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BH/UFC A R T I G O A EXPERIÊNCIA TOTALITÁRIA EM HANNAH ARENDT E xaminar o conceito de totalitarismo em Arendt, assim como seu pensamento de um modo geral, só tem sen- tido se formos capazes de percebê-lo como um esfor- ço de "compreender o que estava se passando" (What we are doing), seu envol- vimento e assombro ante os acontecimentos do nosso sé- culo. Vale dizer, seu pensa- mento foi forjado no confronto direto com as ex- Em cada refeição que fazíamos juntos, a liberdade era convidada a sentar-se conosco. A cadeira permanece vazia, mas o lugar foi marcado. René Char tora, etc. Ao contrário de uma leva enorme de inte- lectuais do nosso século, seu pensamento não foi cons- truído em nome de uma causa, não há um traço de identificação no seu pensa- mento. Ao contrário, o su- jeito que surge por trás de seu discurso não é um su- jeito universal da ciência e da filosofia, nem um eu an- corado num vínculo iden- tificatório (a uma nação, raça, classe, religião etc). Ela não se alinhou nem mesmo ao sionismo. O sujeito é Arendt. Isso não quer dizer de maneira alguma isolamento, pois seu manejo na transmissão do pensado foi muito bem feito, razão pela qual obteve sucesso de leitores com os seus escritos. Embora ela não se coloque em nome de nenhuma universalidade, passou a vida toda preocupada e pensando a respeito do mundo. A idéia de mundo é muito forte em sua vida e em seu pensamento, tanto é que o título de sua melhor biografia é For Lave of the Warld (Por Amor ao Mundo)." Nela, Bruehl, seguindo um estilo e conselho arendtiano, não se ocupou em desvendar a alcova ou a intimidade de Arendt, como fazem a maioria dos biógrafos contemporâneos, cons- trutores do que poderíamos chamar de "leituras narcisistas", nas quais o leitor exulta por saber que todos somos os mesmos, com as mesmas perversões, desejos, vulnerabilidades, etc, Bruehl constatou, e diz isso na introdução, que a bio- grafia de Arendt só seria possível como biogra- fia filosófica, onde os aspectos importantes da sua vida só têm sentido de aparecer à medida que iluminam de alguma forma o seu pensa- OOIUO ALVES AGUIAR* RESUMO Partindo do arraigamento do pensamento de Arendt nas suas experiências de vida e apresentando-as em três grandes momentos (1933: ascensão do Nazismo e decepção com a vida intelectual; 1943: Auschwilz e 1961: o julgamento de Eichmann), dedicamo-nos principalmente ao segundo momento, no qual Arendt constrói sua compreensão do fenõmeno totalitário.Verificamos,então,umamudançano seu pensamento. Inicialmente, o totalitarismo é entendido como usurpação da tradição européia por suas culturas subterrãneas. Posteriormente, a partir da noção de ideologia, o totalitarismo passa a ser compreendido como uma possibilidade inscrita no ãmago mesmo da tradição ocidental. • Doutor em Filosofia e professor da UFC periências que marcaram a nossa época e não como ruminação analítica dos textos filosóficos. Embora fosse profunda- mente erudita, sua motivação não vinha da eru- dição, mas da "necessidade de compreender", de perceber alguma significação nos caóticos acontecimentos contemporâneos. Nessa linha, uma entrevista, a única com teor autobiográfico, concedida a Günther Gauss em 1964, é particularmente fecunda para per- cebermos a ligação entre o seu pensamento e as experiências que o motivaram 1. Três mo- mentos de sua vida são explicitamente ressal- tados como pontos de inflexão. Em 1933, em face da adesão dos intelectuais, muitos deles amigos seus, ao regime nazista que se instala- ra na Alemanha, decepciona-se e abandona a vida intelectual. Em 1943, vem o assombro em face da certificação da existência dos campos de concentração e extermínio. Em 1961, a co- bertura do julgamento de Eichmann leva-a a refletir sobre o trabalho intelectual e a "bana- lidade do mal". Arendt é difícil de ser classificada. Foi escritora, filósofa, professora, historiadora, edi- AGUIAR, Oauo ALVES. A EXPERIÊNCIA TOTALTIÁRIA... P. 97 A 104 97

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BH/UFC

A R T I G O

A EXPERIÊNCIA TOTALITÁRIA EM HANNAH ARENDT

Examinar o conceito detotalitarismo emArendt, assim comoseu pensamento de

um modo geral, só tem sen-tido se formos capazes depercebê-lo como um esfor-ço de "compreender o queestava se passando" (Whatwe are doing), seu envol-vimento e assombro ante osacontecimentos do nosso sé-culo. Vale dizer, seu pensa-mento foi forjado noconfronto direto com as ex-

Em cada refeição que fazíamos juntos, a liberdade eraconvidada a sentar-se conosco. A cadeira permanecevazia, mas o lugar foi marcado.

