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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE PRÉ-ALAS BRASIL 04 a 07 de setembro UFPI, Teresina – PI.
GT 23 – ECONOMIA SIMBÓLICA E POLÍTICA DOS AFETOS
A ESTÉTICA DO SAGRADO NA PROJEÇÃO DE CAMINHOS ASCENSIONAIS
Marcio Alves da Silva1
Professor do Departamento de Ciências Humanas e Tecnológicas da Universidade do Estado da Bahia - UNEB
1
1. Introdução
Explanar algo referente à trajetória de pessoas quase
personagens como Joãozinho da Goméia, é tarefa um tanto quanto ousada e
ao mesmo tempo difícil. Um quase mito, oriundo do mundo religioso afro-
brasileiro, este pai de santo baiano que viveu seu sacerdócio apoteótico nos
anos 1950 e 1960 do século passado, na região sudeste, retrata um momento
sintomático no cenário nacional, no qual a sociedade brasileira encontrava-se
atravessada por relevantes “eventos sociais”, “consequência de uma
reestruturação específica das relações humanas”, o que leva este estudo a se
apropriar do percurso do referido sujeito aos meandros da epopéia do caráter
popular e da massificação dos valores relativos ao universo simbólico e
material do candomblé, para realizar algumas reflexões de cunho sócio-
antropológico sobre o referido momento histórico e seus possíveis
desdobramentos na atualidade.
A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofre mudanças profundas. O processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano. Se o modernismo é considerado por muitos como um ponto de referência, é porque este movimento cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então se encontrava de maneira esparsa na sociedade (Ortiz, 1994, p. 39-40).
Joãozinho da Goméia aparece no quadro relacional da sociedade
soteropolitana em primeiro lugar, e na sequência nas sociedades carioca e
paulistana, como verdadeiro ícone na simbologia sacerdotal afro-brasileira,
acrescido ainda, no entendimento de alguns autores, ao veio artístico
representado pela dança e música. Embora, não se possa negar que sua
atividade primordial tenha sido reconhecidamente o sacerdócio, fica perceptível
no rastreamento de sua trajetória a forte articulação despojada entre arte
cênica, identificada pelo canto e dança, e o universo ritualístico do candomblé.
Um corpo masculino transliterado na dança, principalmente, pelos eflúvios dos
Deuses tão marcadamente presentes no corpo feminino, proporciona toda
gama de possibilidades, que podem ser vistas como transgressivas ao
ordenamento de gênero estruturado ao longo dos anos, bem definidas pela
matrilinearidade hierárquica, em terreiros referendados pelo tradicionalismo
afro-baiano. A exuberância do estilo desenvolvido por Joãozinho da Goméia
pode ser vista enquanto divisor de águas na forma de apresentação e
representação dos deuses através de suas indumentárias, identificadas pelo
luxo dos figurinos, o fino acabamento das roupas, o brilho dos apetrechos
litúrgicos e mais ainda a forma de evolução da dança por ele mesmo
desempenhado, dentro e fora do terreiro.
Religioso ao extremo, ele foi, também, exímio bailarino, ator, coreógrafo,
cantor. Para os mais profundos conhecedores da arte, foi o maior
dançarino de candomblé que o Brasil já teve, em todos os tempos (...).
(...) Eros Volúsia, a exótica bailarina que tanto prestígio alcançou no Brasil
e no exterior, aprendeu com Joãozinho da Goméia todos os segredos de
sua arte. Dançar, para ele, era como se fosse uma religião: entregava-se
a arte com a mesma devoção com que conduzia as cerimônias na sua
roça em Duque de Caxias. E como se não lhe bastasse a dança, também
gravou inúmeros pontos de candomblé, curimbas e músicas do folclore
brasileiro (Siqueira, 1971, p. 68-69).
Este contorno de produtor artístico, que o acompanhou desde seu
surgimento enquanto pai de santo em Salvador, não se restringiu ao campo do
sagrado propriamente dito, toda essa atividade de certa maneira transpôs os
muros do terreiro tanto na Bahia quanto na Baixada Fluminense, alcançando
outros setores ligados ao mundo artístico e estético por ele percorrido, a
exemplo do carnaval, bailes à fantasia, escolas de samba, cinema, cassinos e
teatros, na cidade do Rio de Janeiro.
Joãozinho da Goméia, seja flexibilizando regras ortodoxas da vida religiosa (promovendo em seu terreiro, conhecido como Goméia, uma quase revolução nos costumes tidos como tradicionais pelos candomblés mais afamados da Bahia), seja inserindo a performance das danças sagradas e a estética dos orixás no show business e nas passarelas dos desfiles de samba do carnaval carioca 9espaços tidos como profanos) foi certamente um dos personagens que anunciaram as transformações que a partir dos anos 60 se verificaram na legitimação e expansão dos cultos afro-brasileiros, sobretudo na região Sudeste do País, para alem dos muros dos terreiros (Silva e Lody, 2002, p. 153-154)
São estes exemplos que encaminham o sentido da pesquisa em
perspectiva científica, tendo por aporte teórico e metodológico os pressupostos
inerentes aos estudos sobre o desempenho corporal na configuração de
visibilidade ascensional de personagens em situação de invisibilidade social,
buscando identificar a combinação entre o campo religioso e cultural enquanto
espaços de interdependências e afinidades, nas formas interpretativas da
realidade social abordada em referencial sócio-antropológico.
