que lhe seguem no tempo, não deforma evolutiva, é claro(DESCARTES, 2006).O Positivismo e a necessidade de superação da visão fragmentária na sociedademodernaComte, na figura de sistematizador do Positivismo, apropria-se de muitos dospreceitos apresentados por Descartes, como a descrição exaustiva e aatomização do objeto deestudo, bem como as noções lineares e a conseqüente elaboração dediretrizes gerais de umconhecimento especializado. Some-se a isso a concepção de umarealidade mecânica, inerte eobjetiva, e, portanto apreensível ao nível dos sentidos, relegandotudo o mais que não seenquadre nesse molde, mediante a aplicação de um método (constituídopelos elementossupracitados), de maneira pretensamente imparcial (LUCK, 1994).No campo da pesquisa, tal paradigma se mostra incapaz de entender a realidade emsuas múltiplas facetas, uma vez que, a visão atomista não consente o

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diálogo entre as diversasáreas do conhecimento (e/ou as disciplinas que são oriundas dessecontexto), que ainda queabordem os mesmos objetos, não dialogam entre si, no caminho de umacomplementaridade,mas apenas, quando muito, para se contradizerem, em nome desta oudaquela referência, quepassa a ser canonizada e que não deve em hipótese alguma conterequívocos ou lacunas,revelando a realidade num mosaico de saberes parcelares heterogêneos econflitantes, ounuma enorme sinfonia onde os diversos instrumentos que a compõem tocamindependentemente, um a frente do outro gerando um barulho ensurdecedor...No que tange o campo pedagógico, o positivismo (e as formas que o seguem ouaproveitam características metodológicas, de maneira mais ou menos direta), temrebatimentos não menos felizes. Luck (op. Cit) aponta o quadropedagógico como possuidordessa problemática de forma ampliada, pois o conhecimento jáprofundamente especializado________________________________________Page 5é submetido, novamente, ao tratamento metodológico analítico, linear eatomizador, agora com oobjetivo de facilitar a sua apreensão pelos estudantes (...) maior doque fora produzida, [estabelecendoassim] um mais acentuado distanciamento do conhecimento, em relação arealidade de que emerge (p.39).Tal tendência pode ser encontrada na Geografia, que por muito tempo se ateve aobservação, descrição, enumeração de características, diferenciação deregiões, mediante aanálise da paisagem. Tamanho é o enquadramento nesse paradigma quevemos em Castro(2007) ao se referir sobre a escala no empreendimento das análisesrealizadas no interiordesta disciplina.A prática de selecionar coisas do real é tão banalizada que oculta acomplexidade conceitual que estamesma prática apresenta. Como não se tratasse apenas de tamanho ou derepresentação gráfica, épreciso ultrapassar os limites para enfrentar o desafio epistemológicoque o termo escala e a abordagemnecessariamente fragmentada do real colocam. (p. 129 – grifo meu)No trecho descrito acima fica claro que as metodologias de análise passamhistoricamente, sem dúvida, pelo crivo do fracionamento da realidade.Tanto que Lacoste(1993), ainda na década de 1970, debate, principalmente, sobre odivórciamento entre teoria eprática, que ocultava seu conteúdo político, ou seja, seu verdadeiropapel na constituição daorganização social. Chega ele a classificar a Geografia em dois gruposaparentementeopostos, mas umbilicalmente interligados, quais sejam: a Geografia dosprofessores e aGeografia dos Estados-maiores. Para ele objetivo desta ciência seria o deimpor a idéia de que o que vem da geografia não deriva de umraciocínio, sobretudo nenhum raciocínioestratégico conduzido em função de um jogo político. A paisagem! Issose contempla, isso se admira; alição de geografia! Isso se aprende, mas não há nada para entender.

