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A Desterritorialização e a Reterritorialização das famílias atingidas pela implantação da Usina Hidrelétrica de Itá, oeste de Santa Catarina. Jaime Fogaça1
A Desterritorialização e a Reterritorialização
Busco, nesse trabalho, discutir um caso que foi, e é, muito polêmico diante
do cenário de implantação das Usina Hidrelétricas - UHEs na Bacia do Rio Uruguai, a
implantação da UHE de Itá, como também nas demais regiões brasileiras. Uma situação
em que a cidade é totalmente coberta pelas águas da barragem,em que todas as famílias são
deslocadas para outros lugares, onde restaram apenas duas torres da Igreja emersas para
simbolizar, ali, as histórias de vida daqueles que não tiveram outra opção, a não ser sair da
terra que haviam escolhido para morar. Sob esse prisma, cabe a indagação do motivo pelo
qual as famílias tiveram que desocupar suas terras e suas casas sem estarem plenamente
conscientes das conseqüências do processo ao qual estão sendo submetidas. Em que
medida pode ser observado o compromisso firmado entre os construtores e a população de
Itá, no que diz respeito à recuperação dos valores e da história da cidade antiga?
Nesse sentido, construí o diálogo entre a Geografia, a Sociologia, a
Antropologia e a Psicologia para alimentar a discussão entre os processos
supramencionados e a situação das famílias atingidas pela implantação da UHE de Itá.
Nessas Ciências, busco a compreensão das relações existentes entre os desterritorializados
e a UHE.
O espaço e o território
É preciso compreender o espaço e o território como conceitos que levam a
explicitar os fatores decorrentes da desterritorialização e da reterritorialização das famílias
de Itá. Tais conceitos são coerentes entre si, pois afirmam o espaço geográfico como
espaço de vivência e permanência das pessoas, ou seja, o ser humano é mais humano
quando está seguro e é conhecedor do espaço em que vive. Desenvolve suas atividades por
1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS – [email protected]
conta do envolvimento que estabelece com os recursos que estão a sua disposição. No
caso, as famílias que moravam na cidade antiga de Itá ocupavam seu território de forma
que preservavam suas origens e sua autenticidade cultural.
Na Geografia, o espaço e o território são conceitos que buscam esclarecer o
objetivo de uso e a determinação das atividades humanas. A fusão desses conceitos se
torna um grande nó quando são apropriados por grupos de investidores econômicos que
não estão preocupados com as conseqüências que podem atingir as populações, já
impedidas de participar do processo de transformação do espaço e do território que
ocupam. Assim, convém lembrar que as famílias atingidas pela UHE de Itá perderam seu
espaço por não terem sido elas que definiram sua saída do território, o qual foi absorvido
por todas as medidas de implantação da usina.
Segundo Santos (1999, p.51), entende-se espaço como um conjunto
indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Os objetos ganham uma
significação, ou seja, dão ao espaço um sentido através de uma intenção. Nesse caso,
entende-se que o espaço passa a ter uma função de possibilidades de usos quando usado na
forma como estou abordando.
Na implantação de UHE, o espaço passa a ser objeto das ações, sem
nenhum reconhecimento do vivido, sem cautela de reconhecer que a população de Itá já
havia se territorializado, seguindo sua condição material e afetiva que a ligava àquele
território. Constituiu um sistema que a associava inclusive ao Rio Uruguai, principal
agente da transformação.
A animação do espaço através das ações e dos objetos caracteriza as
relações que são desenvolvidas, sejam elas sociais, políticas, econômicas ou culturais. Elas
dão sentido ao espaço, pois geram todo um sistema que transforma, cria, recria e organiza
os elementos no espaço, discernindo as funções que cada ser apresenta no espaço físico e
no espaço de tempo.
Dessa forma, vimos um espaço recriado, ou seja, houve a apropriação e
transformação do recurso natural que já estava presente, o Rio Uruguai, e a destituição da
liberdade de decisão das famílias, principalmente as mais carentes, de viverem no espaço
que definiram como sendo o lugar onde as relações de produção, social e política, estavam
estabelecidas conforme a vontade delas. Houve em Itá uma desterritorialização pautada na
história de um povo humilde economicamente, mas que guardava muita riqueza nas
vivências, mesmo com seus conflitos. Todas as relações passaram a ser gestadas pela
UHE, portanto, nesse momento, as famílias de Itá já não são mais protagonistas do espaço
e território que haviam constituído e sim a usina.
A Geografia, como uma ciência que estuda todas essas relações, contribui
no processo de ocupação do território, reconhecendo-o através dos mapas, e traduz,
coerentemente, uma percepção de que o uso do espaço numa condição econômica
excludente pode gerar uma relativa perda de vínculo entre o ser humano e a terra.
Possibilita que o ser humano não mais valorize o espaço (terra) em que vive, podendo usá-
lo de qualquer maneira, sem preservá-lo, despertando um espírito de destruição consciente
e/ou inconsciente.
Gera-se, assim, a teoria de que tudo é mutável, inclusive o sentimento de
poder ter a terra, o rio, o ar e a mata como aliados para a sobrevivência humana; enfim,
tudo passa a ser objeto de propriedade econômica e explorável para assim garantir a
riqueza capitalista de poucos. Aqui, fica clara a intencionalidade da implantação de UHEs,
como o caso que aconteceu em Ita, oeste de Santa Catarina.