2. Desenvolvimento
Para uma melhor compreensão das escolhas conceituais a serem
aqui utilizadas, em termos de um enquadramento sobre o que foi sugerido
acima, propõe-se estabelecer leituras de cunho sociológico no sentido de
perceber a mobilidade social desempenhada por determinados indivíduos em
seus percursos, em busca de visibilidade bem como reconhecimento. Isto
informa a existência de um campo nitidamente demarcado pela defasagem
social, onde se instauram verdadeiras disputas por ascensão, ora abertas ora
veladas, por parte destes atores. Cabe neste estudo à prerrogativa de
identificar de que forma Joãozinho da Goméia delineou as possíveis
estratégias para sua ascensão social, dentro de um circulo restrito de
aderência ao sacerdócio de pessoas pertencentes ao sexo masculino, a
homossexuais declarados, em uma Salvador de finais dos anos 1930.
Acrescente-se, ainda, o incremento das ações desempenhadas pelo referido
sacerdote, no intuito de compreender de que forma articulou-se junto ao campo
religioso afro-baiano, na perspectiva de promover-se enquanto detentor de
predisposições artísticas e intelectuais, definidas pela dança e estética
oriundas do candomblé, fornecendo a devida sustentação aos tramites
ascensionais do mesmo.
As intituladas predisposições artísticas e intelectuais aventadas
acima, somente puderam se efetivar a partir do momento em que Joãozinho da
Goméia adere ao campo religioso do candomblé, impulsionado pela
necessidade de atender ao chamado das forças místicas que envolvem a
referida religião. Detentor de uma fé inabalável, percebida ao longo de sua
trajetória pelas ações diretamente imbricadas com o sagrado, ele, que desde
sua infância esteve envolvido com os mistérios do sacramento, enquanto
coroinha na igreja católica de sua cidade natal, Inhambupe, interior da Bahia,
deflagrou seu destino através do campo religioso católico, o qual teve
verdadeira ascendência sobre sua formação pessoal.
Desde menino, Joãozinho da Goméia sempre foi muito religioso.
Frequentava sempre a igreja e era muito amigo de padres e freiras.
Devoto de N. Senhora Aparecida, nunca deixou de comparecer às
cerimônias católicas, mas jamais permitia que se misturassem o
candomblé com a religião, mesmo aquela que ele professava (Siqueira, p.
51).
Envolveu-se com as práticas religiosas do candomblé em
Salvador, aos dezesseis anos de idade, levado pela necessidade da cura dos
males que afligiam o corpo e a alma. Atendeu assim, ao chamado dos deuses
afro-brasileiros quando se entroniza no terreiro de Jubiabá, famoso pai de
santo de candomblé de angola-caboclo, onde iniciou sua trajetória enquanto
filho de santo se envolvendo nos mistérios do axé.
Jubiabá, ao vê-lo, entendeu todo o problema. As dores de cabeça eram
indícios indesmentível: todo médium sabe que os médiuns em potencial
que não se submetem às determinações dos orixás, vivem atormentados
com esse mal. Severiano Manuel de Abreu faz Joãozinho filho-de-santo.
Raspa-lhe a cabeça e o inicia nos mistérios do candomblé (Siqueira, p.
44).
Torna-se algo quase que patenteado nesta apreciação inicial, o
quanto as referidas predisposições estão relacionadas com a formação
religiosa de Joãozinho da Goméia, principalmente se, se atenta para o marco
da devoção católica assumido desde sua infância. Isto porque, seu ato de fé se
manifestou nesta religião onde vivenciou efetivamente os mandamentos
sagrados, dentro da estrutura representativa da liturgia, que se expressa
através da celebração. Encontra-se aqui, a base de sustentação sobre a qual
se conceitua o sentido de pertencimento religioso de Joãozinho da Goméia,
que o acompanhou durante toda sua vida enquanto liderança sacerdotal a
frente do candomblé. Essa combinação não sincrética caracterizou sua ação
diferenciada naquilo que entendia como situações distintas sobre concepção
religiosa. É o que ele tentou evidenciar em seus discursos e atos, registrados
em sua reduzida biografia.
Candomblecista e católico convicto, Joãozinho da Gomeia frisava sempre
que o candomblé não impõe uma moral, como as demais religiões e não
se preocupava com o que lhe sucederia após a morte.
- Pode ser que eu vá para o céu cristão ou seja designado para uma nova
missão. Mas isso quem vai resolver é Oxalá, meu Pai (Idem, p. 82).
Em perspectiva heurística a leitura interpretativa da formação
intelectual de Joãozinho da Gomeia, ou melhor, a do indivíduo João Alves
Torres Filho, que perpassa efetivamente pelo núcleo religioso do catolicismo,
demonstra o sentido da prática cultural enquanto referência na elaboração das
ações definidoras dos comportamentos dos indivíduos em sociedade. O que se
torna importante reafirmar aqui, é a constatação da existência de um lócus de
convivência social, que de certa maneira garantiu os elementos propulsores de
um pensamento alinhavado pelo ordenamento do sagrado desde sua infância.
Daí advir à pergunta; o que é ser um coroinha e o que isso implicou
diretamente na formação da personalidade de João Alves Torres Filho? A esta
pergunta cabe uma breve digressão sobre o que vem a ser membro ativo, aqui
no caso coroinha, de uma comunidade religiosa com o perfil de instituição
universal como a igreja católica. Em auxílio interpretativo às suposições ora
aventadas, apropriar-se-á aqui, de algumas citações relativas ao campo
religioso católico, onde se define o papel desempenhado pelo coroinha. O livro
O coroinha e a Liturgia, escrito por pe. João de Deus Góis, oferece alguns
esclarecimentos sobre a questão.
O "Diretório para a Missa com Crianças" tem a preocupação de formar as crianças para que celebrem a Eucaristia com alegria e desembaraço, sugerindo que se procure fazer com que elas sejam atuantes e ativas, conferindo-lhes diversos ofícios e tarefas.
