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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÃMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) 02-4893 CDD-306.43 Brandão, Carlos Rodrigues A educação como cultura I Carlos Rodrigues Brandão. - Campinas, SP : Mercado de Letras, 2002. Bibliografia. ISBN 85 85725-98-2 1. Antropologia educacional 2. Cultura 3. Cultura popular 4. Educação básica 5. Sociologia educacional I. Título. índices para catálogo sistemático: 1. Antropologia educacional: Sociologia 306.43 2. Cultura e educação: Sociologia 306.43 3. Educação como cultura: Sociologia 306.43 2002 capa: Vande Rotta Gomide preparação dos originais: Maria Clarice Sampaio Villac fotos do autor em viagem pela região de Mixteca - Nahua - Tlapaneca México, 1966. DIREITOS RESERVADOS PARA A LíNGUA PORTUGUESA: © MERCADO DE LETRAS EDIÇÓES E LIVRARIA LTDA. Rua Barbosa de Andrade, 111 Telefax: (19) 3241-7514 13073-410 - Campinas SP Brasil www.mercado-de-Ietras.com.br E-mail: [email protected] PHllhldll" tuprlldllção desta ohra IIttlll ~ f:ltlll1ll/n'.,AII [uúvlu do Pdüor.

A educação como cultura - Carlos Rodrigues Brandão

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)(CÃMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

02-4893 CDD-306.43

Brandão, Carlos Rodrigues

A educação como cultura I Carlos Rodrigues Brandão. - Campinas, SP :

Mercado de Letras, 2002.

Bibliografia.

ISBN 85 85725-98-2

1. Antropologia educacional 2. Cultura 3. Cultura popular 4. Educação

básica 5. Sociologia educacional I. Título.

índices para catálogo sistemático:

1. Antropologia educacional: Sociologia 306.43

2. Cultura e educação: Sociologia 306.43

3. Educação como cultura: Sociologia 306.43

2002

capa: Vande Rotta Gomidepreparação dos originais: Maria Clarice Sampaio Villac

fotos do autor em viagem pela região deMixteca - Nahua - Tlapaneca

México, 1966.

DIREITOS RESERVADOS PARA A LíNGUA PORTUGUESA:

© MERCADO DE LETRAS EDIÇÓES E LIVRARIA LTDA.Rua Barbosa de Andrade, 111

Telefax: (19) 3241-7514

13073-410 - Campinas SP Brasil

www.mercado-de-Ietras.com.brE-mail: [email protected]

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APRESENTAÇÃO- A menina que lê -

Certamente a menina lê. A corda frouxa entre a mão direita e o pescoço

do hui - ou será um búfalo? - sugere que não há esforço e, menos ainda, perigo,

111111101'ao animal seja imenso e ela pequena. A quietude do olhar do bicho não

dolxa dúvidas: apesar do longo chifre ele é manso e mais do que apenas

dOlllClslicado, é doméstico. Não fosse assim, quem o entregaria aos cuidados de

1IIIIamenina pequena e descalça, que lê enquanto trabalha e caminha? Pois, peloIIIIIIIIISonquanto atravessam a trilha ao longo do canal, parece nem ser necessário

plllnlal' í1I0IlÇÜOao caminho e ao trabalho e, por isso, é possível ler.

( l ()I 1rar dela é atento e como conhece de cor a trilha e a mansidão do bicho,

1""10 !:IIIH:Olllrar a atenção em ler e, assim, aprender o que não sabe. Criança e

1IIIIII'IlIIOSilpossivelmente pobre, estaria a menina apenas vendo as figuras de

111111\I'Clvislíl0111quadrinhos que também lá no Vietnã, em 1977, fazia as delícias

.til" 1 ,rllI\I{.:/lSdo 11111país devastado por guerras de libertação? Parece que não. O\!/ll/1I1'IIIIISOhrtuu:o das folhas sugere um caderno ou, quem sabe? uma cartilha.

" 111"111111111\. I livmsa dos dois outros meninos, que montados num segundo boi1111/11111/1vlujmn n luzruu do trnhulho o prazo r do pussolo, iI 1I10IliIlilparece, utontu,11I1111dlll.Illliz dll Iruhnl 110o i111nrvn 10do OIlSi110.A Ia rd Il (,ca 11I1iI.iIguorl"íl il(:a\JIlII

111(.qllllllclll'i' IIcrialll.:as li hllis plldlllll r.uuvivor 11111paz,

Quis que essa cena simples de um cartão-postal que um amigo a 1\ 11'0-

pólogo enviou de Paris fosse a capa e a sugestão do tema deste livro: u

educação como cultura. Dificilmente outra imagem seria mais sugestiva doemaranhado de questões, entre uma coisa e a outra, que procuro desembara-çar, não para que o novelo da ordem das idéias se recomponha aqui. Existirátal ordem em algum lugar? Mas para que pelo menos alguns fios da meadapossam ser descobertos, separados e, então, outra vez, reunidos.

Puxando por uma corda um boi, ser da natureza, mas bicho manso ecativo, logo a meio caminho entre ela e omundo humano da cultura, a meninaICJ. Mergulha a atenção em um universo misteriosamente humano que, inin-Ioligível a qualquer outro ser da natureza, transforma sinais - como o berroque um boi dá a outro, ou como a água do canal que reflete as árvores e indicaque é dia e há luz - em símbolos. Aquilo através do que se lê; aquilo com queos homens trocam entre si, nas trilhas difíceis da vida em sociedade, asmonsagens e os significados que tornam, ao mesmo tempo, tal vida, social, e<Ideles, humana. Isto é, vivida como e através da cultura.