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Uma carta! Isso serve para quê? Éuma imagem para agência de turismo ou o itinerário das próximas férias (p. 35).Como visto as descrições exaustivas e as discussões ingênuas, do"saber pelo saber"da Geografia escolar, faziam da Geografia e dos seus diversos camposdisciplinares algosupérfluo, sendo considerada por muitos, ou como bem expressa opróprio autor ao se referirdo discurso corrente "uma disciplina simplória e enfadonha" (LACOSTE,op. Cit). Noentanto, tais concepções não podiam mais conter o movimento derenovação epistemológicaque se afigurava no seio da sociedade industrial.________________________________________Page 6Percebermos claramente neste momento, que o paradigma clássico de produção daciência e, mais explicitamente o de reprodução, no sentido do ensino,há tempos dava francossinais de insatisfação e de incapacidade de compreensão da realidadecada vez maiscomplexa. Sobre o termo complexidade Morin (2006) esclarece, dizendoque ele deve sercompreendido no sentido de "algo que foi tecido junto", onde há aindissociabilidade deelementos diversos constituintes de um mesmo todo, revelando-nos omultidimensional, omundo multifacetado, em seus mais diversos aspectos: econômico,cultural, político, afetivo,etc., em "um tecido interdependente, interativo e inter-retroativoentre o objeto deconhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes,as partes entre si."(MORIN, 2006, p. 35).Concorre para a reafirmação dessa tendência de complexificação do real toda umasérie de avanços técnicos, científicos e informacionais que aceleramesse processo e impõemà sociedade um conjunto de novas demandas. Libâneo (1998) aponta entreelas a capacidadede desenvolvimento cognitivo e operatório, relacionado com o despertarde um pensamentoautônomo, criativo e crítico, tendo em seu horizonte o domínio sobreos recursos tecnológicoscomo instrumentos de potencialização do ensino, que devem ser empregados, mascuidadosamente selecionados, sem pena de que a prática docente caia emdesuso, mas pelocontrário reiterar a centralidade de sua participação na construção deuma nova educação.No que concerne particularmente à nossa cara Geografia, Vezentini(2004) lança mãode algumas propostas que o ensino de Geografia precisa encarar, nesteinício de século. ParaeleO ensino da geografia no século XXI, portanto, deve ensinar – oumelhor, deixar o aluno descobrir – omundo em que vivemos, com especial atenção para a globalização e paraa escala local (do lugar devivência dos alunos), deve enfocar criticamente a questão ambiental eas relações sociedade/natureza(sem embaralhar a dinâmica de uma delas na outra), deve realizarconstantemente estudos do meio

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(para que o conteúdo ensinado não seja meramente teórico ou "livresco"e sim real, ligado à vidacotidiana das pessoas) e deve levar os educandos a interpretar textos,fotos, mapas, paisagens,problemas sócio-espaciais enfim (VESENTINI, 2004).Entre os mais variados campos de estudo, mesmo nas áreas físicas, comono própriocaso da Geografia e em outras ciências correlatas urge a necessidadede implementação denovos percursos pedagógicos, tendo em vista a superação desse quadrode compartimentação________________________________________Page 7dos saberes. Há outras tentativas que devemos apontar na busca deempreender algumasmudanças. É o caso da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridadeque merecem umpouco mais de atenção.Pluri, inter, e transdisciplinaridade: há resposta à atomização do conhecimento?No atual quadro da profunda especialização do conhecimento, ou do chamado bigbang disciplinar, se parafrasearmos Nicolescu (2007), a pluri, a intere a transdisciplinaridadesurgem como proposições que visam reverter, em certa medida, esse problema.O conceito de pluridisciplinaridade se relaciona com o "estudo de uma únicadisciplina efetuado por diversas disciplinas ao mesmo tempo", o queenriquece o objeto emestudo, uma vez que, deve ele ser visto também por outras ciências.Assim, "o procedimentopluridisciplinar ultrapassa os limites de uma disciplina, mas suafinalidade permanece restritaao quadro da pesquisa disciplinar em questão." Frequentemente esseconceito tem sidoconfundido com a interdisciplinaridade, no entanto, cabe aqui desfazeresse desengano(NICOLESCU, 2007).A interdisciplinaridade se liga mais diretamente ao emprego de métodos de umadisciplina em outra, possuindo três graus: de (i) aplicação, (ii)epistemológico e de (iii)criação de novas disciplinas. Interessa-nos aqui mais propriamente oprimeiro e segundograu, pois se vinculam com o objetivo de nossas reflexões no sentidoda integração dosconhecimentos compartimentados. No primeiro caso, implica natransferência de método, porexemplo, da física nuclear na medicina, possibilitando descobertas nocampo terapêutico. Nosegundo, vê-se da mesma forma uma reflexão mais complexa como o uso"da lógica formalno domínio do direito, por exemplo, [o que] dá origem a interessantesanálises naepistemologia do direito." O grau de criação de novas disciplinas nãonos interessa aqui, poisvai de encontro àquilo que propomos, uma vez que, ele reforça o bigbang disciplinar, poispermite o aprofundamento da produção atomista do conhecimento (IDEM).Por fim, a transdisciplinaridade se apresenta como algo que está entree além de todasas disciplinas, referindo-se mais propriamente com a capacidade de"compreensão darealidade", onde tem como pressuposto maior a unidade do conhecimento.