René Char

tora, etc. Ao contrário deuma leva enorme de inte-lectuais do nosso século, seupensamento não foi cons-truído em nome de umacausa, não há um traço deidentificação no seu pensa-mento. Ao contrário, o su-jeito que surge por trás deseu discurso não é um su-jeito universal da ciência eda filosofia, nem um eu an-corado num vínculo iden-tificatório (a uma nação,raça, classe, religião etc). Elanão se alinhou nem mesmo

ao sionismo. O sujeito é Arendt. Isso não querdizer de maneira alguma isolamento, pois seumanejo na transmissão do pensado foi muitobem feito, razão pela qual obteve sucesso deleitores com os seus escritos. Embora ela não secoloque em nome de nenhuma universalidade,passou a vida toda preocupada e pensando arespeito do mundo. A idéia de mundo é muitoforte em sua vida e em seu pensamento, tanto éque o título de sua melhor biografia é For Laveof the Warld (Por Amor ao Mundo)." Nela,Bruehl, seguindo um estilo e conselhoarendtiano, não se ocupou em desvendar aalcova ou a intimidade de Arendt, como fazema maioria dos biógrafos contemporâneos, cons-trutores do que poderíamos chamar de "leiturasnarcisistas", nas quais o leitor exulta por saberque todos somos os mesmos, com as mesmasperversões, desejos, vulnerabilidades, etc, Bruehlconstatou, e diz isso na introdução, que a bio-grafia de Arendt só seria possível como biogra-fia filosófica, onde os aspectos importantes dasua vida só têm sentido de aparecer à medidaque iluminam de alguma forma o seu pensa-

OOIUO ALVES AGUIAR*

RESUMOPartindo do arraigamento do pensamento de

Arendt nas suas experiências de vida eapresentando-as em três grandes momentos(1933: ascensão do Nazismo e decepção com avida intelectual; 1943: Auschwilz e 1961: ojulgamento de Eichmann), dedicamo-nosprincipalmente ao segundo momento, no qualArendt constrói sua compreensão do fenõmenototalitário.Verificamos,então,umamudançano seupensamento. Inicialmente, o totalitarismo éentendido como usurpação da tradição européiapor suas culturas subterrãneas. Posteriormente, apartir da noção de ideologia, o totalitarismo passaa ser compreendido como uma possibilidadeinscrita no ãmago mesmo da tradição ocidental.

• Doutor em Filosofia e professor da UFCperiências que marcaram anossa época e não como ruminação analíticados textos filosóficos. Embora fosse profunda-mente erudita, sua motivação não vinha da eru-dição, mas da "necessidade de compreender",de perceber alguma significação nos caóticosacontecimentos contemporâneos.

Nessa linha, uma entrevista, a única comteor autobiográfico, concedida a Günther Gaussem 1964, é particularmente fecunda para per-cebermos a ligação entre o seu pensamento eas experiências que o motivaram 1. Três mo-mentos de sua vida são explicitamente ressal-tados como pontos de inflexão. Em 1933, emface da adesão dos intelectuais, muitos delesamigos seus, ao regime nazista que se instala-ra na Alemanha, decepciona-se e abandona avida intelectual. Em 1943, vem o assombro emface da certificação da existência dos camposde concentração e extermínio. Em 1961, a co-bertura do julgamento de Eichmann leva-a arefletir sobre o trabalho intelectual e a "bana-lidade do mal".

Arendt é difícil de ser classificada. Foiescritora, filósofa, professora, historiadora, edi-

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mento. E isso é esquisito, pois Arendt passou avida falando e escrevendo sobre política; noentanto, sua herança passa a ser notadamentefilosófica. Um outro tipo de filosofar está emgerminação, no qual a universalidade é maisuma questão de transmissão, de linguagem, doque de ancoragem, de fundamento positivo. ParaArendt, o pensamento poderia confrontar-se comas coisas mundanas, com o mundo da política,a partir da renúncia a um ponto fixo, sem anco-ragem num ponto arquimediano, absoluto, compretensão de enquadramento e normatizaçãoda existência.

O que Arendt cedo descobriu foi que umadas marcas fortes da modernidade é a universa-lidade. A modernidade é sinônimo deprevalência do universal, mas a universalidademoderna é abstrata, isto é, engole ou destróitoda e qualquer especificidade e diferença. Re-clamou que, ao mesmo tempo em que os direi-tos humanos apareceram, era perpetrado ogenocídio aos judeus em nome do Estado-Na-ção, unificado, soberano, universalizado. Valedizer, quem não pertencesse a um Estado-Na-ção não tinha amparo algum nos chamados di-reitos humanos. Mais que isso, descobriu que aresistência não podia ser feita em nome de ou-tra abstração. Seguia, nesses termos, a lição decasa, ministrada por sua mãe. Se a atacavamcomo judia, era como judia que devia se defen-der, não como cidadã universal, portadora dedireitos. Arendt frisava sempre, nessa linha, quea solidariedade não pode ser confundida nemcom indignação, nem com piedade. Em nenhu-ma delas há o compromisso da defesa de umespaço, de um mundo no qual as pessoas pos-sam ser reconhecidas como tais, seja qual forsua proveniência.