Atenta aos estudos mais do que ao trabalho, a menina mergulha, talvez~inlllsaber, no universo do significado e aos poucos se apossa - outro caminho'1111lpercorre - do poder de viver em um contexto de vida que o trabalholnuuano realiza e o saber torna significativo. Algo que sobre a própria vidaqlHla natureza dá ao boi (que também trabalha) e a ela (que trabalha e sabe)111:111Ima transforma e significa.

O que é a cultura? Que relações existem entre ela e a vida social? Comolilluulrotecern a cultura e a educação - ela própria uma complicada trama de1'l'lIlicas, sistemas e significados que apenas incide de um modo mais moti-VII!lOsobre algumas dimensões da cultura e seu sentido? Eis o que os estudostlllldo Iivro procuram refletir, mais do que responder.

Exisle aqui a vontade de uma antropologia da educação, não a sua111111izal/lo. Não acredito que estes estudos, ora fragmentados, ora repetitivos!IIIIIIIOflor que escrever outra vez?), realizem a tarefa já urgente de esclaroccr11'11I~;t()OS 1:11jo cOlllwcimon lo desvendaria problemas tão in lcnsamont [) vivi-til l/i 1'"11)o!lllcador cio nosso tumpo, I:; preciso roconhenor quo para lanlo sflo1I1I1.IIIi/illriol;pnsqllÍslIs do CaIIlIH),iIlVIlSligill.:I)(lSdll Ioorins, n IIlOlllOlllosdo

diálogos entre o educador e o antropólogo, que, mal iniciados ainda, seriamde uma tão fértil utilidade para um e outro.

Há aqui, sem dúvida alguma, uma repetição de perguntas, análises,dúvidas e palavras, de um artigo para o outro. Mas é que o tempo todo, duranteos últimos anos, parece que tudo o que fiz foi repetir as mesmas coisas, demodos diferentes, às mesmas pessoas e a outras, com quem dialoguei dentroe fora do Brasil.

Em um seminário sobre "educação para a paz e os direitos humanos",pareceu ser útil reconstruir toda uma trajetória da idéia e dos usos da culturae de cultura popular no Brasil dos anos 1960, para depois refletir sobre osignificado de uma educação que se propõe armada em favor de realidades esímbolos tão controvertidos como liberdade, paz e justiça. Em um outroseminário a respeito de pesquisa participante, foi urgente retomar a questãodo sentido do saber, logo, do significado social da cultura, para perguntar se,afinal, inventamos juntos um instrumento ou uma farsa. Já em um outrocongresso onde os participantes discutiam as relações entre a pesquisa, a artee a educação de crianças e adolescentes, foi preciso voltar ainda à questão dacultura para discutir sobre que crianças, de que mundos, se estava falandoali. Finalmente, em uma mesa-redonda da última Conferência Brasileira deEducação, sobre a educação popular no continente, pareceu-me intriganteretomar algumas peculiaridades corriqueiras e misturá-Ias com outras, cujaanálise raramente é feita, para de novo refletir o sentido de uma educação quetantos anos depois insiste em ser ainda "popular".

O último estudo é um rascunho e peço que seja lido, por quem tiverchegado até lá, como tal. É uma versão apenas um pouco mais arrumada dasanotações que fiz sobre a leitura de alguns autores utilizados nos estudosanteriores. Diálogos com o outro. Momentos em que, antes de começar a escrever,afrouxo a corda do bicho ainda selvagem que é o meu próprio saber sobre oassunto e, como a menina do Vietnã, leio e aprendo do que os outros sabem.

De resto, ontem um presidente morreu. Hoje a vida continua.

Carlos Rodrigues BrandãoCampinas, 22 de abril de 1!JIHi

CULTURA: O MUNDO QUE CRIAMOSPARA APRENDER A VIVER

o MUNDO QUE CRIAMOS ...

Meu corpo é a natureza de que eu sou parte transformada no ser de11111<1pessoa: eu. Refletida nas águas calmas e límpidas de um pequeno lago,11unlureza devolve a ela a sua imagem. Ela se vê através de meu corpo e cabeI1 II('IS- ela e eu - sabermos distinguir o que faz inteiramente parte de algumadil1wllsão de seu domínio de existência no planeta Terra e no Universo, e oqlll! jíÍ é, também, parte e partilha de uma dimensão da Vida. Pois quando os1I1I:tISolhos me vêem refletido nas águas claras do lago, é ainda o mundouuí urul quem se revela a si mesmo através de um de seus seres. Mas nem1111110,porque, ser humano, não consigo, como os outros animais com quem1:111111,arloo mistério de "estar vivo" aqui e agora, ver sem perceber, e perceber~illIllpousar. E a idéia que de mim me faço ao me ver refletido já pertence a11111outro domínio do Mundo que comparto com a pequenina ave quo

l'III'Vlllltlll'avem ao mesmo lago, e do galho de uma árvore se olha e ao lago,LlIIIIO011.COIllOou'? Entrovistos por UIl1lnstanto pelos nossos olhos, 1l0SS0S1III'jlllSpllrlllllcolll ílOplano nulurnl dos sinnis. S.IO o 11110siio, COIllOíI .ígllil oII rll~\(I,1111li/liI () 11""dI! si II111SII1I1Sdllli 11VIII'/I 11"""1 IISVI\ (;lilllli vtl, Mus ()

que eu penso do que vejo salta do sinal ao signo e dele ao símbolo. E exige demim o que dispensa na ave, requer palavras, códigos complexos de sentidose de significados, uma linguagem articulada por meio da qual em mim e paraos meus outros a sensação e o sentimento aspiram ganhar sentido. E até maisdo que isto. Eu me vejo como um ser da natureza, mas me penso como umsujeito da cultura. Como um alguém que pertence também ao mundo que aespécie humana criou para aprender a viver.