Dessa forma, os coroinhas têm a oportunidade de iniciar e realizar sua caminhada na Igreja ao encontro do Senhor. Sua função, semelhante à do acólito, é importante para a comunidade: o coroinha não é um enfeite, mas alguém que, servindo ao altar, faz crescer a comunidade.
O que se busca depreender deste encaminhamento sobre o papel
desempenhado pelo coroinha é o sentido próprio da experiência vivida por
João Alves Torres Filhos na sua infância ao assumir o referido papel na
paróquia de sua cidade natal. Este fato aponta para os primeiros referenciais
de envolvimento social deste personagem em sua longa caminhada, até o
sacerdócio afro-brasileiro. A obrigatoriedade de se apresentar em público,
assumir responsabilidades perante o núcleo hierárquico imediato, participar
assiduamente dos processos litúrgicos imbuído da subjetividade da fé, oferece
substanciais elementos para a elaboração compreensiva das situações que
levaram o referido ator a galgar patamares expressivos em sua vida, enquanto
religioso. Estes são fatores que podem justificar sua formação intelectual, em
um quadro limitado de opções de um indivíduo que ao que tudo indica não teve
acesso a esfera acumulativa de capital cultural formal. A explicação aqui
perseguida em termos de projetar os lugares de acúmulo de saberes para a
vida social de João Alves Torres Filho passa efetivamente pela instituição
religiosa católica. Isto demonstra que sua passagem pela referida função tem
muito mais em profundidade do que se possa imaginar. Seu sonho era seguir a
carreira de sacerdote católico, assumindo a posição de padre. Sonho este
frustrado pela contingencia de uma doença e a própria pressão familiar em
fazer parte da religiosidade de seus familiares, como sua avó, descendentes de
africanos no Brasil.
João Alves Torres se destacou como o chefe de culto mais novo da cidade de Salvador, nascido em Inhambupe, interior da Bahia, em março de 1914 quando desde cedo se fez coroinha do Padre Camilo Alves de Lima, portando uma doença que levou-o à Salvador, e em última instância aos terreiros, seu grande sonho quando criança era se tornar padre, não gostava do candomblé, tinha até medo, contudo sua avó materna, a ex-escrava Giocondina Maria do Espírito Santo conhecida como Dona Neném (11) sempre conversava com seus orixás e estes garantiam que a hora de Joãosinho já estava chegando. Determinado dia Joãosinho começara a ter dores muito fortes de cabeça e uma pressão dentro do peito, médico algum conseguia diagnosticar o problema, a mãe de Joãosinho esperando já o momento da incorporação, levou seu filho ao
Candomblé de Nazaré das Farinhas, onde era Jubiabá o pai-de-santo (Nascimento, 2004, p. 3).
Mesmo em posição subalterna, enquanto ministro extraordinário,
o sentido de estar envolvido no processo de ordenamento e organização da
liturgia se encontra certa feita, presente nas funções de coroinha. Este papel,
envolto em responsabilidades, é atribuído preferencialmente aos meninos e
rapazes tradicionalmente, para estabelecer possibilidades futuras de
compromisso com o sacerdócio.
A Santa Sé deseja que se mantenha o costume tradicional e oportuno de
chamar meninos para acolitar a S. Missa, pois de tal prática têm surgido
vocações sacerdotais. O texto vai mais longe quando diz que "sempre
existirá a obrigação de continuar a sustentar tais grupos de coroinhas"
As predisposições artísticas e intelectuais latentes em Joãozinho
da Goméia começaram a se desenvolver, a partir do momento em que este se
envolve na teia relacional da religião, tendo na igreja católica o espaço inicial
das ocorrências definidoras da construção de sua personalidade adulta. Faz-se
importante frisar, entretanto, que seu ser vivia uma dualidade inscrita nos
valores sacralizados pela tradição familiar, onde a forte presença dos orixás
operava uma extraordinária pressão sobre sua personalidade, algo que
somente se desenvolveu quando de sua mudança para Salvador. Já possuidor
dos valores religiosos transmitidos pela igreja católica em sua infância, João
Alves Torres Filho transfere-se de sua cidade natal no interior baiano para a
capital do estado, levando consigo certo acúmulo de vida religiosa que irá
sustentá-lo em sua trajetória pela vida a fora.
Do interior baiano para o mundo, via Baixada Fluminense.
Este segundo momento de sua vida denotou o sentido de
amadurecimento assim como, desprendimento nas ações que confirmaram a
ascensão do pai de santo mais famoso do Brasil, no século XX. Como toda
figura recortada por enigmática trajetória Joãozinho da Goméia pode ser visto
como personagem polêmico, principalmente quando de sua chegada à cidade
de Salvador. Um vulto extraordinário sempre carrega em si uma dose de
mistério em questões relacionadas à sua escalada ascensional, sendo este,
sobretudo, de origem humilde. Entretanto, é fato, que as poucas tendências
biográficas, apontam para ambiguidades que levam, de certa maneira, a
confundir a compreensão mais significativa do percurso de Joãozinho da
Goméia. Existem ainda, muitas questões a serem levantadas e
consequentemente estudadas, sobre o papel desempenhado por Joãozinho da
Goméia, na edificação de uma leitura atualizada sobre o entendimento de sua
sugestiva contribuição à edificação do campo religioso afro-brasileiro. Algumas
pistas já estão sendo encetadas no intuito de melhor identificar o fenômeno
Goméia junto à sociedade abrangente, para os devidos esclarecimentos sobre
a ampliação religiosa do culto aos deuses tradicionais africanos a partir da
projeção pessoal de Joãozinho da Goméia, direcionando assim, possíveis
soluções de fundo interpretativo na área de sociologia da religião, bem como
da cultura, sensíveis aos valores simbólicos afro-brasileiros na configuração da
modernidade nacional, bem como desta, para com a cultura afro-brasileira,
perceptíveis nas abordagens realizadas pelas ciências sociais efetivados a
partir dos anos 30 do século XX, onde o aspecto da “identidade nacional
mestiça” se tornou algo recorrente, conforme nos informa Ortiz.