Ali estava sua grande diferença em rela-ção aos demais judeus. A questão judaica paraela não iria resolver-se com a fraternidade in-terna. Esse é um conceito acósmico, apolítico,assim como também é o amor. Era o respeito eo reconhecimento, as categorias apropriadas àsolidariedade, e não a piedade e a fraternidade,como imaginara boa parte da tradição políticarevolucionária, na esteira de Rousseau, que re-solveria a questão judaica. Sua preocupação não

era formular um teoria social ou econômica capazde dominar e solucionar os males provenientesdo mundo erguido a partir do Capital. Emboraos danos do capitalismo não tenham ficado forado seu pensamento, basta pensar nas porme-norizadas análises contidas em A Condição Hu-mana, na qual o avanço do processoespeculativo vai engolfando tudo, no entanto,não ergue outra abstração como solução ("a boaabstração"), apenas relembra e privilegia a ca-tegoria da ação, sem a qual os homens retomamao estado animal, de natureza.

Arendt nasceu em Hanover em 1906, masfoi criada em Konígsberg, filha de judeus assi-milados. Seu pai morreu quando ela tinha ain-da seis anos e, logo em seguida, morreu seuavô, a quem era profundamente ligada. Teveuma vida escolar conturbada. Não conseguiaseguir, como os demais, as exigências rotineirasda escola. Desde cedo, mostrou preferência porestudar em pequenos círculos, quando não,sozinha mesmo. Funda, com colegas, grupos deleitura dos clássicos latinos e gregos. Nessesgrupos, entra em contato com a filosofia, atra-vés de um aluno de Heidegger, que vinha pas-sar as férias em Konígsberg, e com o qual pareceter tido um namorico. Antes de terminar oGymnasium, nosso ensino médio, é expulsa daescola. Mesmo assim, consegue licença para fazeras provas do Abitur, correspondente ao vestibu-lar, e é muito bem sucedida, podendo optar porvárias universidades. Escolhe Marburgo, ondese encontrava lecionando Heidegger.

Foi amor à primeira vista com a filosofia,pensamos nós, projetado na pessoa deHeidegger. Tiveram um caso, andaram se en-contrando às escondidas. Heidegger confessou,já velho, que ela o inspirara na escritura de Sere Tempo e de Kant e oFim da Metafisica. Com oNazismo e o engajamento de vários intelectu-ais, que era a regra, diz ela na Entrevista, e, opior de tudo, com entre eles estar Heidegger,decepciona-se profundamente com a vidaacadêmica e intelectual. Reconcilia-se com suacondição de judia ao escrever a biografia deRahel, uma judia que passa a vida tentando seralguém e que realiza o percurso da assimilaçãopara ver se consegue isso, mas não o consegue.

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No final da vida, Rahel se reconcilia com o fatode ser judia, declara lealdade a seu povo e iden-tifica-se com a causa da liberdade judaica e igual-dade dos judeus perante a lei. O que consideraraa maior vergonha e sofrimento em vida, o fatode ter nascido judia, pareceu-lhe no fim algoque de maneira nenhuma queria ter perdido.

Arendt desistiu da vida intelectual e foidedicar-se, em Paris, do ponto de vista prático,aos refugiados judeus e seus filhos. Mesmo as-sim, enquanto esteve em Paris, conviveu comos intelectuais que por lá passavam ou mora-vam: Benjamim, Brecht, Sartre, de quem nãogostava muito, preferindo o escritor ao filósofo,Aron, Kojeve, Koyré. Depois de passar um tem-po, juntamente com o seu segundo marido,Heinrich Blücher, num campo de internamento,resolve fugir e, ao contrário de Walter Benjamim,tem sucesso. Atravessou os Pirineus e conse-guiu chegar a Portugal, de onde partiu para aAmérica. Lá, viveu durante um período razoá-vel na condição de apátrida e sonhava em vol-tar para a Europa. Considerava-se sempre umaeuropéia e achava que podia ter um espaço porlá. Desistiu quando soube do Mal Radical. Ogenocídio dos diferentes e o controle absolutodos aceitos como arianos, o que equivale àdescartabilidade de todos, essa é a essência doMal Radical, conceito que depois será transfor-mado em banalidade do mal, a eliminação dosoutros sem causa alguma, sem motivação ideo-lógica ou patológica.