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Ela considera em________________________________________Page 8suas análises a possibilidade de vários níveis de realidade, nãoapreensível apenas ao nívelsensório, mas se articula com outros, em um ponto de vista multidimensional.Se, de um lado, a transdisciplinaridade convive e se apropria dos saberesespecializados da pesquisa disciplinar, de outro, ela se apóia sobreum tripé, onde os váriosníveis de realidade, a lógica do terceiro incluído e a complexidadecompõem os seuselementos teórico-metodológicos (IDEM).Dessa forma, a compreensão da realidade passa pelo crivo daconsideração dos váriosníveis de realidade, tendo em vista que apenas um nível não é capaz deapreensão do real emsua complexidade, contrariando o paradigma clássico. Entretanto, essaintegração de níveis sefaz pelo uso da lógica do terceiro incluído, que é um elemento quecompleta um nívelimediato de realidade, mas que concomitantemente insere uma outralacuna, somentepreenchida em um nível superior, que por sua vez traz mais outra e quese completa da mesmaforma em um outro, num sistema aberto e contínuo rumo à complexidade.Se Libâneo (op. Cit) nos convida a utilizarmo-nos de recursos tecnológicos einformacionais para um melhor aproveitamento pedagógico, lançamos mãode indicar o atoda vivência, da práxis, da construção cotidiana da realidade. Assim,numa perspectiva maisobjetiva, compreender o Espaço sob as óticas da Geografia, ou doTurismo, utilizando seusrespectivos pressupostos teórico-metodológicos, de maneira isolada, éalgo totalmentediferente de ter em seu horizonte uma possível integração, ondepoderíamos fazer uso doturismo como ferramenta pedagógica, incorrendo inclusive na procura deuma eliminação dabarreira que separa os espaços escolar e domiciliar, através deestímulos a utilização dosrelatos dos momentos de lazer, reunindo e empregando as informaçõesobtidas nos momentode férias, ou de visitas à casa de familiares como subsídios quepotencializem o ato deaprender, tendo em vista que este não se limita à escola, mas também(e muitas vezes até emmaior proporção) em ambientes educacionais informais e/ou não-formais.Pode ainda o professor, enquanto mediador do processo educativo, pelo menos noâmbito escolar, empreender viagens com os alunos a locais consideradosou não de relevânciahistórica dentro da própria cidade, convidando os estudantes asimularem um passeioturístico, durante a aula de campo, buscando apreender o Espaço tantosob a ótica do visitante,quanto sob a ótica do nativo, unindo-as, ao fim, numa compreensão mais ampla.________________________________________Page 9Estas são, sem dúvida, medidas que podem e devem ser implementadas e avaliadas,não sendo apenas uma moda como é a preocupação de muitos educadores,mas uma efetiva

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forma de tentar superar a visão fracionária instalada em nossos dias.O início de um longo debate... (Considerações finais)A pluri, a inter e a transdisciplinaridade, buscam responder a criseepistemológica epedagógica instalada. Muitos são os estudiosos que de alguma formacontribuem para odebate acerca das necessidades de modificação da estrutura educacionalvigente. Libâneo(1998), por exemplo, propõe seu modelo de educação renovada noscritérios de uma educaçãoque deva motivar a flexibilidade das habilidades docentes e discentesno processoeducacional, e no seu dia-a-dia, onde haja o estímulo aodesenvolvimento cognitivo e dopensamento autônomo. Morin (2006), a seu turno, faz uso de uma sériede advertências,quando em seu trabalho: "Os sete saberes necessários à Educação doFuturo", como aobrigatoriedade de visualização dos aspectos múltiplos que se fazempresentes no todo únicomultifacetado. Nicolescu (op. Cit), com a exposição dos conceitossupracitados, traz-nos oimperativo de pelo menos quatro elementos que estejam contidos noprocesso educacionalnessa nova fase que se apresenta, a saber: aprender a aprender,aprender a fazer, aprender aconviver e aprender a ser.Entretanto, como nem tudo são flores, toda essa efervescência requer de nóseducadores uma reflexão crítica ininterrupta sobre a práticapedagógica e o efeito dessasimplicações no cotidiano escolar e na sociedade, de modo geral. Ficaclaro que devemos termaior atenção sobre o envolvimento e/ou as tentativas de apropriaçãodeste movimento porinteresses escusos, uma vez que, alguns termos, como flexibilização eelaboração de umpensamento autônomo (que na perspectiva mercadológica não guarda afidelidade que otermo exprime), encaixam-se na lógica do mercado, sob a égide de umasociedade dominadapelas demandas do capital.Ao fim, realizadas a exposição e as ressalvas a que devemos ter em conta,reafirmamos o compromisso e deixamos o convite à construção de uma nova práticapedagógica, de maneira a ter em mente a obrigatoriedade de reinventarincessantemente noprocesso de ensino/aprendizagem!________________________________________Page 10BibliografiaCASTRO, Iná Elias. O problema da escala. In: Castro, I. E. et. Al(org)Geografia:conceitose temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.CÉSAR, Constança Marcondes. Implicações contemporâneas do Mito. In: As razões doMito. MORAIS, R, et. Al. Campinas: Papirus, 1998.DESCARTES, René. Discurso do Método & Regras para a direção do Espírito. SãoPaulo: Martin Claret, 2006.DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação dasciências humanas. 1a.. ed. São Paulo: Loyola, 1991.LACOSTE, Yves. Geografia: Isso serve em primeiro lugar para fazer aguerra. Trad. Maria

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Diretrizes curriculares para o ensino médio: por uma escola vinculada à vidaGuiomar Namo de Mello (*)

As diretrizes curriculares nacionais são normas obrigatórias queorientarão o planejamento curricular das escolas e sistemas de ensino,fixadas pelo Conselho Nacional de Educação por meio da Câmara deEducação Básica. O ponto de partida para a formulação das diretrizespara o ensino médio foi o primeiro artigo da Lei 9394/96 (Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB). Esse artigo afirma quea educação escolar deverá estar vinculada ao trabalho e à práticasocial.(*) Guiomar Namo de Mello foi educadora, pesquisadora, ex-secretáriamunicipal da educação da cidade de São Paulo, ex-deputada estadual,assessora de projetos de reforma educacional no Brasil e no exterior.Na atualidade é Conselhira do Conselho Nacional de Educação.