Na medida em que a sociedade se apropria das manifestações de cor e as integra no discurso unívoco do nacional, tem-se que elas perdem sua especificidade. Tem-se insistido muito sobre a dificuldade de se definir o que é o negro no Brasil. O impasse não é a meu ver simplesmente teórico, ele reflete as ambiguidades da própria sociedade brasileira (Ortiz, 1994, p. 43).
Reconhece-se a posição sociocultural na qual Joãozinho da
Goméia se encontrava em termos dos espaços sociais desfavorecidos e
pobres da cidade de Salvador. Um indivíduo que ainda muito jovem migrou de
sua cidade natal para a capital do estado, na tentativa de alcançar melhores
condições de vida, acabou por se envolver nas tramas sociais enredadas pela
falta de oportunidade e muita dificuldade de ascensão social. Frente a tal
realidade, Joãozinho da Goméia começou a empreender atitudes que
pudessem retirá-lo da imediata fragilidade socioeconômica. O transito da rua só
fez fortalecer a ambição por vencer na vida, utilizando as ferramentas das
quais disponibilizava.
- A culpa não é toda dele – respondeu Édison a Manuel. – Está agora com 24 anos e herdou o cargo há uns nove ou dez. naturalmente que não estava preparado. Tinha apenas uns 7 ou 8 quando apareceu na Bahia vindo do interior, órfão, sem lar, e foi empregado de um sacerdote. Viveu em bandos de garotos como ele e as únicas mulheres que conheceu viviam em prostíbulos. Por fim, o velho pai X o acolheu e se tomou de amizade por ele, deixando-lhe o templo ao morrer. Na verdade, é um sujeito inteligente, mas que se pode esperar? Está tentando abrir caminho no mundo... (Landes, p. 304)
As manifestações culturais e religiosas difundidas pela população
afro-brasileira em todo território nacional estiveram sempre relacionadas com o
processo festivo, segundo alguns estudiosos da temática na área de
antropologia. Em se tratando do estado da Bahia, na especificidade deste
trabalho, não há nenhuma diferenciação do restante do país. O que também
não causa nenhuma estranheza foi o tratamento de exclusão e
subalternização, dispensado pelas elites locais e nacionais, ao longo do
processo formativo da sociedade brasileira, a referida população.
Em fins do século XIX, como atestam os jornais e outros documentos da época,
havia grave rejeição, por parte de segmentos dominantes da sociedade, às práticas
religiosas afro-brasileiras. Atribuía-se a eles o caráter de “selvageria”, cujos
exemplos, constantemente citados, eram a “lascívia das suas danças” e o
“estrondoso barulho” de suas batucadas.
A repressão às manifestações populares e religiosas na capital
baiana nas décadas de 30 e 40 do século passado confirma o entendimento de
setores da elite soteropolitana sobre o real incomodo, dos grupos sociais que
atravancavam o processo de modernização com suas práticas fetichistas
atrasadas. A referência contextualizada da realidade vivida pelos referidos
grupos étnico-raciais desprivilegiados junto à sociedade abrangente, esta que
perseguia ao seu jeito e tempo os caminhos da racionalidade esclarecedora do
mundo industrial moderno, serve como modo de informar a configuração
estrutural do palco das ações sobre o qual os atores disponibilizaram as peças
no intrincado tabuleiro da sobrevivência religiosa e cultural, demarcado pelos
impasses entre tradição e modernidade. São nestes espaços, tidos pelas elites
como periféricos, marginais e sujos, que se encontravam alocados os negros
que viviam na capital baiana. Nos subúrbios distantes, nas roças que margeiam
a cidade, nas ruas da cidade baixa, na zona portuária, na zona de prostituição,
nos mercados, nos terreiros, extensões marcadas pela pobreza, herança
oriunda do descaso republicano pós-abolição.
O encaminhamento da fé mais uma vez atravessou seu caminho,
e neste sentido a religiosidade afro-brasileira, que até certo momento de sua
vida havia negligenciado, se transformou no verdadeiro veículo de transmissão
valorativa na organização de sua existência individual e social. Nesta
perspectiva se vislumbra as condições para sua sobrevivência. O caminho da
rua o levou a se deparar com a realidade da vida pobre dos setores afro-
mestiços da cidade de Salvador, mas, em contrapartida, foi de encontro com
alguns representantes da referida religiosidade, a qual transitava pelas
calçadas vendendo e transportando mercadorias para o sustento das famílias
de santo e consanguíneo.
Chegamos, afinal, ao grande mercado da Cidade Baixa, à beira da baía, ao lado das docas e armazéns de cacau e envolvido no seu fedor. Por todos os cantos havia pretas de saias e torços coloridos e blusas brancas que refletiam a luz do sol. Eram, em geral, mulheres velhas, na aparência robusta, confiantes em si mesmas, profundamente interessadas no trabalho do momento, geriam açougues, quitandas, balcões de doces e frutas e as barracas onde se vendiam especiarias, sabão, contas e outras especialidades vindas da costa ocidental da África (Landes, 2002, p. 54).