O conhecimento dessa situação em 43,juntamente com a criação do Estado de Israelem bases nacionais, provocaram uma dupla de-cepção em Arendt. Por um lado se deparou coma impossibilidade da realização de sua esperan-ça. Na Europa, seu projeto de uma confederaçãode estados não-nacionais se tomou impossível.Por outro lado, a proposta de um grupo de ju-deus, ao qual era aliada, que defendiam a cria-ção de um Estado binacional de judeus e árabes,também foi por água abaixo. Voltou-se para opensamento, para a "coisa do pensar", comoela gostava de dizer, para o âmbito da compre-ensão. Algo aconteceu, que a tradição jamaisprevira: o Mal Radical deixava de ser uma idéiapara se pensar a propensão humana para o

pecado e passava a se efetivar no mundo, comoforma de vida.

Sua dedicação à empresa compreensivalevam-na para a academia e conhece a fama.Torna-se professora, com uma condição: quenão se atrapalhe o seu trabalho e a possibili-dade de ir à Europa pelo menos uma vez porano, para pesquisar. É convidada para dar aulanas melhores universidades americanas. Man-tém forte influência no meio intelectual e pú-blico, o que é atestado pela repercussão desua cobertura do caso Eichmann, a pedido doNew Yorker. Dois aspectos chamaram a aten-ção nesse trabalho jornalístico. Primeiro,Arendt levanta a polêmica quanto a ser apro-priado ou não o julgamento de Eichmann emJerusalém, o que defendia. Como não haviaum tribunal internacional, a proposta se justi-fica. Discorda, porém, dos procedimentos, douso político por parte das autoridades, da idéiade vingança, do resultado previsto. Além dis-so, Eichmann confirma o que ela já sabia,mas nunca tivera coragem de tornar público:tivera a colaboração dos líderes judeus. Aoressaltar estes fatos, foi longe demais. Tor-nou-se inimiga pública da elite judaica. Sofrecom isso, perde amigos, mas mantém-seirredutível, esclarecendo apenas que não setratava do povo, no qual ela identificaresistências, mas dos chefes dos conselhos.

O outro aspecto diz respeito à relaçãoentre o conceito de banalidade do mal e a recu-sa de pensar. Eichmann cometera os maioresmalefícios aos judeus e agia como se não esti-vesse fazendo nada demais. Simplesmente ade-ria, alinhava-se ao que a maioria propunha, eraincapaz de pensar por conta própria. A propen-são dos seres humanos a fazer parte de um gru-po, a se identificar, aderindo impensadamentea idéias, opiniões e "deveres" pode levar aocometimento de males irreparáveis. O perten-cimento, ao exigir o alinhamento, só se realizaàs custas do desrespeito, do ódio e da destrui-ção do diferente. A adesão a opiniões da maio-ria ou de um grupo carrega consigo apossibilidade de matar.

Arendt tira duas conclusões do casoEichmann. A primeira é que a vida política exi-

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ge julgamento, responsabilidade pessoal. Essa éa essência da idéia da maioridade como condi-ção para a participação na esfera pública. Asegunda é que a vida intelectual está relaciona-da com a atividade do pensar, mais que com adefesa de idéias fixas. Pensar não é deduzir omundo a partir de axiomas ou outros padrõesconcebidos como irrefutáveis, é confrontar, exa-minar o que acontece. Ambos, tanto o julga-mento político como a atividade intelectual,exigem um trabalho do espírito, uma indepen-dência, não uma autonomia absoluta, mas umaliberdade sem a qual nenhum reflexão e açãopode emergir, nenhuma filosofia pode se reali-zar, nenhuma transcendência pode acontecer.Sem isso, temos o retorno do animal, do tribal,o reino da chamada opinião pública, melhordizendo, opinião midiática, para não macularum termo tão caro à política e à própria Arendt.

O aparecimento do termo totalitarismono pensamento de Arendt se realiza a partir dasegunda inflexão, quando ela toma conhecimen-to de Auschwitz. O fato de as pessoas estaremsendo mortas sem nada terem feito, pela sim-ples razão de não serem arianas ou pertencen-tes à classe mais progressista, aguçou-lhe amente. Não conseguia compreender como a tra-dição político-cultural européia permitira essesacontecimentos.

Seu esforço de compreensão da expe-riência totalitária resultou inicialmente no apa-recimento da obra A Origem do Totalitarismo(951), mas, como dissemos, está na base detodo seu pensamento. Sua pretensão não eradar uma explicação causal, como o termo ori-gem pode sugerir. Esse livro não é uma obra deciência da história, mas de filosofia política. Sualealdade é para com as experiências que estãona base do totalitarismo, mais do que com oregistro quantitativo dos fatos isolados. A expe-riência totalitária não tem uma História. Não foium acontecimento previsível, como se estivessecontido potencialmente numa causa qualquer.Ele cristalizou tendências que só podem serpercebidas a partir dos próprios acontecimen-tos, que apontam, eles mesmos, os seus passa-dos. Não há uma determinação causal à qualpossamos recorrer.