De repente ave voa e vai embora, muito mais e muito menos sábia do queeu. Quem saberá? Ela retoma ao seu ninho como um ser que habita um absolutopresente e nada sabe e nem pensa, ainda e nunca, a respeito de sua própria morte.E quando ela chegar, a ave de súbito fecha os olhos, cai do galho e volta à terra,sem saber e sem pensar de onde veio e para onde vai. Eu não. Eu carrego a minhamorte a cada instante, porque aprendi a me pensar no tempo e pensando o tempoo tempo inteiro de minha vida a vivê-Ia. Carrego na antevisão de um qualquerdia, amanhã, a minha morte, assim como levo pela vida afora a experiênciahumana da Vida, e a minha vida na memória carregada de nomes e de cenas, decenários e de símbolos, de palavras e frases. De tessituras sempre inacabadasonde se entrelaçam gestos e seus arremedos de sensibilidades, sentidos e designificados gravados nos genes que me habitam, no corpo que eu habito e,imagino, no espírito onde acredito que esteja a parte mais etérea e - quem sabe?- imortal, de uma pessoa chamada Carlos.

No espírito ou, simplesmente, nisso a que damos o nome de memóriae que, para alguns, não é mais do que uma alquimia de nervos, conexões nocérebro e alguns aminoácidos articulados durante algum tempo entre asenergias e matéria efêmera dos seres que somos. Mas que outros acreditamser uma das dimensões para além da matéria e dos seus limites. Ali, onde osfios da Vida transformados em memórias, em palavras, em gestos de senti-mentos recobertos do desejo da mensagem, recriam a cada instante o mundoque entre nós inventamos desde que somos seres humanos, e com esteestranho nome: cultura. Cultura, uma palavra universal, mas um conceitocientífico nem sempre aceito por todos os que tentam decifrar o que os seusprocessos e conteúdos querem significar, e que misteriosamente existe tantofora de nós, em qualquer dia de nosso cotidiano, quanto dentro de nós, sorosohrígndos a aprondor, desde crianças (J pnla vídn afora, a cornprnnndnr IlSslIas

várias gramáticas e a "falar" as suas várias linguagens. Várias, porque bom

sabemos que esta com que nos escrevemos uns aos outros, em uma línguu

qualquer dentre as milhares que ainda habitam nossos mundos, é apenas umanutre tantas outras.

Tal como outros seres vivos com quem compartimos a mesma casa, oplaneta Terra, fomos criados com as mesmas partículas ínfimas e com asmesmas combinações de matérias e de energias que movem a Vida e os astrosdo Universo. Algo do que há nas estrelas pulsa também em nós. Algo que,«:01110o vento, sustenta o vôo dos pássaros, em uma outra dimensão dauxislência impele o vôo de nossas idéias, isto é, dos nossos afetos tornados osII0SS0Spensamentos.

Não somos intrusos no Mundo ou uma fração da Natureza rebelde a,,111.Somos a própria múltipla e infinita experiência do mundo naturalrnnlizada como uma forma especial da Vida: a vida humana. Da mesmarunnnira como boa parte dos animais, somos corpos dotados da capacidadedo reagirem ao ambiente em que vivem e onde reproduzem, enquanto isto éI'wlsívnl, a vida individual e coletiva de sua espécie. De se locomoverem nele11111lunção de mensagens que captam através dos sentidos e também de atos1'01'moio dos quais deixam a sua marca momentânea em seu mundo. Umiulihri faz isto. Nós também. Alguns macacos da Amazônia que, mais felizesdll II(,S,saltam de galho em galho na floresta, enquanto arrastamos pelo chão11111corpo que precisou de alguns milhões de anos para aprender a se"'illilihrar precariamente sobre duas pernas, são biologicamente diferentes de1111110111npenas algo inferior a 3% da composição da arquitetura das cadeiasti" IINA. No entanto há nesta mínima porcentagem toda a diferença.

Mas será ela tão grande assim?Faz alguns anos Claude Lévi-Strauss, um conhecido antropólogo euro-

111111q\lo so iniciou como pesquisador de campo entre povos indígenas do111111111(:oJllral, foi convidado pela Assembléia Francesa a escrever algo para11111I'IIptlllS1I1'o conceito o a idéia de liberdade, tal como eles estão há alguns'HU IIlwl 1111Coustilulçáo da França. Num texto de resposta que veio depois a111111'II11liclldo11111lIlll llvro, 010COJ\J(J(,:a dizendo quo lIf10Iorin nada 11ucros-11111\111,LIIS(I(I I:OlIl:tliloIl ()SSIlIISpl'(l(:oilosdOVIISSll11lIHIJ'lJlilllIlCIIJ'II() âruhitu

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do contrato social.' Mas logo a seguir ele aproveita a ocasião para perguntar

aos franceses e a todos nós, se não seria este o momento de realizarmos urna

reviravolta corajosa de identidades, com todas as suas conseqüências. Ao

invés de continuarmos a nos definir como "seres morais" ou corno "sujeitos

sociais", não teria chegado a hora de nos identificarmos corno "seres da Vida"?