A partir da ação e do conjunto de objetos que compõem o espaço, pode-se,
na Geografia, dar significado ao que nele acontece. Olhar, observar e analisar o espaço
significa, para ela, encontrar nele as razões de preservá-lo, de atribuir as funções sem
prejudicar e comprometer o conjunto de elementos que o compõem.
Nesse sentido, pela leitura de Santos (1999), o entendimento de espaço nos
remete à percepção do que são e quais são as medidas desenvolvidas pelos indivíduos no
espaço geográfico para atender às necessidades geradas por dimensões que nem sempre
são adequadas à idéia de uso racional do espaço. Formam-se as “próteses”, que configuram
o território, conforme os capítulos da história capitalista. A desterritorialização das famílias
de Itá por conta da implantação da UHE é o que me leva a usar tal abordagem.
Na abordagem psicossocial está a relação do espaço com as formas de vida
que o ser humano desenvolve na terra (Refatti, 2001). Dessa forma, é importante entender
como a natureza do espaço assume a “matriz da existência” através da organização
individual e coletiva dos seres humanos. A organização espacial aparece a partir das
necessidades demandadas da vida social no espaço, resignificando-o, ou seja, atribuindo-
lhe os valores e hábitos que identificam uma população. Por isso que o espaço geográfico
da antiga cidade, para as famílias de Itá, significava a presença de um passado que
respeitava a bagagem que foi acumulada na memória dessas famílias. Para Refatti (2001,
p.44)
Pode-se dizer, assim, que as relações no espaço estão ligadas às
experiências sociais. Por isso as interações com os lugares são
bastante complexas, pois mostram uma dinâmica de
relacionamento muito emaranhada, ou seja, o espaço modela os
indivíduos que, por sua vez, modelam o espaço ao seu modo.
O espaço e o desenvolvimento das relações sociais pelo ser humano
retratam o comprometimento de ambos com a sua existência, pois se vive num momento
em que a consciência de espaço precisa ser revista e (re)valorizada pelos seus ocupantes.
Os investidores que constroem as UHEs percebem um espaço de uso, talvez
subjetivo, pois tamanho é o grau de materialização que os conduz. Os sujeitos que
dependem dos recursos como a água, para sobreviver, são inexpressivos no conjunto do
espaço geográfico. Assim, a desterritorialização das famílias de Itá tornou-se apenas mais
uma das “tarefas” a ser executadas pelos mandos dos investidores que são, hoje, os
proprietários da usina.
Não basta fazer só uma análise das relações conceituais que evidenciam nas
Ciências essa relação, a descrição das ações e o fato relatado atende ao processo de
aprendizagem. Esse, por sua vez, enfatiza o sentido que se dá à vida quando nela não se
pensa, só se age. O uso descontrolado e sem medida dos recursos hídricos poderá, em
muito pouco tempo, levar a humanidade a sofrer as conseqüências de uma ambição
desenfreada e sem soluções para os problemas desencadeados.
Muitas são as áreas do conhecimento científico que possibilitam essas
constatações, como a Sociologia, a Antropologia e a Geografia, porém a expressão do
capital através dos interesses das políticas de aplicação financeira é perversa e, às vezes,
distorce muitos dos dados de pesquisas elaboradas que contemplam a preservação dos
recursos naturais, em especial a água, e a sobrevivência dos seres no espaço territorial.
A idéia do espaço vivido, espaço de relações sociais desenvolvidas a partir
de realidades postas e sistemas de ações que levam o ser humano a ter “ganhos” e “perdas”
por ocasião das vivências, que elaboram, nesse espaço, as características do cenário das
representações, segundo a abordagem de Frémont (1980, p.17):
O <<espaço vivido>>, em toda a sua espessura e complexidade,
aparece assim como o revelador das realidades regionais; estas têm
certamente componentes administrativos, históricos, ecológicos,
econômicos, mas também, e mais profundamente, psicológicos.
Muito embora essa afirmação esteja relacionada à compreensão de região, o
resgate a relaciona à idéia aqui discutida sobre espaço vivido. Partindo do ponto de vista da
desterritorialização, essas dimensões ficam presentes apenas na memória dos
desterritorializados. Resta apenas a sensação de impossibilidade de reversão, ou seja, a
usina será, como foi, construída e ocupou, inclusive, o espaço de propriedade psicológica
que as famílias de Itá tinham sobre seu território.
Não existe mais, para aqueles habitantes, uma afirmação de que Itá é dos
itaenses. Existem moradias que foram transportadas para outro espaço, para a “nova Itá”,
mas o significado de espaço vivido, como abordado por Frémont, esse permanece no
espaço hoje coberto pela barragem da usina.
Quando faço referência ao espaço vivido, com base na discussão sobre a
desterritorialização, lembro que Leonardo Boff, em uma palestra na II Conferência
Estadual Por Uma Educação Básica do Campo, em maio de 2002, em Porto Alegre/RS,
salientou que o homem, ao saltar do mundo animal para o mundo humano, socializou a
caça, consolidou o fato do ser cooperativo e solidário. Esse fato está associado à idéia que
busco entender sobre as ações desenvolvidas pelos seres humanos no contexto aqui
abordado.