Há uma especificidade na forma totalitá-ria de governar que Arendt quer explicitar. Naprimeira edição de A Origem do Totalitarismo,Arendt dá a entender que o totalitarismo é umausurpação da tradição ocidental pelas suas cul-turas subalternas, sem respaldo na grande tradi-ção política e filosófica européia. O totalitarismoé concebido aí como o resultado dossubprodutos da cultura ocidental, por exemplo,do racismo e do pangermanismo, como se abarbárie, sufocada pela civilização ocidental,passasse a ter proeminência na Europa. O tota-litarismo é concebido como uma experiênciade governo que funciona sem a política, emrejeição a essa dimensão da civilidade. O retor-no ao naturalismo e a retirada da política foramfeitos através da subordinação dos estados e dapolítica à instância natural da nação. O Estado-Nação, como instância soberana, seria, então, abase possibilitadora a longo prazo do surgimentodo totalitarismo. A nação nivela, naturaliza,inviabiliza a diferenciação, o surgimento dohomem como ser singular, com vida própria aser realizada. A subordinação do Estado à na-ção soberana acarretou a naturalização dos vín-culos e possibilitou o aparecimento da naturezaradical, absoluta, do mal, consubstanciada nadescartabilidade completa do ser humano comopessoa, individualidade. O que importa é a raça,nação ou classe e em seu nome tudo passa a serpossível.' Desse modo, os seres humanos indi-vidualmente tomam-se insignificantes. Qualquerlimite para a liberdade da raça ou nação temque ser eliminado. Com a naturalização dosestados surgiu a possibilidade de um regimepolítico com pretensão de controle absolutosobre a população, com ambição de domina-ção total.

Depois da primeira edição de A Origemdo Totalitarismo, Arendt verifica que seu livroapreendia bem a especificidade da experiêncianazista, mas ficava a desejar com relação à ex-periência soviética e passa a pesquisá-Ia. O pri-meiro resultado dessa pesquisa vemos no textoIdeologia e Terror (953), que foi incorporadoao livro a partir de 1958. Verificamos uma mu-dança na caracterização da experiência totalitá-ria. Arendt passa a relacionar o totalitarismo

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não mais com as culturas subterrâneas, mas comuma destinação inscrita na própria cultura dagrande tradição ocidental. Primeiramente, elafala em termos de ideologização, na utilizaçãoprático-política do modo filosófico e cientificode pensar para justificar conteúdos não racio-nais, ideológicos". Depois a autora aprofundaessa perspectiva, ao demonstrar que não se tra-ta apenas de um contrabando ideológico da fi-losofia e da ciência, mas que a tendência àjustificação absoluta, unitária, contemplativa,preconizada pela filosofia e buscada pelas insti-tuições ocidentais, implicou num fechamentopara a política, campo das muitas vozes, e numatendência a submetê-Ia a um fim único e exter-no: as idéias da razão, religião, necessidadeeconômica etc. O domínio dessa perspectivaúnica escancara a política para a possibilidadedos acontecimentos totalitários." Essa tendên-cia do pensamento arendtiano se explicita emoutros textos escritos nesse mesmo ano de 1953,inéditos até recentemente. Referimo-nos a Hu-manidade e Terrore a Filosofia e Política e de-semboca em A Condição Humana e Entre oPassado e o Futuro, onde o fechamento da tra-dição para a política é exposto de forma con-tundente.

A submissão da política ao princípio daidentificação, a uma raça ou classe, a uma iden-tidade fictícia, inviabiliza a razão de ser da po-lítica no sentido da polis antiga, como esfera depossibilitação da identidade, como algo pesso-al, que surge na relação com os outros, na ação(práxis) e no discurso (léxis)". Ao mesmo tem-po, essa submissão inviabiliza a diferença entrepoder e legitimidade, entre a atividade políticae as bases de sua sustentação.