Não é este atributo o mais radical, o mais verdadeiro e também o mais

generoso em nós e entre nós e tudo o mais que a habita: Vida?

Se isto for verdade e se isto for possível, então o que era antes um

reconhecimento de desigualdades dado pela disjunção entre nós, seres hu-

manos e todos os outros seres da Vida, passa a ser um sinal de conjunção

entre seres irmanados em urna igualdade essencial, e apenas diferentes dentro

das infinitas alternativas que a Vida abre e faz existir.

E entre nós, seres da natureza alçados ao mundo da cultura que nós

próprios criamos, deve existir, entre todas, urna diferença ainda mais essencial.

Com urna enorme variedade de vivências disto, em todos os outros seres vivos

podemos supor que existem formas de uma consciência reflexa da relação entre

o ser e o seu mundo. Eles sentem, eles percebem, eles lembram, eles sabem, eles

agem. Nós também. Mas nós tivemos que aprender a entrelaçar cada urna dessas

coisas com todas as outras, de tal maneira que precisamos fazer um enorme

esforço para conseguirmos viver cada uma delas em sua vez, sem a presença do

poder das outras. Corno é bom sentir sem pensar. Mas corno é difícil!

Abra um livro de "técnicas de meditação" e você verá corno isso é

verdadeiro. O que se sugere ali - sobretudo nos mais budistas e nos mais

tibetanos - é um enorme esforço de anos e anos de "treinamento da mente".

E para quê? Para que ela aprenda a parar de "mentar" cada vez mais e por

mais tempo. Para que ela aprenda a deixar de fazer o que aprendeu antes, ao

longo de anos e anos de interações e estudos: pensar com palavras, refletir

com idéias. Que aquele que medita saiba treinar-se para varrer de dentro da

própria mente todas as memórias, os pensamentos, as imagens e, mais do que

tudo, os desejos do corpo e do espírito. Isto é, toda a ilusão do que não existe,

1. Está no livro Le Regard Éloigné, da Plon, de Paris, editado em 1983 e já com tradução para

o Português. No original o artigo recebeu o título de "Réfletions sur Ia liberté". As passagens

fi que me refiro especialmente aqui estão entre as páginas 374 o 376.

11niio ser que se queira seguir iludido em pensar que "isto" que parece quo

ux isln de fato, existe fora de nós. Para que, então, a mente descubra no vazio

,I" nada do agora um paraíso perdido chamado: absoluto presente. Um tempo

1111i( ;0, porque é vivido fora do tempo. Um momento irrepetível sem resquício

IIlglllll da maldição de vivermos sempre atrelados a urna vida em três tempos:

I) passado, o presente (o único que de fato existe, dirão lamas tibetanos e

ulguns físicos quânticos) e o futuro. Ou seja, todo um aprendizado que pode

durnr uma vida inteira para virmos a adquirir a sabedoria que sonha alcançar

o oromita solitário, e com a qual, sem esforço algum, já nasce o pássaro com

'1"0111estivemos na beira de um lago algumas linhas acima, e que nos espera

dI! IlOVOalgumas outras, abaixo.

Como não somos esses seres de frágil perfeição natural, aprendemos avIvur dentro de algo mais do que apenas o viver e o sentir. Assim, nós nos

/111111imos sentindo, corno os outros seres da Vida também. Mas nós nos

pllllSillllOS sabendo e nos sabemos pensando. E sabemos que sentimos e nos

11I!1I1imos tornados desta ou daquela emoção porque aprendemos a nos saber

IHlI"'lulo. Passamos da consciência reflexa que compartimos com o colibri eII I:11iI11panzé, à consciência reflexiva, que acrescenta um "me" e um "mim" a

11111"I!U", e que é em nós o sinal e o símbolo do habitante de um mundo onde

11I11'1'I Iria natureza é vista e é compreendida como e através de símbolos e de111)J,llilicados.O que é urna árvore para você? O que é urna ave?

Voltemos ao nosso pássaro.

Sabemos que um pássaro voa com um par de asas, e nós com o inacabável

""11 unssus idéias. Por isso ele voa com as asas com que nasceu e nós voamos11111111,';nviôos (e as asas delta, e os ultraleves, e os planadores e as espaçonaves)

qllnlllvlllllmllos. Vimos corno depois do ciclo de sua vida, no momento exato da

11111110"li! Iochu os olhos, sente o coração parar de bater, cai e volta à terra. Nós,

11111111111111',1l0Scercamos de ritos e de palavras. Lembramos uma vez ainda a vida1'11'11111,1'111,111I0Sa IlÓSmesmos, aos nossos e aDeus, dizemos despedidas e preces.

1':,1111CIIITólros olhos, o quem ou o quê de nós deixa o corpo dado também à terra

11\'111(1111'11oudo? Por quô? Mas voltemos à Vida.