A noção do espaço individual e coletivo implica perceber sua capacidade de
regeneração dos males criados pelo uso indevido e desenfreado de seus recursos. Em
estado de demência, pode-se exterminar as florestas, os recursos hídricos e a fauna; pode-
se potencializar as capacidades em mecanismos que desagreguem as relações sociais e com
a natureza. Todavia, a trajetória natural dos recursos do meio ambiente não pode ser
violada para que sustente a implantação de UHEs. De acordo com essa perspectiva,
percebo que não houve avanço significativo na relação homem versus natureza.
Talvez seja uma utopia acreditar na revigoração e na recuperação da nossa
consciência humana, mas é ainda a saída possível. Através de suas ações, o ser humano
não deve perder as oportunidades de organização social em detrimento dos projetos de
exclusão que não valorizem o espaço pelos seus significados afetivos e emocionais.
Reside, nessa sua forma de organização, a luta pela permanência dos recursos hídricos.
O espaço geográfico é um elemento de determinação e de contribuição para
a análise do cenário da desterritorialização, visto que o fenômeno acontece a partir de
ações que promovem os fatores que mudam o sentido existencial do espaço. Esses fatores
aparecem nos sentimentos, na subjetividade de quem sente a perda, e não de quem
provoca a perda.
Como um dos pontos principais desse processo, o espaço assume o papel de
identificador e codificador dos sistemas de ações relacionadas à concretude do que estou
chamando de espaço vivido, como base de entendimento ao processo de
desterritorialização. Assim, o espaço, na visão da Geografia ou na abordagem psicossocial,
é organizado e, portanto, constituído como território, na medida em que as necessidades,
tanto das demandas sociais, como das relações afetivas, dão o sentido à existência do grupo
que ali está.
O espaço é geografizado pela presença dos recursos que ora se apresentam
na estrutura física terrestre, como também pela interação e pela inter-relação com os
habitantes já presentes nesta estrutura. Resgato aqui a importância da cultura da relação
com a natureza, com os componentes históricos e também com o trabalho que populações,
como a de Itá, estabelecem com o espaço geográfico que ocupam.
Os atingidos: quem são?
Em Itá, o processo de desterritorialização das famílias enfatiza o que é
destacado no momento em que tiveram que desocupar a área (território) e sair de suas
casas, por definição do projeto hidrelétrico. Vainer et al. (2003) tratam dessa abordagem
enfocando que, na concepção territorial-patrimonialista defendida pelos investidores do
Setor, o “atingido” é o proprietário. Ressalto que a expressão “atingido”, de acordo com os
autores, carrega a estratégia das empresas do Setor Elétrico, que, por sua vez, atribuem aos
departamentos de patrimônio imobiliário a competência de promover ações para indenizar
os donos de propriedades que estão e são de “interesse público”. Essa concepção se refere
apenas à ação indenizatória, limitada ao pagamento da terra e dos bens materiais
construídos.
A reflexão sobre esse processo refere-se à forma como é visto o povo, que são os
“atingidos”, como se estivessem diante de uma arena onde o rei derruba o lutador sem
sequer matá-lo, apenas determinando que seja retirado do jogo. Isso significa que, nessa
concepção, o direito do empreendedor está acima de qualquer prerrogativa que se levante
contra o processo de implantação da usina. O único direito reconhecido é o direito de
propriedade e esse é pagável, tanto que, se o proprietário se recusar a receber a
indenização, o empreendedor poderá depositá-la em juízo, o que já atribui a ele o direito de
domínio da propriedade e a perda por parte das famílias.
Para as empresas, a visão limitada de proprietário é evidente, pois se trata
de não reconhecer que outras famílias, como meeiros, posseiros e arrendatários vivam em
áreas que não sejam de sua propriedade. Essa forma torna a possibilidade de viver e
sobreviver da terra condição de desenvolvimento humano. Eles também são atingidos, mas
não são incluídos na concepção anteriormente mencionada, sobretudo porque não fazem
parte daquela pequena parcela da população que foi cooptada pelas ofertas de instrumentos
de urbanização, que traduziam progresso para a cidade.
Os reais atingidos pela implantação de todo o complexo usinário são
aqueles que perceberam que suas vidas não estavam limitadas a benfeitorias e extensões de
terras ou casas valorizadas no mercado imobiliário. O grande ganho que tiveram em optar
por morar na antiga Itá foi a liberdade de conviver e viver ao seu modo, especialmente
porque possuíam o Rio Uruguai como agente transformador e mediador da territorialização
de suas famílias.
Parte dessa população que ficou desterritorializada, por conta das
concepções capitalistas, somada à idéia de que o território atingido é a área inundada
formam a concepção de que as situações e problemas decorrentes do empreendimento que
precisam ser solucionadas pelos empreendedores resumem-se apenas em avaliar e negociar
as desapropriações.
Considerando que as pessoas estão cada vez mais suscetíveis a crises
existenciais, devido a vários fatores que a Psicologia procura estudar, contribuindo na
solução dos problemas que surgem, percebo, através do caso aqui estudado, que a simples
medida de pagar pelo que essas pessoas conquistaram ao longo da trajetória de suas vidas,
não pode contabilizar suas perdas afetivas, pois os bens e mesmo a terra ou a casa, que
carregam em si estes valores afetivos, desempenham um papel importante para muitas
dessas famílias. Desvinculadas de seu território, elas desenvolvem sentimento de tristeza,
de angústia e de depressão, que explicados pela psicologia podem levar muitos a não
querer mais viver.