Em Ideologia e Terror, Arendt inicia suacaracterização do totalitarismo estabelecendo adiferença entre o terror totalitário como formade governo e as demais formas de governo, in-clusive as que pressupunham o uso do terror,presentes e teorizadas na história e tradição oci-dental. Sua questão é: o governo totalitário éum arranjo improvisado, retirado do arsenalconhecido da tirania, do despotismo e das dita-duras, em face do fracasso das forças políticastradicionais, ou tem essência própria? Ao levan-

tar essa questão a autora indaga se a corriqueiraassimilação do totalitarismo à tirania é correta.Se tem especificidade, qual é então a experiên-cia humana básica que dá sustentação ao regi-me totalitário? O apelo direto às massas e todoo arsenal capaz de mobilizá-Ias parecem apon-tar para um elemento importante dessas formasde governo. Com as massas, os "movimentos",o curso da ação se torna completamenteimprevisível, rompe-se a alternativa entre po-der arbitrário e poder legítimo, governo legal eilegal. Com a primazia das massas, jogam-se nolixo as categorias convencionais da política: ospartidos, o bom senso, a moral e as leis.

Nesse momento, a ideologia marca a suaimportância. As massas, no mundo moderno,são constituídas pelo animal laborans, o ho-mem enquanto ser ocupado exclusivamente coma reprodução biológica. A demanda do progres-so, da acumulação e da prosperidade empur-rou, ao invés de liberar, a sociedade como umtodo para o jugo do labor. O resultado foi atransformação de todas as atividades em labor edos seus produtos em objetos de consumo. Nãohá mais trabalho (work, poiesis), atividade naqual o homem punha algo de si no mundo,construindo-o, tornando-o mais habitável. Tudopassa a ter um referência subjetivista, relaciona-do ao homem, ao seu gozo, à sua dominação. Ahegemonia do animal laborans acarretou o fimdos contatos e relações humanas. O animallaborans não possui mundo, é auto-referido. Suasolidão congênita, seu deserto, torna-se um cam-po fértil para a disseminação e propaganda dasidentidades fictícias, raciais, étnicas, abstratasetc. A nulidade experimentada na solidão ésubstituída pela força de pertencer ontolo-gicamente a uma entidade superior. É daí quevem a força do totalitarismo. É por isso mesmoque a força e o terror são seus esteios. O gover-no totalitário ambiciona preencher o vazio dopoder, "a cadeira vazia", como lemos na epígrafede Char, que é a característica quando o seuexercício é concebido como coisa dos cidadãose não como derivado de instâncias externas àesfera pública. Como lugar vazio, o poder pre-serva e pressupõe a liberdade. No totalitarismo,ao contrário, o poder passa a estar atrelado a

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leis e forças sobre-humanas: leis da natureza ouda história. Identificado com a lei, o poder dei-xa de ter limites. Ao se conceber como aencarnação da lei relega qualquer lei positivaque se oponha aos seus desideratos. Não sesubmete às leis porque estas são fruto do con-senso dos homens, foram maculadas pelos "in-teresses humanos" e, por isso, vincula-se a leissuperiores, distantes das coisas e interesses pe-quenos dos homens. Quando isso acontece, oshomens enquanto homens passam a valer mui-to pouco ou mesmo nada, tomam-se supérfluos.

O totalitarismo destrói a antiga separaçãoentre lei e justiça, entre a lei positiva e sua legi-timidade final. Quer estabelecer o reino da jus-tiça na terra, não a encara como um princípioregulador do certo e do errado e das leis positi-vas, quer aplicá-Ia diretamente. Não estabeleceum consensus iuris a partir do princípio defen-dido, não cria uma nova legalidade e, assim,visa a libertar a lei de qualquer ato ou desejohumano. Vale dizer, as leis da natureza e dahistória não são princípios estabilizadores dasleis positivas, como entendiam os antigos, quan-do reivindicavam a natureza como fonte de le-gitimidade. Por essa razão, a conversão das leisda natureza e da história em realidade desem-boca no terror total, no qual é estorvo e inimigonão apenas o opositor, mas qualquer pessoaque agir e possuir desejos e pensamentos pró-prios. A finalidade dessa lei não é o bem-estardos homens, mas a fabricação de uma humani-dade específica. A lei visa ao benefício do "todo",não se constitui como um canal de relações,mas num cinturão de ferro capaz de forjar onascimento do UM, de todos como UM.

A ideologia substitui, assim, o "princípiode ação" que, nas demais formas de governo,motiva os cidadãos a se relacionarem, a constitu-írem um espaço público, e no seu lugar surge aideologia, a tirania da ficção, o argumento com-pulsivo, autopropelido, inquestionável, "objeti-vo". Com essa ideologia vem o terror, como formade liberar os entraves e acelerar o movimentodas "forças superiores". Nada de humano, de"subjetivo", de mortal. Ligado a leis eternas, ogoverno totalitário ignora nascimento e morte,marcas da condição humana do homem.

Vale dizer, o governo totalitário se baseianuma experiência que nunca havia servido comobase para uma estrutura política. Nem mesmo atirania (governo de um só) é igualável a essegoverno, pois mesmo na tirania, apesar de eli-minados a participação pública, os contatos e aorganização política do povo, no entanto a ação,de alguma forma é ainda possível. Na tirania, aesfera privada é completamente salvaguarda-da.' O que é eliminado é a possibilidade deoposição política. É nesse limite que a tirania eo despotismo usam o terror. Fora desse âmbitoa vida é preservada. A esfera do isolamentopermanece intacta: família, arte, escrever etc.Na tirania, é possível ainda alguma criatividadehumana."