A rua tem sido um lugar sócio-historicamente analisado, quando
da constatação de sua importância enquanto espaço de interações sociais bem
como culturais. Ou melhor, a rua traz em si o próprio sentido cultural na
elaboração das formas de convivência, estabelecidos entre os indivíduos que
nela transitam e vivem seu dia a dia. Em se tratando de estudos sobre a
formação da sociedade brasileira, a rua assume papel de destaque em várias
análises referentes à concepção do ethos identificador do povo e dos
indivíduos que o formam.
Quando digo então que “casa” e “rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que, entre nós, estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas (DaMatta, 1997, p. 15).
Na sequência analítica sobre os possíveis fatores que delinearam
o caminho ascensional de Joãozinho da Goméia, não se deve negligenciar sua
passagem pelos espaços tidos como “do mundo”. A rua representou um dos
principais espaços de vivência e consequente aprendizado das coisas relativas
à religiosidade afro-brasileira e os meandros artísticos que influenciaram o
desenvolvimento de sua personalidade enquanto artesão popular. Com certa
margem de veracidade pode-se afirmar que, Joãozinho tomou contato com a
rua desde sua chegada a Salvador, algo ainda pouco citado nas informações
oriundas de pesquisas, reportagens, artigos científicos e biografias. Landes em
seus estudos sobre a religiosidade afro-baiana na cidade de Salvador acenou
para alguns aspectos indicativos da vivência reconhecidamente na rua, de
parte do alguns sacerdotes que tiveram passagem pela mesma, e em
decorrência desta constatação realizou interpretações relacionadas ao perfil
destes atores sociais pertencentes ao candomblé, com desdobramentos
referentes ao comportamento sexualmente assumidos.
Os pais que conheci, cerca de dez, foram recrutados entre prostíbulos, delinquentes juvenis e malandros da cidade. Nem todos eram naturais da cidade da Bahia; João, por exemplo, veio, aos 10 anos, dos distantes campos de criação do Estado e viveu na cidade com canalhas das ruas. O lugar de nascimento não tem importância, pois a mesma espécie de comportamento sexual anormal pode ocorrer em toda parte no Brasil e muito poucos homens não terão sido expostos a algum dos seus tipos. Naturalmente, como proscrito, João era um delinquente (Landes, 2002, p. 329,330)
Landes, em seu já clássico livro Cidade das Mulheres, efetivou
uma breve análise relativa à homossexualidade masculina em Salvador, com
desdobramentos direcionados ao universo da religiosidade afro-brasileira. Por
compreender que a ocupação sacerdotal designada ao mais alto posto de uma
casa de candomblé competia às mulheres, a referida antropóloga não mediu
esforços para configurar uma leitura que oferecesse as devidas explicações
sobre a ascendência de homens ao referido cargo sacerdotal, em algumas
comunidades religiosas da cidade. A explicação se fundamentou no conceito
de homossexualidade passiva, desenvolvido por antropólogos norte
americanos, a exemplo, de Ralph Linton. De posse dessa leitura, Landes
delineou o sentido de ascensão social destes personagens, o que contribuiu
sobremaneira nas análises relativas aos pressupostos interpretativos da
trajetória de Joãozinho da Goméia. Não que se venha a concordar com tudo o
que foi exposto pela referida pesquisadora, mas, o interesse maior de
aproximação analítica, se inscreve justamente na possibilidade perceptiva de
apreender a forma como os referidos agentes, ascenderam aos cargos de pai
de santo. Uma resposta em aberto, que precisa de alguma maneira ser
aprofundada, com base em pesquisas socio-históricas, para apreender pistas
inovadoras sobre o processo ascensional de pessoas do sexo masculino a
postos de destaque sacerdotal, como aqui no caso de Joãozinho da Goméia.
Na comunidade negra da Bahia, no Brasil Setentrional, circunstâncias incomuns encorajam certos homossexuais passivos a forjar um novo e respeitado status para si mesmos. Disso resultam mudanças individuais e sociais importantes e fáceis de observar; mas o seu especial interesse para a psicologia reside no demonstrar o modo pelo qual um grupo proscrito fez nova adaptação, tirando vantagens das novas circunstâncias (Landes, 2002, p, 319-320).
A licenciosidade fulgurante liberada pelos homossexuais passivos
se transforma na principal referência definidora do novo perfil de homens que
galgaram o status de pai de santo nos candomblés de Salvador. A partir desta
confirmação abre-se um leque de possibilidades interpretativas sobre o
percurso de determinados representantes do candomblé, que assumiram o
cargo de pai de santo. Joãozinho da Gomeia era declaradamente
homossexual, e ao que tudo indica, nunca escondeu suas escolhas por
pessoas do mesmo sexo. Em depoimento, Binon Cossard, evidencia o
posicionamento de Joãozinho da Goméia sobre sua vida afetiva.
A fama de Joãozinho era mais agitada que ele próprio. Sei apenas que tivera, quando jovem, uma ligação com um homem que se chamava Miranda. Parece que houve um pacto entre eles: Quando um morrer, o outro será chamado. Miranda deve ter sido um homem muito bonito. Miranda logo encontrou mulheres. Joãozinho poderia ter encontrado homens que o amassem, com os quais teria ficado mais tempo. Mas ele era tão autoritário, tão possessivo. Não permitia que saíssem. Ele os trancava. Tinham sempre que ficar a sua volta (Cossard apud Silva & Lody apud Fichte, 1987, p. 88).
Embora, as análises de Landes assumam, em alguns momentos,
um olhar extremamente tendencioso e ideológico, para com o papel de
excelência matrilinear à hierarquia do candomblé, não se pode deixar de
perceber, que as lideranças masculinas ocupantes de cargos sacerdotais, pai
de santo, em expressiva escala eram de homossexuais.