Com isso, quero afirmar que desterritorialização, para além de retirar as
famílias de seus lugares de moradia, independente da forma de apropriação, significa
destituí-las de todas as formas de vinculação com o território que está construído na cabeça
e nos sentimentos expressos por elas. Essa desterritorialização identifica e tornam
explícitos os elementos que manifestam a não-aceitação da usina por grande parte das
famílias, tendo em vista que algumas concordaram com a implantação da UHE pois
obtiveram significativos ganhos financeiros. O território de Itá submerso no lago da
barragem; suas marcas territoriais estão “afogadas” e sua identidade está representada na
torres da Igreja, que ficaram emersas no meio do lago da barragem, por reivindicação das
famílias, hoje cartão postal de Itá.
O território de Itá: pertence a quem?
Os elementos acima mencionados são os princípios que foram rejeitados
pelos empreendedores no momento da decisão do empreendimento em Itá. Porém, foram
também esses que levaram parte das famílias atingidas a se manifestarem contra essa
forma de exclusão, contra a construção da usina em cima de suas terras e,
fundamentalmente, a se oporem ao projeto energético que está estruturado nas modalidades
de uma dimensão de globalização econômica, que indefere qualquer manifestação em
desacordo com os interesses do capital financeiro.
O Movimento de Atingidos por Barragens – MAB, que enfrentou todos os
desafios para que essa obra não se realizasse. As famílias que moravam na área rural da
antiga Itá, organizadas puxaram as discussões e enfrentamentos com o Estado e com as
empresas construtoras, para que fossem acordados e cumpridos os compromissos de
indenização e transferência das famílias para a cidade nova. Mesmo sofrendo críticas de
outras famílias que discordavam de tais manifestações, pois estas tinham interesses
particulares em jogo o que desmobilizava as famílias principalmente que moravam na área
urbana da cidade antiga.
Trata-se de olhar o território dessas famílias através da humanização do
espaço. O fato de a UHE ter proporcionado a mudança para um novo território, não
significa que a apropriação pelo território, desenvolvida pelas famílias na “antiga Itá”,
esteja presente na “nova Itá”. Assim, a condição humana de estar no espaço territorial
escolhido ficou expressa, simbolicamente, nas torres emersas da Igreja.
Essa forma de humanização do espaço remete a um sentimento de
pertencimento a um lugar ou território, constroem as ligações entre os mitos e o espaço
físico resultantes dos agrupamentos humanos. Heidrich e Carvalho (2001) fazem essa
reflexão em relação à humanização espacial. Portanto, em se tratando da
desterritorialização das famílias itaenses, a usina foi o agente que, sem observar e apontar
esses aspectos, atingiu a sociedade, agiu com soberania sobre tais definições, mascarando
uma situação em benefício próprio. Nem mesmo a luta social organizada conseguiu
impedir a realização e concretização da desterritorialização dessas famílias.
O território de Itá, quando caracterizado pelas lutas e conquistas de muitos
que ali morreram para que a cidade surgisse, carrega a bagagem de populações de
indígenas, de caboclos e de imigrantes que desafiaram suas vidas para se tornarem seres
daquela sociedade. É importante salientar que mesmo com o objetivo de trabalharem e
constituírem ali suas famílias e suas moradas, os imigrantes italianos e alemães que
colonizaram Itá tiveram também suas limitações (como já mencionado) pois expulsaram,
através da sua forma de colonizar, muitos dos habitantes que já se encontravam naquela
área, como índios e caboclos.
Portanto, o território onde se constituiu a cidade de Itá é marcado, não só
pela trajetória de vida dos imigrantes, mas por outras etnias, que também foram
desterritorializados tendo que deixar suas terras para dar lugar a outra cultura que ali
chegava. Mesmo desbravando as matas e o rio, os imigrantes construíram uma cidade
modesta e sem grandes pretensões de crescimento, pois o principal objetivo era colonizar
para viver bem, utilizando os recursos naturais que permaneceram preservados mesmo
após a cidade estar estruturada.
Nesse sentido, a cidade antiga de Itá caracterizava um território que foi
possuído, habitado e tomado pelos imigrantes. Itá contava com a presença de antecedentes
de índios e caboclos, que marcavam aquele território com o signo sagrado, sendo um
território que não se caracterizava somente pelo ter, mas pelo ser.
Numa concepção da vertente cultural da Geografia, entende-se que o
território reforça sua representação quando estabelece uma relação espiritual com seu
espaço de vida. Expressando-se mais claramente sobre o assunto, Bonnemaison e
Cambrèsy (1996, p. 10) afirmam:
O poder do laço territorial revela que o espaço está investido de
valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais,
simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o
território político e com ainda mais razão precede o espaço
econômico.
Através dessa abordagem, percebe-se que, mesmo tendo ocorrido conflitos
que também foram excludentes, Itá é um território que passou a fazer parte da história do
Brasil, pois foi a primeira cidade (hoje já temos outros casos) a deixar de existir para dar
seu lugar a uma usina hidrelétrica. Uma nova cidade foi construída para os antigos
moradores de Itá. Contam, é claro, com a presença de novas famílias que chegaram, devido
à divulgação de que o “progresso” havia chegado “e tinha vindo do céu”, mas que havia
saltado de pára-quedas e que, ao chegar no chão, ficou um pouco insatisfeito com algumas
coisas que viu e resolveu continuar a viagem.