~;I!SOIIlIlS mais iguais do quo imaglnamos mil quase Indo aos outros

111111111vivus COIIIquom rxuupurl imns ti '('OI'I'CI,SOlllOSdifurnntos um umn OIlII'ClIIII/H! nlwl vi vuru 111)11111111111dll 1I111111'Il:l.II11111'1110111m:Ú dadl) 1I vivur, N,",s

precisamos criar e recriar o nosso. Eles adaptam o corpo e os sistemas de vidaao ambiente onde vivem, enquanto vivem. Nós precisamos transformar onosso ambiente natural e, depois, até mesmo a nós próprios, porque somoslentos em adaptar o corpo e a vida aos padrões da Natureza. Nós e nossoscorpos feitos de argila e de sangue, feitos de minerais, de matéria orgânica etambém do gesto do amor dos pais e do sopro do espírito, somos, como omundo onde vivemos, a Natureza. Os panos com que nos cobrimos, transfor-mando o algodão ou o pelo dos carneiros, a comida que antes de comermos,semeamos, zelamos, colhemos e colocamos sobre o fogo que aprendemos aacender, são porções do todo da natureza transformada não apenas em coisasde utilidade, mas em seres de sentimento, de sentido, de significado e desociabilidade. Logo, em um momento de uma cultura.

Ao contrário dos outros animais, surgimos no mundo como umaespécie disposta a viver em todos os ambientes do planeta e a comer de tudoo que seja digerível em nossos corpos. Somos praticamente a única espécieonívoro-oportunista, e é assim que alguns paleontólogos nos definem. Emprincípio podemos e desejamos comer tudo o que encontramos. Mas comalgumas diferenças notáveis. Pois aprendemos com o passar dos anos a lidarcom os seres da natureza, transformados em dieta alimentar, não só como algobom para comer, mas como alguma coisa boa para pensar. Aprendemos,primeiro, a transformar o que ingerimos, e o fogo teve aí um lugar essencial.Todos os bichos comem cru, fresco ou apodrecido. Nós criamos escolhas eprocessamos o cru para ser também o cozido, o assado, o frito e assim pordiante. Aprendemos com o tempo - e cada cultura humana faz isto segundoos seus termos e de acordo com os padrões de sua própria lógica do sentir, dopensar e do agir - a lidar com os alimentos naturais como entidades de umprofundo valor simbólico. Assim, em um almoço entre amigos comemos acomida quente e boa à volta da mesa, enquanto trocamos entre nós asmensagens. Sentimentos, evocações, idéias e valores de vida que nos dizemosuns aos outros através do que comemos. Através do modo como comemos eatravés do que criamos como preceitos de códigos de normas, como a rotinade lodos os dias, como a celebração única num ano ou na vida, em volta damosn em que nos reunimos para saciar a fome dos nossos corpos, e para darI'IlsposlHs i\ Iuruo do símbolos (l do sonl idos do afnto n vida quo lrunsfnrnunn

rilualmente uma "comida" em uma "refeição" e uma refeição em uma "Iesta",Triste é comer só, mesmo quando a comida é boa, e a bebida amarga é dor:n,

quando entre amigos queridos.

Pois afora o que fazem durante breve tempo algumas mães animais com«ISseus filhotes, somos a única espécie que junta porções comestíveis da naturezaC! leva o alimento para outras pessoas. Somos os únicos que, por felicidade ou1H li'desgraça, aprendemos a fazer de fragmentos do meio ambiente transformado«!l1Ialimento, urna porção de coisas entrelaçadas e, de vez em quando, contradi-lórias, quando "isto" poderia ser uma coisa só. Pois tal como os panos com quelUIScobrimos ou as casas onde nos abrigamos e reunimos, fazemos da comidaqlH:nos mantém na Vida: meios de sobrevivência, bens de uso, bens de troca,I:IlII,iriode interações, símbolos, palavras e mensagens.

E algo semelhante acabamos realizando conosco mesmos. Pois sendo,«:111110lodos os outros seres vivos, sujeitos da natureza, acabamos nos tornan-dll uma forma da natureza que se transforma ao aprender a viver, Sem cessarI1IHlJIIexceção, entre todas as comunidades humanas do passado e de agora,trnnsformamos seres do mundo de natureza: e unidades de uma espécie:tudividuos, em sujeitos do mundo da cultura: pessoas. Em seres de direitos eti" dovores e, portanto, agentes culturais e atores sociais. Somos uma pessoa1111111111duplo sentido. Ao conviverem conosco em cenários da cultura, como1111111[umília nuclear, uma parentela, um grupo de idade ou de interesses, umallril,lIllI.ao longo dos sucessivos círculos dos seus ciclos de vida os nossos111111lI; n as nossas filhas aprendem, pouco a pouco, a internalizarem não/jlllllflllll~"coisas" aos pedaços, como habilidades, condutas, saberes e valores.1':1111/uprondern a realizar interações e integrações cada vez mas complexas de11 /llIlm Iurlo isto. Assim sendo, um indivíduo humano é uma pessoa social'11111111111inlogru e possui dentro dele urna experiência tornada individual do11111 1.lI1111J'HIdo sou próprio mundo de vida cotidiana.