A tradição afirma que somente as mulheres estão aptas, pelo seu sexo, a tratar as divindades e que o serviço dos homens é blasfemo e desvirilizante. Embora alguns homens se tornem sacerdotes, a razão, ainda assim, é de um sacerdote para 50 sacerdotisas. Muita gente acha que os homens não devem tornar-se sacerdotes e, em consequência, um homem alcançava esta posição apenas sob circunstâncias excepcionais. De qualquer modo, jamais pode funcionar tão completamente como uma mulher (Landes, 2002, p. 321).
Indivíduos que desempenham relações homoafetivas, sempre
existiram e existirão em todas as sociedades, entretanto, a maneira de
recepcioná-los, enquadrá-los e até mesmo rejeitá-los nos respectivos sistemas
socioculturais é que se torna o fator preponderante nos estudos que elaboram
leituras compreensivas, sobre os fatores constitutivos das interdependências
relacionadas à sexualidade destes indivíduos, em suas respectivas interfaces
sociais. Landes, em suas reflexões, empenhou-se em identificar os principais
aspectos sociais, que de alguma forma, franquearam a afluência de
homossexuais masculinos ao sacerdócio no candomblé. É mesmo sugestivo o
caminho percorrido pela autora no intuito de melhor decodificar o quadro
situacional da época, frente à circulação de homens em cargos sacerdotais
ocupados até então por mulheres. Tais mudanças só poderiam ter ocorrido do
momento em que as representações simbólicas presentes na religiosidade
afro-baiana, estivessem sofrendo profundas modificações, no sentido de alterar
os valores tradicionais que permeavam a mesma.
O candomblé, enquanto estrutura religiosa se faz e se deixa fazer
por uma série de ações que expressam interdependências objetivas e
subjetivas entre indivíduos, que se mobilizam no emaranhado das teias
relacionais que envolvem crença, poder e prática de vida. Configura-se com
isto, a concepção de existir no mundo, através de referências constituídas
pelos deuses que participam efetivamente da vida dos indivíduos em
comunidade. O terreiro é o espaço privilegiado de vivência do homem com o
sagrado, lugar das ocorrências míticas onde as divindades se manifestam em
seus respectivos filhos, materializando-se momentaneamente na cabeça de
seus escolhidos.
O ato de possessão, tão abordado por inúmeros estudiosos da
religiosidade afro-brasileira, traz em si a dinâmica do movimento dos referidos
entes sagrados, que nas respectivas manifestações remontam histórias míticas
através da dança ritualística. Os intitulados deuses, que dependendo da nação
a qual pertençam são chamados de: orixá, vodun e inquice, e se comunicam
com os humanos celebrando a comunhão dos adeptos por meio do transe, que
é a trama teatral evocada pela ação mimética da dança pertencente a cada
deus incorporado. Esta atividade referendada pelo referido transe é algo
concorridíssimo nas casas de candomblé. A dança coreografada pelos deuses
em seus filhos, dependendo da força e despojamento liberados pelos
respectivos adeptos, se torna algo magnífico ganhando contorno espetacular
aos olhos da assistência extasiada pelo desempenho deslumbrante dos
referidos deuses em seus “cavalos”.
A dança ritualística se complementa com a indumentária que
representa a qualidade de cada deus incorporado e festejado no terreiro. É
nesta vestimenta que se assiste a maior transformação até então vista na
comunidade do candomblé. Joãozinho da Goméia realizou o movimento de
alteração estética na forma de vestir os deuses. Um tom de festival popular
demarcado pelo luxo e suntuosidade tornou a religião do candomblé, algo
passivo de consumo mais sistemático. Talvez como precursor de um
movimento que ocorreu anos mais tarde no estilo do carnaval carioca,
realizado por outro Joãozinho, o Trinta, que teve como máxima o famoso
jargão “pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Joãozinho
da Goméia inovou a estética do sagrado, no campo religioso afro-brasileiro.
Com a alma mergulhada em um aspecto, na cultura religiosa da igreja católica
e em outro, nas ruas, e os espaços marginais dos cabarés, bregas, etc. com
um olhar também direcionado às vitrines de novidades expostas pelos belos
tecidos, acetinados, brocados e seda pura, indumentárias, joias e contas com
fino acabamento, tudo isso enquanto reflexo das novidades parisienses que
circulavam pela ruas e becos de uma Salvador que tentava se modernizar.
Joãozinho da Goméia começou a incendiar os costumes da tradição religiosa
do candomblé, a partir desta articulação vivida em outras realidades onde
brilhos e paetês faziam parte de seu cotidiano. Criou com isto um estilo, uma
marca particular, que se em Salvador encontrou dificuldades de adesão mais
significativa no primeiro momento, foi absorvida com pompa e circunstancia na
região sudeste do país.
No Rio, o Jornalista Orlando Pimentel, que incorporava o Caboclo Cobra Coral, se faz seu introdutor. O então milionário Joaquim Rolas o como coreógrafo para o Cassino da Urca, onde ele assombra o país com exibições tão primorosas que muitos se admiram que ele não se dedique unicamente à profissão de bailarino folclórico. Sua fama aumenta a cada dia. Seu nome passa a ser assunto obrigatório em todas as conversas e de todos os jornais. Sua arte se transforma em atração turística. Repórteres de todo o mundo vêm ao Brasil para filma-lo e fotografa-lo (Siqueira, 1971, p. 60).
Talvez tenha sido a vitalidade e coragem de Joãozinho da
Goméia, expressas por sua jovialidade e despojamento, combinados com suas
fantasias e afetos em um mundo recortado por encontros inusitados, que o
auxiliou no incremento das ações radicalizadoras das mudanças na forma de
conceber e expressar o sagrado, a partir de uma estética toda própria, que se
combinou com a possibilidade da modernidade brasileira. Os fatos registrados
e acumulados ao longo de sua trajetória assim o demonstram.