Isso quer dizer que Itá, mesmo recebendo uma obra faraônica, tanto em
tamanho como financeiramente, não decolou da condição de um simples território de
cultura italiana e alemã e hábitos humildes, para uma super cidade de grandes
investimentos financeiros. Reluta com as forças do imperialismo capitalista que, a cada
momento, faz com que alguns daqueles “interessados locais” pela implantação da UHE
deitem a cabeça no travesseiro e acordem com ela um pouco dolorida, talvez pelo peso da
culpa que carregam na memória, por terem sido cooptados e coagidos a convencer muitas
das famílias que hoje estão totalmente esquecidas pela usina.
Itá é hoje uma cidade que se caracteriza como um território voltado a
atender pequenas atividades econômicas locais e, em grande medida, busca resgatar
alguns traços da cultura local através de atividades e eventos locais. Criam-se imagens para
serem vendidas, esculturas em miniatura das torres da Igreja, camisetas com bordados da
“pedra-símbolo” da cidade, enfim, pequenas atitudes que literalmente são muito reduzidas
frente à expressão de desconforto vivida por parte das famílias. Essas medidas mitigatórias
não contemplam as conseqüências que atingem a “nona Itá”.
Estas famílias se encontram em casas melhoradas, mas estão se sentindo
deslocalizadas, desabitadas, desorganizadas e sem referências que constituíam os vínculos
afetivos deixados na antiga cidade. Sem saudosismo, sem a intenção de dizer que Itá não
precisaria crescer, vê-se que o território de Itá poderia ser cedido a uma usina ou a
qualquer outro projeto econômico, mas sem que houvesse restrições à participação de
todas as famílias que habitavam a antiga cidade, desde o momento de pensar até o de
elaborar o projeto.
O processo de desterritorialização
O que houve foi uma retirada de pessoas pela força do capital e a confecção
de uma máscara bem consistente, composta por elementos e mecanismos que distorceram
os dados e cooptaram as pessoas sem esclarecê-las, de forma adequada, do real significado
de implantação da usina. Para o aprofundamento dessa discussão, cabe remeter à
conceitualização de autores que buscaram, respeitosamente, uma compreensão para as
formas de desterritorialização, conforme se percebe na leitura de Haesbaert (2002, p. 12):
Desterritorialização, para os ricos, pode ser confundida com uma
multi-territorialidade segura, mergulhada na flexibilidade e em
experiências múltiplas de uma mobilidade “opcional”. Enquanto
isto, para os mais pobres, a desterritorialização é uma multi ou, no
limite, a-territorialidade insegura, onde a mobilidade é
compulsória, resultado da total falta de opção de alternativas, de
“flexibilidades”, em “experiências múltiplas imprevisíveis em
busca da simples sobrevivência física ou cotidiana.
O mais curioso é que, para os ricos, como exposto pelo autor, a
desterritorialização está vinculada a categorias sociais mais privilegiadas, que usufruem as
benesses dos “circuitos técnico-informacionais” que estão distantes das realidades de
populações que não têm acesso ao território mais elementar, que é a terra ou o terreno, de
uso cotidiano. Com base nessa afirmação, é que a desterritorialização das famílias
atingidas pela UHE de Itá está fortemente relacionada à exclusão de seus lugares.
Essas famílias foram proibidas de estar localizadas no território que haviam
definido como espaço de vida, por isso foram desterritorializados assim como os indígenas,
os caboclos e muitos outros grupos de “excluídos”, que também habitaram aquele
território. Um ciclo de exclusões que não termina; pelo contrário, se expande cada vez
mais, na medida em que novos projetos econômicos são organizados e executados pelos
investidores e empreendedores dos setores hegemônicos do capitalismo.
Aos poucos, ou repentinamente, as famílias de Itá tornam-se parte do
mundo que se configura grande e pequeno, homogêneo e plural, articulado e multiplicado.
Isso por ocasião de uma política que, simultaneamente ao processo de globalização,
dispersa os pontos de referências, gera grandes antagonismos, dissolve as fronteiras, dando
a impressão de a população estar flutuando, uma sensação de perda de referencial.
Perceber isso é muito difícil, pois as pessoas tendem a esconder seu sofrimento. Porém,
basta falar-se sobre algo que está sempre na memória dessas famílias, para que se perceba
os sentimentos que expressam esse seu acirrado processo de desterritorialização.
As implicações que resultam do processo de desterritorialização, em função
da implantação da UHE de Itá, possuem características que foram polemizadas por
intelectuais, políticos e pelo MAB. Todavia, todas se fundiram nas justificativas de cunho
econômico e ambiental, cujo estímulo era lutar por terras, casas, dinheiro e também pela
mudança na natureza.
Sem dúvida, os estudos e propostas que foram decorrentes desse processo
muito ajudaram para que amenizassem os impactos decorrentes da implantação da usina.
Contudo, o que as pessoas sentiram ao verem encher o lago foi algo inexplicável. O
impacto no interior dessas pessoas, causado pela imagem da água cobrindo vagarosamente
suas terras, gerou resultados como depressão, estado profundo de tristeza, angústia e
melancolia. Expressões que formam uma concepção subjetiva da desterritorialização, mas
que pode ser percebida e analisada a partir do momento em que isso acontece.
Para o entendimento mais objetivo, foi possível perceber-se in loco como a
desterritorialização das famílias de Itá prejudicou a estrutura afetiva e emocional das
famílias atingidas. Na convivência com as famílias e nas entrevistas que realizei durante o
trabalho de campo, pude observar e constatar como se desencadeou essa desestrutura
emocional e afetiva.