1. As bases legais e doutrináriasÉ relevante assinalar que pela primeira vez uma lei de educação nãodiz que o ensino profissional vincula-se ao trabalho mas que toda aeducação escolar será vinculada ao trabalho e à prática social, dacreche ao último ano de doutorado, em todas as matérias. Isso porqueela não especifica níveis, modalidades ou matérias nos quais avinculação ao trabalho ou à prática social seria obedecida. Aocontrário, une o trabalho à prática social como as duas dimensões quedevem estar presentes no processo educativo, em todas as suasmanifestações escolares.O segundo princípio importante é o fato de ser a lei muitoparcimoniosa ao mencionar disciplinas, quando se refere tanto àfinalidade quanto aos currículos ou às diretrizes curriculares. Só sãocitadas disciplinas em casos muito específicos e, assim mesmo, com onome de componentes curriculares ou de «conhecimentos sobre» e nãonecessariamente de uma disciplina escolar tal como a conhecemos.A LDB, antes de mais nada, enfatiza competências cognitivas, começandopelas finalidades gerais da educação básica, na qual a capacidade deaprendizagem tem um grande destaque. Revertendo o foco do ensino paraa aprendizagem, se trata de ensinar um conteúdo específico, massobretudo de desenvolver a capacidade de aprendizagem de diferentesconteúdos por todo o ensino fundamental.Mais específicamente no que se refere ao ensino médio, nos artigos 35

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e 36, a lei explicitamente abre portas para um currículo voltado paracompetências e não para conteúdos. Este currículo ou doutrinacurricular tem como referência não mais a disciplina escolar clássica,mas sim as capacidades que cada uma das disciplinas pode criar nosalunos. Os conteúdos disciplinares se concebem assim como meios e nãocomo fins em si mesmos.Outros pontos desses artigos devem ser destacados. Em primeiro lugar,a autonomia intelectual, outra maneira de se falar em capacidade deaprendizagem. Para haver autonomia intelectual é muito importante quea pessoa saiba como aprender. Em segundo lugar, o conhecimento dosfundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos. E,vale a pena repetir, trata-se de educação básica, não de educaçãoprofissional.Em terceiro lugar, a relação entre a teoria e a prática em cadadisciplina do currículo, não só nas disciplinas tradicionalmentecompreendidas como «práticas», mas em todas elas: português, artesplásticas, química ou matemática. Em quarto lugar, o enorme destaquepara os significados. A LDB é bastante explícita: ao sair do ensinomédio, o aluno deverá ter compreensão do significado das ciências, dasartes e das letras. Ela não diz que ele deverá saber LínguaPortuguesa, mas dominá-la como instrumento de comunicação, exercíciode cidadania e acesso ao conhecimento. Em outros termos, a língua e asdemais linguagens são posicionadas como recursos para constituirsignificados.Foi sob esse cenário doutrinário e legal que o Conselho trabalhou. Mashá também outras coisas, além da questão legal, que tiveram de serlevadas em consideração. Uma delas diz respeito ao própriodesenvolvimento educacional brasileiro.2. Um novo tipo de jovemEm primeiro lugar, o aumento contínuo, embora lento, da taxa deconclusão do ensino fundamental e, ao mesmo tempo, a redução tambémcontínua da idade média dos concluintes. Este é um indicador muitoseguro de que o esforço para resolver alguns problemas básicos dequalidade no ensino fundamental (repetência, abandono e evasão)começou a produzir efeitos. Por exemplo, em 10 anos cresceu em cercade 30% o número dos jovens que completam as oito séries do ensinofundamental em menos tempo. Os jovens equivalentes a estes, 10 anosatrás, tinham expectativa de permanecer 11 anos no sistema, em vez dos8 regulares. Atualmente estamos em 9,7 anos.Quanto mais cedo o aluno terminar a 8ª série, mais disposição ele teráde buscar o ensino médio. E é por isso que nos próximos 12 anosestaremos elevando a nossa matrícula no ensino médio em cerca de 11% a12% ao ano. De 1997 para 1998 isso deve ter significado a incorporaçãode quase 800 mil alunos jovens, ou jovens adultos, na primeira sériedo ensino médio.Isto equivale dizer que o ensino médio está dando os primeiros passospara deixar de ser excludente e começar a incluir um outro tipo depopulação. Observe-se, por exemplo, que entre 97 e 98 a taxa líquidade matrícula aumentou de 25% a pouco mais de 30%, indicadores aindamuito insatisfatórios, mas que revelam um movimento de expansãoacelerada que se inicia.Ou seja, apenas um terço dos jovens de 15 a 17 anos consegue chegar àescola média. Um outro tanto está na escola, mas ainda retido noensino fundamental. Isso faz com que a taxa bruta de matrícula noensino médio seja de pouco mais de 50%, enquanto no ensino fundamentala taxa de escolaridade é superior a 95% da faixa etária de 7 a 14 parauma taxa bruta de bem mais de 100%.Se quiséssemos escolarizar toda a população até 15 ou 17 anos,teríamos portanto de incluir quase metade da faixa etária. Se o ensinofundamental definitivamente deixou de ser um segmento de exclusão no