Este pai-de-santo (Joãozinho da Goméia) foi um colaborador muito atuante de Carneiro no Congresso Afro-Brasileiro. Pelo menos três eventos marcaram sua paticipação no Congresso; a visita ao seu terreiro na Goméia; uma festa na cachoeira de São Bartolomeu, em Pirajá, aonde levou seu candomblé; e a exibição de um “samba africano” – que os folcloristas chamariam de “samba de roda”, realizado no Clube de Regatas Itapagipe. (...) com o tempo, entretanto, seu poder se foi impondo e sua autoridade se legitimando e, ao morrer, [...] era um pai-de-santo nacionalmente conhecido e respeitado [...]. Essa aproximação é que o levaria, de certa maneira, a promover o terreiro do jovem e discutido pai-de-santo, a ponto de incluí-lo na programação do Congresso, juntamente com os mais tradicionais candomblés da Bahia (Oliveira e Lima, 1987, p. 108).
Certamente, foi com este recorte pessoal, que Joãozinho da
Goméia despontou no cenário das ações alavancadas pela dinâmica cultural
da cidade de Salvador nos idos anos 30. Um indivíduo atento aos lugares
delineados pelos processos sociais, onde as combinações entre sagrado e
profano ofereceram as oportunidades de crescimento pessoal. Um ser
excluído, que desde dentro da periferia forjou as portas para a ascensão social,
na contraditória sociedade soteropolitana de sua época. Aqui podem ser
identificadas algumas questões no âmbito sociológico na interpretação dos
processos situacionais, onde as ações dos indivíduos pertencentes a
determinadas realidades sociais subalternizadas, forjam acessos de ascensão
utilizando-se das ferramentas disponíveis no intricado universo relacional, nas
disputas entre os próprios agentes pertencentes aos respectivos nichos
socioculturais e as esferas mais abrangentes da sociedade.
Por essas e outras características, Joãozinho da Goméia chamava a atenção, na Salvador da década de 1930. Ele não passou despercebido aos olhos de pesquisadores atentos da época, como o baiano Edison Carneiro e a americana Ruth Landes, que esteve em Salvador entre 1933 e 1939. No livro Cidade das Mulheres, ela cita várias vezes o pai-de-santo de São Caetano, que ganhava prestígio rapidamente. Ao mesmo tempo, Joãozinho já despertava polêmica. Era um homem jovem, numa cultura religiosa dominada por velhas senhoras. Aos 21 anos, ele tinha seu próprio terreiro e havia formado várias filhas-de-santo, a maioria bem mais velha do que ele.
Na trilha construída para exemplificar a situação vivida por
Joãozinho da Goméia, fez-se a opção de sublinhar os meandros idealizados
pelos indivíduos em suas respectivas trajetórias, e o sentido que os mesmos
estabelecem para satisfazer seus anseios e desejos. Obviamente, entende-se
que estes só se tornam possíveis dentro do universo social, nos quais tais
agentes se encontram diretamente envolvidos. Busca-se aqui, compreender o
sentido que a vida tem para cada pessoa, e a partir desse parâmetro permear
os encaixes que cada um pode efetuar no intuito de melhor satisfazer suas
necessidades e vontades. Sabendo-se diante mão, o quão difícil se é tornar
tais questões em realidade plena. O importante é reafirmar que tais
possibilidades só são cabíveis dentro de um processo relacional com outras
pessoas, e como nos informa Elias, “e nem sempre cabe à pessoa decidir se
seus desejos serão satisfeitos, ou até que ponto o serão, já que eles sempre
estão dirigidos para outros, para o meio social” (1995).
Se em Mozart, o sociólogo alemão Norbert Elias percebeu o
sentimento trágico no percurso do referido músico e compositor, “de uma
estrutura maníaco-depressiva com características paranóides”, as quais se
ampliaram ao longo de sua vida demarcada por desilusões, já em Joãozinho da
Goméia é possível vislumbrar o oposto disto. Em se tratando das afetividades o
personagem analisado neste texto, se destacou de maneira extrovertida e
ganhou expressão diferenciada nas teias das relações sociais de seu meio. As
insatisfações pessoais evidenciadas por Elias sobre Mozart adquirem
contornos que se evidenciam na própria fisionomia corporal, identificados pela
ausência mesmo da beleza física.
À primeira vista, seu rosto era pouco sedutor; é possível que desejasse um rosto diferente quando se olhava no espelho. O círculo vicioso inerente a tal situação ocorre quando o rosto e o físico da pessoa estão distantes de seus desejos e despertam desprazer, em parte porque algo de seus sentimentos de culpa de sua secreta aversão por si mesma, neles se expressa (Elias, 1995, p. 14).
Em se tratando da leitura comportamental verificada na
personalidade de Joãozinho da Goméia, existem fortes indícios de uma
identidade refletida no próprio grupo social ao qual pertencia. Ele representava
de certa maneira aspectos percebidos na cultura afro-brasileira, onde o sentido
de celebração da vida é algo marcante, e que se faz demonstrar em termos da
religiosidade na concretude do festejo, o qual caracteriza devoção pelo ato de
louvar os deuses, estes signatários da própria possibilidade de existência
humana. Então, o sentido de celebrar a vida através da festa é algo pertinente
ao sistema religioso difundido pelos afro-brasileiros, sendo o candomblé um
desses espaços privilegiados.