A resistência à usina não se deu de forma massiva em Itá quando da sua
implantação, pois ali era usado um discurso, pelos próprios moradores, que procurava
manipular e fazer crer que a construção da UHE era uma necessidade e a solução para seus
problemas. Sem desprezar a capacidade de entendimento dessas famílias, iludidas com
promessas de ganhos econômicos inquestionáveis e de serviços públicos eficientes ao
alcance de toda a população, o argumento usado nos discursos visava desenvolver a
aceitação tácita do projeto da usina.
Modelo de convencimento que, ao se fazer vencedor, instala a UHE de Itá,
uma estrutura faraônica de concreto, represando a água e afogando uma outra estrutura que
poderia ser humilde, mas representava a autonomia de pensar de um povo, de construir
para si o que queria, e não de acomodação e desvinculação do restante do mundo,
conforme aparecia nos discursos dos políticos e lideranças convictas da implantação da
usina.
Mesmo os personagens que nunca apareceram em Itá e que são os principais
responsáveis pela usina, não tiveram a coragem de vir e negociar com a população. Seus
intermediários políticos, lideranças cooptadas, representantes do Estado e, inclusive, a
polícia, foram os que apareceram, pois todos cumprem a sua função de obrigação com o
capital, ou na condição de empregados assalariados ou na condição de beneficiados.
O distanciamento entre famílias atingidas e construtores, maioria
estrangeiros, sempre foi algo que influenciou na condução de negociações, pois não havia
como impedir a construção de uma usina se não se discutia diretamente com quem a
mandava construir. Nesse sentido, vejo o não-cumprimento do papel do Estado como
mediador desse processo, pois, na situação de Itá, tanto o poder local como o estadual e
também o federal estiveram a favor da construção, se opondo à população atingida. Os
benefícios financeiros para projetos públicos, a credibilidade política diante do poder
econômico, o que mais tarde subsidiou os discursos eleitorais nessas mesmas instâncias,
justificam tal posição.
De qualquer forma, a desterritorialização é uma expressão da retirada das
pessoas de seus referenciais pessoais e também dos vínculos afetivos que o ligam ao
mundo material e social. Viver em sociedade implica conjunção desses elementos numa
perspectiva de que o ser humano possa criar seu espaço e constituir suas marcas no
território que servem como aporte de sua identificação. Isso significa se territorializar por
conta das demandas, respeitando o desejo, os estímulos que norteiam o ser humano.
As UHEs não permitem uma reterritorialização dos vínculos afetivos e das
impressões territoriais; elas apenas pagam uma determinada quantia de valor em dinheiro,
que supre apenas o esforço físico, mas que jamais vai repor as expressões e criações que
existiram na vida dessas famílias atingidas. Essas não possuem valor econômico, mas sim
o campo afetivo dos esforços dedicados à construção do seu modo de vida.
A decisão de aceitar ou não a UHE não foi unânime em Itá, por parte das
famílias. Houve aquelas que percebiam essas mudanças com um olhar voltado ao seu
próprio interesse. Porém, é possível afirmar que a maioria das famílias de Itá, hoje, sabe o
que é perder seus vínculos, sua identidade com o território, permitindo que pessoas
estranhas e que não as conheciam tomassem decisões que mudaram suas vidas.
Essa desterritorialização foi muito além da simples transferência de suas
casas, seus objetos, seus animais e até de seus mortos. Ela mexeu com sentimentos que são
únicos em cada ser, agrediu a privacidade da vontade própria, transgrediu a liberdade
pessoal e acumulou esses sentimentos de perda durante muitos anos. Atualmente, as
famílias de Itá vivem com esses conflitos na memória; alguns procuram esconder que essas
expressões estão presentes no cotidiano da cidade. Isso é possível de se perceber e de se
ver ao andar pela cidade onde o vazio ocupa lugar.
Paira um silêncio que só é quebrado pelas imagens dos ônibus que trazem
turistas para visitar a usina, não para ver e falar com as pessoas de Itá. Essas estão sentadas
ou em pé atrás de um balcão vendendo aquilo que lhes restou – lembrancinhas da cidade,
cartões postais com a foto das torres da Igreja, emersas no lago da usina. Por outro lado, os
paredões, a casa de força e a superestrutura da UHE atraem turistas, empresas de filmagens
e de fotografias que sequer se apercebem da existência das pessoas que lá permaneceram
procurando dar um novo sentido a suas vidas.
Muitas das famílias de Itá estão empobrecidas, vivem de um saudosismo da
cidade antiga, alimentam suas inquietações guardando objetos, plantas e fotos que lhes
repõem energias para mais um pouco de sua existência. Essas famílias fizeram desses
elementos uma forma de se esconderem do inevitável, da tristeza e em alguns casos da
doença, como depressão profunda provocada pelo acúmulo desses sentimentos
interiorizados.
Mexer numa história onde as tradições são conservadas em decorrência das
características culturais significa mexer com essas famílias, descendentes de alemães e
italianos, que costumam interiorizar seus sentimentos, o que vem desde a colonização.
Foram famílias que chegaram ao Brasil também excluídas de seus países de origem,
portanto, necessitam preservar suas origens como qualquer povo da terra. Essas famílias
construíram suas gerações com muitas mudanças, mas guardam preciosidades de sua
cultura que são próprias delas e que são repassadas aos seus descendentes. Apesar dos
antagonismos que por ventura existam, elas vivem porque alguma forma de cultivar a vida
foi criada e repassada de geração a geração.