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País, a fratura social deslocou-se assim para o nível médio com ummovimento, porém, que vem de ensino fundamental. Estamos exatamente noponto de conversão. É este, e nenhum outro, o momento de se pensarqual é a escola média que se pode organizar para esta população quenunca esteve nela.Este fenômeno é acentuado pela onda de adolescentes brasileiros. OPaís teve um pequeno baby boom 15 anos atrás. O Brasil, acostumado aincorporar um número x de pessoas por ano na faixa adolescente, passoua incorporar esse x mais 25%. Este fenômeno demográfico deve perduraraté 2007 e é bom lembrar que o movimento de acréscimo, no ensinomédio, ocorre em momento de globalização econômica, de aumento dacompetitividade, de crise de emprego, de crise de empregabilidade, queincide cruelmente sobre a população jovem. Quem é este jovem que chegaà escola média e estará a ela chegando cada vez mais?Ele não é mais um «Mauricinho» cuja carreira já havia sido determinadapela família: terminar o ensino médio, fazer o cursinho e ingressarnuma faculdade. Este jovem tem, sim, o ensino superior no seu projetode vida, mas não exclusivamente: precisa do trabalho como estratégiapara continuar os estudos. É um jovem que, de modo geral, já atingiunível educacional superior ao de seus pais e, portanto, é capaz dealcançar significados que a geração anterior de sua família não teve.E, finalmente, tem de ter autonomia na sua vida, porque vai ganhar asua subsistência. Por isso, as exigências que se fazem a este jovemsão muito mais complicadas do que as sofridas pelo outro jovem declasse média e média alta, incluído no 25% que sempre tiveram acessoao ensino médio.O novo aluno do ensino médio precisa ter um projeto de vida que incluao trabalho e a continuidade dos estudos ou, pelo menos, o trabalho.Ele responde por si mesmo, porque já tem autonomia para isso, mesmoquando não tem maioridade legal. Muitas vezes também ajudaeconomicamente a família e não pode contar com ela para determinadasdecisões que implicam significados adquiridos da escolaridade, porqueseus pais têm um nível escolar inferior. Portanto, é um outro tipo dejovem, provavelmente mais maduro e mais angustiado; certamente muitomais vulnerável à necessidade de ganhar dinheiro e com exigências emrelação à ordem jurídica institucional que podem se resolver pelaautonomia, mas também pela repressão...3. As novas demandas sociaisOutra dimensão que as diretrizes do ensino médio consideram dizrespeito ao que está ocorrendo no mundo do trabalho e no mundo daprática social, já que, diz a lei, a educação escolar deverá estarvinculada a ambos. As mudanças em curso na organização do trabalhodeixam muitos educadores atônitos em relação ao perfil de habilidadese de competências. O que aumenta a possibilidade de empregabilidade nomundo de hoje é a ênfase nas habilidades básicas e gerais. Têm grandeimportância a capacidade de análise, a capacidade de resolverproblemas, a capacidade de tomar decisões e, sobretudo, terflexibilidade para continuar aprendendo. Isto mostra, também, asintonia da lei com este novo panorama.Fala-se inclusive em «laborabilidade» em lugar de empregabilidade namedida em que essas competências constituem na verdade um trabalhadorpolivalente que pode, quando bem preparado, ser mais autônomo paradecidir seu percurso no mercado de trabalho.Destaca-se ainda, no capítulo da contemporaneidade, a questão dasinformações. Houve momentos em que se pensou que a Internet, ohipertexto, os meios de massa, a mídia de modo geral (considerando amídia como a integração das formas de acesso à informação)substituiriam a escola. Há quem ainda defenda isso. Nós, do ConselhoNacional, pensamos exatamente o oposto: quanto mais fácil o acesso àsinformações, tanto mais difícil é construir significados sobre elas;