I': "Ios são pessoas humanas (mas o "humano" aqui é redundante)1IIIIqllll1111viverem em seus mundos sociais, saem continuamente de siIIIIIIHIIIHIfi dm;ujalll 011so obrigam a interagir com outras pessoas em mundos""1111'111c:ll!lllrllllllollln uslnhnluuido», Em diferontos cenários do lrocas o dn111111"Iu:ldudns I:lIjos utorus, uuloros, sohn: as leis da nnl urnza IIIHJfazo/ll do

11111111dCIIIuu huuis 1I1I1I:IIIlSo f{\lIIIIUS,IHIIISIIIII,crium (l udmluislruu] I'lIgl'IIS

sociais que nos transformam em maridos e esposas, em irmãos e primos,sobrinhos, filhas e afilhadas. Eis a razão pela qual alguns estudiosos da pessoahumana e da cultura consideram esta obrigação criativa de construção socialde sistemas de atribuição de sentido e de orientação das condutas interativasentre categorias de pessoas, como o momento fundador da própria cultura.

A Vida e a consciência da vida são o que ela própria ou um deus nosofertaram. A cultura e o que fazemos dela, nela e, em e entre nós, através dela, Vida.A cultura é o que devolvemos a Deus ou à Vida como a nossa parte no mistério deuma criação de quem somos bem mais os persistentes inventores do que aquelesque vieram assistir ao que fizeram antes de havermos chegado. Os outros seresvivos do mundo são o que são. Nós somos aquilo que nos fizemos e fazemos ser.Somos o que criamos para efemeramente nos perpetuarmos e transformarmos acada instante. Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado, quando tomamosas coisas da natureza e as recriamos como os objetos e os utensílios da vida socialrepresenta uma das múltiplas dimensões daquilo que, em uma outra, chamamosde: cultura. O que fazemos quando inventamos os mundos em que vivemos: afamília, o parentesco, o poder de estado, a religião, a arte, a educação e a ciência,pode ser pensado e vivido como uma outra dimensão.

Tal como a natureza onde vivemos e de quem somos parte, também acultura não é exterior a nós. A diferença está em que o "mundo da natureza"nos antecede, enquanto o "mundo da cultura" necessita de nós para ser criado,para que ele, agindo como um criador sobre os seus criadores, nos recrie acada instante como seres humanos. Isto é, como seres da vida capazes deemergirem dela e darem a ela os seus nomes.

Castores fazem diques na água. Formigas constroem cidades debaixoda terra e abelhas realizam há milhões de anos verdadeiros prodígios dearquitetura. Mas nestes animais e em outros o "fazer" não é um "criar". Ele éuma extensão instintiva das leis de comportamento da espécie impressas nocorpo de cada indivíduo dela. Quando os primeiros seres de quem descendemosviviam a esmo, na beira dos riachos, já os pássaros eram construtores de sábiosninhos. Mas hoje os seus seguidores fazem, da mesma maneira, os mesmosninhos. Nós inventamos sobre lodos os quadrantes da Terra uma variedadennnrmu do hahillll,:úos o nnxaiamns 110OSpOI,:Osom ar o SOI1lgruvidudn, i1SprillllliJ'IIH11I()l'lllliuHrmll dll pluuotu.

Ao emergirmos com a nossa consciência reflexiva - e nossas inteligên-11m; múltiplas - do signo e do ato ao símbolo e ao significado, logo, ao gesto,1!tINI:1,Iirimos que o importante não é tanto o que transformamos materialmen-111dll natureza. O que importa é a nossa capacidade e também a nossa1111111idade de atribuirmos significados múltiplos e transformáveis ao queIIIZIIIII()S,ao que criamos, aos modos sociais pelos quais fazemos e criamos e,líuuhnonte, a nós mesmos significado. Pois para a ave que pousa num galhodll urvoro, a árvore é o galho do pouso, é a sombra, o abrigo, a referência noI1Hplll,:()o o fruto. Para nós ela é tudo isto e é bem mais. É um nome, umalmuhrunça, uma tecnologia de cultivo e de aproveitamento. É uma imagemLIII'I'II).\adade afetos, o objeto da tela de um pintor, um poema, uma possívelI11111'11d<Ide um deus ou, quem sabe? uma divindade que por um instantedividI! com um povo indígena uma fração de seu mundo.

I';isporque em termos bastante atuais, falamos que a cultura está mais1111qlll! Il no como nós nos trocamos mensagens e nos dizemos palavras eIdl!llI~;entre nós, para nós e a nosso respeito, do que no que fazemos em e~IIIII'"li IIOSSOmundo, ao nos organizarmos socialmente para viver nele eIljlll~;I()l'Il1ú-lo.Eis um belo sentido da idéia de nossa própria liberdade. AoIIIVIIJ'III()Sa vida do reflexo à reflexão e do conhecimento à consciência, nós11111I~Huntumos ao mundo o dom gratuito do espírito. Com ele, nós nos tornamos11111dIIII'I!Sdo sentido e criadores de uma vida regida não pela fatalidade biológicadll lllipf!cin,como entre nossos irmãos animais, mas pelo poder de escolhaIllIfll:lllllmlHmtelivre de nossos próprios símbolos, de nossos tantos modos devhlu, d" nossas múltiplas identidades e das buscas de aprendizado de sentimen-IIIIi11cllIsignificados a serem dados à teia de "tudo isto".