No governo totalitário, qualquer contatohumano, inclusive familiar, é posto sob suspei-ta. Ele se estrutura na experiência da solidão(loneliness), enquanto a tirania baseia-se no iso-lamento (solitude). Até o momento do surgimentodo totalitarismo o que caracteriza a política é apossibilidade da ação em conjunto e sem coa-ção. O governo totalitário enseja coagir a tudo ea todos, subordinar e homogeneizar todas asesferas da vida ao princípio único da ideologia.Da família à cultura, da economia ao lazer, to-das as relações e atividades passam a sofrer ocrivo da ideologia, qualquer movimento espon-tâneo, independente do poderio ideológico, éconcebido como subversão. É daí que surge acategoria de "inimigo objetivo": trata-se de qual-quer situação ou pessoa que, pela simples exis-tência ou condição é entendido como estorvoao princípio ideológico. Assim, os judeus, osciganos, os doentes, os mestiços eram conside-rados "inimigos objetivos" dos nazistas e deve-riam ser eliminados. O próprio processo natural"objetivo" decretou as suas sentenças de morte.Independentemente do que façam, pensem oufalem já foram condenados. Da mesma forma,no regime soviético, bastava pertencer a aristo-cracia, burguesia ou ser camponês, para ser con-siderado "inimigo objetivo". A condenação emorte, assim, não acontecia em campos de guer-ra nem era resultado de um processo judiciallivremente estabelecido, mas determinada apartir do princípio ideológico. O terror é esten-

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dido para além do momento de fundação donovo Estado. É esse uso permanente do terrorque diferencia o regime totalitário dos demaisem que há um uso temporário do mesmo. O"inimigo objetivo" surge justamente quando nãohá mais oposição política efetiva, limite do usodo terror no despotismo e na tirania.

A ideologia, no governo totalitário, sepropõe ao domínio de todas as esferas da vidae a facilitar o controle de todos por parte dogoverno. Estribados no princípio ideológico, osgovernos totalitários exigem dos seus membrosque sejam ao mesmo tempo vítimas e carrascos.Vítimas, porque submetidos e governados pelacausa ideológica. Carrascos, porque, atreladosà ideologia, devem proibir e lutar contra qual-quer limitação à causa. A causa passa a justifi-car tudo. Há, assim, uma burocratização da vida.Os seres humanos passam a ser reduzidos àfunção da ideologia, o que equivale, na prática,à sua descartabilidade. Há, assim, umasubstancialização da política, como se ela se-guisse um percurso e um movimento linearnecessário, independente da ação e delibera-ção dos homens. A ancoragem ideológica pos-sibilita isso, o que acarreta uma despolitizaçãoda esfera pública, que passa a ser governadapor um destino inelutável, independente e alémdos homens. As pessoas são transformadas eminstrumentos desse destino e delas é exigido osacrifício da própria vida no sentido do convi-ver (inter homini esse), em nome da liberdadedo fluxo sem fim do processo.

Essa substancialização da política foi ogrande perigo que Arendt percebeu na tradiçãoocidental. A busca de uma legitimação absolutaimplicou no esquecimento e afastamento pro-gressivo da política por parte da cultura ociden-tal e das suas instituições. Essa dimensão dopensamento de Arendt só vai se explicitar em ACondição Humana e Entre o Passado e Futuro,textos que não são objeto da análise do presen-te ensaio.

Concluindo, observamos que a compre-ensão arendtiana da experiência totalitária mos-tra-se importante, nos nossos dias, não parafazermos transposições abstratas, mas para fi-carmos atentos aos acontecimentos que vão na

direção do totalitarismo e das dimensões proto-totalitárias presentes na atualidade: o retornodas identificações naturalistas, étnicas,sobre determinando a política em várias partesdo mundo; o apoliticismo contemporâneo, atransformação da política em administração; orecuo da política em face do domínio dos técni-cos e dos partidos burocratizados nos governos;a melhoria genética dos seres vivos; a socieda-de como instância abstrata de legitimação, peri-go já denunciado por Tocqueville; o reino dointeresse único, a imposição das demandas domercado e da economia mundializadas; ahegemonia do pensamento único, do consensomonolítico, forjado através dos meios de comu-nicação de massa, no qual o povo é apenaspressuposto. Esses pontos talvez sejam os índicesde que o espectro do totalitarismo não está aindaafastado do nosso cotidiano, antes se constituinuma tendência inerente às sociedades contem-porâneas. Nesse aspecto, parece que um prog-nóstico arendtiano está pleno de validade. Dizela em Ideologia e Terror(I953): "Pode ser queos verdadeiros transes do nosso tempo somentevenham a assumir a sua forma autêntica - em-bora não necessariamente a mais cruel - quan-do o totalitarismo pertencer ao passado" (p. 460).