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por isso, tanto mais importante é a educação formal.Quem já não sentiu a angústia de se perguntar: «Qual é o sentido destemundo tão complexo e ao mesmo tempo acessível a um simples toque de umbotão?» Quando alguém se faz esta pergunta é por estar percebendo orisco de perder a visão de conjunto e a capacidade de julgar apertinência das informações e conhecimentos veiculados pela mídia. Aescola tenderá a se transformar, cada vez mais, numa ponte designificados sobre a auto-estrada das informações e dos conhecimentos,com questões que são muito familiares para nós, que trabalhamos nocotidiano escolar.Em primeiro lugar, porque conhecimentos e informações se adquiremsozinhos, enquanto significados se constróem interagindo com o outro.E a escola é um espaço de convivência e troca de significados. Acultura é significado, e nada mais coletivo, como produto, que acultura. A comunicação, nesse sentido, é a possibilidade de que muitossignificados circulem e entrem em concorrência em condições deigualdade.O professor está hoje sendo levado a parar e entender que não é mais aúnica fonte legítima de conhecimento para seu aluno. Talvez este sejamais hábil e mais rápido para ir à Internet buscar um monte deinformações! Mas enquanto isso acontece fortalece-se o papel que oprofessor sempre teve de ajudar o aluno a dar sentido às informações,avaliando, criticando, compreendendo, julgando a pertinência eaplicando-as na vida prática.Isso terá cada vez mais impacto sobre a atividade docente. O professornão precisa ser a única fonte de conhecimentos para legitimar-se entreos alunos. Os conhecimentos podem vir da Internet, da televisão, dovizinho, da prática social, do trabalho. Mas o sentido que essesconhecimentos podem constituir é uma coisa que esse professor pode edeve trabalhar. E quem trabalha sentido trabalha linguagem; trabalha alíngua e trabalha as demais linguagens: a linguagem do corpo, damúsica, das artes, da informática, como recursos para constituirsentido, que permitam à pessoa navegar na enxurrada de informações semafogar-se.Apesar de todo o peso das exigências específicas no âmbito dotrabalho, creio que a questão das informações no mundo contemporâneotalvez seja, do ponto de vista educacional, a mais importante. Sãoindispensáveis a constituição de sentidos, a negociação de sentidos nasala da aula e a possibilidade de gerar, nesta sala de aula e naescola, uma certa inteligência coletiva que negocie sentidos. Não setrata só de saber química; trata-se de saber para que serve saberquímica e qual é o papel dela no mundo de hoje.No que resultou a reflexão sobre esses aspectos no âmbito da Câmara deEducação Básica do Conselho Nacional e das inúmeras reuniões, debates,audiências públicas com a comunidade interessada?4. As novas diretrizes curriculares para o ensino médioEm primeiro lugar, as novas diretrizes consideram a questão daidentidade e da diversidade. Nossa proposta é que o ensino médiosupere a dualidade profissional ou acadêmica e adquira uma diversidadeque pode ser mais voltada para o trabalho ou mais acadêmica,dependendo da clientela. Demos uma interpretação própria para omandato da LDB de que o currículo deve ter uma base nacional comum euma parte diversificada, esta última de acordo com as exigências daclientela. Consideramos que a base nacional comum também tem de estarde acordo com as exigências da clientela. Um currículo não podedividir-se em base nacional comum e parte diversificada; ele é um todoorgânico e vivo pois está em permanente ajuste e mutação.Destacamos intensamente a preparação básica para o trabalho, que temde estar presente na educação básica, de modo a possibilitar escolascom vocações inteiramente diferentes. Há escolas com mais vocação para

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a área biológica, outras para a linguagem ou para ciências exatas epara as ciências sociais. O currículo vai se organizar em três grandesáreas de conhecimento, correspondendo exatamente àquelas tradicionais:• a área das linguagens, seus códigos de apoio e suas tecnologias• a área das ciências da natureza e suas tecnologias• a área das ciências humanas e sociais e suas tecnologias.Afirmar que o currículo será organizado por área de conhecimento nãosignifica eliminar as disciplinas, mas colocá-las em um permanentediálogo conforme as afinidades entre elas e delas com os problemas darealidade que se quer que os alunos compreendam e interpretem parapropor soluções.Nestas áreas não são descritos conteúdos, mas competências pessoais,intelectuais e sociais que os alunos deverão adquirir durante opercurso pelo ensino médio. Não se fixa nenhuma proporção em que asáreas deverão estar presentes nos currículos. Diz-se apenas que astrês áreas deverão estar representadas, mas não se diz nem em queproporção. E, sobretudo, não