Como Rita Amaral apontou (1992), o ethos festivo que marca as religiões afro-brasileiras é um forte elemento propiciador do caráter lúdico presente na cultura nacional, principalmente quando se considera o papel estrutural que a festa desempenha tanto no contexto sagrado dessas religiões quanto fora dele (Silva e Lody, 2002, p. 165)
Se a festa fornece a materialização dos meandros subjetivos
pertinentes ao campo religioso afro-brasileiro, é nela que o candomblé efetiva
procedimentos de visibilidade cultural onde; a dança, vestimenta, indumentária,
etc. podem se tornar bens de consumo. Ao compreender tal realidade,
Joãozinho da Goméia não se contentou em exercer somente a prática religiosa
apenas no espaço do terreiro. A reprodução desta festa para um público
externo ao mesmo, não muito interessado em consumir a religião em si, mas a
de somente buscar um bom espetáculo, resultado da bela apresentação que a
performance dos deuses incorporados em seus adeptos proporciona, fez de
Joãozinho da Goméia o verdadeiro promoter do candomblé em Salvador e
mais adiante, em todo território nacional. O somatório de sua fantasia, que se
expressou particularmente por sua beleza físico-corporal e sagacidade, e o
contexto sociocultural verificado na década de 30 do século passado, onde
determinados setores da intelectualidade buscavam registrar o movimento da
cultura popular brasileira, foram poderosos ingredientes que auxiliaram a
montagem do personagem, que conseguiu minimizar o caráter periférico e
marginal ocupado pelos setores da cultura popular, identificados com a
população afro-brasileira.
E não tardou para que a expressão artística e religiosa de Joãozinho passasse a se fundir em termos de práticas que muitas vezes se sobrepunham em espaços profanos e sagrados. Recuperando elementos coreográficos das danças rituais dos orixás, fez com que elas ganhassem outros palcos e públicos. Valores da vida sagrada ganharam formas expressivas alternativas, mostrando que seus significados poderiam ser estendidos para além dos limites preconizados pela tradição ortodoxa, que via nessas exibições uma transgressão aos costumes hierarquizados
dos terreiros. Enfim, estabeleceu pela expressão artística uma continuidade de sentido entre coreografia religiosa africana que praticava no barracão de seu terreiro e a dança que executava nos palcos, entre os quais o do “Teatro Municipal do Rio de Janeiro” (Silva e Lody, 2002, p. 164).
A recorrência aos traços da beleza encontrada no corpo de
Joãozinho da Goméia, a referência constitutiva de um padrão estético
irreverente, luxuoso, todo próprio deste pai de santo, mostram o significado
impactante do modelo apresentado por este personagem, o que não podia ser
omitido, nem mesmo pelo mais ardoroso crítico e opositor.
Tomando-se de empréstimo alguns pressupostos conceituais
fornecidos por Elias no que se refere a experiência dos indivíduos e suas
vicissitudes nas relações sociais, tem-se em Joãozinho da Goméia um
significativo representante da incompletude educacional rígida, algo necessário
na estruturação de uma personalidade genial como a de Mozart. As condições
materiais e simbólicas que comportaram a formação intelectual de Joãozinho
da Goméia desde sua tenra idade, não foram, em hipótese alguma, favoráveis
à efetivação de um indivíduo socialmente vinculado a um expressivo capital
cultural. A escassa bibliografia deste personagem deixa um tanto quanto
evidente que, sua trajetória de vida não exemplifica nenhum ser de
excepcionalidade fenomenal. Era uma pessoa de traços comuns, como os
muitos indivíduos iguais a ele, em sua humilde de origem social, cultural e
econômica. Ora, então o que vem despertando de certa forma os estudos
pertinentes à trajetória de Joãozinho da Goméia? Talvez, pela tentativa em se
buscar a reconstituição de seu percurso nitidamente intrépido, que se foi
impondo gradativa e irreversivelmente nas zonas limítrofes entre povo e elite.
Reconhecimento se torna a palavra-chave nas aproximações
possíveis, em termos de imaginação sociológica, entre o percurso de Mozart e
Joãozinho da Goméia. Sim, o reconhecimento artístico por ambas as partes foi
algo perseguido pelos citados personagens, que, cada um ao seu modo e
circunstância situacional, empreenderam ações voltadas para a materialização
dos desejos imaginados. Nenhum dos dois se via efetivamente arrolados nas
titulações que suas respectivas sociedades lhes impunham. Mozart negava o
lugar de aristocrata consentido e Joãozinho da Goméia negava o lugar de
marginal. Embora, tenham histórias de vidas totalmente diferenciadas histórica,
cultural e economicamente, em seus desejos, anseios e vontades, algo em
comum movimentava suas existências: a fantasia emanada pela produção
artística.
Na especificidade deste trabalho a fantasia de Joãozinho da
Goméia, interessa com mais vigor, pois se transfigura na beleza e leveza do
seu ser naquilo em que foi capaz de realizar, em termos de identificação
enquanto artista de teatro, bailarino, cantor e ator. dentre outras possibilidades
artísticas. ionais dos corpos estruturados junto à sociedade vigente a época.
Havia o pertencimento de classe em Mozart do qual sempre se identificou
enquanto burguês de classe média. Embora tenha aprendido desde cedo a se
comportar com a polidez cortesã. Estes aspectos estão resumidos na
identificação proposta por Elias.
A reação do próprio Mozart a esta situação era multifacetada. Conceitos em preto e branco, como “amizade” ou “inimizade”, são inadequados aos conflitos e tensões que aqui nos interessam. Mozart viveu a ambivalência fundamental do artista burguês na sociedade de corte, que pode ser resumida na seguinte dicotomia: identificação com a nobreza da corte e seu gosto; ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha (Elias, 1995, p. 24).
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