NOTAS

ARENDT,Hannah. What Remains?The LanguageRemains. In Essays in understanding. New York:HB&C, 1993, p. 1-23.YOUNG-BRUEHL,Elizabeth. ForLoveofthe World.New York:Yale University Press, 1983.Arendt chama atenção, corretamente, para relaçãoentre Estado e violência entre os teóricos moder-nos da política e da sociedade. De Maquiavel aHobbes, de Marx a Weber, podemos verificar essevínculo. Para Arendt, isso sinaliza o conteúdo vio-lento das sociedades modernas, consubstanciadasna redução mesma da política a Estado e a perdada política como forma de vida. Cf. ARENDT,H.On Violence. In Crisis ofthe Republic. New York:HBJ Book, 1972, p. 105-198.Arendt não usa o termo ideologia em seu sentidocorriqueiro, como falsa consciência, fruto do

AGUIAR, Oouo ALVES. A EXPERIÊNCIA TOTALTIÁRIA... P. 97 A 104 103

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gnosiologismo que grassa na filosofia a partir damodernidade. O que interessa a Arendt é a potên-cia prática presente em qualquer ideologia, quefoi muito bem percebida e utilizada pelos gover-nos totalitários.Nesse aspecto, o pensamento de Arendt vai nacontramão dos pensadores contemporâneos, que,na trilha do platonismo clássico, acham que o pro-blema da crise contemporânea se resolverá com anormatização, com a submissão da vida e das ins-tituições a um padrâo racional. Essa linha é de-fendida por Leo Strauss, Habermas, Apel e pelatradição alemã de um modo geral. Para Arendt,nossa crise é política e não moral, não se trata derecuperar valores absolutos ou racionais, mas simde recuperar a esfera pública, a política, no senti-do que deu origem à polis grega, como campo dereconhecimento e ação dos cidadãos, das pessoasocupadas com o que é comum, base da convi-vência política.Arendt se contrapõe, assim, à leitura hegelianada polis. Para Hegel a polisera uma forma políti-ca na qual não existia individualidade. Esse con-ceito só iria surgir com a emergência docristianismo. Para Arendt, ao contrário, na polis épossível pensar uma idéia correta de individuali-dade, forjada nos feitos e nas belas palavras enão como algo transcendente ou fechado em simesmo, como foi pensada a partir do cristianismoe dos modernos.Embora Arendt entenda que há ligação entre osgovernos totalitários e o imperialismo, no entanto,não reduz um ao outro. O imperialismo é entendi-do antes de mais nada como um movimento deexpansão econômica, constituindo-se, assim, numdos nódulos importantes que se cristalizaram nosgovernos terroristas, mas não no único. Além domais, Arendt lembra em vários textos que a expe-riência que gerou o termo império, notadamentea romana, não incluía a eliminação das pessoas,dos dominados. A eles era dado o direito de pre-servar a própria cultura e costumes. Tratava-se prin-cipalmente de uma expansão territorial, daí a razãopela qual toma-se completamente sem sentido trataros governos totalitários como imperialistas, no sen-tido antigo. Ela prefere falar de governos com pre-

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tensão de dominação total ou com ambição decontrole mundial das populações.Nessa mesma linha, podemos questionar a tentati-va de classificar a experiência brasileira iniciada em1964 como totalitária. Em primeiro lugar, porque,apesar de o governo militar ter, em vários momentos,se utilizado da violência, não havia urna cultura na-cionalista e militarista forte o suficiente para justificara prática permanente do terrorismo. Mesmo oanticomunismo brasileiro era algo meio abstrato, nãoestava bem enraizado na população. Também nãohouve aqui campos de concentração. A ação violen-ta visava tão-somente a debelar a oposição ao regi-me. Não tivemos aqui a categoria de "inimigosobjetivos". Apesar do estatismo econômico, a vidaprivada, as religiões, a arte, de certa forma permane-ceram independentes. Não houve homogeneizaçãototal da vida. Por estas razões, talvez a melhor carac-terização seja mesmo a de ditadura militar.

BIBUOGRARA

ARENDT, Hannah. Tbe Crisis cftbe republic. NewYork: HBJ Book, 1972.

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CHAUMONT, J.-M. La singularité de l'universconcentrationaire selon Hannah Arendt. In:Hannah Arendt et Ia modernite. Editado porA.-M. Roviello e M. Weiyembergh. Paris: Vrin,1992, p. 87-109.

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