O modelo implantado com o objetivo de capitalizar as pessoas e, por
conseguinte, a terra, a água, os animais e as plantas, acabou com a possibilidade do existir
tudo para todos. Hoje, o domínio das riquezas naturais e materiais se concentra em grupos,
como o dos construtores e dos investidores em UHEs, que apostam nestes investimentos
como se fosse um jogo para assim ver quem consegue ganhar mais para concentrar mais.
Raças e etnias são vergonhosamente tratadas como mercadorias; escravizam-se os recursos
naturais; criam-se estruturas institucionalizadas que modelam as peças de um quebra-
cabeça que não está mais se encaixando.
As UHEs formam, hoje, uma corporação que alimenta muitas ações na
bolsa de valores, que alimenta também a estabilidade do fornecimento da energia para as
indústrias e para uma parcela da população que pode pagar seu consumo sem restrições.
Elas são, na realidade, símbolo do crescimento econômico para as empresas e empresários
construtores, além de serem consideradas uma das melhores opções de investimentos com
fins lucrativos do mundo. Para tanto, basta que se observe o seu crescimento numérico em
âmbito global. Trazem, como bagagem principal na viagem que percorrem pelos rios do
mundo, o poder centralizado e fixam, nos lugares onde são implantadas, uma dinâmica de
desterritorialização de famílias e de pessoas individualmente atingidas. Notoriamente, o
capital acaba exercendo sua territorialidade, oportunizando, não só o crescimento
econômico, mas também o subdesenvolvimento das estruturas políticas, sociais, culturais e
ambientais em todo o globo.
A desterritorialização e a reterritorialização das famílias atingidas por
barragens são processos que ora parecem distintos. O que os distingue é apenas uma
transferência territorial de pessoas, que não dinamiza mais os poderes de decisão das
famílias em sua individualidade, porém as tornam sobreviventes do sistema, sobreviventes
do poder ideal. Podem até morrer, porque não alimentam mais a coragem de resistir.
É difícil de se avaliar o que seria correto, mas é oportuno salientar que a
reterritorialização é algo que pressupõem a recuperação dos vínculos territoriais, acabando
por se confundir com transferência de território só em caráter físico, para onde se deslocam
os bens materiais e os corpos, vivos ou mortos. O sentido real da história de vida dessas
famílias, no entanto, fica na memória e na natureza que vai re-surgir no lugar onde
viveram, esse vínculos as famílias buscam recuperar hoje na cidade nova de Itá.
A abordagem sobre a desterritorialização e a reterritorialização das famílias
atingidas pela implantação da UHE de Itá não poderia ser desvinculada do processo
avassalador dos capitalistas. A fusão entre o capital e o exercício do poder político nas
áreas inundadas pelas usinas tem sido motivo de grandes transformações sociais e
ambientais. Porém, cabe às comunidades locais procurarem esclarecimentos e meios que
permitam a participação efetiva e real dos verdadeiros atingidos. Isso significa dizer que as
usinas são os veículos que desmontam as estruturas de poder local, destituem as pessoas de
seus territórios e enfraquecem as alternativas de cidadania a serem utilizadas para a
conscientização dos atingidos.
Ainda que as UHEs beneficiem as empresas construtoras e as indústrias que
demandam a maior fatia de energia produzida no país, são elas o grande argumento de
modernidade ao se instalarem em cidades consideradas atrasadas ou tradicionais. Esse
argumento acaba provocando uma mobilidade “aparente”, estruturada apenas no caráter
econômico. Segundo Haesbaert (1997), as inovações tecnológicas da desterritorialização
geram, por conseqüência, um desmonte do Estado-nação. Esse fica enfraquecido diante do
exercício de poder capitalista assegurado nos argumentos de necessidades geradas pelos
grandes meios e modos de produção.
Em síntese, podemos afirmar que a desterritorialização
contemporânea, fruto sobretudo de uma longa história das relações
capitalistas, é produto/produtora das inovações tecnológicas
impostas pelos capitalistas e pela sociedade de consumo, que
podem gerar uma crescente mobilidade (de pessoas, mercadorias e
informações), do relativo desmonte do Estado-nação e do domínio
que exercia sobre sua territorialidade (enfraquecendo as formas
tradicionais de cidadania e de controle político sobre as
transformações territoriais) e da crise de valores que gera uma
crise de identidades, incluindo as identidades com a natureza (cada
vez mais devastada e “enclausurada” em reservas de acesso
controlado) e com o território em sentido mais amplo.(
HAESBAERT, 1997, p.115).
Assim, a desterritorialização pode promover a formação de novos territórios
que, pressupõem uma reterritorialização, pois essa se caracteriza por as famílias se
apropriar de territórios novos e reconstituírem seus espaços, sob sua vontade de ocupá-los
ou de territorializá-los. Constituiriam a cidade nova de forma participativa e consciente na
integração política-econômica-cultural, de condução de vida (Heidrich; Carvalho, 2001,
p.7). Ter sua identidade e ser feliz foi o objetivo que fez com que as famílias de Itá se
organizassem na luta contra a usina, mas muitas delas acabaram sendo coagidas pelas
forças externas estruturadas na lógica capitalista.