I'; íuzomos isto, ao longo da trajetória da história humana e em cadalunluulu da vida social de cada grupo humano, de uma maneira afortunada-1111111111iuull iplu. De um ponto de vista biológico somos seres com mínimas,dllfll'llll',lvnis diforonças. Mas as nossas culturas não. Elas foram e continuam/tlllld" i11I11I1I!J'asont re os tempos da história e os espaços da geografia humana.1'1li/! 1I11111()SíI única espécie que, munida de um mesmo aparato hiopsicológico,

1111Illvnfi do pruduzlr IIIll modo único do vida, ou mesmo mannirns do SOl'1111111111illllllllhillllllS,gm'allllls I]IHISIlincunlúvnis Iormns do SOl'o do vivnr 111'1111"1!lI! cI" lruuunrns VlIl'iodlllll!Sdll lipos dn r.ulturus hllIlIHIIiIS.

PARA APRENDER A VIVER ...

Damos hoje em dia bastante mais importância aos processos sociais da

cultura do que aos seus produtos deixados na esteira de um dia de vida de

uma comunidade, ou ao longo da história de um povo. Se, de um lado, a

cultura de uma aldeia indígena da Amazônia ou de um grupo humano

habitante de uma grande cidade não se reduz aos seus produtos materiais de

criação, de outro lado ela também não existe apenas "na mente das pessoas",

sob a forma de algum "inconsciente coletivo" ou de uma "abstração de

comportamento". Subjetiva (dentro de nós) e igualmente objetiva (entre nós),

a experiência social da cultura constitui todo o complexo e diferenciado

aparato de ordenação da própria vida social. Aí estão tanto os cantos e danças,

os ritos e crenças de um povo, quanto os seus "mapas simbólicos" de roteiros

de preceitos e princípios que configuram os diferentes códigos e as gramáticas

dos rituais e jogos de trocas de bens, de pessoas e de mensagens com o que

recriamos a cada dia a experiência da reciprocidade. O que, na verdade, se

realiza não tanto de idéias e de ideais de vida, mas de cotidianas negociações

entre pessoas e entre categorias de pessoas.

Antes de mais nada viver uma cultura é conviver com e dentro de um

tecido de que somos e criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as cores o

desenho do bordado e o tecelão. Viver uma cultura é estabelecer em mim e

com os meus outros a possibilidade do presente. A cultura configura o mapa

da própria possibilidade da vida social. Ela não é a economia e nem o poder

em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico em que uma coisa

e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários que

representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações

cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida social

possível e significativa. Quando linhas acima eu lembrava de passagem a

maneira como o simples "comer" transforma-se, em nós, em um extraordiná-

rio leque de alternativas de experiências de comunicação entre pessoas e a

nutureza, entre pessoas e pessoas, umas diante das outras, e entre pessoas e

a trnmn de seus símbolos e sentidos, eu pretendia assinalar apenas uma das

d imunsôus om que aprendemos a codificar diferentes dimensões de relacio-

1lIIIlH1I1IIISIl SflllS sil-\Ilil'iclldos, pura félzor do 11111"ulo unl urul", COl1l0() comnr

() Ioljão, um rico e não raro difícil gesto social, como reunir pessoas à volLa du

1l!llSaao meio-dia de um sábado para celebrar com elas o aniversário da esposa

utruvés de uma feijoada.

Quando falamos de cultura erudita e de cultura popular, de culturasillrlfgrmas,de cultura metropolitana, de cultura escolar ou de dilemas da cultura,uís-moderna, estamos apenas dando nomes diferentes a evidentes diferenças de

n uulre pessoas através de suas culturas. Em boa medida, é este o assunto deste

livro escrito em dois tempos separados por cerca de vinte anos.

E a sua razão de ser é também a evidência de que tudo o que se passa

1111âmbito daquilo a que nos acostumamos a dar o nome de educação,III:olllnce também dentro de um âmbito mais abrangente de processos sociaiscio lutorações chamado cultura.\Tal como a religião, a ciência, a arte e tudo o

IIl11ls,a educação é, também, uma dimensão ao mesmo tempo comum e

II/lpnc:ial de tessitura de processos e de produtos, de poderes e de sentidos, de

I'II)I,I'/IS(l de alternativas de transgressão de regras, de formação de pessoas

11111111sujeitos de ação e de identidade e de crises de identificados, de invenção

tI'l roiícraçôes de palavras, valores, idéias e de imaginários com que nos

1IIIIIIIIII1110Se aprendemos a sermos quem somos e a sabermos viver com a

11\111111'o mais autêntica liberdade pessoal possível os gestos de reciprocidade

" 11'11111vida social nos obriga.

Mas ao falar das relações entre a cultura e a educação, uma das

11I11I"I'IIIH~aSporventura mais importantes aqui deve ser a de que mais do que

11111'1111"morais" ou "racionais", nós somos seres aprendentes. Somos, de todo

""1'4:11íris de alternativas da Vida, os únicos seres em quem a aprendizagem

tI/lo 1I(10lHIScomplementa frações de um saber da espécie já impresso geneti-

111111111110om cada um de seus indivíduos, mas, ao contrário, representa quase

11111111i 11'1011111indivíduo de nossa espécie precisa saber para vir a ser uma

I"l/HIIUIhumana em sua vida cotidiana. Se páginas antes Claude Lévi-Strauss

11011IHIKllriélmudarmos o atributo fundador de nossa condição humana, do

"'1111111111'111"para () "ser da Vida", podemos agora pensar que uma face desta

'IlIl\lldlldll podoriu ser o sermos seres do aprendizado, logo, da educação.