se menciona nenhuma disciplina ouconteúdo específico em cada área.Na área de ciências humanas, por exemplo, é possível haver estudos dedireito como é possível haver estudos de sociologia ou deantropologia, ou de história e geografia. Da mesma forma, na área dasciências humanas cabem estudos relativos à gestão, à administração e aoutros instrumentos da área, porque são as ciências humanas e suastecnologias. Na física e na área de ciências da natureza, localizam-seos estudos relativos à física, à química e à biologia e seusdesdobramentos de aplicação ou tecnologias. E na área das linguagensencontram-se todas as disciplinas relativas às linguagens, que vão daeducação física à língua portuguesa.Procuramos traçar dois princípios com o objetivo de facilitar àsescolas o trabalho de organização de seus currículos. O primeiro é oprincípio da interdisciplinaridade, partindo da noção de que asdisciplinas escolares são recortes arbitrários do conhecimento.Esperamos que comece nas escolas um exercício de solidariedadedidática entre as disciplinas. Dizemos solidariedade didática porquesolidariedade implica boa-vontade. E talvez o primeiro passo para ainterdisciplinaridade seja a boa-vontade, a idéia de desarmarresistências em relação aos feudos disciplinares.Obviamente, a interdisciplinaridade pode ser muito mais que umasolidariedade didática. Quanto mais a pessoa se aprofunda na suadisciplina, mais percebe as conexões dessa disciplina (como objeto ecomo método) com outras áreas de conhecimento. Não se pretende formarpessoas «desespecializadas» —interdisciplinaridade não significa isso.Ao contrário, implica domínio para perceber a conexão. E aí ainterdisciplinaridade pode dar-se em níveis muito mais sofisticados.Isso vai depender, naturalmente, de cada escola.Nada melhor para promover a interdisciplinaridade do que um projeto deestudo e um projeto de trabalho. E estranho, sobretudo em escolaspúblicas, mas também em escolas privadas, que o projeto sejaconsiderado uma atividade extracurricular, quando deveria ser parteintegrante do currículo. Projeto é uma forma interessante de integrardisciplinas, porque significa resolver um problema real ou estudá-lo.Um projeto de reciclagem do lixo escolar, por exemplo, éinterdisciplinar por sua própria natureza. Em torno dele articulam-seconhecimentos de política, de sociologia, de psicologia, de geologia,de geografia, de história, de biologia, de química e de física.O segundo princípio vem da educação profissional. Em inglês éconhecido como aprendizagem situada. Em português é chamado decontextualização do conteúdo. A contextualização tem a ver com amotivação, conceito fartamente explorado em pedagogia. Motivar o alunodepende de fazê-lo entender, dar sentido àquilo que aprende. Quando um

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professor ensina física, química ou história a um aluno, estátransferindo a ele conhecimentos gerados em outro âmbito que, quandoforam produzidos, com certeza despertaram um encantamento muitodifícil de repetir para o aluno. É quase impossível, quando se ensinaou se faz a transposição didática desse conhecimento, despertar nasala de aula o mesmo encantamento de quem fez a descoberta original.Por essa razão, na transposição didática o processo de invençãoprecisa ser reproduzido quase artificialmente para que o aluno possaaprender significativamente. Um dos recursos para fazer isso é acontextualização: relacionar o que está sendo ensinado com suaexperiência imediata ou cotidiana. Assim, o aluno poderá perceber queo ruído de pneu e a freada do carro têm a ver com aquela fórmula sobreatrito, explicada em aula pelo professor de física. E o aluno fará aponte entre a teoria e a prática, como manda a LDB. Um dos contextosimportantes para fazer isso é o da produção de bens e serviços, istoé, o contexto do trabalho.Mas não é o único. O novo aluno do ensino médio precisa, por exemplo,determinar a sua sexualidade e como exercê-la de maneira segura. Ouprecisa, também, decidir se faz dieta ou não e como cuida da suasaúde; se fuma ou não; se usa droga. Quer saber como conviver com afamília, como lidar com a questão de já estar avançado em relação aonível escolar de seu pai ou de sua mãe. Deve decidir como buscar seuparceiro ou sua parceira.Problemas desse tipo, concretamente enfrentados pelos jovens, desenhamcontextos que dependem das características e exigências da clientela.