Em nenhum momento, o Estado-nação, no seu exercício de gestor, foi
aliado das famílias que se opuseram a essa lógica. Houve uma rede de interesses que
subestimou a capacidade de discernimento e decisão dos atingidos de Itá, principalmente
daqueles que ocupavam as áreas rurais da cidade. Essa rede também atuou no sentido de
facilitar o convencimento das famílias da área urbana, principalmente daquelas que já
apoiavam a implantação da usina, por conta dos benefícios materiais que a cidade
receberia.
(Re)territorialização das famílias
Territorializa-se assim, uma UHE em Itá. Removem-se as famílias para uma
nova cidade e reassentam-se as demais em áreas rurais de outros estados da região sul. As
famílias que foram morar na cidade nova, construída a 4 km de distância da antiga, passam
a viver dia-a-dia o significado da desterritorialização ora abordado. Suas identidades, suas
particularidades que foram constituídas ao longo da história de vida da cidade antiga como
um todo, ficaram nos retratos, nos objetos e na memória.
Apoiados pela religiosidade, os atingidos foram passivamente atendidos em
alguns detalhes neste processo de transferência para a cidade nova. Foram replantadas
algumas das árvores; foi feito o translado de seus antepassados enterrados no antigo
cemitério construído pelas famílias; foram reconstruídas réplicas de símbolos culturais,
como a casa de cultura, e foi transferida a pedra fundamental da cidade, que leva o
significado do nome Itá – “objeto-duro”.
Para que essas famílias fossem reterritorializadas, tiveram que continuar na
sua condição de família. No entanto, as famílias anteriormente compostas, em sua maioria,
por pessoas com idade em torno de 45 anos, filhos em idade escolar ou já adolescentes, ao
término da construção e da inauguração da UHE, no ano de 2000, apresentavam outra
configuração. Os pais já estavam idosos, os filhos ou foram estudar fora ou casaram-se e
foram morar em outro lugar. As famílias se destituíram, cada um tomou seu rumo, não
mantiveram sequer a tradição de morar próximo e de dar identidade ao espaço territorial
que ocupavam. Essa desconstituição provocou nas pessoas de mais idade problemas de
ordem psicológica, como depressão e um profundo estado de tristeza.
Ligadas por vínculos que expressavam o conjunto social familiar e a
comunidade, as famílias de Itá, atingidas e desterritorializadas pela usina, constituíram-se
em significativo objeto de estudo para várias áreas do conhecimento como Geografia,
Sociologia, Antropologia, História, entre outras. Dentre tais estudos pode-se citar o de Reis
(2001), que infere que, para as famílias de Itá, o espaço possui múltiplos significados, para
além, inclusive, da propriedade de cada família. Enfatiza, ainda, que a migração, nesse
caso, não tem somente o significado de mudança de espaço físico, mas que a valorização
simbólica dada pelas famílias ao seu espaço não possui só o valor monetário em relação às
terras e às benfeitorias.
Percebe-se, nesse contexto, que as famílias atingidas pela UHE de Itá foram
morar em uma cidade nova, construída dentro dos padrões de pessoas que nunca moraram
em Itá. Aqueles que a construíram somente tinham a obrigação trabalhista de cumprir a
execução de um projeto elaborado dentro das estratégias políticas e econômicas, dirigidas
por políticos e empresários investidores. Jamais a consciência do trabalho árduo que foi
desenvolvida, principalmente, pelos trabalhadores do campo, foi reconhecida nesse
processo. Nenhum valor monetário cobriu a perda afetiva que essas famílias tiveram.
Constituíram uma nova forma de vida, novas relações, novo jeito de ver uma cidade, uma
casa, um bairro e novos hábitos religiosos.
Para essas famílias, mudar para a cidade nova significou perder a terra, a
casa, o compadrio e, também, o seu modo de vida, a sua identidade. Esse valor, que é
simbólico, torna-se um peso na vida dessas famílias, pois ao se darem conta que a situação
não irá mudar, passam a sentir, em vida, o real sentido de transgressão e agressão ao modo
de vida que haviam escolhido. Numa área territorial menor, com menos liberdade de
expressão e vigiados pelos olhares de desconhecidos, confinam-se dentro de suas casas
como espectadores de um objeto presente, que é a UHE, que tem grande importância em
todo esse processo, mas que não faz parte do cotidiano em que vivem.
Os fatores que caracterizam o cenário de produção de energia por
hidrelétricas mostram, com clareza, que as famílias atingidas pela implantação dessas
usinas são elementos pontuais e não-significativos no conjunto de decisões implicados na
construção de usinas. Portanto, para as empreiteiras e os consórcios de construtores, não
interessa se as famílias se integrarão ou não ao processo, o que interessa é a geração de
lucros através da produção de energia. Os problemas sociais e psicológicos das pessoas
atingidas não estão na pauta de discussão e de decisões dos empreendedores. Esse é mais
um argumento que vem a reforçar a desterritorialização das famílias que foram atingidas
pela UHE de Itá.
A pressão que existe em muitos lugares no mundo, em especial no Brasil,
para que se construam usinas hidrelétricas é, indiscutivelmente, acirrada e representativa.
Isso remete a uma outra discussão: verificar se os territórios que se formam por ocasião da
implantação das usinas apresentam a característica de estarem sendo construídos por seus
ocupantes. Esse posicionamento é que se reflete nos objetivos de existir um território, para
que assim as populações tenham fixação, com o direito do livre arbítrio, respeitando a sua
cidadania.
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