!\I(Í pOl' volta dos cinco 1ll0S0Sdo idade a pequena cria do uma casal do

,llIltlllllllZ(IS o () filho do 11111jllll' do h\ll11/III1ISuprondom !1 snhnm mnis 011

11111111111cio 111os 11111 morlo, IIS ItIlIHI1II1HCOIHIIH.MIIS IO~1I11sO~lIir li (lmCIICfl

primata encerra o ciclo completo dos seus aprendizados essenciais, enquanto a

tardia e lenta criança está apenas começando o seu. E quando o macaquinho já

aprendeu e domina por inteiro a leitura do repertório completo dos sinais dos

seres de seu bando - os dos gritos e grunhidos, dos olhares e outros gestos do

corpo e dos espaços sociais das interações - o menino humano apenas articula

os seus sons mais naturais, ainda anteriores à palavra que irá balbuciar um poucomais adiante. Mas, e eis o milagre tão corriqueiro, daí em diante de uma maneira

irreversível a criança humana aprenderá complexos de significações cada vez

mais ricos, mais densos e mais complexos. Entre meses de vida e o seu primeiro

aniversário ela estará aprendendo - como toda a humanidade fez ao longo de

milhões de anos antes dela - a sair do sinal ao símbolo e a lidar com a liberdade

do imaginário de uma maneira quase inimaginável, mesmo na mente de Deus.

A educação é um dos nomes dados a este milagre. Ele lembra outros:socialização, endoculturação, internalização da cultura e outros. Todos têm

no entanto, algo em comum: são progressivos e resultam em processos de

interação de saberes em graus e modos sempre mais amplos e profundos; não

são necessariamente restritos a ciclos restritos da vida, podendo acompanhar

a pessoa ao longo de toda a sua vida; são sempre o resultado de interações

significativas da pessoa com ela mesma ("estou só, logo, somos quatro", dizia

em algum lugar Gaston Bachelard), de pessoas entre elas, como sujeitossociais e como categorias diferenciais de sociabilidade, e de pessoas com

sistemas e estruturas de símbolos e de significados.

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles,

pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significa-

dos da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transfor-

mados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao participar de

tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa as si mesmo. E realiza

isto através de incorporar em diferentes instâncias de seus domínios pessoais

de interações (muito mais do que de "estocagem") de e entre afetos, sensações,

sentidos e saberes, algo mais e mais desafiadoramente denso e profundodestes mesmos atributos.

Durante cerca de duas décadas a partir dos anos 1970, Antônio Cramsci

foi lIllI dos ponsudnros mais procurados onl rn IIÚS,pnSS()IISquu, t:hogadas dodifllrllllllls Clllllillhwi 11dos IIJ11isrl ivtu'sns doslillOS, dOHOIIIIICII:1l111111i1111Kmlldo

pra<,:a social da Educação. Não vou lembrar agora com exatidão 1I1l1C1das

pllssagens mais citadas dos seus escritos. Mas a essência de suas palavras Il

IIKora isto é o que importa aqui. Ele lembra que as pessoas do povo - dos

luiuueros povos que há no povo - sentem o que vivem, mas nem sempro

I:tIlllpreendem ou sabem o sentido social do que sentem. Enquanto isto nós,

IIHpessoas intelectuais - aquelas que escrevem ou lêem um livro como este,

íulnndo sobre o povo e as suas culturas, e que muito dificilmente chegará a

"111"lido por ele, no interior de uma delas - sabemos, mas nem sempre

cuutpreendemos o sentido vivido do que sabemos e, menos ainda, sentimos

a Iunrlo o que compreendemos ... quando chegamos a compreender. E ao final

dn purágrafo da mesma passagem Gramsci lembra que o nosso grande engano

mMi um acreditarmos que seja possível saber intelectualmente algo semI

C:Olllpmender de maneira existencial o seu sentido e, pior ainda, sem haver-

IIIOHnprendído a sentir o que sabemos e devemos compreender.

Escrito e re-escrito entre algum dia do começo dos anos 1980 e os primeiros

.111111 deste 2002, este livro a que dei o nome de a educação como cultura não

111"111:111'11 mais do que ser mas uma busca entre tantas no nosso esforço comum

.1" t:olllpreensão das múltiplas e tão complexas (às vezes complicadas demais)

"II'IIIIIIISo leias" das relações entre as dimensões de culturas que criamos e

11111"111IIIIIIIOS,e a educação que praticamos e que como um caminho sem termo,

II~nlmlll nós como um inacabável desafio ao pensamento e à re-criação. Um livro

111'("''' 1110[espero] ao qual estou dando por agora o nome de em volta do fogo,,111 V IlI'IIretomar o que está ultrapassado ou inacabado aqui.

( ) leitor atento observará que, vinte anos mais tarde, algumas palavras

fi "h{IIIIIIIS idéias deste livro poderão ter ficado algo fora do tempo ... ou de

11114111'. t lulrus ganharam novos significados e dizem agora com bem maior

1'''1101.11 11que em alguns escritos daqueles anos eu dizia entre arrogâncias

IIIMl\lIlll1so incertezas do ofício. Um texto da versão originalfoi retirado e dois

IIIIII'Wl,IIOV()S,foram incluídos na presente edição. Espero que saiamos todos

.1111111111110co 111a lroca.

Rosa dos VentosV(do do Pcdr« Branco

VorO() do dois mil (1 dois