É na contextualização que se ausculta, portanto, como trabalhar osconteúdos de modo a que o aluno dê aos mesmos um sentido prático. Éclaro que há grandes diferenças nos contextos cujos conteúdos devemser trabalhados numa escola particular, de classe média alta, e numaescola noturna, de bairro da periferia.5. Ensino médio, base nacional comum e educação profissionalA base nacional comum se garante pelas competências estabelecidas emcada área de conhecimento pelas quais o currículo do ensino médiodeverá ser organizado. Os conteúdos são o apoio das competências.Pretende-se que todos saiam do ensino médio com a capacidade deanalisar uma tendência de dados, por exemplo, e de transformar umatendência quantitativa numa análise qualitativa. Não importa se essedado refere-se à dilatação do metal submetido ao calor ou a tendênciados votos na próxima eleição. A habilidade cognitiva que está em jogoé similar. Desse modo, a contextualização e a interdisciplinaridadepermitem cumprir nas diretrizes aquilo que a LDB prescreve: o ensinomédio é a etapa final da educação básica. Portanto, a idéia de umensino médio com opções profissionalizantes, tal como conhecemos hoje,não é mais possível.A lei, embora bastante flexível, é rígida em três pontos no que serefere ao ensino médio: mínimo de 3 anos, 2.400 horas, 800 horas porano e 200 dias letivos anuais. Este ensino médio é de educação básicae inclui a preparação básica para o trabalho, entendendo-a, se for ocaso, como todos os estudos de base necessários para uma futuraformação profissional, seja ela de nível técnico ou superior. Todos oupelo menos uma parte importante, inclusive pelo aproveitamento deestudos.No entanto, o ensino profissional que prepara para um posto detrabalho ou uma carreira específica não cabe nas 2.400 horas do ensinomédio e, por isso, terá de ser adicional, se for concomitante. Ou teráde ser posterior. Significa isso que as habilidades específicas de umcurso de enfermagem deverão estar sendo ministradas fora das 2.400horas. Mas toda a base necessária para ser enfermeiro de biologia,laboratório de química entre outras, poderá e deverá ser trabalhada nocontexto da saúde num curso de nível médio, como preparação básica

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para o trabalho, sem falar nas questões de relações humanas econvivência, essenciais no exercício da profissão de enfermagem.6. Diretrizes curriculares e proposta pedagógicaFinalmente, vale registrar que a Câmara de Educação Básica consideraque uma proposta curricular como esta não convive com uma gestãocentralizada. Por isso, deve-se considerar a questão da autonomia daescola e da proposta pedagógica. A nova direção terá de ir no sentidode permitir à escola armar seu currículo, recortando, dentro das áreasde conhecimento, os conteúdos que lhe convêm para a formação daquelascompetências que estão explicitadas nas diretrizes curriculares. Devepoder trabalhar esse conteúdo nos contextos que lhe pareceremnecessários, considerando o tipo de clientela que atende, a região emque está inserida e outros aspectos locais relevantes.A proposta pedagógica e a autonomia da escola são condições para asobrevivência de um paradigma curricular como este: no fundo, o queprocura fazer é cruzar princípios éticos, estéticos e políticos queestão na lei (princípios que no parecer são tidos como a estética dasensibilidade, a política da igualdade e a ética da autonomia) comconteúdos curriculares. E expressá-los em termos das competências dosalunos. Não é um paradigma curricular novo. Nada disto é grandenovidade: boas escolas, privadas ou públicas, já fazem trabalhosbastante sintonizados com este paradigma curricular, ainda que nãolhes deêm os mesmos nomes.Nosso grande desafio daqui em diante será a implementação dessecurrículo e das formas de organização que ele requer das escolas esistemas de ensino. Isso vai demandar a solução de vários problemasbastante complexos. Em primeiro lugar, o do financiamento do ensinomédio, cuja discussão transcende os limites desta apresentação.Além disso teremos que criar e produzir materiais para os alunos epara apoio pedagógico aos professores, que produzam uma verdadeiracapacitação em serviço destes últimos, articulada a programas deeducação continuada. E pensar, a longo prazo, na sustentação técnicada reforma, que vai exigir um sistema de formação inicial deprofessores sintonizado com seus princípios e paradigmasPara que serve a geografia e qual sua função social? Nesse livro, YvesLacoste responde a tais questões e alerta para as conseqüências queocorrem nas populações atingidas pela "organização" de seus espaços,conclamando os geógrafos a assumir uma posição militante contra ainstrumentalização da geografia pelos interesses estatais ou privados.